A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 49
O Último Desembainhar da Espada


Notas iniciais do capítulo

Amigos Leitores. Peço desculpas pela demora do capítulo. Início de ano foi difícil por aki, mto bagunçado, além do mais, eu estava em um grande dilema, e tive q demorar um pouco mais pq estava dificil prosseguir com um capítulo. Tanto q tive q aumentar um capítulo, o q estava fora dos meus planos, mas agora está tudo certo agora xD
Obrigado pela paciência e perdoem a demora aki xD
vlw!



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O Último Desembainhar da Espada

 

            _ Mãe, o que isso...

            _ Matthew, por favor, não me faça explicar a situação, que já e óbvia o suficiente.

            Eu a fitei, incrédulo. Ela estava ali sim, parada diante de mim, me olhando com aqueles miseráveis olhos azuis, herdados da minha avó. Olhos puros manchados pela traição suja e mesquinha da minha mãe. Era o fim de qualquer esperança para o nosso relacionamento, que já andava frio demais.

            _ Você... Traindo o mundo que o vovô protegia... – eu murmurei, sentindo a fúria e o pesar lutarem fervorosa e miseravelmente dentro de mim.

            _ Meu pai sempre foi um líder nato, mas muito emotivo – ela disse, falando como se contasse uma história para o jardim de infância – Ele gostava de se entregar a tudo o que fazia. Mas ele não via o quão vergonhoso era viver embaixo daquela gente humana, mesquinhos sujos.

            _ Os humanos não têm culpa – eu retorqui – jamais poderiam...

            _ Eu tenho culpa? Não – ela me interrompeu – nem você, meu filho. Nenhum de vocês. Mas você não sabe o que é ter o orgulho ferido, estraçalhado na boca de um monstro cheio de dentes. É assim que eu vejo a nossa situação. Eu só quero parar com isso de uma vez.

            _ O que? Matando os humanos? Julgando por vocês mesmo! – eu gritei, enfurecido – Quem é você, afinal? Você não pode ser minha mãe! Você não é a minha mãe!

            _ Mãe! – gritou Emi, logo atrás de mim.

            Vi o olhar negro da minha mãe, a sombra de um olhar de amor, o estremecimento de uma luta interna entre sentimentos. Ela ainda amava os filhos, isso era óbvio, mas outra coisa era ainda mais óbvia: ela era uma Patriota. Mais do que a família, a sua origem era importante.

            _ Emilliene, venha com a mamãe – ela pediu.

            Emi fungou, engolindo o choro.

            _ Por que fez isso mãe? – ela murmurou.

            _ Queria – minha mãe revirou os olhos – não seja tão...

            _ CALA A BOCA! – a voz de Richard ecoou em todo o estádio – CALA-A-BOCA!

            Minha mãe não alterou o tom de voz ou a sua expressão.

            _ Eu queria que fosse diferente – ela disse – mas está na hora de acabar com isso, recuperar o tempo que aqueles humanos sujos nos tiraram.

            _ Humanos sujos! – eu esbravejei – HUMANOS SUJOS! Você os julga, mas você é muito pior! Você não é nada! Tanto quanto qualquer um desses traidores aqui!

            _ Vocês são apenas crianças. Estão cegos, deslumbrados por essa luz, essa natureza poderosa. Mas isso não se resume apenas a poder. É uma prisão – minha mãe falava com uma voz rouca, diferente, cheia de ressentimentos – eu não quero pagar pelos erros dos meus ancestrais.

            _ E os humanos vão pagar pelo erro de quem? – eu grunhi – você não é assim, mãe. Você é melhor do que isso...

            _ Não se trata de ser melhor ou pior, bom ou mal. – ela me encarou, como se fosse uma professora severa ensinando uma boa lição a um aluno levado – Se trata de liberdade. Aqueles que são fracos demais para lutar por isso, vão acabar morrendo no processo.

            Eu a fitei, incrédulo. O tom de desafio e ameaça estava estampado em sua voz e no brilho dos seus olhos com tanta certeza, que eu mal podia acreditar.

            _ Você... – eu murmurei, tentando absorver meus próprios pensamentos – estaria disposta a nos matar para lutar por isso?

            Ela fez um silêncio doloroso, uma afirmação sem palavras da minha pergunta. Ela era muito mais cruel quando me olhava daquele jeito, resoluta, decidida. Senti uma parte do meu coração morrer, não apenas aquele que tinha sido arrancado. Era o meu passado, a minha infância, roubada por aquela mentira, aquela mulher traidora que, um dia, me tomara nos braços, me afagando em dias tenebrosos. Aquela mulher, a minha mãe, estava morta e enterrada. Para sempre.  

            _ Então é assim – eu disse – acho que nossa grande família feliz termina desse jeito.

            Minha mãe fechou a cara. Talvez esperasse que tomássemos o partido dela.

            _ Acho que sua persuasão não funcionou Jericho – foi meu irmão quem falou, furioso – pode começar a nos atacar. Quando quiser.

            Jericho fitou o meu irmão, balançando a cabeça, desanimado. Estava se lamentando por perder bons guerreiros, com tão boas habilidades. Mas isso não era importante, ele não poderia nos obrigar, o que significava uma coisa: precisava nos matar antes de conseguir a máscara.

            _ Sabe, vocês estão cometendo um grande erro – Jericho falou – mas, o que fazer? Bem... Morram, crianças.

            Seu tom de voz suave soou como uma ordem de guerra para os seus soldados. Eles saltaram do segundo andar, furiosos, prontos para a luta. Avançaram em nossa direção, eu podia até sentir o cheiro de sangue, cada vez mais forte, invadindo o lugar.

 

            Então era assim. Terminaria desse jeito. Com algumas dezenas de inimigos investindo, eu pude pensar, pela primeira vez, no quão louca fora minha vida. Da simples e amada normalidade ao completo caos e desordem em uma vida fantasiosa, mas amargamente real.

            Aquela seria, certamente, a pior de todas elas. Uma batalha covarde que decidiria todo o resto. Bem, eu precisava vencer a todos, e isso incluía a minha própria mãe. Antes de me entregar totalmente à batalha, percebi como a família Vance possuía tantos traidores. Era triste, inevitável.

