A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 46
“Weight Of The World” – Parte I




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“Weight Of The World” – E v a n e s c e n c e – Parte 1

 

            Seus urros davam a impressão de que sentia muita dor, ou talvez fosse satisfação. Era difícil dizer com aquela aparência, e Richard simplesmente não era capaz de dizer o que se passava naquela mente confusa da quimera. Ela vinha em nossa direção numa velocidade absurda, como um Alucate faria. Seus pés magros e miúdos faziam a terra estremecer desproporcionalmente.

            Lá estava a criança. Uma menina, sim, filha de Blaine. Um homem doente que usou a própria filha para uma pesquisa ensandecida. Agora, depois de fazer um verdadeiro coquetel de DNA na garota, ela era uma arma incontrolável, com aquela mandíbula de cavalo grotesca, capaz de arrancar o braço de alguém.

            _ Todos para trás! – eu gritei.

            Os Alucates começaram a deixar o campo de batalha, fugindo para vários lugares. Não pareciam com medo, mas sabiam que era, de certa forma, perigoso, e confiavam que Zoeh seria o suficiente para fazer um belo estrago em nossa equipe.

            _ Eu posso agüentar o impacto! – repondeu Brian.

            Estevan, Sophie, Loui e meu tio abandonaram suas lutas e olhavam, apreensivos, a figura se aproximando, as correntes presas ao seu corpo se arrastando, fazendo um barulho agourento.

_ Cary! – eu gritei – Acha que pode segurá-la?
Cary se adiantou.

            _ Vamos descobrir.

Caryenane ergueu as mãos, comandando a terra como sempre fazia. Quatro enormes braços de terra se ergueram em volta de Zoeh. Ela se deteve por um minuto, olhando furiosamente aquelas mãos gigantes.

Cary deu outra ordem, e as quatro mãos se lançaram contra Zoeh, abraçando-a por inteiro. Os quatro braços de terra envolveram seu corpo, fechando-a em um casulo resistente de terra. Mais uma ordem, e várias raízes de árvores, grossas e resistentes, envolveram o monte de terra. Por garantia, Cary criou uma tempestade de gelo com a sua afinidade aos elementos da natureza. A água do ambiente se acumulou em volta do casulo de terra, resfriando até formar uma espessa camada de gelo.

            _ Acho que isso vai atrasá-la – falou Cary, tranqüila.

            _ Deixa eu conferir – usei o meu radar, penetrando no casulo com o meu sexto sentido. Não havia nada. Exceto um buraco no chão.

            _ Droga! – eu chiei – Embaixo da terra! Ela está embaixo da terra!

            Muito tarde. Estevan foi arremessado para o alto. O punho fechado de Zoeh atravessou a terra, cortando o ar e atingindo Estevan no queixo, levantando-o alguns metros do chão, arrancando-lhe algumas gotas de sangue.

_ Estevan! – gritou Sophie.

            _ Não Sophie! – Brian Tentou pará-la, mas ela já estava correndo na direção de Zoeh.

            _ Merda! – eu corri logo atrás dela. Zoeh esperava, pacientemente, a Homúnculo furiosa.

            Mas antes que Sophie sequer a tocasse, consegui segurá-la. Minhas mãos se fecharam ao seu braço, que por pouco não me arranca o nariz tentando desvencilhar.

            _ Sophie, ela é perigosa – eu sibilei – Estevan está bem.

            De fato, estava. Ainda caído no chão, ele se apoiou com as mãos, levantando-se vagarosamente. Estava vivo, mas seu rosto estava coberto por sangue. Zoeh era mesmo forte. Um corpo de Alucate fundido a todas aquelas coisas. Era monstruoso.

            _ Sophie – murmurei, baixo, para que apenas ela ouvisse – o que é uma Alárdia?

            Ela, instintivamente, parou de se esforçar para sair do meu domínio, apenas me olhou, surpresa.

            _ Alárdia? – ela me encarou como se dissesse “é tão óbvio, não acha?” – Ora, você não sabe mesmo?

            _ Não enrola, Sophie!

            _ Ok – eu a soltei, e, enquanto ela falava, observava seu parceiro a distância – Alárdias são donzelas de pele vermelha.

            _ Donzelas?

