A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 41
Partituras de Sangue




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Partituras de Sangue

    Estevan ficou encarregado de guiar as Algueoras. Repassei o esquema de posicionamento da equipe enquanto isso. Fizemos uma separação em três grupos, o primeiro composto por mim, Brian, Estevan, Sophie e um velho amigo do meu tio. Seu nome era Loui, devia ter uns dois metros ou mais, uma aparência bruta e um humor divertido. O segundo, também composto por cinco pessoas e, o último, o grupo de apoio, composto por dez pessoas.
    Sobrevoamos o deserto, algumas cidades e, a cada segundo, o ponteiro do relógio parecia andar mais devagar, fazendo questão de manter aquela ansiedade o máximo possível.
    _ Não use seu radar – pediu Estevan – Jericho deve estar tentando te visualizar.
    _ Eu sei. Vou tentar usar minha audição, mas vai ser difícil.  Para onde, exatamente, estamos indo?
    _ Para uma antiga catedral. Adams praticou sua música por lá durante muito tempo, onde compunha e organizava o repertório de sua orquestra. Ele era um Desertado, como eu disse antes, e passou a viver como um humano, sem ter conhecimento do passado da sua família.
    _ Então como isso pode nos ajudar?
    _ Ao que parecia o irmão dele, um Homúnculo, o ajudava em suas composições, passando as notas para as partituras. O que Adams não sabiam era que, secretamente, seu irmão estava criando códigos nas páginas, uma instrução, ou algo do tipo. Talvez um mapa oculto.
    _ E isso pode nos levar... Até a máscara – eu arrisquei.
    _ Ou para mais perto dela.
    _ Como Jericho soube disso? – perguntei.
    _ Bem... Você se lembra do Aloysius Atwood? Aquele careca dos piercings?
    _ Não tem como esquecer alguém com aquela aparência. Angeline achou que ele poderia me ajudar.
    _ Todos achávamos que ele podia ajudar, ele conhecia coisas do Submundo que, até mesmo para mim, seria impossível saber. Pois bem. Ele é filho de um dos Conselheiros da Célula de Sonora, mas bandeou para o outro lado. Ao que parece, ele tem seus métodos para entrar na biblioteca sem problemas e conseguir o livro que quiser... Foi assim que ele pegou um dos livros de capa vermelha e descobriu sobre a existência das composições de Barnaby.
    _ Espera um pouco. Orestes vigia aquele lugar com rigorosidade. Nunca iria deixar Aloysius pegar...
    _ Atwood é pirocinético, Matthew. Ele controla as chamas.
    _ Mas aquelas chamas não são comuns, elas são... Especiais. Elas me repeliram quando eu tentei pegar o diário.
    _ Se chama Fogo de Faerûn. Fogo refinado, possui propriedades místicas, capaz de reagir ao pensamento, julgando-o como “inofensivo” ou “potencial perigoso”. Em todo mundo, apenas uma pessoa sabe produzi-lo. Mas, ao que parece, Atwood pode controlá-lo, como faz com chamas comuns. Por isso tem acesso ilimitado à Biblioteca de Orestes. É por isso que ele tem tanto conhecimento do Submundo.
    _ Maravilha! – eu reclamei – um rato de biblioteca do mal. Isso nos deixa...
    Eu pensei, por um momento, sobre o que dissera. Se ele era capaz de pegar qualquer livro, poderia ter lido sobre o diário do meu avô? Torci para que fosse apenas um temor desnecessário. 
    _ Não é hora pra nos queixarmos, precisamos nos concentrar. E torcer para não descobrirem o nosso espião. Se conseguirmos as partituras, somado isso à chave, estaremos muito a frente deles.
    _ E o que tem de tão interessante nessa catedral? – perguntei.
