A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 50
O Último Desembainhar da Espada - Sangue Gelado


Notas iniciais do capítulo

Pessoal, esse capítulo ficou mesmo grande, mas as coisas q acontecem aqui não podem ter uma pausa,entendem? Espero que sejam muito, mais muito sinceros mesmo. digam se gostaram, o que acharam.

Deixem Reviews... Estou escrevendo o próximo capítulo já xD



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O Último Desembainhar da Espada - Sangue Gelado

 

Senti uma espécie de força maior crescer dentro de mim. Minha aura estava inflando como um balão, passando pela minha pele, consumindo meus ossos e tomando a parte externa do meu corpo, crescendo a minha volta como um casulo. A pressão que meu corpo provocou obrigou Barclay a me soltar.

            _ Você acha mesmo que pode fazer isso? – gritou Jericho.

            _ Não dá pra te matar, Jericho – eu falei – então seremos consumidos. Nós dois.

            Lancei um último olhar em direção aos meus amigos. No instante em que uma pilastra congelada caiu, pude visualizar perfeitamente a imagem de Emi nos braços de Sarah, que produzia um campo seguro ao redor delas, enquanto Will socava os inimigos a volta. Era impressionante. Aquele garoto, jovem e surdo, mesmo ferido por um osso de algueora, retinha uma força absurda em seu punho. Provavelmente o mais forte guerreiro do submundo. E ele estava protegendo Emi. Era reconfortante, afinal.

            Deixei minha aura tomar um círculo a minha volta, alcançando Barclay no mesmo instante, enquanto as pétalas de Lótus se prendiam aos relâmpagos que voavam do meu corpo, fixando-se a mim, tornando parte do meu plano. Barclay me encarou, perplexo, percebendo a luz azul envolve-lo da mesma forma. Ele sabia o que eu pretendia.

            _ VOCÊ É LOUCO! – ele gritou – ISSO PODE TE MATAR TAMBÉM!

            Eu apenas sorri. Vi o olhar de Emi me encarar, enquanto sua mãozinha tateava o chão congelado, procurando por alguma coisa. Os olhos dela estavam cheios de expressão. Meu olhar a abandonou e fitei Barclay com determinação.

            Então eu retraí. Toda a minha aura. Num plano meio ensandecido, talvez suicida, eu pudesse ter alguma chance. Talvez eu fosse morrer daquele jeito, mas pelo menos assim Jericho estaria fora do páreo, e seria um conforto muito maior. Lembrei-me de Charlie, Sophie, os gêmeos Gifford, Loui. Por eles eu seria capaz de fazer esse sacrifício.

            Minha aura repuxou. Centenas de Lótus-de-Chumbo foram arrancadas do chão, presas à minha aura. Lá estava Jericho, próximo a mim, minha aura presa a ele, nós dois envolvidos por uma armadilha elaborada em último momento. As pétalas voaram em nossa direção, em formação circular, como projeteis reluzentes, rasgando a luz azul e se aproximando. Os olhos de Barclay falhavam de pavor. Foi como uma espécie de imã, em que pétala por pétala era atraída até o círculo feito por mim, onde Jericho e eu ainda estávamos. Éramos o alvo, o destino final da Lótus-de-Chumbo.

            A primeira fisgada foi tênue. Uma pétala cravou o meu ombro. A outra acertou o rosto de Jericho, provocando um corte fundo. Uma fisgada atrás da outra, mas minha atenção estava voltada para Jericho, afastando um pouco a dor. Logo, nos dois pareceríamos almofadinhas de costura, perfurados por pétalas letais. Então a luz azul sumiu.

            A luta a nossa volta cessou instantaneamente. Ouvi as asas constantes de Dominique farfalhar a alguns metros de distância, o silvo das agulhas de Rich cortarem o ar. Depois disso, apenas respiração. Todos tinham parado, talvez perplexos, esperando quem seria o primeiro a cair.

            Jericho estava coberto de lâminas de chumbo, enquanto longas linhas de sangue escorriam de seu corpo até o chão. O mesmo acontecia comigo.

            _ Isso... Não foi... Inteligente... – murmurou Jericho, frustrado, mas estava claramente sofrendo com aquela sessão de acupuntura.

            Ele levou a mão ao rosto, removendo duas pétalas. Senti as dores em meu corpo, mas algo estava errado. Elas não atravessaram.

            _ Acha mesmo que esse movimento idiota... Vai nos parar? – Jericho estremeceu, por pouco não cai de joelhos. Se segurou mais um pouco, sorriu bobamente e continuou – somos Haunters. Nosso corpo foi feito para resistir à morte, você não percebe?

            Então meu plano tinha falhado. As pétalas não tinham atravessado o nosso corpo. Provavelmente a pele de um haunter era resistente demais, nenhuma daquelas lâminas conseguiu atingir os três pontos vitais extremos de nossa regeneração. Se ele removesse todas as lâminas, seu corpo se restauraria.

            _ MATTHEW! – ouvi a voz aflita e gritante de Emi. Virei-me. Ela ainda estava protegida pelo escudo – A TAÇA! É A FORMA DE ENCONTRAR A MÁSCARA! PEGUE A TAÇA!

            Eu me foquei no pequeno altar no centro do estádio, onde uma taça com líquido congelado permanecia intocada.

            Jericho fez o mesmo, encarando com urgência o recipiente imóvel, frio, aparentemente sem nenhuma importância. Então era isso que Emi estava fazendo quando deslizava as mãos no chão congelado. Estava buscando respostas, através das “sombras de luz”, os acontecimentos passados, que poderiam nos ajudar. E a taça era a chave. Mais uma.

            Jericho correu, subitamente, maliciosamente. Correu em direção à taça. Naquele momento todos havíamos pensado em fazer o mesmo, mas os rivais voltaram a lutar, almejando a dianteira. Apenas eu e Jericho estávamos inaptos a lutar, com as pétalas bloqueando nossa aura, impedindo-nos de usar nossa velocidade.

            Era estranho correr tão limitadamente, como um humano normal, pé na frente do outro. Mas não durou muito tempo. Jericho corria com sua expressão frustrada, como se fosse terrível viver com aquelas limitações humanas.

            Passos ecoaram logo atrás de mim. Era Rich, passando por mim como um canhão, tão rápido que apenas meus olhos podiam acompanhá-lo. Mas não foi o suficiente. Um dos Homúnculos inimigo havia interceptado, atirando sobre meu irmão com fúria, derrubando-o. Os dois passaram raspando perto do altar, mas rolaram para o outro lado, iniciando uma nova luta.

            Fiquei surpreso em como meu grupo estava se saindo bem, mesmo com a desvantagem aparente. Ao que parecia, a pouca diferença entre Haunters era suficiente para equilibrar as coisas. Afastei da minha mente as perdas sofridas ali. Lembrei-me principalmente de Charlie. Estava morta. Eu precisava alcançar aquela taça. Por ela, por todos nós.

            Estávamos emparelhados, eu e Jericho, em uma corrida sem igual, dois seres do submundo, nossos corpos cobertos de lâminas, feridas abertas, nossas pegadas de sangue a cada impulso com o corpo. Os ruídos soavam como um verdadeiro campo de guerra. Gritos de euforia, fúria, sons de ossos se partindo, paredes sendo quebradas. Eu não tinha a menor idéia de quem estava ganhando, mas eu não podia pensar nisso, não agora. Se eu alcançasse a taça...

            Cary provavelmente não poderia me ajudar, estava se embrenhando com dois homúnculos, e distraí-la poderia ser um erro. Éramos apenas eu e Jericho, em um duelo sem a nossa aura ao máximo, apenas nossos corpos feridos e semi-incapacitados.