            _Quando um Homúnculo ou Alucate sente a fúria e vontade de matar indomável, como último sentimento antes de morrer, a terra adubada pelo seu corpo produz lírios negros. Quando elas desabrocham, borboletas vermelhas são libertas e, após formarem um casulo, se libertam do mesmo, na forma de crianças de pele vermelha, e se desenvolvem como um ser humano normal, até atingir a maturidade. Pode-se dizer que é um antagonismo aos ChAngels. É uma espécie de seres místicos com desejo de matar, e tem repulsa por qualquer sentimento relacionado a amor ou compaixão, são perigosas, pois a composição de sua pele é muito complexa, sendo capaz de atravessar qualquer coisa, inclusive a pele de um Homúnculo. Mas são muito burras, fáceis de matar. Elas não existem há séculos, porque sempre cremamos os corpos, por precaução.  Lírios negros foram extintos... Agora por que diabos está perguntando? Estevan está ferido!

            _ Ao que parece, Alárdias não estão extintas – eu murmurei, apontando para Zoeh, que olhava de um lado para o outro, ainda sorrindo – aquela coisa é uma fusão bizarra de Alucate, cavalo e Alárdia.

            _ Alárdia? Impossível!

            _ Olha, você na minha pele, pararia de dizer essa palavra.

            _ Se isso é verdade, ela possui o instinto de assassina. – Sophie estremeceu – ESTEVAN!

            Ela se aproveitou da minha distração e correu até o parceiro. Zoeh notou o movimento e, rosnando como um monstro enfurecido, disparou contra Sophie. Disparei novamente contra ela, correndo com toda a fúria de um mestiço. Zoeh era um perigo para todos ali.

            Rich estava correndo ao meu lado.

            _ Acho que posso segurá-la por alguns segundos.

            Richard, com as mãos esticadas na direção de Zoeh, liberou, de cada poro da sua pele, agulhas negras que dispararam como projéteis de uma arma. As agulhas atravessaram o corpo de Zoeh, que guinchou, furiosa, voltando sua atenção a nós dois, ignorando Sophie e Estevan.

            _ Se isso é uma Alárdia – falou Rich, se preparando para o pior, brotando se sua pele agulhas grossas, da espessura de uma caneta – ela vai caçar aquele com o sentimento mais nobre. No nosso caso, estamos atacando para proteger Sophie e Estevan. Elas odeiam esse tipo de sacrifício.

            _ Então somos o alvo agora. Ótimo. – reclamei, enquanto acumulava energia áurea nas pontas dos dedos.

            _ Ela está vindo.

            Zoeh saltou sobre nós, projetando-se no ar como uma puma selvagem, seus dedos arqueados como garras, sua bocarra de cavalo escancarada, como um abismo negro e profundo.

            _ Agora!

            Richard disparou suas agulhas, atravessando o corpo de Zoeh. Ela guinchou, furiosa, mas nem mesmo todo aquele sangue em seu corpo a impediu de continuar. Disparei contra ela duas esferas de energia, que a repeliram alguns metros.

            _ Droga! – chiou Richard – ela está resistindo bem aos ataques. Isso significa que a pele dela deve ter a mesma composição do corpo de uma Alárdia.

            _ E não tem um jeito de matar uma alárdia? Quem sabe assim...

            _ Não. O único jeito seria remediar, não enterrar mais guerreiros em batalha. Mas, ao que parece, Blaine fazia sua própria plantação de guerreiros mortos furiosamente em batalha, só pra criar essas coisas pavorosas.

            _ Essa aí não parece ser burra como uma Alárdia – repliquei.

            _ Não é. Cara, essas coisas de Alucates são doentias.

            _ Pessoal! – gritou Kurt, logo atrás de mim – vamos todos atacá-la de uma só vez. Temos mais chance, certo?

            Zoeh parecia ainda mais furiosa do que antes. Ela estremeceu por um breve segundo, levou as mãos aos orifícios provocados pelas agulhas, já se regenerando. Seus dedinhos miúdos e assassinos deslizaram sobre o próprio sangue. Ela fitou a mão manchada de um vermelho enegrecido, como sangue velho. Ela rosnou, furiosa.

            _ Ótimo, agora ela ficou furiosa – falei – devíamos ter trazido mais de uma tropa.

            _ Provavelmente estão todos em sua casa, na fonte de Madeleine – falou Brian para mim – precisamos ser rápidos.

            _ Ótimo, vamos atacar, todos de uma vez.