            Trinta e sete homúnculos avançaram em nossa direção. A frente deles, quatro Haunters, sorrindo macabramente em nossa direção, prontos para se entregarem ao duelo. Senti o ar se deslocando a nossa volta de forma anormal, a pressão da atmosfera aumentando drasticamente. Então tudo parou. Todos eles. Expressões frustradas, furiosas, com suas mãos fixas no que parecia ser uma barreira translúcida.

            _ Sarah? – eu murmurei, aliviado.

            _ Não... Por muito tempo... – ela murmurou – são muitos... Não dá...

            _ Afaste-os – eu pedi – amplie o escudo e afaste-os.

            _ Não... Dá... Não avança...

            _ As flores, Matthew – disse Rich, segurando o meu braço com urgência – ela não consegue por causa das flores. Elas levam um tempo para absorver nossa energia, mas a aura que dispersamos é facilmente absorvida. Precisamos atacar.

            Lancei um olhar desesperado de Rich para Emi, depois para Will. Eu não podia simplesmente me dar ao luxo de me enfiar numa briga e deixá-los a mercê de suas próprias habilidades. Mas não podíamos ficar ali dentro daquela bolha por muito tempo. Era quase visível as rachaduras no escudo e, logo, eles nos alcançariam.

            _ Vamos lutar – eu disse, virando-me para todos – quatro Haunters aqui irão pegar os outros quatro Haaunters. O restante se une. Eu vou atrás de Papah e Jericho. Rich, você...

            _ Eu resolvo com a mamãe – ele disse.

            Eu o fitei, incrédulo.

            _ Isso mesmo – ele afirmou, decidido – não fique surpreso, é uma decisão minha.

            _ Mas, você não...

            _ Eu não vou ter piedade – ele completou, embora não fosse o que eu tinha em mente para dizer – não depois dessa traição.

            Eu podia ver em seus olhos tão parecidos com os meus a verdade azeda, a raiva e o ressentimento brotando. Ele queria mesmo ter essa luta. Talvez minha família estivesse destinada a se destruir.

            _ Ok, eu não vou contestar – eu disse – mas seja cauteloso.

            Ele assentiu.

            Virei-me para Will, que tinha, agora, Emi em seus braços, segurando-a com obstinação, como se ela fosse algo muito valioso a se guardar. Eu o fitei, agradecido. Ele correspondeu o olhar, mas sempre atento aos movimentos a sua volta. Eu sabia como os haunters tinham rápida regeneração, e Brian também o tinha, mas o resto do grupo não possui essa habilidade, o que seria um impasse. Não queria ver nenhum sangue amigo sendo derramado.

            _ Matthew! – gritou Sarah – No que está pensando? Eu não estou agüentando mais!

            _ Tudo bem! – eu gritei em resposta – Pessoal! Dêem o melhor! E, para todos os efeitos... Vocês foram os melhores amigos que qualquer pessoa poderia ter! Obrigado!

            Todos me encararam, confusos. Então o semblante de cada um iluminou-se. Era algo estranho, difícil de ser explicado. Não havia um sentimento ruim, o medo da derrota. Não estávamos cegos de confiança, sabíamos que a derrota era uma possibilidade. Mas estávamos juntos, e demos nosso suor e sangue por isso. Não importava o resultado, desde que a última gota de nossa aura estivesse sendo usada para guardar o segredo de todo o nosso povo, a vida da humanidade. Éramos os heróis, jamais reconhecidos, mas não precisávamos de medalhas de honra para sermos considerados como tais.

            O escudo de Sarah cedeu à sua vontade. O confronto começou.

            Lancei-me na direção de Will, sem pensar em mais nada, muito menos nos braços inimigos tentando me agarrar. Puxei Will pelo braço, carregando-o comigo, enquanto o garoto surdo carregava minha irmã nos braços. Eles formaram uma espécie de ligação que os deixou inseparáveis e isso me tranqüilizou. Will parecia disposto a protegê-la.

            Will grunhiu em protesto, mas eu continuei puxando-o. Dois Homúnculos tentaram nos seguir, mas Dominique foi bem sucedido em sua interceptação. Continuamos nossa corrida para longe da confusão. Chegamos até o extremo do pátio.

            _ Emi – eu falei – você e Will, fiquem nessa ponta. Will não pode te ouvir, mas pode ver perfeitamente, ele poderá lutar e não será surpreendido por trás. Você... Use sua descarga de aura quando necessário.

            _ Todo o tempo, então – ela disse.

            _ Todo o tempo – eu concordei.

            Comecei a correr novamente em direção ao confronto, sentindo vultos caminharem a minha volta, dois ou três correndo na direção de Will e Emi. Virei-me a tempo de assistir Will socando-os para longe, tão fácil e destemidamente, que me convenceu. Emi estaria a salva. Até certo ponto.

            Então era a minha tarefa. Derrubar Jericho e Parlomeus.

            Estava correndo na direção dos “camarotes”, meus olhos fixos, enquanto me desviava das investidas de um ou outro homúnculo. Ouvi o grito exasperado de Charlie, mas não parei. Ouvi urros furiosos de vozes desconhecidas e sorri convencido de que mais alguns inimigos poderiam estar sendo abatidos. Foquei minha atenção total A Jericho.

            Lá estava ele, sorrindo em minha direção, ao lado de Papah, que parecia quase entediado. Não parecia ser tão forte, mas não era alguém que eu gostaria de desafiar. Então Jericho sumiu. Como um relâmpago, ele desapareceu, reaparecendo logo atrás de mim, rindo abobalhadamente, como um maníaco sádico. Ele fechou o punho e, num movimento rápido, correu para me atacar. Tão rápido que nem mesmo meu senso de proteção ou minha sensitividade pudera ser útil.

            No mesmo instante, uma barreira de terra e metal ergueu entre nós, e as mãos de Jericho acertaram em cheio a barra de metal. Ao meu lado apareceu Cary, suspirando aliviada, ainda com a tora do osso de algueora em mãos.