            Dei uma golfada de ar, isso me custou uma costela se partindo. Imaginei que uma lâmina tivesse atingido meus ossos, mas não me importei. Quanto mais perto chegávamos da taça, mais frio ficava, e a atmosfera gélida ajudava a sedar a dor. Para a minha infelicidade, tinha o mesmo efeito no corpo de Barclay.

            Ele avançou seu punho aberto contra mim, tentando me segurar, mas me esquivei. Tropecei, por pouco não caí, mas continuei correndo. Nunca tinha me passado a idéia do quão grande era um estádio. Geralmente eu não suava para dar algumas voltar eu um trajeto como aquele. Os pés de Jericho estavam pareados com os meus. Estávamos a uns vinte metros ou menos da taça. Era tudo ou nada. O que haveria de tão interessante naquela coisa?

            Estava bem perto agora, nossas mãos esticadas em direção ao altar, a taça reluzindo cada vez mais, correspondendo à nossa proximidade. Estávamos tão perto, quase tocando o objeto.

            Meus dedos, apontados desesperadamente em direção ao altar, formigaram. Uma súbita queimação fez meus dedos tremerem. Gelo. O ar gélido da atmosfera congelou as pontas dos meus dedos quase instantaneamente. Claro, de que outra forma manteriam uma taça com gelo durante tanto tempo debaixo da terra? Mas parar não era uma opção. Eu não podia me dar ao luxo de esfregar as mãos e fazer o calor do meu corpo voltar. Penetrei no ar denso, sentindo gotas de gelo se formarem na minha pele. Jericho estava um passo a minha frente e, pela sua expressão, sentia o mesmo. Dedos formigando, corpo congelando... Senti meu sangue, antes fervilhando freneticamente, cessar, como se não tivesse forças para continuar seu percurso do pulmão ao coração, suprir meu desesperado desejo por oxigênio.

            O que veio em seguida foi rápido demais. Senti uma dor estranha das costelas. Era um golpe, ou algo assim. Alguém tinha me atingido. Meu corpo se desprendeu do chão, tão impotente e fraco, que senti o ar pesado quase esmagar meu corpo leve, fragilizado pelo frio.

            A primeira coisa que vi foi minha mãe, sua perna estendida, me encarando no ar, séria, inexpressiva. Ela tinha me tirado do páreo.

            _ Matthew! – era a voz do meu irmão, talvez. Era possível ter certeza naquele momento, o ar frio já havia formado uma película de gelo em volta dos meus ouvidos, até mesmo o ar se recusava a entrar.

            Que idiota. Era assim que eu iria perder? Depois de ser reduzido a um Haunter e mestiço Homúnculo-Alucate sem poderes, eu iria ser nocauteado pela minha própria mãe. Caramba! Eu queria rir, dar gargalhas, se meus lábios não estivessem pregados por causa do frio.

            Então ouvi outro som, ainda no ar. Era um som abafado, mas alto o suficiente para saber que mais alguém tinha sido nocauteado. Richard? Ele tinha sido abatido pela própria mãe? Isso seria ainda mais frustrante.

            Não, não era. Ouvi o urro familiar de Jericho.

            Eu estava perto do chão agora, o ar estava se deslocando levemente em volta do meu corpo. Então eu senti. Duas mãos quentes e firmes me segurarem. Tão gentilmente, que mal pude sentir o impacto. Instantaneamente senti o calo envolver meu corpo. Aquele calor natural, acompanhado de uma luz prateada tão familiarmente desejada. Cary tinha me segurado no momento certo.

            _ Matthew... – ela murmurou, aflita – você está bem? Droga, o que você fez? Essas coisas em você...

            _ A taça... – eu balbuciei, sentindo os meus lábios se desprenderem com o calor instantâneo do corpo do meu sol particular – ela...

            _ Seu irmão chutou Jericho pra longe. Agora, nesse momento, seu irmão e sua mãe estão lutando. Matthew... Seu irmão não vai agüentar muito tempo. Sua mãe é forte, experiente. Precisamos terminar isso...

            _ Onde está Jericho...? – eu ergui minha cabeça.

            A cena que vi foi a pior possível. Olhei a minha volta. Corpos inertes. Um, eu tinha certeza, pertencia... A Charlie. Meu coração saltou, querendo gritar, um urro de dor que transcendia a dor das inúmeras feridas do meu corpo. Ela estava ali, jogada, derrotada, sem nenhuma dignidade em sua morte.

            Muitos rostos desconhecidos jaziam espalhados no campo de batalha, alguns decapitados, outros sem outras partes, sempre ferimentos horrendos.

            Mais a frente, Sarah Will e Emi tentavam manter afastados um dos Haunter inimigo, além de mais dois homúnculos Rubros. Abi e Brian estavam lado a lado, lutando contra uma grande quantidade de homúnculos, enquanto os outros Haunters aliados se dispersavam. Vi Cadence cortar o ar como uma bala, correndo em direção a um haunter inimigo.

            No centro do estádio, a taça, imóvel, intocada. Rich, coberto por manchas de sangue e um rosto esfolado, ainda lutava contra minha mãe, com algumas escoriações nos braços nus. Jericho estava no chão, a alguns metros de distância, gemendo de dor. A dor das pétalas de chumbo somadas a uma agulha consideravelmente grande cravada em seu ombro, lançada por Rich, devia provocar uma dor cruciante.

            Emi, Sarah e Will estavam em apuros. Estavam lutando com um número maior de inimigos. Emi estava assustada, eu podia ver em seus olhos, mas ela estava lutando com determinação. Era apenas uma criança, droga!

            Um súbito repuxão em minhas costas me fez perder o meu apoio. Cary havia sumido. Ouvi um silvo agudo, quase como um grito furioso. Bati o ombro no chão. Olhei para trás, onde Cary estava há pouco. Ela estava sendo arrastada por um haunter e uma mulher homúnculo que eu nunca tinha visto antes. Pela sua aparência agressiva, talvez fosse uma Rubro, como a maioria dos traidores.

            _ Cary... – eu murmurei, tentando gritar.

            Ela retomou a luta. Eles eram fortes, dariam um bocado de trabalho.

            Meus olhos percorreram todo o estádio, em completo desespero, buscando alguma chance. Meus olhos pousaram no osso de algueora, que reluzia menos do que antes, provavelmente sua energia estava sendo drenada por aquela plantação de Lótus-de-Cumbo.

            Fincando os cotovelos no chão, apoiei o meu corpo, tentei me levantar, trêmulo em cada movimento. Agora de pé, comecei a caminhar, dando passos apressados, as mãos erguidas em direção ao osso, enquanto meus olhos fitavam Jericho. Ele estava tentando remover as pétalas.

            Levei minha mão ao rosto. Haviam duas presas em minha testa. Removi uma a uma, mas apressadamente. Depois outra, mais algumas cravadas em meu peito. Senti aquelas coisas engolindo minha força, embriagando com a minha aura.

            Jericho estava a frente dessa corrida, avançando mais e mais, removendo as lâminas. Pude ver a sua aura escarlate escapar pelas feridas, se deslocando em seu corpo. Tentei correr, mas meus passos falharam. Escorreguei, me segurei com a palma das mãos, me levantei novamente, continuei caminhando em direção ao osso de algueora.

            Removi uma grande quantidade de lâminas, comecei a sentir, lentamente, minha aura fluir em meu corpo, livre, depois de remover aqueles selos cortantes. Fitei Jericho. Ele estava bem.

            Muito bem, para dizer a verdade. Melhor do que antes.