    _ É a Catedral de Saint Michel Oakstand. – ele respondeu – uma catedral antiga, um dos primeiros monumentos da cidade. O local servia para reunir alguns bispos e arcebispos de algumas partes do mundo. Essa é uma história que não contamos muito, porque preferimos ignorar. Esses “líderes religiosos” se encontravam secretamente porque estavam tentando descobrir uma forma de derrubar uma raça que vivia às escondidas. Nós, os Homúnculos.
    _ Peraí! Então houve uma época, recente, em que humanos sabiam de nossa existência? E, ainda, queriam nos eliminar?
    _ Apenas uns trinta ou quarenta bispos. Não muito. Mas era o suficiente para abalar a discrição do nosso mundo.
    _ Como resolveram isso?
    Estevan fez uma pausa, mas por fim, respondeu:
    _ Soltamos oito Aurupos famintos dentro da Catedral. Quarenta bispos desaparecidos, segundo as notícias que percorreram o mundo. Você sabe que Aurupos, literalmente, não desperdiçam a comida....
   
    Durante a viagem eu fiquei me perguntando se estava do lado certo. Cheguei a imaginar que houvesse nenhum lado inteiramente ideal. Matar bispos? Uma chacina contra humanos? Não era algo que se aceitava com facilidade.
    Finalmente, a Algueora parou. Provavelmente a outra também havia parado. Brian era quem parecia mais empolgado com a coisa toda, enquanto Sophie permanecia centrada na missão, como se fosse programada pra isso.
    _ Chegamos – avisou Estevan – estamos acima das nuvens, onde as pessoas não nos podem ver. Vamos ter que saltar.
    Não discuti sobre isso. A Algueora já estava com a bocarra aberta, deixando a claridade da lua penetrar no interior do animal. Era lua cheia. Nossos poderes estariam ampliados. Em contrapartida, os deles também. A única coisa que isso iria nos ajudar era fazer mais estragos.
    _ Vejam – as duas Algueoras estavam flutuando no ar, uma de frente para a outra. Estevan estava falando com as duas tripulações. Estávamos a uma altura gigantesca, acima das nuvens – vêem aquele lago no parque central? Vamos cair lá dentro. O parque está fechado a essa hora, ninguém vai nos ver. Quem vai primeiro.
    _ Já fui – falou Brian.
    Ele saltou como se fosse algo natural, caindo reto como uma bala de canhão na vertical.
    _ Deixa, eu vigio ele – caçoei, saltando logo em seguida.
    Senti o ar gélido noturno das altas altitudes atravessarem o meu corpo como uma rajada de água fria, eriçando meus cabeços e causando uma sensação engraçada. Era a melhor definição de estar livre. Lá embaixo o lago reluzia a luz da lua e, mesmo a uma altura tão grande, eu me sentia tranquilo, em um estado de espírito pacífico e acolhedor. Brian estava mais a frente, gritando com euforia.
    Inclinei minha cabeça pra frente e colei meus braços no corpo, descendo como um míssil, impulsionando meu corpo para baixo, auxiliado pela força da gravidade. Era incrível. Tão incrível que não consegui evitar um berro de exclamação, de adrenalina pura. Agora eu sabia como Brian se sentia.
    Meu corpo foi levado por essa incrível sensação até que, subitamente, senti a pressão se expandir ao meu redor. Meu corpo atravessou a camada superficial da água como uma flecha, com uma discrição que nem mesmo eu esperava. Meu corpo traçou uma linha vertical no interior do lado, até meus pés tocarem o fundo.
    Brian já estava no fundo do lago, sorrindo maliciosamente pra mim. “Não era uma corrida, idiota”, pensei comigo mesmo. Ele acenou veemente e, movimentando o corpo como uma serpente, nadou até a superfície. Eu o acompanhei. Nadamos até a margem e subimos em terra firme.
    Sons discretos de algo batendo na água ecoaram no silêncio do parque. Vi cinco homúnculos caírem na água. E depois mais cinco. Estevan, Sophie e Loui já estavam nadando para a margem.
    _ Incrível, não? – perguntou Sophie, estendendo a mão para mim. Eu a ajudei a sair.