            _ Lótus-de-Chumbo alimentam o solo com nutrientes férricos – ela disse, me olhando diante da barreira de metal – abaixo de nós deve ter um amontoado dessa coisa. Vai se útil.

            _ Maravilha, mas ficar criando escudos o tempo inteiro não vai nos ajudar. Precisamos lutar – eu falei – você chuta o traseiro do Parlomeus, eu me entendo com Barclay.

            Ela assentiu. Sabia, tanto quanto eu, como era importante ter um inimigo forte dedicado inteiramente a Papah e Jericho, provavelmente os inimigos mais fortes naquele estádio subterrâneo. Cary correu em direção a Papah. Não me virei para assistir o espetáculo. Eu já tinha o meu.

            A barreira de ferro foi atravessada com certa dificuldade, mas nada que pudesse segurar Jericho mais do que alguns segundos. Ele estava diante de mim, levemente decepcionado.

            _ Você se deixa ser salvo demais – ele disse, frustrado – não achei que um Haunter pudesse viver bem com isso.

            _ Eu não vou precisar mais disso. Agora sou só eu e você.

            _ Isso é bom – ele afirmou, contente.

            Não esperei a próxima provocação. O meu disparo em forma de aura zumbiu em sua orelha, errando por pouco. Ele me fitou,  uma mescla de agrado e raiva. Uma linha fina de sangue escorreu pelo seu tosto, mas o corte se fechou quase instantaneamente. Era mais um dom de Haunter. A regeneração. Isso iria nos atrasar um bocado.

            Jericho avançou em minha direção. Sua velocidade era surpreendente, provavelmente o mais rápido Haunter. Mas não o suficiente para me acertar. Se fosse há dois anos, provavelmente eu estaria no chão. Mas eu havia dominado minha habilidades e, tanto minha velocidade quanto força, eram compatíveis com as de Jericho.

            Ele errou o golpe, e a minha investida também fracassou. Ele não parou, continuou tentando me golpear, enquanto eu esquivava. Minha perna direita tentou acertá-lo quando saltara por cima de mim, mas errei por muito pouco. Ele tentou me acertar da mesma forma, mas não teve sucesso.

            Nossos golpes acertavam o próprio vento, nunca nos encostávamos, era uma verdadeira ansiedade. Meu sangue fervia, minhas mãos tremiam a cada golpe, a expectativa de derrubá-lo... Matá-lo, se fosse preciso.

            _ Você é bom! – ele falou, enquanto esquivava – mas pode continuar com isso por tanto tempo?

            Não podia me deixar levar pelas provocações. Controlei minha aura em volta do meu punho aberto. Ele parecia divertido com isso, como se já pudesse garantir a vitória.

            Deixei toda a minha aura envolver o meu corpo, meus olhos queimaram em um vermelho sangue, meu corpo consumido pela luz azulada, minha aura ampliada, tomando o cuidado para não tocar as flores e deixá-las absorver minha energia.

            Disparei vários feixes de aura contra ele, que desviou com certa facilidade. projetei-me ao seu lado disparando mais uma vez, ele novamente recuou. Consegui afastá-lo gradualmente com a minha descarga de auras, mas era impossível atingi-lo de fato. Ele se lançou contra mim dessa vez, num movimento rápido e quase inalcançável, mas consegui bloquear o seu punho fechado, cobrindo o rosto com os antebraços e evitando o golpe. Ele impulsionou o corpo para trás e tomou distância, ainda sorrindo sarcasticamente.

            _ Você é bom, Matthew. Mas está longe de ser forte o suficiente. Você pode ser melhor do que a média dos Haunters, pode ser capaz de matar a todos aqui. Mas a mim? Não, isso você não...

            BUM! O baque surdo soou bem ao lado de Jericho. Ele virou-se por um minuto, tempo o suficiente para notar o seu senhor, Papah, caído no chão, com uma espécie de bastão reluzente cravado no peito, enquanto seu sangue escorria fervorosamente pelas vestes negras.

            Por um segundo breve vi um brilho de desespero cintilar em seus olhos tensos e furiosos, mas ele sabia. Não podia se dar ao luxo de me dar as costas. Ele sabia que poderia atravessá-lo se perdesse a concentração em nossa luta.

            _ Alguém! – ele gritou – Ajudem Papah!

            A familiar explosão de luz surgiu bem ao lado do corpo trêmulo de Papah.

            _ Se ele sobreviver ao osso de algueora... – riu Cary.

            Papah, ainda se movendo, conseguiu se arrastar contra meu ChAngel. A estaca feita de osso estava cravada um pouco acima do lado direito do seu peito, provavelmente não o mataria, mas deixaria uma cicatriz feia, caso ele conseguisse sair dali vivo.

            _ Saia de perto dele, miserável! – gritou Jericho contra Cary – ou eu te...

            Investi contra ele, com os punhos fechados, meus pés comprimindo um impulso rápido e bruto contra o chão, movendo-me a uma velocidade devastadora. Acertei as costas de Jericho com a minha força reunida até as extremidades dos dedos. Ele cambaleou, falhando os passos, mas se recuperou logo, correndo em direção à Papah.

            Ele tirou a minha mãe de mim, certo? Então não haveria piedade. Apenas sangue.

            _ Cary! – gritei – não pare o ataque!.

            Ela me acompanhou, correndo em direção aos dois inimigos. Jericho me encarou, furioso, mas alarmado. Se voltar contra Cary seria um erro, afinal, eu era um adversário a altura e, se me desse as costas, eu não me importaria em ser covarde e atacá-lo estando desprevenido. Estávamos em uma guerra.

            Papah estava sangrando no chão, mas não parecia incomodado, apesar das afiadas pétalas de laminas de chumbo atravessarem a pele de suas costas, enquanto a tora de osso estava cravada em seu peito.

            _ Não pare, Jericho! – girou Parlomeus – eu já estou fraco, não sou o mesmo guerreiro de antes! Todos aqui somos apenas ferramentas! Não se importe comigo! Apenas vença, é para isso que estamos aqui!

            A voz de Parlomeus, pela primeira vez, soou como um homem forte e determinado, embora toda aquela nobreza faltasse em seus atos torpes. Jericho hesitou. Eu o ataquei.