            As feridas estavam se fechando. Ele girara a cabeça, fazendo seu pescoço estalar. Ele removeu o que parecia ser a sua última pétala presa ao queixo. Ele encarou a quantidade de pessoas que lutavam a nossa volta, todos tentando chegar até a taça. Barclay me encarou e deu um tchauzinho miserável. Enquanto eu tentava pegar a taça a todo custo, ele estava removendo as pétalas, provavelmente já sabendo que minha mãe o iria ajudar no momento certo.

            Senti meu corpo ganhar forças novamente, mas minhas feridas não conseguiam se fechar completamente. Não havia mais nenhuma pétala, o que estava acontecendo?

            Uma fisgada na costela me fez lembrar. Droga! Uma única lâmina. Bastava apenas uma lâmina, aquela que tinha penetrado minha carne, o suficiente para me colocar em completa desvantagem. Eu não conseguia correr com a minha velocidade ao máximo.

            _ Matthew! – ouvi o grito de Cary logo atrás de mim.
            Ela saltou sobre mim, enquanto o haunter e um outro homúnculo corria atrás dela. Cary iria tentar parar Jericho.

            Mas não foi rápida o suficiente. Os dois inimigos conseguiram agarrá-la, arrastando para longe, deixando o espaço livre para Jericho obter a taça. Ele estava confiante agora, caminhando sorridente em direção a taça.

            _ Por favor... – eu murmurei. Não sabia, exatamente, com quem estava falando, mas não havia muito o que eu poderia fazer – não deixa ele pegar essa droga...

            Comecei a correr, os passos limitados, ligeiramente mais rápido, mas não o suficiente para chegar antes de Jericho. Ele percebeu o meu movimento e disparou contra a taça, chegando até ela com facilidade.

            Ao que parecia, o frio não era capaz de congelar um corpo de Haunter bem disposto. “Tudo por causa dessa merda de lâmina”, eu murmurei, “uma mísera lâmina”.

            Eu estava me aproximando, mas Jericho já tinha o objeto em mãos. Ele a lançava no ar, brincava com o objeto entre os dedos, sentindo-se vitorioso. Será.

            Eu parei a alguns metros de distância. Fitei-o com fúria, mas seria uma grande besteira lutar contra ele. Tateei as minhas costas, procurando a ferida. Eu iria tentar removê-la.

            _ Já percebeu, não é? – ele disse, radiante de felicidade – Você por acaso sabe como usar isso? – ele apontou para a tala.

            Eu não me dei ao trabalho de responder. Tateei mais uma vez em volta da minha costela, sentindo uma súbita fisgada. Ali estava, quase invisível, um corte, fino, mas bem profundo, onde uma linha discreta de sangue escorria até a barra da minha calça.

            _ Aqui dentro... – ele começou a falar, caminhando em minha direção – Tem a resposta. Isso significa que você já pode desistir, rapaz – pude sentir com clareza o cinismo em sua voz.

            Meus dedos eram grande demais para entrar na ferida, então tive que forçar. Senti minha carne quase rasgar, um jorro de sangue ainda maior escapar pela ferida. Gemi, minhas pernas tremeram e, sentindo aquela dor insuportável, com aquele corpo tão incapacitado, caí de joelhos.

            _ Isso é só... Uma taça – eu falei, tentando afastar a atenção de Jericho – É só água congelada.

            Meus olhos correram até Emi. Ela acabara de lançar uma rajada de energia contra um homúnculo. Sarah e Will sempre se mantinham a frente dela, como em um escudo protetor.

            “Não”, murmurei para mim mesmo. As coisas não poderiam terminar assim. Meu dedo conseguiu atingir a ferida, segurei o ímpeto de gritar de dor, deixando meu dedo tocar a lâmina cravada no interior do meu corpo. Era apenas remover e...

            _ Não seja estúpido, Matthew... – a voz de Jericho havia mudado de lugar. Ele não estava mais a minha frente. Ele havia se projetado para minhas costas. Suas mãos estavam sujas de sangue.

            _ O que... – minha voz falhou.

            Senti espasmos nos meus braços. Algo caiu no chão, fazendo um barulho surdo, se chocando com a poça de sangue. Meus olhos de abaixaram, incertos com o que viam. Era irreal demais.

            Ao lado dos meus pés, minhas mãos estavam caídas, inertes, ainda palpitando, como os órgãos fazem segundos após sua “remoção”. O riso cômico de Jericho me apavorou. Eu não conseguia mais remover a lâmina dentro de mim.

            Virei-me para Cary. Ela ainda estava tentando se desvencilhar dos inimigos e vir ao meu suporte, mas eles estavam dando um bocado de trabalho. Não me importava mais aquele maldito osso de algueora. Eu não iria morrer daquele jeito.

            As lágrimas deitaram em meu rosto, mas não era dor, ou medo. raiva, era tudo o que eu podia sentir. Meu caminho como guerreiro do submundo foi marcado pelo sangue de pessoas que lutaram comigo, lutaram por mim. E agora, depois de tudo, eu não iria permitir que Jericho vencesse.

            Meus joelhos tremeram, mas meu corpo se deslocou em decisão. Levantei-me, sentindo fisgadas nos pulsos, que emanavam uma hemorragia torrencial, manchando meus pés de vermelho.

            _ GRAAAAAAHH! – Cary gritou.

            Seu corpo sumira no ar. Havia teleportado. Jericho fitou o ar vazio, onde antes estivera a ChAngel, e agora não estava mais lá. No segundo seguinte, Cary reapareceu atrás de Jericho, mais rápido do que o meu próprio pensamento.

            _ Seu miser... – Barclay ia praguejar, mas foi afastado pela arfada de ar produzida por Cary.

            Com sua telesinesia, Cary atraiu a taça, que rasgou o ar em sua direção. O objeto reluziu enquanto girava no ar, e meus olhos só podiam acompanhar o movimento rotatório, imprevisível.

            Os dedos de Cary agarraram firmemente a taça. Ela tinha conseguido, afinal.

            Bastava Cary descobrir um meio de obter a máscara e poderíamos ir embora daquele lugar, deixando os inimigos para trás.

            _ MATTHEW! – era o grito de Sarah, me despertando completamente.

            Meus olhos correram até o ponto extremo do estádio. Sarah e Will estavam desvencilhando de ataques do inimigo, mas eu não encontrava Emi.

            _ Cary! Onde está Emi? – eu gritei.

            Cary também olhou de um lado para o outro. Tudo aconteceu rápido demais, talvez em questão de cinco, dez segundos.

            Os olhares meu e de Cary pousaram no mesmo lugar. Emi estava no outro extremo, onde dois braços de um haunter inimigo a imobilizavam, uma das mãos seguravam o rosto de Emi e, a outra mão segurava uma farpa do osso de algueora. O suficiente para matar um Homúnculo. O suficiente para levar Emi para sempre.

            _ Droga, Cary! – eu urrei – eu disse que Emi era prioridade!

            _ Eu não sou protetora dela, Matthew! Tenho um compromisso com VOCÊ! – ela gritou em resposta.

            Mas não era hora nem lugar para discussão. Instantaneamente, como se a simples sena dissesse tudo o que precisava ser dito, as lutas cessaram. Os inimigos, com um sorriso de vitória. Meus amigos, afastando, cautelosos, todos temendo pela vida de Emi. Assim como eu.

            _ Jericho! – eu gritei – mandem soltá-la!

            Fiquei surpreso que minha voz ainda pudesse sair em alto e bom som. A quantidade de sangue que eu perdia estava aumentando. Senti a poça vermelha aos meus pés esfriar, solidificar, até formar um piso vermelho congelado. O sangue que pingava dos meus braços mutilados secaram instantaneamente, formando gotas de gelo nas bordas do meu pulso. A dor era meu menor problema.