    _ Precisamos fazer isso mais vezes – brinquei – Achei que fôssemos esvaziar esse lago.
    _ Você saltou bem – ela disse – você pulou de ponta, reduziu a superfície de contato. Ainda bem que não pulou de barriga.
    _ Acredite, não é o melhor jeito – falou Loui, rindo.
    _ Foco, pessoal – pediu Estevan – estamos aqui para conseguir as partituras de Barnaby Adams.
    Esperamos todos se reunirem do lado de fora do lago. Estavam ocupados demais se divertindo com os saltos. Percebi que, afinal de contas, Homúnculos tinham seus passatempos e jeitos para se divertir. Não que fosse algo normal pular daquela altura sem para-quedas em direção a um lago no centro da cidade.
    _ Ok, recapitulando o plano – falei para todos, em tom de aviso – A catedral de Saint Michel Oakstand está do outro lado da rua, e não temos idéia se Jericho está lá ou não.
    _ Eles virão essa noite – avisou Estevan – mas não sabemos se mudaram de planos. Por isso, precisamos ser cautelosos.
    _ Pois bem – continuei – para todos os efeitos, o grupo alfa, no caso, o meu, iremos na frente. Dois do grupo de apoio virá logo em seguida. Vocês vão atravessar a rua, mas vão parar no semáforo. Nada de entrar na catedral. Quem fará isso seremos nós – acenei para os meus parceiros de grupo – o grupo secundário irá logo em seguida. Aqui...
    Enfiei a mão dentro da jaqueta e tirei um papel enrolado num envelope de plástico impermeável. Removi o papel e o abri no chão. Era a planta da construção da catedral, Estevan havia conseguido na prefeitura da cidade com sua habilidade de convencer. Era bastante útil.
    A planta desenhada exibia uma igreja de estilo gótico muito antiga, com vários compartimentos e salas onde não haviam registrado suas entradas. Haviam três andares, sendo um deles subterrâneo, provavelmente uma residência para padres ou salas de confraternizações entre bispos. Ou, talvez, o local onde eles se reuniam para discutir sobre Homúnculos. Escrito na planta do subsolo havia uma mensagem datada, “Descoberto em 1957, segundo documentos de Barnaby Adams”.
    A planta exibia uma capela radial, uma espécie de pequena capela secundária; um deambulatório, um caminho semi-circular que permitia a procissão dos fiéis até o altar-mor, e que dava acesso às capelas radiais; transepto, um pequeno edifício que liga os dois extremos de uma catedral, atravessando o coro, formando uma cruz no desenho da planta; os contrafortes, pilastras feitas deitas de alvenaria para sustentar a construção; sustentando a pressão da abóbada; as naves central e laterais, setores superiores de uma catedral; e o cruzeiro, o “centro” da cruz formada pelo transepto, uma espécie de sala central que dava acesso ao resto da igreja; No cruzeiro havia duas escaras serpentantes em cada extremidade, dando acesso ao segundo andar. Embora houvesse a planta do subsolo, não havia uma passagem que levasse até lá. Ainda no mapa do subsolo, escritas em caneta de uma sala onde estavam os pertences da Família Adams (muito cômico, família Adams em uma igreja) e um X vermelho indicando o lugar exato.



   

_ Onde está a passagem para o subsolo? – perguntei.
    _ Não sabemos – Sophie confessou – tudo o que se sabe é que essa planta foi encontrada nos antigos pertences de Barnaby, exatamente como você está vendo. Engenheiros pesquisaram as estruturas e alegaram ser uma parte da igreja. Mas, você sabe, essa coisa de mexer em território da igreja sempre gera polêmica. O papa não permitiu... Não o Papah, o papa mesmo. – ela explicou – Até hoje ainda não sabem se, de fato, é uma parte da igreja.
    _ E por que só agora vocês me contam? – eu retruquei.
    _ Porque não tínhamos tempo para bolar um plano B caso não existisse a parte subsolo – explicou Estevan.