            _ Não se distraia, imbecil! – eu gritei, disparando contra ele energia áurea. Jericho escapou da minha mira.

            Ele grunhiu, furioso. Cary já estava em cima de Papah, encarando-o com desprezo. Jericho deu as costas para o seu senhor e correu em minha direção.

            Aconteceu de forma muito lenta aquele momento. Jericho correndo em minha direção, seus passos ecoando no grande estádio, mesmo com tantos ruídos de destruição a nossa volta. Então um barulho seco, algo sendo rasgado, partido no meio. E um grito. Um grito velho e cansado.

            _ PAPAH! – gritou Jericho, virando-se involuntariamente.

            O som estridente de pele se partindo atraiu até minha atenção.

            Cary estava segurando o osso de algueora. O corpo de Papah estava imóvel no chão, enquanto uma enorme poça de sangue se formava abaixo, manchando o cadáver vazio. Foi rápido, sem nenhum esforço. Papah era um velho fraco e, agora, era um a menos.

            _ MISERÁVEL!

            _ Não seja idiota, Jericho! – eu retorqui, impedindo-o. Ele estava prestes a avançar contra Cary – Eu sou seu inimigo. Se me der as costas, é um cara morto.

            Jericho me fitou com aqueles olhos cheios de fúria, toda a sua frustração agora despejada naquele brilho misterioso em seu olhar avassalador.

            Uma lágrima. Foi o suficiente para perceber o quão importante era Papah na vida daquele Haunter. Senti pena de Jericho por um breve seguundo. Mas me lembrei de todos os feridos, mortos, vidas perdidas por um objetivo estúpido.

            _ Esse mundo é sujo, Matthew... – A voz dele estava embargada. Cary estava a alguns passos de distância, ainda segurando o osso de Algueora – Esse mundo foi vencido pelo medo, pela ganância... Esses humanos são nossos protegidos? Essa gente fraca e mesquinha? Você pode dizer o que quizer! Pode dizer que somos como eles! Mas, no final, nós lutamos pelo nosso povo! Eles lutam por eles mesmos!

            _ Você viveu lá fora, Barclay – eu o interrompi – viveu como um humano. Sabe que o que está dizendo não é verdade. Sabe que existem boas pessoas.

            _ E existem bons homúnculos! Morrer por esses humanos é uma estupidez! Deixa essa vida, garoto... Ela não vai te levar a nada!

            _ Acho que é patológico – eu disse – bons Homúnculos cumprem sua tarefa. Eu não sei por que você nasceu, não sei por que Haunters voltaram... Mas eu sei que o seu plano acaba bem aqui.

            Jericho trincou os dentes, furioso.

            _ Cary, vá ajudar os outros – eu pedi – Eles precisam de você mais do que eu.

            Ela assentiu e, antes que Jericho pudesse se virar, ela já havia desaparecido.

            _ Somos só eu e você, Jericho – eu disse.

            Percebi seu maxilar tremendo furiosamente, seus dentes cravando nos próprios lábios, provocando um leve sangramento. Todo o seu corpo enrijeceu. Talvez fosse impressão minha, mas o ar parecia sensivelmente mais pesado, como se a pressão atmosférica estivesse aumentando aos poucos. Toda aquela força emanava do corpo de Jericho.

            _ Estamos lutando pelo nosso orgulho... – ele murmurou – obter poder... Pegar a máscara e tornar esse lugar um mundo habitável para nós, homúnculos!

            _ Você nem ao menos é um homúnculo! – eu retorqui.

            _ Mas tenho a mesma natureza!

            _ Não. Sua natureza é humana! Seus pais eram humanos, normais, indiferentes a esse mundo que desconhecem.

            Ele parecia não estar mais me ouvindo, estava falando consigo mesmo, enfurecido, cultivando a raiva que sentia por mim. A julgar pelo seu olhar assassino, eu não tinha mais nenhuma chance para mudar de lado. Mas isso era irrelevante. Eu morreria, se fosse preciso, mas continuaria onde sempre estive.

            Deixei meu corpo falar por si mesmo. Minha aura expandiu, meu peito estufou com a pressão que emanava de cada poro da minha pele. Senti a luz azul-prateada adornar o meu corpo. Em contrapartida Jericho era tomado por uma energia fortíssima, escarlate.

            Ondas de energia  escapuliam dos meus braços, pernas, todo o corpo, rasgando o chão como se fosse apenas papel, a energia aumentava, evidenciando a minha evolução com os meus treinamentos. Eu havia superado os meus limites. Mas Jericho também.

            O choque entre os filetes de nossa energia provocavam ruídos que mais pareciam roncos de trovões. A tensão era total. A luta atingira proporções inimagináveis, e não havia volta. Apenas um caminho a seguir. Aquele que estava bem a minha frente.

            _ Você vai morrer, Vance! – ele rugiu, fechando o punho- e vai levar toda a descendência com você!

            _ Você quer mesmo atingir todos os Vance? – eu não pude evitar de sorrir – Você é mais estúpido do que eu imaginava.

            Meu nome. Meu orgulho. As vidas em risco. Eram a fonte da minha determinação. Se eu não vencesse aquela batalha, perderia muito mais.

            A aura vermelha de Jericho materializou-se e, assim como eu, ele acumulou energia nas mãos, como fizera antes. De fato, era o mau da profecia, capaz de manipular a aura, com a mancha da lua no braço.

            Era estranho imaginar. Um dia Jericho nasceu destinado a salvar o mundo. Ele era o centro de todas as atenções das profecias. Então tudo mudou. Ele se tornou o cara mau, e aquele profetizado para lutar contra Jericho não havia sido encontrado. Seria difícil lutar com esse pensamento.

            _ Você não vê, não é mesmo? – ele murmurou.

            Eu o fitei, inquisidor. Não era hora para uma conversa, mas ele ainda parecia chocado com a morte de Parlomeus.

            _ Não há nada para ser entendido. Eu simplesmente tenho que parar você – respondi prontamente.