            _ Um trato simples – Jericho sorriu, contente – O que acha? Um acordo.

            _ Não pretendo fazer acordos com um miserável...

            _ Ford? – Jericho falou para o Haunter que tinha Emi em suas mãos – dê uma amostra para o garoto. Ele não percebeu que está em condições de questionar.

            Ford passou levemente o osso pelo queixo de Emi, formando uma fina linha de sangue. Meus dentes trincaram.

            _ Você foi um idiota em trazer suas maiores fraquezas para o campo de batalha, garoto – Jericho caçoou – eu sei como é. Você é forte, seria capaz de morrer sem remorso, sangrar até a morte sem reclamar. Mas aqui estão. Seus amigos, seu calcanhar de Aquiles.

            _ Você é um verme, Barclay...

            _ Não, Vance... – ele sorriu cruelmente – VOCÊ é um verme. Pode vir rastejando até mim, se quiser.

            Pensei por um segundo. Era por causa da máscara que estávamos ali. Entregar a taça significava morte. Para todos nós.

            _ Cary... – eu me virei, olhando com os olhos marejados. Torci para que nossa conexão fosse forte o suficiente para que ela compreendesse o que aquele olhar queria dizer – entregue a Emi.

            Ela arqueou a sobrancelha, confusa. Mas então, como se compreendesse, ficou boquiaberta.

            _ Eu não pos...

            _ Cary. Jogue a taça.

            Falando isso, eu bato o meu cotovelo nas costelas, indicando o que havia bem ali. Ela me fitou por um breve segundo. Ela me analisou como seu pudesse ler a minha mente, ou pelo menos decifrar a minha expressão.

            _ Jogue a taça, Cary... E Entregue a Emi. – eu pedi.

            Ela compreendeu. Eu podia ver claramente sua hesitação, mas aquele não era um momento para incertezas. Eu era o líder ali, era isso o que meu coração dizia, então ela teria que confiar em mim.

            Ela finalmente assentiu. Eu sorri, aliviado. Eu acenei com a cabeça. Não era uma mera reverência. Era algo mais. Um sinal de gratidão, de adeus, do todas as demonstrações de afeto em um único gesto sem toque. Ela compreendeu. Cary precisava ser rápida. O suficiente para salvar Emi. Tudo foi marcado em menos de cinco segundos.

            Um segundo. Cary fez um gesto brusco com as mãos abertas, uma lançando a taça em minha direção e a outra abanando uma única vez. Instantaneamente senti uma fisgada em minha costela. Senti a pétala de Lótus ser cuspida para fora do meu corpo, ser lançada para longe, graças à telecinesia do meu ChAngel. No mesmo instante, medido em milésimos de segundo, Cary virou apenas um borrão em minha visão. Uma silhueta disforme, brilhante. Ela não era mais a minha protetora. Senti algo se desconectar entre nós, como uma corrente se quebrando. Era o fim de nossa conexão sobrenatural.

            Dois Segundos. Meus braços explodiram. Duas mãos se formaram novamente, ossos unhas e carne, o meu corpo estremeceu e pude sentir, como antes, quando podia correr com o vento, a explosão de energia dentro de mim, a palpitação do meu coração alimentado pelo sangue quente e furioso. O sangue congelado aos meus pés trincaram, os estilhaços subiram quando meus pés ordenaram que meu corpo se arremessasse.

            Três segundos. Ouvi o urro de frustração de Ford ao falhar em seu objetivo. Cary conseguira salvar sua pequena protegida, teletransportando até o inimigo e desarmando-o. Meu corpo agora atingindo uma altura considerável, meus dedos alcançaram a taça, protegendo o objeto em um punho firme e seguro. Jericho saltou em seguida.

            Segundo quatro. Toda a luta tomaria proporções inimagináveis.

            “Mais um pouco” eu murmurei, sentindo a minha aura queimando em meu corpo. “Eu sou um Vance. Vovô, o senhor vai se orgulhar”.

            Alguma coisa dentro de mim gritou. Ou talvez tudo dentro de mim estivesse gritando. Impulsionei-me em direção a Jericho, deixando a taça ainda segura em minhas mãos. Eu não iria cair dessa vez.

            Não sei por que gritei, mas talvez fosse a adrenalina, a voz da euforia, um grito de guerra, um sinal de que eu não cairia mais. Não sem antes receber a vitória. Corri em direção a Jericho, paralisado de surpresa, ou talvez fosse pavor. Deixei toda a energia antes contida em meu corpo saltar para fora. Os relâmpagos azuis estavam de volta, marcando o chão por onde eu passava, dividindo o piso congelado, provocado fissuras de um terremoto que estava acima do solo. Dessa vez tomei o cuidado para não cometer o mesmo erro e puxar as lótus até minha aura outra vez. Esse plano já estava fora das minhas intenções.

            Um braço me segurou. Fitei o rosto desconhecido, um homúnculo que tentava proteger o seu chefe. Meu punho se fechou em sua garganta, que parecia ser feita de papel. Ele engasgou. Lancei-o contra Jericho, que repeliu o sujeito com máscara de búfalo usando uma rajada de luz escarlate. Atacando o próprio aliado, era bem típico de traidores. Isso só iria tornar as coisas mais fáceis quando eu decidisse matar Jericho Barclay.

            Meus dedos se fecharam sobre os ombros de Barclay. Mesmo ele tentando desvencilhar, sua surpresa o havia atrasado e, quando se deu conta, eu estava por cima, empurrando-o contra o tapete de lótus-de-chumbo em pontos estratégicos. Mas Jericho ainda era rápido o suficiente para escapar de um movimento assim.

            Ele ergueu o pé direito, pousando-o até o meu peito e, como uma alavanca, ele me empurrou. Meus dedos foram forçados a soltá-lo, e sua força impulsionou o meu corpo para trás. Fui arremessado no ar. Depositei o peso do meu corpo nos ombros, refazendo o percurso aéreo, girando no ar e caindo de cócoras. Eu não ia dar trégua, iria fazer pressão contra Jericho até que ele se descontrolasse. No mesmo instante flexionei as pernas, me arremessando novamente contra Jericho, cortando o vento uma ave de rapina em vôo raso.

            Antes que eu pudesse alcançar Jericho, um vulto negro passou rasgando a minha frente, guinchando de dor. Parei abruptamente, lançando um olhar a minha mãe, caída no chão. Por um milésimo de segundo tive o impulso de ir ajudá-la. Desisti. Não era minha obrigação, não mais. Ela me lançou um olhar estranho, uma mescla de ódio e desespero, algo meio ilegível, mas profundo. Chacoalhei a cabeça, voltando minha atenção à luta.

            Com a mão livre reuni minha aura e, enquanto corria, disparava descargas de energia, obrigando Barclay a se afastar. Minhas mãos queimavam a cada disparo, como um frenesi, exigindo que eu desse o máximo de mim.

            _ Você vai definhar aqui, Vance! – gritou Jericho – junto de sua família!

            Ele começou a descarregar energia, assim como eu, enquanto nossa aura explodia no ar como fogos de artifício, se chocando e iluminando o estádio congelado. Meus pés batiam no chão uma vez ou outra, me dando mais impulso. Estávamos percorrendo todo o ambiente, a uma tremenda velocidade, disparando um contra o outro arsenais de grande poder de fogo, enquanto os movimentos de conflitos a nossa volta passavam por nós como borrões.

            Um disparo de luz vermelha veio em minha direção, esquivei curvando meus ombros para baixo, direcionei meu corpo para a esquerda e, num movimento evasivo, me projetei até a lateral de Jericho, sempre com a taça firme nas mãos. Eu sabia que precisaria das minhas duas mãos livres para ser páreo.