    _ Mas eu tenho certeza que ela está lá – falou Sophie – onde mais seria esse lugar? O alicerce combina exatamente com a parte superior, não há dúvidas.
    _ O que vamos fazer? Quebrar o chão?
    _ Se for preciso.
    _ Ok – eu balancei a cabeça, finalizando a discussão – pois bem. Grupo alfa, nós vamos direto pela porta da frente. Arrombando, se for preciso. Grupo de apoio, dois de vocês vão ficar perto do semáforo, de frente ao prédio ao lado. Os outros oito ficarão a espreita, aguardando cinco minutos. Se precisarmos de ajuda, disparo energia pro alto como sinalizador. Grupo secundário, vocês cinco vão se dividir. Haverá dois nos contrafortes da direita e dois nos da esquerda. Um vai ficar na escadaria, de prontidão. Cercar a área é a melhor forma de abordar. Está claro?
    Todos assentiram com a cabeça. Estevan deu uma risada baixa.
    _ O que foi? – perguntei, incerto se estava debochando.
    _ Nada... É que você, falando assim, parece até o seu avô. Eu já o vi liderar algumas vezes. Não deixa nada atrapalhar, e fica frustrado, como você ficou, quando ma nova informação chegava até ele por último.
    _ Eu não sou um líder – avisei – só estou fazendo isso porque Sammael me pediu.
    _ E porque ele sempre foi bom em cálculo – interrompeu Brian – tem um ótimo raciocínio. Soma-se isso à sensitividade, e ele saberá exatamente onde precisamos estar.
    _ Pois é – falei impaciente – bem, grupo alfa. Acho que podemos liberar nossa energia. Vamos precisar dela ao nosso máximo.
    Os quatro assentiram. Imediatamente, nossos cabelos ficaram reluzentes como fios cristalizados e nossos olhos se tingiram de um vermelho-sangue inconfundível. Era a minha parte favorita do “trabalho”.
    _ Os outros não precisam disso – eu falei – vocês vão ficar do lado de fora e não podem correr o risco de serem vistos por nenhum humano... Lembrem-se: não façam nada que coloquem a vida dessas pessoas em risco.
    Eles assentiram novamente. De repente eu me sentia o chefe de uma máfia bizarra e, embora fosse excitante, não me agradava muito. Não sabia que se queria arcar com tamanha responsabilidade, mas era meio tarde para voltar atrás.
    _ Vamos – coloquei a planta de volta do envelope e, colocando-o na jaqueta, prossegui – já é quase meia-noite.
    Corremos pelo parque em direção à catedral. Não demorou nada para chegarmos ao muro que circundava o parque. Saltamos para cima do muro e observamos o movimento. Para chegarmos à catedral precisávamos atravessar uma avenida que ainda possuía alguns resquícios do tortuoso trânsito da tarde. Alguns carros passavam, despreocupados, aproveitando as raras oportunidades em que conseguiam ter uma pista toda para eles. Apenas as pessoas a pé não se arriscavam tanto em perambular pelas ruas tarde da noite.
    _ Primeiro o grupo alfa – falei – vamos um de cada vez. Vocês – falei, olhando para oito dos Homúnculos do grupo de apoio – fiquem bem aqui e mantenham discrição. Qualquer movimento diferente que avistarem, entrem sem cerimônia.
    Eu fui o primeiro a atravessar a avenida com a minha velocidade sobre-humana, garantindo que nenhum olho despreocupado conseguisse me visualizar. Na entrada da catedral, oito pilares de pedra estavam dispostos, quatro em cada lado, de forma ornamental. Eu me escondi atrás de uma delas, meus olhos fixos na grande porta de entrada envernizada. Estevan se escondeu na pilastra ao lado. Em seguida veio Sophie, Loui e, por último, Brian.
    _ Prontos? – eu murmurei.