            _ Não, garoto... – ele lançou um último olhar ao corpo vazio de Papah e me fitou novamente – Isso tudo é como uma salamandra.

            Mais uma vez eu o lancei um olhar de dúvida. Ele estava delirando?

            _ Salamandras se recuperam. Quando lhes são arrancados a cauda, elas regeneram depois de um tempo. – ele continuou – é isso que somos aqui, garoto. Apenas a cauda. Mas o tempo vai passar... Essa ferida vai continuar aberta, até que, finalmente, outro grupo como nós decidirá curar essa úlcera na nossa história. Você não entende? Nossa luta pode acabar aqui. Mas outros lutarão pelo mesmo que lutamos num futuro próximo. Porque é o que os verdadeiros Patriotas fazem. Eles buscam a liberdade.

            _ Bem... Quando isso acontecer vamos estar bem aqui – eu sorri – e os Patriotas vão cair outra vez.

            Jericho Barclay estreitou os olhos. Era o fim do diálogo.

            Ele impulsionou em minha direção, correndo como uma fera sedenta de fome, ou algo pior. Seu olhar transbordava de fúria e seus dentes trincados evidenciavam ainda mais sua determinação em me matar. Mas eu estava disposto a fazer o mesmo.

            Impulsionei meu corpo conta ele. Seu punho se fechou contra mim, mas fui rápido para desviar. Mas não fui rápido o suficiente para escapar da descarga de energia. No momento em que desviei do soco, Dois filetes de luz emanaram de seu corpo me atingindo em cheio, me jogando contra uma das pilastras.

            Senti minhas costas pressionarem a estrutura congelada, enquanto flocos de gelo esparramavam em meus ombros como neve. Ainda caído, disparei contra ele duas descargas de energia. A primeira ele desviou, mas a outra o atingiu no peito. Ele foi arremessado, mas caiu de cócoras, pronto para uma nova investida.

            Normalmente esse tipo de poder atravessaria o corpo de um Homúnculo normal, ou pelo menos lhe faria uma ferida considerável. Mas estava claro que Haunters não eram nenhum pouco normais.

            _ Você ainda não tem a destreza de um guerreiro hábil – falou Jericho, rindo sadicamente – treinei isso por anos. Desde os meus doze anos, quando Papah me encontrou, ele cuidou de mim, me ensinou a ser forte, controlar essas habilidades.

            _ E agora ele está morto. Grande Myiage – sorri sarcasticamente.

            Ele disparou contra mim furioso, enchendo suas mãos com energia o suficiente para derrubar alguns dos seus soldados. Mas toda aquela energia estava direcionada a mim. A luz escarlate cortou o ar, voando em minha direção. Na verdade, em todas as direções.

            Forcei o grande pilar, que cedeu logo atrás de mim. Atravessei sua estrutura sólida, escapando por pouco do ataque. Uma enorme nuvem de poeira subiu, cobrindo o ambiente. Mas meus olhos se adaptavam facilmente. Claro, os de Jericho também.

            Antes que eu pudesse pensar em atacar, ouvi um grito familiar ecoando em todo o estádio. Era familiar demais, a pior coisa que eu poderia ter ouvido. Emilliene estava em apuros.

            _ CARY! – eu gritei.

            A explosão surgiu bem do meu lado. Não era Cary, mas uma enorme bola de energia vermelha e, por muito pouco ela não me atingiu. Ao invés disso ela tomou uma direção oposta, como se sua rota fosse alterada por uma mão invisível, acertando uma pilastra a poucos metros. Outra enorme nuvem de poeira se ergueu.

            Logo em seguida, surgiu Cary em meio à poeira. Ela desviara o poder de Jericho com sua telecinesia, ou seja lá o que for.

            _ O que houve, Matthew? – ela perguntou.

            _ Cuida da Emi, ok? – eu pedi, segurando as lágrimas que lutavam teimosamente para escapar.

            _ Já estou fazendo isso – ela disse.

            _ Então por que ela gritou? – encarei Cary com urgência, observando Jericho de longe, que parecia um pouco desequilibrado, como se estivesse perdido no meio da fumaça de poeira.

            Cary fez uma pausa longa, e por fim falou.

            _ Tenho que voltar, Matt. Se cuida.

            _ Cary! – tarde demais, ela já tinha desaparecido.

            Alguma cosa tinha acontecido. Eu não queria pensar nisso por um longo tempo.

            _ Matthew Vance! – gritou Jericho. Ele parecia perturbado – você é mesmo um idiota! Acha mesmo que toda essa sua artimanha estúpida vai me deter?

            _ Eu não estaria aqui se não tivesse certeza, Barclay! – eu não tinha certeza, mas eu estava demonstrando auto-controle e, naquele momento, era tudo o que importava.

            Jericho saltou sobre mim, com as pernas esticadas, em um golpe aéreo meio desajeitado, mas eu sabia que se conseguisse me acertar, iria fazer um grande estrago. Com todo o meu corpo sustentado pelas pernas flexionadas, lancei-me ao ar, em direção à Jericho.

            _ Concentre-se na luta, Barclay! – eu gritei, rindo confiante. De fato, aquele não era apenas eu, mas o meu lado assassino, o lado frio e calculista, capaz de tramar manobras destrutivas para vencer o inimigo.

            Ainda no ar, reuni grande parte da aura que havia em meu corpo e, com as mãos esticadas a frente, descarreguei a energia. Jericho estava no ar, não tinha chance alguma de desviar do ataque.

            _ MERDA! – ele gritou.

            A luz azul envolveu o seu corpo, ele foi devorado pela grande esfera de luz que meu corpo havia lançado. Minha reserva de aura, ali, dispersa, deixou o meu corpo dormente e, com o desgaste, não tive forças de me aprontar para um pouso suave.

            Não sei quantos metros Jericho foi lançado, ou se fora completamente consumido pela minha energia. Apenas senti meu corpo pesar e a gravidade me puxar. Olhei para baixo por um breve segundo, onde Lótus-de-Chumbo cresciam despreocupadas em meio ao campo de batalha.