            Me lancei de costas em direção a Emi, onde Sarah, Will e Cary retomavam suas batalhas. Passei entre eles, atraindo a atenção de Jericho.

            _ Emi! – gritei, lançando a taça – fique com isso!

            Suas mãos se fecharam sobre o objeto, agora seguro sob a proteção de dois Haunters e um ChAngel. Emi me fitou com pavor, não por ela, mas por mim. Ela me vira cair muitas vezes, e temia que acontecesse de novo. “Por você, irmãzinha”, eu murmurei, torcendo para que ela me ouvisse “Por você e pelos meus amigos”.

            Barclay tentou esquivar e chegar até Emi, mas eu intervim. Ele sabia que não poderia pegar a taça sem antes se livrar de mim.

            Retomamos a luta, agora eu estava elétrico, com as mãos livres para bloquear e disparar ataques, sempre tomando o cuidado de não tocar em nenhuma Lótus. Falhar não era mais uma opção.

            Duas vezes consegui acertar Jericho, mas sua regeneração estava ainda mais eficiente. Seus golpes eram rápidos e era mais difícil acompanhá-lo com o corpo do que com os olhos. O vento assobiava a nossa volta, incapaz de seguir nossa velocidade, enquanto os sons dos conflitos se intensificavam.

            Estávamos todos exaustos, Barclay mais enfurecido, por ter perdido a taça. Eu o atingi com o punho fechado no rosto, lançando-o sobre o altar congelado. O impacto estrondoso trincou o chão, estilhaçou o altar e levantou uma névoa branca e fria.

            Logo, os fragmentos de gelo começaram a se soltar das pilastras e do teto, caindo no chão como neve, cobrindo nossas cabeças com o sutil brilho azulado.

            Estávamos no centro do estádio, lutando fervorosamente, quando senti alguma coisa se apoiando em minhas costas. Era Brian.

            _ dia difícil, hein? – exclamei, segurando-o pela manga da jaqueta e puxando-o para o lado, fazendo o ataque de Jericho nos errar por pouco.

            _ É assim que se mata o tédio, certo? – pude sentir o tom sarcástico em sua voz.

            _ Apanhou muito? – caçoei, nos abaixamos outra vez. Brian golpeou o inimigo, fazendo-o cambalear para o lado.

            _ Hei, eu ainda tenho minhas mãos – ele deu uma risada, saltando pra cima do adversário – te vejo no pódio!

            Não pude evitar de sorrir antes de investir contra Jericho. Meus pés praticamente alçaram vôo, atingindo pouco mais de dez metros, sentindo os flocos de gelo passarem pelos meus olhos. Com as penas firmes, direcionei-as em direção a Jericho. Por muito pouco ele conseguiu desviar, deixando uma cratera considerável no lugar onde estava.

            _ Vocês são muito confiantes – rosnou Barclay – isso não é sinal de força.

            _ Você pode pensar sobre isso quando eu estiver saindo daqui com a taça.

            Jericho estava mais desequilibrado agora. Talvez sua parte Haunter prevalecesse sobre o seu lado humano, enquanto eu dividia minha mente com três forças: haunter, homúnculo e alucate.

            Ele girou os calcanhares como numa dança, esquiando dos ataques, fechando o punho e furando o ar assim que desviei. Estávamos perto, nosso corpo entrava em contato com mais freqüência, cortes fundos e ferimentos provocados e, instantaneamente, restaurados. Aquilo poderia durar uma eternidade se continuasse nesse impasse.

            Ouvi uma exclamação de Emi, parecia mais como um grito de alegria. Deixei esse pensamento vagar pelo meu corpo, me incentivando a lutar. Saber que todos ali estavam bem me deixava tranquilo.

            _ Consegui! – o grito de Emilliene vagou em todo o estádio, chamando a atenção até mesmo de Jericho.

            _ O que ela...

            _ Hei, Barclay! – eu o segurei pela roupa preta – eu sou o seu adversário.

            Ele forçou, tentando saber o que estava acontecendo. Reuni aura em minhas mãos e disparei contra o seu rosto, obrigando-o a regressar a nossa luta. Ele disparou contra mim. Vi a luz escarlate correr em minha direção, mas um vulto atravessou o caminho, ricocheteando e provocando uma leve explosão. Da luz escarlate, percebi que o vulto que se chocara era um homúnculo desconhecido, com a máscara de crânio de búfalo aos estilhaços.

            _ Grande jogada! – ouvi os urros de alegria de Kurt. .

            _ Isso devia ser um esporte! – riu Brian.

            _ Hei, Matt! – chamou Kurt, como se fosse fácil ignorar Jericho – de nada!

            Eu não tive nem tempo de rir, ou responder. Flexionei os joelhos, me esquivando por trás de Barclay, em um movimento evasivo.

            _ Deixa ele, Kurt! – falou Brian – ele não sabe o que está perd... Opa, essa foi quase.

            _ Ah Ah Ah Ah! – eles riram em uníssono.

            _ Não sejam tão idiotas! – ouvi a voz de Abi e, o som dos seus pés baterem com voracidade no chão. – Hei, seu miserável! Agora você vai ver só uma coisa!

            Um estrondo forte indicou que ela tinha se transformado. Só pude visualizar um Aurupo grotesco agarrar o inimigo com a sua bocarra cheia de dentes antes de ser atingido de raspão por uma luz vermelha.

            Apenas Sarah e Will estavam tendo mais dificuldades. Cary já era difícil de ser notada. Ela estava em algum lugar, uma sombra de luz branca disforme misturada no ambiente congelado e reluzente.

            A luta estava se intensificando.

Mas o próximo acontecimento ocupou toda a nossa atenção.

            _ Eu tenho a resposta! – gritou Emi – eu tenho!

            O chão estremeceu. Primeiro parecia um leve tremor, comum àquela profundidade. Mas, então, subitamente, o chão onde nossos pés estavam firmemente plantados começou a se mover, abruptamente, ferozmente, como uma onda de terra, criando fissuras gigantescas, movendo blocos de terra e derrubando pilares. Um terremoto estava se formando no estádio subterrâneo.

            O deslocamento de terra nos afastou, por pouco não fui arremessado. Longas estalagmites começaram a brotar do chão, em contrapartida, no teto começaram a se formar estalactites de gelo, pontiagudas e translúcidas. Meus olhos correram, em completo desespero, em busca de algum sinal dos meus amigos. Uma estalagmite raspou em meu braço, mas se partiu ao me tocar. Mais ao fundo, uma grossa camada de ferro, uma superfície lisa e cinza, estava aparecendo. A terra estava se afastando, deixando à mostra o acúmulo férrico produzido pelas Lótus-de-Chumbo.

            Senti uma mão se fechar firmemente em meu ombro. Não era um inimigo.

            _ Precisamos sair! – gritou Brian, me puxando – Agora!

            _ O que? Não! Minha irmã! – eu exclamei, tentando elevar minha voz ao som da movimentação de terra.

            _ Não temos muito tempo! – ele respondeu – Veja!

            Brian apontou para o extremo do estádio, longe de todo o conflito. As estalagmites e estalactites estavam se tocando, como dedos do teto se unindo aos dedos do chão, mãos se fechando e formando o que pareciam ser grades de um imenso portão de terra.

            _ O portão! – falou Brian – Temos que ir!

            _ Vão na frente! – Eu gritei – Vou pegar a minha irmã!

            Eu comecei a correr, slatando as estalagmites, quebrando as protuberâncias de terra que se avolumavam a minha frente, procurando alguma brecha em meu campo de visão que mostrasse onde estava Emi.

            _ Emi! – eu gritei! – Onde você está?