            Estávamos prontos para investir, todos de uma vez, contra a quimera monstruosa. Mas, algo que ninguém esperava, aconteceu. Zoeh caiu de joelhos, encarando a própria mão. Seus olhos se desviaram de seu sangue para o meu rosto. Ela estava me encarando com aqueles olhos cinza tempestuosos. Seus lábios retorcidos sorriam monstruosamente. Mas suas sobrancelhas, deitadas, e seus olhos, tão desesperadamente tristes e as enormes gotas de lágrimas que saíam de seus olhos me desarmaram completamente. Ela estava chorando. Estava triste, e percebi que, por mais que quisesse, aquele sorriso era eterno, parte permanente de seu rosto.

            _ Pa... – eu ouvi ela murmurar. Sua voz fraca, era gentil, como a de uma criança. Pela primeira vez percebi a jovialidade naquela criatura, uma coisa meio infantil, meio maligna – Papai... Onde... Papai...

            Ela balbuciou as palavras, olhando para mim, depois para o resto do grupo, olhou a sua volta, como se procurasse alguém.

            _ Vamos atacá-la! – gritou Rich – antes que...

            _ Não, espera – eu pedi. Seus olhos tristes me despertaram o sentimento que ela odiaria: compaixão. Mas era inevitável, ao ver uma criança transformada em monstro pelo próprio pai – ela está... Triste.

            _ É claro que está! – bradou Brian – ela anda não comeu nenhum de nós!

            _ Não, vejam... – eu murmurei – Haunters... Vocês ouviram o que ela disse?

            _ Ela não disse nada, Matthew – retorquiu Rich.

            _ Vocês não podem ouvir, ela está longe. Mas minha audição vai além diso. Vejam, os lábios dela, se mexem como se quisesse falar.

            Concentrei-me na voz infantil, olhando diretamente para Zoeh.

            _ Papai... Cruel... Estou aqui... Não quero... Sangue...

            Ela falava, balbuciando, como se alguma coisa cortasse sua linha de pensamento, como se estivesse muito perturbada para dizer qualquer coisa.

            _ Espera! – Rich levou a mão ao meu ombro – eu estou ouvindo! Na cabeça dela! Ainda está lá! A Alucate, Zoeh! Ainda está lá dentro, em algum lugar, dividindo espaço com a Alárdia assassina!

            _ Então não podemos matá-la – falei – ela é só uma garota.

            _ Matthew, ela é um monstro! – bradou Cadence, vindo em minha direção – temos que matá-la!

            _ Ela tem a idade da Emi! É só uma criança! – eu urrei – deixem-me tentar uma coisa... Falar com ela.

            _ Você vai morrer, idiota! – replicou Brian.

            _ Não vai não, cara – pediu Joshua – é perigoso. Vamos acabar logo com aquilo e ir embora.

            _ Um minuto – eu pedi, olhando o grupo – apenas um minuto.

            _ Deixem ele ir – falou meu tio. Olhei-o, surpreso – ele é um líder aqui.

            Eu assenti, agradecido.

            _ Se eu perceber que vai dar alguma coisa errado, eu juro que mato aquela coisa – falou Brian.

            Ignorei o comentário, caminhando até ela com cautela.

            _ Papai...

            Mais alguns passos.

            _ Doi... Muito...

            Sua voz era esganiçada, triste, embargada em lágrimas.

            _ Quer ir... Embora... Pra casa...

            Zoeh, ainda de joelhos, cobriu o rosto com as mãos, deixando o sangue se misturas às lágrimas, soluçando como uma criança levada.

            _ Dói...

            _ Hei, Zoeh – falei em voz baixa. Ela não pareceu me ouvir.

            Deixei aflorar meu instinto Haunter, talvez isso a impedisse de sentira compaixão em meu tom de voz.

            _ Zoeh. Você está aí? – murmurei, a um metro de distância dela.

            Ela descobriu o rosto, deitando as mãos sobre as pernas. Ela me fitou, desamparada.

            _ Zoeh. Você pode me ouvir?

            Ela inclinou o rosto, me olhando confusa. Então seus olhos faiscaram. Era uma mescla de fúria e pavor. Sua mão voou no meu pescoço, seus dedos apertaram minha pele como um alicate gigante.

            _ Matthew! – gritou Cary.

            _ Não! – eu gritei de volta – Fiquem aí! Aí, Cary! Não vem!