            Quando meu corpo tocou o chão, senti as pétalas metálicas atravessarem o meu peito, rasgando a minha pele. Meu rosto também pesou e, com o impacto, senti uma das lâminas da Lótus atravessar o meu olho. Quase pude sentir o gosto do sangue. Era terrivelmente doloroso.

            _ Matthew!!- a voz de Cary soou nitidamente bem ao meu lado, completamente desesperada.

            Senti sua mão firme e dedicada me segurar pelos ombros, me puxando para longa das rosas. Uma das pétalas ficou presa ao meu peito, enquanto um líquido viscoso escorria dos meus olhos, embaçando toda a minha visão.

            _ Céus, Matthew! – ela murmurou – eu disse que essas flores são perigosas! Você ainda consome quase toda a sua aura! Podia ter morrido!

            _ Não... Importa... – murmurei, forçando um sorriso, mas ao invés disso acabei cuspindo mais e mais sangue... – Jericho... Está morto... Não está?

            Cary ergueu o rosto em direção a uma cratera formada na parede final do estádio, onde uma densa nuvem escura subia, enquanto a luz natural do ambiente, refletida pelas camadas de gelo, iluminava os fragmentos de concreto em forma de poeira que dançavam no ar, seguindo o deslocamento irregular de ar no interior do estádio.

            _ Acho que não – ela disse – é melhor eu tomar a dianteira da luta.

            _ Não! – eu murmurei, e isso me custou mais uma cuspidela de sangue – Emi... Cuida da... Emi...

            _ Eu sou SUA protetora, Matthew – ela falou – é minha obrigação.

            _ Então... Transfira – eu pedi – é simples. É possível?... Você pode... Ajuda-la?

            Cary ficou em silêncio por um breve segundo, aparentemente observando a cratera na parede, onde Jericho estava caído, morto, vivo, não era possível dizer.

            Senti minha energia presa dentro de mim. Eu estava fazendo uma força terrível para liberá-la, permitir que ela se espalhasse em cada ferida e fechasse os cortes fundos e parasse as hemorragias, mas era como se eu não pudesse mais mobilizar minha aura. Cary virou o meu corpo, removendo a pétala presa ao meu corpo. Instantaneamente, senti a minha aura se desprender, correndo livremente pelo meu corpo como um rio enraivecido.

            _ Pétalas de Lótus-de-Chumbo impedem o fluxo de aura. Se não tirá-las do corpo, você não pode dispersar sua energia. A energia fica contida até que a Lótus esteja apta a absorver.

            Senti as feridas se fecharem aos poucos. O sangue, antes esvaindo do meu corpo, estava agora caminhando em todo o interior do meu corpo, como se uma passagem invisível impedisse que o sangue continuasse a escoar. Senti as feridas se fecharem aos poucos, a visão foi voltando e, a julgar pelos repuxos de pele do rosto, meu olho perfurado estava regenerando.

            _ Cary... Onde está o osso de algueora? – murmurei, sentando-me no chão.

            _ Aqui – Cary o exibiu, firmemente seguro em suas mãos – mas ele já não faz muita coisa. Quando o osso perfura um corpo carregado de aura, ele dispersa sua força. Ele pode ferir Homúnculos, mas nada irreversível.

            _ Vai ter que servir – eu murmurei – Se Jericho sobreviveu a isso... Não sei o que pode matá-lo.

            Cary me encarou por um breve minuto.

            _ Vocês são Haunters – ela disse – Você acabou de ser perfurado por uma dezena de Lótus e ainda está vivo. Em um Homúnculo normal toda a aura teria sido drenada.

            As palavras de Cary foram como um estalo na minha mente. De repente, meu cérebro estava funcionando a mil, fazendo planos e mais planos, uma dedução atrás da outra. Então era por isso que os haunters havia voltado. Eram os mais aptos a entrarem naquela sala. Meu avô sabia que, em determinado momento, essa espécie voltaria. Tudo tinha sido planejado. Uma jogada arriscada, mas era mais eficiente do que qualquer outra opção. Estava claro que haunters não poderiam ser parados com tanta facilidade.

            _ Cary... Me dá esse osso – eu falei, minha mente clara, a todo vapor.

            _ Eu já disse, isso não vai matá-lo. Esse osso já perdeu muita energia, nunca iria matar Barclay.

            _ Mas vai me ajudar bastante – eu disse – Cary... O que aconteceu? Por que Emi gritou?

            Cary me fitou por um longo segundo, seus olhos cheios de expressão, uma certa ternura naquele brilho amarelo me despertou uma onda de pavor.

            _ Cary! Quem está ferido? – eu perguntei, levantando-me ao pulo.

            Ela olhou para o buraco na parede, onde Jericho estava, e, em seguida, para mim.

            _ Os Haunters são fortes. Eles estavam em grande número, tivemos... Algumas perdas.

            Era previsível, e igualmente desesperador. Me dei conta de que, não importa que nome Cary falasse, todos eram igualmente importantes.

            _ Charlie... – ela murmurou.

            Trinquei os dentes em um ato involuntário. Era como se uma serpente gigantesca envolvesse meu corpo, me estrangulasse friamente e, enquanto me fazia sofrer, injetava seu veneno letal no meu peito. Não. Essa não era a descrição certa. Não havia uma.

            Charlie, a garota meiga do Dormitório dos Estranhos. A primeira pessoa que me aceitara naquele lugar completamente novo. O sorriso cativante, a dona dos lábios quentes, de uma mente brilhante e de um coração imenso. Era esse o preço? Lutar por pessoas que eu nem ao menos conhecia me custaria a vida de Charlie?

            _ Charlie... Os Gêmeos... O Haunter Loui... Sophie. – ela virou o rosto, encarando o buraco na parede mais uma vez – mas eles tiveram muitas perdas também. Conseguimos derrubar um Haunter... Alguns Rubros...

            Era algo que todos esperávamos. Perdas injustas. Mortes desnecessárias. Não era por esse mundo que estávamos lutando. Vidas foram vendidas para proteger uma maldita máscara. O que havia de tão incrível nela? Mil auras? Dane-se! E as vidas perdidas! Eram meus amigos.