            Um ruído estranho, algo se partindo. Um silvo agudo, quase como um grito. Vi um homúnculo inimigo se chocar contra dois pilares, derrubando-os. Lá estava Cary, ao lado de Sarah e Will. Os outros haunters aliados começaram a aparecer e, logo estavam quase todos lá. Exceto Brian, Abi e Richard.

            Corri na direção deles, em completo desespero. Precisávamos ser os primeiros a passar pelo portão.

            _ Onde estão os outros? – perguntei. Me senti um idiota, tinha deixado Brian de lado.

            _ Não há tempo – falou Cary, uma voz suave, vindo da luz disforme a minha frente. Senti falta de assistir seu rosto travesso mais uma vez – Temos que sair daqui! Agora!

            _ Vão vocês! – eu disse – Cary, sua missão é proteger Emi, certo?

            _ Claro! – ela resmungou, quase ofendida.

            _ Tire-a daqui, a taça e os outros também. Vou encontrar meu irmão, Abi e Brian.

            _ Você não...

            _ Eu posso! – eu disse – eles são minha família!

            Minhas palavras aqueceram o ar no mesmo instante. Emi segurou o que parecia ser as mãos de Cary.

            _ Meu irmão sabe o que faz – ela disse – eu confio nele.

            Ela sorriu pra mim, confiante, destemida. Era difícil imaginar que ela tinha apenas dez anos, com tanta determinação estampada naquele rostinho infantil.

            _ Obrigado – eu disse – a todos vocês.

            Não era para soar como uma despedida, mas acho que foi assim que eles entenderam. Comecei a correr, sem demora. Meus pés arremessaram meu corpo e mais uma vez tomei grandes altitudes, quebrando as pontas de gelo com os meus ombros.

            _ Brian! Abi! – eu gritava constantemente – Richard!

            Uma luz vermelha mais a frente, atrás de uma longa fileira de saliências de terra, indicava que um conflito estava acontecendo bem ali. Corri como nunca, temendo o pior.

            Lá estava minha mãe, lutando contra o próprio filho. Richard parecia exausto, mas determinado. Brian começara a lutar contra Ford. Jericho estava tentando atacar os dois com sua rajada de aura. Abi estava tentando ajudá-los, tomando a forma de diferentes criaturas, algumas eu nunca havia visto, para ajudá-los.

            Barclay tomou a dianteira da luta, correndo em direção à Abi. Era a minha deixa.

            Saltei entre os dois, bloqueando o ataque contra Abigail. Mas tínhamos pouco tempo, nenhuma discussão era bem-vinda. Assim que tornamos – todos nós – a olhar o portão, ele estava se abrindo. As grades de gelo e terra, formadas pela fusão entre estalactites e estalagmites, começaram a se abrir, dando espaço a um túnel, que ia a perder de vista. Sua entrada parecia ser revestida por um véu branco translúcido, como um fogo, alvo, meio gasoso.

            Os seis Haunters, Dominique, o grandalhão Loui, Estevan, Cary, Emilliene e Camille passaram pelo véu. A medida em que alguém transpunha a fina camada translúcida, ele tomava um tom arroxeado. Era uma espécie de sinalizador. Ele estava se fechando. Doze haviam passado. Ainda tínhamos algum tempo.

            _ ABI! – eu gritei – Vá para o portão!

            _ O que? E deixar vocês aqui? Sozinhos? – ela retorquiu, enquanto se posicionava ao meu lado, nós dois cara a cara com Jericho – De jeito nenhum!

            _ Abi... Eu preciso que você saia daqui! O portão não vai se fechar enquanto quarenta almas passarem por ele!

            _ Mas eu não...

            _ Abi! Vai! Por favor!

            Eu a puxei pelo braço bem a tempo de se esquivar do ataque de Jericho. Nos escondemos atrás de um pilar derrubado, enquanto Jericho insistia em disparar energia cegamente.

            Segurei Abi pelos ombros, ela me fitou com aquele olhar cheio de expressão. Não era hora, nem lugar, mas não pude evitar o que sentia. Deixei meus lábios colarem nos dela, sentindo o doce aroma de seu hálito entrar em minha traquéia, revigorante. Ela correspondeu, rendendo-se àquele momento. Então eu a soltei.

            _ Agora vai até aquele portão e desaparece da minha vista! – eu falei em tom de ordenança – Eu sou o líder nesse bando, não sou?

            _ Eu sempre fui insubordinada – ela replicou.

            _ Pelo menos uma vez, não seja – dessa vez eu pedi em tom de súplica – vai embora. Estarei logo atrás de você. Confie em mim.

            Ela respirou fundo, me fitando com seus admiráveis olhos cristalizados pelo ar frio, os flocos de gelo cobrindo sutilmente seus cabelos acastanhados.

            _ Você vem. – ela disse.

            _ Prometo.

            Ela me deu um último beijo. Assim que dei o sinal, ela começou a correr. No mesmo minuto eu saltei por detrás da pilastra, me jogando a frente de Jericho, chamando sua atenção.

            Iniciei com os meus ataques de descarga de aura, afastando Jericho do portão. Richard e Brian estavam fazendo o mesmo. Repentinamente, ouvimos uma movimentação estranha logo atrás de nós. Virei-me, pensando que alguém poderia ser estúpido o suficiente para tentar nos resgatar. Vi Abi passar pelo portão, me lançando um último olhar e, logo atrás dela, um pequeno grupo de homúnculos, todos inimigos, tentando fugir do estádio.

            Eram cinco guerreiros do bando de Jericho. Apressados, começaram a correr em direção ao portão, em completo desespero. Provavelmente não sabiam da tropa de homúnculos das células que os esperavam do lado de fora. Barclay ficou lívido.

            _ Seus imbecis! – ele bradou – voltem! Não podem passar pelo portão! Precisam sair daqui COMIGO!

            Voltei minha atenção a Jericho.

            _ Eles são traidores, Barclay – falei veemente – traíram o povo dele. Trair você não seria problema.

            Ele trincou os dentes, furioso.

            _ Ele começou a correr, não em minha direção, mas claramente tentando se afastar de mim e tentar chegar até o portão. Por que ele queria tanto sair? Tinha “espaço” de sobra no expresso de volta pra casa. A não ser que ele tivesse mentido.

            Eu me lancei contra ele, segurando-o pelos ombros e puxando-o de volta. Ele usou os cotovelos como alavanca para me repelir, o que funcionou com perfeição. Ainda correndo, tive que disparar uma série de descargas de energia áurea, até que consegui o atingir. Ele caiu, arfando.

            _ São vinte! – ele gritou – Sempre vinte!

            Parecia estar falando consigo mesmo.

            _ Vinte? – eu exclamei, furioso. Comecei a correr em sua direção. Segurei-o pelo pescoço – você disse que havia espaço para quarenta!

            _ Eu precisei mentir! – ele abriu o punho, lançando uma rajada escarlate, me obrigando a me afastar – ou aqueles covardes não desceriam até aqui para lutar.

            _ Então você... Jogou seus aliados numa armadilha! – vociferei.

            _ Eram vermes. Como você! E todo o resto! Sua mãe sempre foi uma tola, apaixonada por um Alucate! Precisava disso para me beneficiar!

            Eu arqueei uma sobrancelha, confuso.

            _ Isso mesmo – Jericho cuspiu uma porção de sangue e me fitou, enojado – você sabe por que homúnculos e Alucates se odeiam? Por que é a lei da natureza, está no nosso sangue! Mas a relação entre seu pai e sua mãe... Aquilo abalou tudo! Ela o ama mais do que a ela mesma, mais do que vocês! Isso nos deu uma brecha! Se ela nos ajudasse, pouparíamos a vida do seu amado e de sua criança, a pequena Emilliene!