            Ela parou abruptamente, apavorada. Cary sabia se eu ia morrer ou não, fazia parte de nossa ligação. Se eu, realmente fosse morrer naquele momento, ela não teria parado.

            _ Zoeh... – eu murmurei, sentindo o ar faltar em meus pulmões com a pressão que ela fazia. Eu podia reagir, mas precisava tentar falar com a consciência dentro da quimera – Zoeh. Eu sei que você ta aí. Está viva, não está?

            Ela permaneceu imóvel, com a mesma expressão congelada. Seus dedos pararam de apertar, mas permaneciam bem firmes cravados na minha pele. Senti uma linha fina de sangue escorrer até o meu peito, mas ignorei a dor, quase imperceptível.

            _ Zoeh. Eu sei que você está aí. Se pode me ouvir, sabe o que está acontecendo.

            Seus lábios tremeram.

            _ Pai...

            _ Sim – eu assenti – seu pai. Ele fez isso. Mas você ainda é uma human... Alucate. Você está aí dentro. Acha que pode se conter?

            Ela fechou a cara, enfezada. Apertou seus dedos um pouco mais.

            _ Matar... – ela murmurou – pena de mim...? Pena? Matar... Sim.

            Senti um desejo tremendo em arrancar sua cabeça. Foi intencional, deixei meu instinto Haunter dispersar, mas me mantive no controle.

            _ Zoeh, você tem que parar – eu murmurei. Minha voz saiu mais esganiçada, eu estava lutando para me manter vivo e conter a vontade de destruí-la – ninguém aqui te fez nenhum mal. Mas seu pai... Ele fez. Muito mal.

            _ Papai... – Zoeh voltou à sua expressão de criança – Papai... Me machucou...

            Ela estremeceu. Sua mão, talvez involuntariamente, se soltou do meu pescoço. Ela cobriu o rosto novamente.

            _ Doeu... – ela balbuciou – Papai... Ele me machucou... Doeu...

            Ela virou-se pra mim no mesmo instante, lançando suas mãos contra meu ombro. Mas não parecia querer me atacar. Seu rosto se aproximou do meu, ela estava desesperada.

            _ Olha... Doeu... – ela levantou a camisa esfarrapada, exibindo longos hematomas e erupções sangrando em seu abdômen – Papai... Ele fez, não fez?

            _ Sim, Zoeh – eu murmurei – ele fez.

            Ela fechou a cara, furiosa.

            _ Papai...Morrer. – ela me soltou, afastando alguns centímetros – papai vai... Morrer. Eu vou... Matar... Raiva.

            Eu a fitei, incrédulo. Seu desejo, então, era se vingar do pai. Virei-me para Rich. Sua expressão era de desolação. Ele sabia o que estava se passando naquela mente confusa.

            Então era esse o fim de uma família que não se amava realmente? Pai e filha lutariam, ele movido pela ambição, ela movida pela vingança descontrolada. Era deprimente ver uma criança transformada num mostro, contra sua vontade, sentindo dor, lamentando ser ela mesma.

            _ O que pretende fazer, Zoeh? – eu arrisquei a pergunta, esperando uma resposta.

            Ela fez uma pausa, ainda me fitando com os olhos chuvosos.

            _ Papai... Enterrar papai... Comigo... Acabar com dor... Com raiva... Papai...

           

            Estávamos todos de pé, observando a quimera tristemente transformada correndo na direção da escuridão, até ser devorada pela noite.

            _ É seguro deixar uma quimera fugir? – perguntou cadence, apreensiva.

            _ Ela não vai mais fazer mal a ninguém... – murmurou Rich – ela só quer... Acar com essa dor. Ela quer matar o pai, enterrar-se ao lado dele. Zoeh está no controle, ao que parece.

            _ Ela vai conseguir.

            _ Pouco provável. Os Alucates vão acabar com ela. – Rich parecia olhar para o nada, sentindo exatamente o que Zoeh sentia – mas pelo menos ela vai conseguir afastar a dor. Viver naquela forma é patético.

            Observamos a figura desaparecer na escuridão e, quando seus passos pesados deixaram de ser ouvidos, silenciosamente, eu me despedi. Não que fosse alguém importante. Mas ela era um pouco do que eu sentia. Uma filha desprezada pelo pai. No meu caso, minha mãe havia me ignorado, e eu era apenas um guerreiro aos seus olhos, uma arma. Talvez Zoeh fosse mais forte do que eu, afinal, capaz de afastar toda a sua dor. Intimamente, desejei que ela conseguisse. Mas, caso não desse certo, que morresse sem sofrer, mais do que já sofria.