            No mesmo momento eu me toquei. Parte de mim tinha acabado de ser enterrada, já morta e corroída.

            _ Isso não é uma troca – eu murmurei, entredentes, sentindo a fúria invadir cada centímetro do meu corpo, queimando os meus ossos desesperadamente – É uma grande injustiça... O osso, Cary.

            Ela me entregou, sem dizer uma palavra.

            _ O que pretende fazer?- ela perguntou.

            Um movimento rápido no buraco nos chamou a atenção. A poeira abaixou, mas Jericho não estava mais lá. Olhei para o andar superior, onde Barclay estava sorrindo, radiante, algumas gotas de sangue no rosto, mas nenhum ferimento.

            _ Sabe qual é a vantagem em ser um Haunetr, Matthew? – ele perguntou, rindo – nunca temos tempo para cultivarmos cicatrizes. Mas, sabe. Você é forte. Caramba, aquilo doeu. Você arrancou o meu nariz com aquela brincadeira. Mas eu vou te recompensar por isso.

            _ Você é mesmo um doente – rugiu Cary.

            _ Cary, minha irmã – eu pedi tentando manter sob controle a fúria que se misturava ao meu instinto assassino – Sarah deve estar fazendo um bom trabalho, mas precisam de você – continuei.

            _ Você é meu...

            _ PRO INFERNO COM A SUA PROTEÇÃO! – eu gritei, cerrando os punhos ameaçadoramente. Senti o corpo de Cary enrijecer ao meu lado – PREOCUPE-SE COM A EMI! O QUE EU ESTOU SENTINDO AGORA... NEM VOCÊ PODE ME PROTEGER DISSO!

            Cary percebeu minha determinação, sabia que cada palavra minha era verdadeira. Eu suportaria a minha própria morte. Mas ver Emi morrer friamente naquele lugar seria o sepultamento de toda a minha existência. Cary sentia isso, nossa ligação permitia isso a ela.

            Senti dois braços me envolverem de forma carinhosa, os longos cabelos prateados escorrerem em meu ombro. Virei o rosto, surpreso. Cary estava me abraçando de uma forma que eu nunca havia sentido antes. Toda a sua consideração, amor e carinho que sentia por mim era expresso naquele gesto intenso. Sua pele morna e reluzente aquecia os meus músculos. Me dava um pouco mais de determinação.

            _ Você é como o sue avô – ela balbuciou. Eu não sabia que ChAngels podiam chorar – teimoso, nobre...

            Jericho pigarreou falsamente, rindo.

            _ quanta melação – ele se queixou – enquanto vocês estão aí, seus amigos estão morrendo.

            Eu segurei Cary pelos ombros, fitando-a.

            _ Ele está certo. Vai Cary – eu pedi – por favor.

            Ela assentiu. Beijou a minha testa. Um segundo depois, ela havia sumido, deixando duas lágrimas baterem no chão.

            Jericho deu de ombros.

            _ Não consigo compreender essa ligação afetuosa entre vocês. São tão... Diferentes.

            Encarei Jericho com repulsa.

            _ Por outro lado, - interrompi – seu afeto com Papah era bastante compreensível. Os dois pertencem à mesma escória. Ah, peraí. Papah morreu.

            Barclay engoliu o sorriso e as minhas palavras. Sua expressão se fechou em uma feição negra, furiosa. Perder entes queridos abria uma ferida que nenhuma habilidade haunter poderia curar.

            Ele saltou do segundo andar, caindo firmemente a uns vinte metros de distância, ainda me encarando com aquele olhar impertinente. Olhei a minha volta. Quantas Lótus-de-Chumbo haviam ali. Lembrei-me das palavras de Cary, da eficiência das Lótus em bloquear o fluxo de aura, impedindo que ela regenerasse nosso corpo. Todas as informações colhidas com o meu pequeno tempo de experiência como Homúnculo contribuíram para formular o plano que eu acabara de ter em mente. Era ensandecido, e talvez não desse certo. Mas que escolha eu tinha?

            _ Sabe, Jericho... – eu comecei. Deixei a luz azulada envolver meu corpo novamente. Dessa vez foi fácil, quase automático, a energia sendo dispersada pelo meu corpo, o fluxo perfeito, em total harmonia com a circulação sanguínea e os compassos ritmados da minha respiração – Você pode ter toda a sua experiência, ter sido treinado por um monte de experientes homúnculos... Mas tem uma coisa que você não tem, e eu tenho.

            Ele estreitou os olhos, curioso e igualmente frustrado, como se desejasse desesperadamente saber o que se passa em minha mente.

            _ Você não tem linhagem – falei, enfim – não tem o sangue certo, o sangue de um líder. Você veio do nada e conquistou muitas coisas. Isso normalmente poderia ter sido nobre... Mas não foi. Você tomou todas as decisões erradas. Eu cresci ao lado de uma traidora. E escolhi meu próprio caminho. Você não pensa, você obedece.

            _ Aonde quer chegar com isso, garoto? – ele retorquiu.

            Soltei uma risada sarcástica, involuntária. Suspirei, caminhando em direção a ele, passos lentos e calculados.

            _ Alguns nascem para liderar. Outros nascem para serem liderados. Eu sou um líder... Você é só mais uma marionete.

            Foram as prováveis últimas palavras inteligentes antes da luta oficial. Cada fio prateado brotou do meu corpo, rasgando o chão a minha volta como uma lâmina cortando papel, tão fácil e eficiente. Os filetes de luz que emanavam do meu corpo tomaram direções estratégicas. Fiquei espantado e surpreso com a minha fácil manipulação da minha aura. Era facilmente explicado o por que de terem me confundido com o inimigo da profecia anos atrás.

            Cada longa linha de aura envolveu as Lótus-deChumbo a minha volta. Como laços, minha aura envolveu inúmeras pétalas a minha volta, uma rede imensa de luz azul em volta do meu corpo, ligado a flores metálicas.

            As lótus bloqueavam o fluxo, mas não absorviam imediatamente. Foi exatamente o que senti quando pétala por pétala se prendeu aos filetes que se desprendiam da minha aura, como uma super-cola. Logo, várias daquelas flores estavam presas à minha aura.