            _ Peraí! Vocês tentaram matá-la! Ford estava prestes a...

            _ Ford estava blefando. Jamais machucaria a criança capaz de descobrir o segredo contido na taça, não seja tão estúpido, Vance! Mas sua mãe é uma Patriota irremediável. Não se importa com Richard porque é fruto de um romance idiota, e não com o seu amado. E com você, por ser essa aberração, um híbrido, uma salada pior do que qualquer quimera! Depois que ela descobriu como você era estranho, ela sentiu repulsa! Ela ainda te ama, não se engane. Mas prefere te ver morto. E eu também!

            _ Mas Emi...

            _ Emi é diferente! Ela era venerada pelo seu avô, e sua mãe, apesar de tudo, respeitava profundamente os sentimentos do pai. Não tente compreender a mente da sua mãezinha, cara! Ela é insana! Está disposta a morrer por Emi e George, que loucura!

            Senti meus dentes baterem um no outro, quase se partindo, meu maxilar apertado, sentindo a pressão daquelas palavras em minha cabeça, uma bofetada com luvas de ferro. Então ela me preferia morto. A mim e ao Richard.

            Quando dei por mim, estava por cima de Jericho, socando-o no rosto, enquanto seu sangue escorria miseravelmente em sua face suja. Ele travou a minha cintura com as pernas e me girou, lançando-me para o lado, ganhando tempo para se levantar e recompor o rosto, embora a do ainda fosse quase visível.

            Ele sorriu, maliciosamente. Estava perto demais do portão. Disparou como nunca, correndo como se sua vida dependesse disso. Se ele passasse, restariam apenas mais duas passagens e, se isso acontecesse, as chances de Brian e Richard saírem dali iriam diminuir consideravelmente. As minhas chances eu já havia descartado. Se conseguisse vencer, encontraria uma outra saída. Era minha promessa a Abi em jogo, assim como todo o resto.

            Só tinha um jeito de segurá-lo por mais um tempo. Meus ossos queimaram, como antes, enquanto filetes longos e mais luminosos, relâmpagos azuis, se projetarem para fora do meu corpo, rasgando o chão e se prendendo a lótus, como antes.

            Meus pés me lançaram em direção a Jericho, que estava cada vez mais perto do portão. Lancei os relâmpagos contra ele, ele desviou da primeira.

            _ Esse lugar ser´´a a sua cripta, Vance! – ele gritou em tom de zombaria.

            Com um pouco mais de força, deixei os filetes azuis se projetarem ainda mais distante. Um deles cravou, certeiro no cotovelo de Barclay. Foi o suficiente para bloquear sua velocidade, fazendo-o tropeçar nos próprios pés. Ele caiu com o rosto colado no chão.

            Com um puxão, minha aura retrocedeu, arrastando-o até mim, enquanto os outros relâmpagos rasgavam o chão. Barclay conseguiu segurar a lâmina presa a sua pele e, puxando-a, removeu. Mas era tarde, estávamos perto, o suficiente para que eu o imobilizasse.

            _ Seu...

            Eu o puxei para longe do portão.

            _ Você vai morrer aqui também! – ele vociferou, tentando desvencilhar, enquanto meus braços o prendiam pelo pescoço.

            _ E as pessoas que passaram por aquele portão vão viver! – eu sibilei – isso já é o suficiente.

            Estava puxando meu adversário para o mais longe possível do portão, quando um último movimento entre as estalagmites indicou que mais alguém ainda estava lá dentro. Dois homúnculos, ambos inimigos.

            _ Corre, Barth! – gritou um deles.

            Barclay fitou os dois homens, alarmado.

            _ Seus idiotas! – gritou Jericho – Não vão sem mim!

            Os dois soldados pararam por um breve segundo, encararam o líder e, por fim, deram as costas. Não tinha como pará-los, estavam muito pertos.

            _ Espera Carl! – respondeu Barth, segurando o amigo no ombro e seguindo o caminho juntos. Eles passaram pelo véu arroxeado, que se tingiu de uma cor intensa, quase opaca. Apenas mais um poderia sair.

            _ MERDA! – gritou Barclay.

            Sua frustração ajudou-o a canalizar sua aura em volta do seu corpo, me repelindo com facilidade. O deslocamento de ar e o aumento repentino na atmosfera fizeram a minha aura ser encoberta, me desligando às poucas pétalas de Lótus presas a minha aura.

            _ Você pode morrer aqui se quiser, mas eu não!

            _ Onde está toda a sua dignidade, Barclay? – eu exclamei, zombeteiro – você era forte, audaz... Agora está com medo? Da Morte?

            Seus lábios tremeram, formulando uma resposta. Mas não havia, eu estava certo.

            Ele saltou sobre mim, retomando nossa luta. Senti dois pesos caírem ao meu lado. Brian e Richard também estavam com dificuldades. Richard estava se saindo pior.

            Meus olhos correram pelo salão, buscando alguma saída, toda a câmara cheia de saliências de terra e gelo, deformações no ambiente. Meus olhos pousaram em cima de uma coisa.

            Farpas. Cinco, talvez seis delas. Provavelmente, durante o deslocamento de terra, o osso de algueora tinha sido reduzido a farpas, do tamanho de um braço, todos finos, ainda brilhavam, uma luz insistente, como se resistisse ao efeito de drenagem das Lótus. Aquela era uma esperança. As lâminas não eram fortes o suficiente para atravessarem Barclay, mas, certamente, as farpas seriam.

            _ Você quer tanto fugir, Jericho? – eu chiei – então é bom ser rápido!

            Ele me encarou, inquisidor. Estava se perguntando o que eu tinha em mente. Ele nunca iria saber. Antes de iniciarmos uma nova discussão cheia de socos e pontapés, e me deu as costas, mais rápido, mais evasivo, em direção ao portão. Eu tomei a outra direção. Corri em direção aos ossos, o mais rápido possível, tomando o cuidado para não perder Jericho de vista. Ele estava quase lá.

            Derrapei no chão, derrubando gelo e terra. Minha mão agarrou firmemente uma das farpas. Era a minha chance. Como um arpão a ser arremessado em uma baleia, estiquei o braço e atirei a farpa.

            O osso de algueora zumbiu enquanto cortava o ar, rasgando o vento em direção a Barclay. Estava perto, chegando ao portão. Mas não o alcançou.

            O osso atravessou a parte inferior das suas costas, atravessando o seu intestino, um dos seus pontos vitais extremos. A fisgada o obrigou a parar. Jericho cambaleou, sentindo uma dor cruciante. Eu sabia mais ou menos como era.

            Minhas mãos agarraram três das cinco farpas no chão. Corri contra Barclay, ferozmente. Ele levou a mão ao abdômen, enquanto o sangue escorria sem cerimônia. Eu estava perto, muito perto.

            _ YAHHHHHHHH! – a euforia do momento me fez gritar um urro de frenesi. Minhas mãos no ar, segurando um osso de algueora, investiu contra Jericho.

            Senti o osso de algueora entre meus dedos penetrarem a carne pulsante de Barclay, atravessando o seu pescoço, produzindo uma extensa linha de sangue, as gotas se tornaram uma cascata escarlate, viscosa.

            Mas ele ainda tinha forças. As feridas levariam mais tempo para se curarem, mas ele ainda tinha sua aura como trunfo. Ele disparou contra mim, me lançando dez, talvez quinze metros de distância. Minhas costas bateram com um baque surdo no chão, enquanto as outras duas farpas voaram da minha mão.