            Depois daquele dia. Nunca mais ouvimos falar em Zoeh, ou em Blaine Grant.

           

            Estávamos na Algueora novamente. Pensativos, reflexivos. Dominique não parava de nos fitar, meio aborrecido, por não ter entrado na briga. Charlie, os gêmeos Gifford, Archy e Camille, por outro lado, pareciam mais concentrados no que viria a seguir. Passaram por despercebido todo o tempo, evitando o conflito, obedecendo minhas ordens fielmente. Era bom estar ao lado dos amigos, afinal.

Estávamos nos aproximando da mansão Vance a cada segundo e era bem provável que já estivesse acontecendo uma guerra por lá, a julgar pela quantidade de tropas que havíamos enviado. Se não tivéssemos aquele contratempo com os Alucates, provavelmente já estaríamos na mansão chutando alguns rabos desses ratos traidores.

            Blaine cometera um erro grave. Tentar me segurar não iria impedir Parlomeus de ter meu coração. ele já o tinha. Essa informação que Blaine desconhecia acabou por atrasar nossos planos. Ainda assim, Patriotas não tinham a chave, o que nos deixava em uma sensível vantagem.

            A Algueora já tinha se recuperado do ataque, mas estava tensa, voava mais rápida e sem muita atenção. Ela pairou alguns minutos no ar, e Estevan legou um tempo para acalmar o animal. Não era tão talentoso com os animais com sua habilidade de persuadir, mas tinha um sensível efeito sobre eles, embora Alucates fossem bem mais sucedidos nesse tipo de coisa.

 

            O tempo parecia se arrastar. A cada minuto, uma vontade louca de sair dali correndo, chegar primeiro que todos. Ter certeza de que o resto da tropa estava bem. O mundo que eu acreditei ser inquebrável parecia ser tão frágil quanto qualquer outro naquele momento. Estávamos a mercê do tempo e da sorte. Cada segundo perdido a partir daquele momento contava como uma gota de sangue em nossas veias.

            Havia um peso, um fardo grande demais. Era o peso de todos, o peso de um mundo inteiro. Era como se, do outro lado dessa cortina negra do submundo, as pessoas não existissem. Era como se eles, os humanos, fossem uma espécie de mito pra mim. Algo difícil de acreditar, como se, todo aquele tempo, ninguém fosse normal. Era irônico, lamentável e obscuro, como o futuro de qualquer um ali.

            As vozes, meus amigos, meus familiares, antigas lembranças, sussurravam em meu ouvido, me assombrando, me lembrando a cada segundo como eu precisava ser responsável, e como meus erros me custariam caros demais. Vidas demais. Reuni todas as forças que eu tinha naquele momento em um pensamento: lutar sem desistência. Mesmo que o sangue do meu corpo se secasse, ou que meus ossos se quebrassem em mil pedaços, eu permaneceria de pé, e usaria toda a minha pouca experiência como Homúnculo e Haunter para salvar aquelas vidas. Não apenas humanos. Mas os meus amigos.

            _ Hei, Matthew – Brian me despertou do meu pensamento – você... Já pensou como vamos pegar a máscara?

            _ Hã, sim, mas não os detalhes. – falei vagamente.

            _ Bem... Você sabe que... Precisam do seu coração, certo? – ele arriscou – é a forma de fazer “a troca” com Madeleine, segundo o Símbolo da Mensagem.

            _ Ah, eu não... – eu o olhei nos olhos pela primeira vez. Claro, agora eu entendia o que ele queria dizer – bem... Eu não vou morrer.

            Abi se aproximou no mesmo instante, nos encarando com aquela expressão de dúvida.

            _ O que houve? – ela perguntou – parecem preocupados.

            Eu parecia preocupado? Não, não era com o meu coração. era muito mais complexo do que isso.

            _ Bem... Precisamos do coração de Matthew – falou Brian – E, bem, você sabe que não tem um botão para fazer isso.

            _ Ah, entendo – ela mordeu o lábio – Matthew... O que você pensou?