            _ Hum, então você realmente aprendeu a manipular sua aura. Mas... O que pretende fazer com isso, garoto? – ele disse – você acabou de se conectar a essas coisas. Elas vão te sugar. – Jericho deu uma risada estúpida – você não deve ser tão esperto assim.

            Não pude evitar o sorriso.

            _ Eu estou arriscando muito, de fato... Mas não é nada estúpido. É até corajoso.

            _ O Que você...

            Movi um dos “barbantes” de luz. Ele ergueu como a calda de um escorpião, investindo contra Jericho. Rápido o suficiente, a pétala cortou o seu ombro, cravando em sua pele como uma agulha afiada.

            Um guincho de dor saltou de sua boca, Jericho se afastou em um movimento urgente, afastando o filete de luz e arrancando com a mão a pétala. “Apenas tome cuidado com as esferas negras”, pensei comigo mesmo. Elas paralisavam o sistema nervoso com um único toque.

            _ Que sujeira! – ele riu, mas estava evidentemente furioso. Todos estávamos. Era a maior confusão de sensações que eu já vira em muito tempo – Usando esse golpe baixo para...

            Investi outra pétala. Mas ele também era hábil com a sua aura. Um filete vermelho laçou a linha da minha aura, detendo o ataque, como mãos compridas demais se enfrentando.

            _ Você sabe que não pode me deter, certo? – Jericho garantiu – não importa o que faça, eu sempre vou me levantar.

            _ Tem algo que você não sabe, Barclay – eu usei o meu melhor tom de voz cínico – algo que diz respeito a nossa habilidade de regenerar. Algo que você não sabe.

            _ Você está blefando. – ele disse, mais para si mesmo.

            Eu não estava. Brian havia me falado antes. Os três pontos vitais extremos. Cérebro, coração e intestino. Se eu atacasse esses três pontos igualmente, bloquearia a habilidade de Jericho regenerar e, depois disso, bastava arrancar sua cabeça com as minhas mãos. Com o osso de algueora firme nas mãos, eu não precisava que a cicatriz fosse perpétua, bastasse ser capaz de atravessar o corpo de um Homúnculo. Era o suficiente.

            Corri em sua direção, sentindo as pétalas se arrastando logo atrás de mim, presas a minha aura. Jericho percebeu a ameaça que o osso de algueora significava e, com um movimento rápido, lançou-se para a esquerda. Acumulou energia nas mãos e disparou-a contra mim. Duas esferas de luz vermelhas voaram em minha direção. Consegui escapar, mas o movimento me custou algumas pétalas, que foram atingidas pelo poder, se desprendendo da minha aura.

            Senti as finas linhas de luz oscilarem. Antes pareciam relâmpagos constantes, mas estavam perdendo o brilho e força. Liberei um pouco mais de aura. O meu tempo estava acabando. Meu corpo não conseguia repor a mesma quantidade de aura na mesma proporção em que perdia.

            _ Você já fez muita gracinha, moleque! Agora é hora de morrer! – Jericho correu como um animal selvagem em minha direção, os punhos abertos, enquanto seu corpo liberava intensa energia, provocando fissuras no chão com a proporção de seus relâmpagos vermelhos.

            Jericho fechou o punho e disparou contra mim, mas fui rápido o suficiente para prender o seu pulso entre minhas mãos.

            _ Seu cair, você vem comigo – eu avisei. As fibras azuis saltaram e cravaram o pulso de Jericho, rasgando sua pele. Barclay urrou como um urso possesso, ou algo pior do que isso.

            _ MISERÁVEL! – seu punho aberto voou em minha direção, segurando firmemente meu pescoço.

            Naquele momento estava óbvio. Eu podia ser forte, infinitamente mais do que qualquer outro naquele lugar. Exceto Jericho Barlcay. O perigo da profecia. Agora, com a sua força ao quase limite, era possível perceber a dimensão de nossa diferença de poder. Mas desistir não estava em meus planos.

            Toda a aura contida em meu corpo gritava, desesperadamente, por essa luta. Toda a nossa expectativa por essa luta agora estava consolidada, e não havia mais nada a ser feito, a não ser sacrificar até a última gota de sangue por uma vitória.

            Minhas mãos tremeram, e o osso escorregou dos meus dedos. Jericho soltou uma gargalhada afobada.

            _ Viu? Eu não estava certo? – ele ria doentemente – eu sou a criação perfeita da natureza, invulnerável!

            Não, Jericho. Você não era invulnerável. Seus pontos de vitalidade o impediriam de se regenerar sob qualquer circunstância.

            Barclay segurou meu pulso, queimando minha pele com a força de sua aura. Seus dedos, cravados na minha carne, derramaram linhas finas de sangue. A queimação ardeu até os meus ossos.

            _ Você não é nada! – ele sibilou em meu ouvido – Vance não vale nada. São fracos! Apenas isso. Fortes são aqueles que lutam contra a própria natureza.

            Meu corpo amoleceu, sustentado apenas pelos dedos firmes de Jericho cravados em meu pescoço, enquanto meu pulso queimando balançava bestamente de um lado para o outro. Meus olhos baixaram, cansados. Eu estava prestes a entregar.

            Mas, então eu vi. A imagem que eu precisava.

            Meu pulso, ainda queimando, tinha agora uma cicatriz, uma marca. A forma de um semi-círculo estava estampado a carne viva. Era a marca da profecia.

            Angeline profetizara a luta entre dois seres com o sinal da lua no pulso. E lá estava. Era aquele momento que Angeline havia visto. Eu era o outro. Antes, visto como o inimigo, eu era agora uma espécie de protetor da profecia. Havia uma esperança. Pequena, mas era o suficiente para causar espasmos de euforia em meus nervos.

            A decisão que tomei foi a última coisa em que pensei. Era uma idéia estúpida, e eu jamais a faria se tivesse outra opção. Mas era a minha única idéia, o meu plano. Se aquela fosse a minha última ação como guerreiro do submundo, tudo bem pra mim.

            _ Aprenda com o líder. – avisei. Ao som da minha voz meu corpo estremeceu.

           

 


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