            Jericho veio em minha direção. Em suas mãos tinha uma das farpas, a que eu cravara em seu pescoço. Ele caiu sobre mim, sua ferida no abdômen ainda sangrando.

            Visualizei suas mãos cortarem o ar como um chicote amansando uma fera, e o osso atravessou fundo o meu peito, rasgando minha pele, atingindo o coração.

            Morrer não era uma opção. Não naquele momento. Se eu perdesse assim, daquele jeito, tudo estaria no fim. Todos os anos de treinamento, criando laços com meus amigos. Não. Eu não poderia morrer assim. Não poderia deixar Barclay vivo, depois de criar tantos problemas para o nosso Submundo.

            Senti meu coração falhar, sua pulsação reduziu sensivelmente, mas eu ainda tinha dois pontos vitais intactos. O que precisei fazer custou-me energias que eu não tinha.

            “Apenas um pouco”, eu pensei comigo mesmo. Jericho, ainda debruçado sobre mim, atiçava o osso de algueora em meu peito, tudo o que eu tentafa fazer era ignorar a dor. Levei minhas mãos à farpa cravada no intestino dele. Meus dedos se fecharam no osso, manchando a palma das minhas mãos com o nosso sangue.

            “Vô... O senhor me ajudou muito... Mesmo morto. Isso foi mais do que qualquer um fez por mim”.

            Meus dedos se fecharam no osso. Eu o friccionei, e o osso de algueora se deslocou, subindo pelo abdômen de Jericho, rasgando suas entranhas aos poucos.

            “Charlie... Você foi o tipo de amor que eu teria escolhido. Mas foi a amiga que me escolheu primeiro”.

            Barclay urrou de dor, sentindo o osso andar em seu corpo, rasgando-o no meio, rasgando seu esterno e, com uma leve curvatura, atingido seu peito. Seu coração foi lacerado pelo osso.

            “Mamãe... Você foi uma luz negra. Algo bom, e extremamente doentio. O que eu posso dizer. Ainda te amo, e essa marca vai ficar para sempre”.

            Jericho sentiu seus dois pontos vitais extremos ser lacerados. Suas mãos abandonou o osso cravado em meu peito. Ele estava sobre mim, suas pernas sobre o meu abdômen. Ele estava sentindo aquela dor que o impedia até mesmo de pensar.

            “Sophie... Loui... Ethan... Ephraim... Vocês foram companheiros. Morreram por um ideal. Essa lembrança vai ser carregada por todos nós”.

            Minhas mãos tomaram o controle da situação, uma força quente, pacífica, brotou dos meus músculos, me dando uma golfada de fôlego e energia. Arranquei o osso de seu peito. Com um movimento rápido e seco, o osso atravessou seu queixo em posição vertical.

            A ponta da extremidade do osso varou a parte superior do seu crânio.

            Jericho engasgou. Seu sangue fluiu displicentemente, sem medo, sem hesitar. Seu pulmão cessou, suas narinas pararam de lutar pelo ar denso e frio. Seu coração parou. Seus três pontos vitais extremos estavam lacerados.

            Um último movimento.

            Minhas mãos alcançaram a cabeça de Jericho, meus dedos se fecharam em seu suas orelhas. Movimento rápido, circular. Senti seu pescoço ser deslocado, minhas mãos sentiram a vibração de seus ossos se fragmentando.

            Sua cabeça fora separada do corpo, a forma mais eficiente de se matar um monstro.

            Jericho estava morto.

            Empurrei o cadáver estúpido para o lado, que se moveu como um boneco de pano. A cabeça rolou para qualquer outro lugar. O osso de algueora, aidna cravado em meu peito, mantinha a dor.

            Minhas pernas lutaram para se levantar. Consegui. Meu corpo cambaleou. Fitei todo o estádio. Eles tinham que estar bem. Brian. Richard. Era dever deles continuarem vivos. Lá estava.

            Brian mantinha seu duelo forte, sem medo, contra Ford, um Haunter. Brian era muito mais forte do que imaginara, um legítimo Renwick. Era isso que ele era.

            Mas o que vi em seguida afastou todas as esperanças.

            _ RICHARD!! – minha voz ecoou como um agouro nas ruínas daquela câmara fria.

            O corpo de Richard estava caído, inerte, coberto de sangue. Sim, havia algo preso ao seu peito. Uma linha fina, brilhante, reluzente. Um osso de algueora estava cravado em seu peito.

            Diferente de um Haunter, se um homúnculo fosse gravemente atingido em um órgão vital, morreria. O osso de algueora assegurou isso. Não havia mais vida naquele corpo. Não havia mais o mesmo sinal do irmão mais velho, torrão e implicante, destemido, protetor. Era apenas um corpo vazio, coberto de sangue, uma embalagem vazia onde, um dia, foi habitada por um guerreiro nobre.

            Então veio subitamente.

            Uma espetada no estômago, ou um pouco mais embaixo, talvez. Não pude sentir bem o que era. Uma queimação insuportável atingiu meu corpo, me dizendo que a morte era quase certa. O cheiro de sangue invadiu minhas narinas. Tarde demais para minha sensitividade.

            Olhei para o meu abdômen, onde a ponta de uma farpa branca acabara de atravessar.

            _ Nada se resume apenas ao amor... – ouvi uma voz, embargada.

            Com as poucas forças que me restavam, consegui me virar. Lá estava a mulher que me segurara no colo, me chamava de filho e cozinhava panquecas para o café da manhã.

            _ Mãe... – eu sussurrei, minha voz já não tinha forças.

            Eu pude notar, surpreso e desesperado, seus olhos marejados em lágrimas, uma película que água cobrindo aqueles olhos vermelhos.

            _ Amar é um sentimento superestimado... – ela murmurou, segurando meu rosto com uma das mãos. Na outra mão havia mais um osso de algueora. Mais um osso para o meu último ponto vital – mas não se resume a isso.

            Ela estava decadente. A luta havia afetado-a psicologicamente, quase tanto quanto havia me afetado.

            _ Acabou... – eu tentei dizer – Ir... Embora...

            Minha mente estava a mil. Tantos pensamentos, tantas coisas a serem ditas, mas meu corpo apenas falhava, minha voz sumia.

            Ela me abraçou. A última coisa que pude sentir foi uma coisa pontuda atravessar minha nuca. “Cérebro...” Foi o que consegui murmurar. Sim, a farpa havia cutucado o meu cérebro. Mas não havia mais dor, não havia raiva. Não havia nada.

            Ela me envolveu em um abraço forte, seguro. Não entendo. Por que ela faria isso? A luta tinha acabado... Seria uma questão sem resposta. O Que se passava na mente de Elisabeth Vance.

            Senti a vida escapar de mim, me deixando, abandonando o corpo em que eu havia cultivado força e esperança. Mas consegui a abraçar. Numa última tentativa, meus braços a envolveram.

            _ Tem razão... – minha voz voltou, por um breve minuto – Não é apenas amor...

            Dito isso, deixei que minha aura nos banhasse. Longos relâmpagos azuis ricochetearam em lâminas de chumbo que cobriam o chão, as pétalas de lótus se aderiram ao restande de aura que eu tinha. Meu último golpe, o lance de misericórdia, mesmo com os meus pontos vitais dilacerados.  

            Minha mãe estremeceu, mas não desvencilhou. Não tentou escapar.

            Repuxei minha aura. Centenas de lótus voaram em nossa direção.

            Senti o sangue de Lisa Vance escorrer pelo meu corpo, várias lâminas cravarem o meu corpo, atravessarem o da minha mãe. Ela parou de respirar. Era isso... A nossa luta tinha chegado ao fim.

            Sinto muito Abi... Não pude cumprir com a minha promessa. Mas isso não significa que eu tentei.


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