            _ Alguém precisa tirar – eu disse, indiferente. É claro que eu estava receoso também. Mesmo sabendo que iria regenerar, era bastante desconfortável imaginar alguém enfiando a mão em seu peito e arrancando o coração, mas eu precisava mostrar confiança, para que eles não hesitassem – quem vai ser?

            Archy e Charlie se aproximaram no mesmo instante, ouvindo a conversa.

            _ Brian – sugeriu Archy – acho que seria o menos a vontade com isso.

            Eu fitei Brian, ele parecia inexpressivo.

            Os gêmeos e Dominique se aproximaram também.

            _ É, vai lá, Brian – disse Ethan, mas não estava fazendo uma piada. Arrancar corações não era uma coisa que se costuma fazer com um amigo.

            _ Eu, er... – Brian hesitou – foi mal, pessoal. Eu não vou conseguir.

            _ Como? – Camille estava o tempo todo ouvindo a conversa – como assim, não vai conseguir? Você, tipo assim, odeia o cara.

            _ Não é verdade – ele se defendeu – Só não é... Uma coisa legal a se fazer.

            Eu o fitei, não podendo evitar um sorriso. Brian era orgulhoso demais para admitir, mas o fato de não conseguir era por me considerar um ente querido, um amigo, quase como um irmão.

            _ Tudo bem – falou Dominique, interrompendo – eu faço.

            Todos, inclusive eu, olhamos para Dominique. Eu lancei um olhar de fúria, se fossem bazucas, ele não estaria mais ali. Mas me contive, sabendo como era importante.

            _ Não quero que Emi saiba o que vai acontecer – eu murmurei – Abi, nós vamos mais a fundo, no ventre da Algueora. Fique com Will e garanta que ela não saia de lá até eu voltar.

           

             A Algueora já estava pousando. Dentro da minha jaqueta, além da chave e das notas musicais, havia também um coração pulsante, que insistia em lutar pela vida. Era impressionante como meu coração era tão teimoso quanto eu. Dominique passou do meu lado, enxugando as mãos em um lenço e jogando-o no chão, me lançando um olhar cômico. Eu queria destruí-lo, mas me contive. Ele teve um bocado de trabalho, e fiquei surpreso por não adquirir nenhum trauma. Ele precisou usar as mãos e as asas, que adquiriam uma resistência impressionante durante a lua cheia.

            _ Se quiser eu acabo com Dominique quando tudo isso acabar – murmurou Rich quando estávamos nos preparando para descer.

            _ Tudo bem. Deixa que eu faço isso – sorri cinicamente.

            Antes de descermos, Abi me segurou pelo braço, puxando-me um pouco para trás, longe dos olhares apreensivos que estavam mais preocupados com o lado de fora do animal.

            _ Matthew... – ela murmurou quando teve certeza de que ninguém ouviria – por favor, toma cuidado. Você sabe como vai ser difícil. Não morra lá fora, ok?

            _ Você sabe que eu vou fazer o possível. Mas, Abi... Se, por acaso, não conseguir cumprir essa promessa...

            _ Você vai.

            Eu sorri, um sorriso velho, maduro, experiente. Algo que ia além dos meus quase dezenove anos de vida. Era como se eu já estivesse em acordo com a morte, eu não me importava em morrer ali, desde que todos estivessem seguros no fim.

            _ Tome cuidado – eu pedi – Se eu não voltar, você cuida da Emi.

            Olhei para o fundo da Algueora, onde Will estava abraçado com Emi, segurando-a no caso de tentar escapar como da segunda vez.

            _ Ela é uma garota esperta – falei.

            _ Você fala como se estivesse se despedindo. – ela fechou a cara.

            _ Abi, todos vamos lutar aqui. Qualquer um está sujeito à morte – minhas palavras me causaram um arrepio sombrio. Imaginar Abi ou qualquer um no campo de batalha era apavorante.

            _ Não se preocupe – ela sorriu – nosso amor pode nos ver através da morte.

            _ Se ele nos levar à vitória, por mim tudo bem.

            Ela sorriu, beijando-me fervorosamente, como se fosse a última vez. De mãos dadas, saímos do ventre do animal. Lancei um olhar cheio de sentimentos à minha irmã, que agora dormia com uma expressão serena.


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Notas finais do capítulo

O título é uma homenagem especial à banda que me inspirou a fazer as cenas de ação e tensão. Thanks Evanescence! xD