    Eles fizeram um gesto positivo. Olhei para o muro do parque, e visualizei sete vultos atravessando a avenida. Cada um estava posicionado em seu lugar. Vi oito vultos bem escondidos entre os grossos galhos de árvores que se embrenhavam no muro. Sorri, satisfeito com o início da missão. Estava saindo tudo como planejado.
    Adiantei-me do grupo, correndo até a porta de entrada. Estava diante da enorme passagem fechada. Forcei-a, de leve. Estava trancada. Suspirei, aliviado. Se Jericho estivesse ali, provavelmente não se preocupariam em trancar a porta.
    Fiz um gesto em direção ao grupo alfa. Eles correram em minha direção.
    _ Vamos entrar – avisei.
    Forcei minhas mãos contra a enorme fechadura de ferro maciço chumbado à porta e, sem nenhum esforço, com um único solavanco, a fechadura foi arrancada. Forcei a porta e ela se abriu, rangendo com um barulho estridente. Abri uma fresta suficientemente espaçosa para conseguirmos passar com folga.
    _ Primeiro eu – informou Brian – se eu sofrer alguma tocaia, posso me recuperar.
    _ Eu também.
    _ Você não acha que já está fazendo muito? – ele retorquiu.
    _ Ok. Seja rápido.
    Ele me olhou como quem diz “Te conheço?”. Ignorei o olhar mortiço e dei espaço para ele passar.
    Levou menos de dez segundos para ele voltar, ansioso e com um ar levemente desapontado. Provavelmente não haveria uma briga para distraí-lo.
    _ Podem vir – ele disse – ta limpo.
    Entramos silenciosamente. Estevan fechou a porta assim que entramos, cortando a circulação de ar. O ambiente ficou quente de repente. Mantive minha sensitividade em alerta a todo o momento, me concentrando nessa habilidade meio atrofiada. Ela não podia me deixar na mão, não aquele dia.
    _ Vasculhem em todos os lugares – falou Estevan – Brian e Sophie, olhe no segundo andar.
    _ O que pode haver no segundo andar? – perguntou Brian – não é pra baixo que queremos ir?
    _ Lá em cima tem uma biblioteca recém-colocada – explicou Sophie – mas os livros antigos e arquivos da catedral são os mesmos.
    _ Ah, vou ter que mexer em papéis – resmungou Brian.
    Eles foram até o cruzeiro e sumiram de vista, Brian nitidamente frustrado. Estevan passou pelos enormes assentos de madeiras, entre as duas fileiras, olhando de um lado para o outro. Atravessei o coro, um pouco mais a frente de Estevan, e caminhei até o altar.
    _ O que, exatamente, estamos procurando? – perguntei.
    _ Bem... Na verdade, eu esperava que você me dissesse – Estevan deu uma risada sem graça – o sensitivo aqui é você.
    _ Ah, certo.
    Deslizei minhas mãos sobre o altar, sentindo a textura áspera do púlpito de madeira, esperando sentir alguma reação. Nada. Caminhei pelo deambulatório, batendo com o pé de leve no piso de madeira que sustentava o altar-mor, mas nada parecia chamar a minha atenção. Havia dois basculantes no canto da parede do coro, abaixo dos meus pés, mas era muito pequeno para alguém passar por ele. Senti a brisa leve passar por ele, o ar fresco que vinha da rua.
    _ Isso aqui vai dar do lado de fora – murmurei – aqui não é.
    _ O que disse? – ele perguntou, de longe.
    _ Disse que ainda estou procurando.
    Eu me sentia um idiota, de repente, eu comecei a suspeitar da hipótese de não haver nada demais naquele lugar. Já era uma possibilidade, provavelmente Jericho sabia do espião e havia nos jogado na pista errada, para nos desviar do lugar certo. Mas não tínhamos outra opção. Continuei a busca por qualquer coisa mais incomum que uma passagem secreta.
    Fui até o altar novamente, peguei a planta da catedral e abri-a sobre o púlpito. Meus dedos correram em todos os caminhos possíveis. Analisei cada local, ligando os pontos fazendo as análises. Se eu estivesse certo, a P.A. – sala de pertences da família Adams – estaria bem abaixo do coro e, na mesma direção, o que correspondia, também a uma sala sem demarcação na extremidade norte do segundo andar. Se eu fizesse um buraco bem ali, poderia chegar facilmente.
    _ O que acha da força bruta? – perguntei.
    _ Sem chance – ele disse – não sabemos se é seguro. Se no subsolo existe alguma prova do paradeiro da Sala Octogonal, quem nos garante que não haverá armadilhas? Você sabe, a Sala é protegida dessa forma.
    _ Temos que arriscar, antes que Jericho apareça. – falei com urgência.
    _ Vamos procurar mais uma vez, ok? – ele pediu – cinco minutos. E aí eu mesmo faço a droga do buraco.
    _ Ok – concordei.
    Não tive nem tempo de embrulhar a planta e colocá-la de volta no envelope. Um cheiro forte de carniça invadiu minhas narinas, e eu sabia que não era um cheiro natural do ambiente.
    _ PERIGO! – eu gritei.
    Não a tempo. Um estampido forte me fez olhar para o teto, onde abriu um enorme buraco. Sophia e Brian foram arremessados por ele, caindo sobre os bancos de madeira, levantando uma enorme quantidade de poeira e destruindo a construção acima de nós. Uma coluna de concreto cedeu e desabou sobre eles.
    _ Droga! – eu chiei.
    Corri em direção à queda dos meus amigos. Olhei para cima por um segundo, minha visão impecável atravessando o ar cheio de poeira densa. Do outro lado da nuvem de poeira estava Aloyisius Atwood, o homem careca com piercings que traíra covardemente nosso grupo, levando nossas informações até o inimigo. Ele segurava, triunfante, um capacete feito do que parecia ser crânio de búfalo.
    _ Ugh! – ouvi Brian gemer, removendo um enorme concreto que por pouco não o achatara no chão. Não que isso fosse matá-lo. Estevan já estava dando assistência a Sophie.
Vários vultos se projetaram no segundo andar, todos trajando vestes negras, com calças largas como um balão, roupas parecidas com a de um samurai da era Edo. Cada um deles tinha um crânio de búfalo cobrindo o rosto como uma máscara. Fui rápido o suficiente para conseguir contar. Vinte. Pau a pau.
    Sem cerimônia, ergui a mão e, reunindo energia áurea na palma das mãos, lançando-a como um fogo de artifício. Ela atravessou o telhado do andar superior e explodiu no ar. Enviei o sinal, por garantia.
    _ Já estamos aqui embaixo, garoto – ouvi a voz de Aloysius, risonha e divertida – Que droga é a vida, não? Perdi a chance de me livrar de você quando nos cruzamos... Mas, fazer o que? Papah te quer vivo.
    _ Se você conseguir sair daqui vivo, diga a ele que venha me pegar pessoalmente da próxima vez – eu sorri, confiante.
    _ Vocês estão em menor número. Mesmo sendo um Haunter, não é capaz de vencer minha equipe. Somos os melhores. Não haverá uma próxima vez.
    _ Olhe de novo – eu abri os braços, olhando a nossa volta.
    Atwood correu os olhos por toda a construção. Além de nós cinco, treze Homúnculos os rodeavam, semi-escondidos atrás de pilastras, esculturas de cupidos e escombros.
    _ Não somos idiota, Atwood. – falou Estevan.
    Ele encarou Estevan, furioso.
    _ Você nos traiu, e agora está tentando nos eliminar – Atwood chiou – devia ter imaginado que você sempre seria um fraco.
    _ Você nos traiu muito antes, Aloysius. Só estamos aqui para retribuir à sua lealdade.
    _ Acabem com eles! Agora! – bradou Atwood.
    O grande número de mascarados saltaram em nossa direção. Meus nervos explodiram em resposta. Meu instinto Haunter aflorou, pronto para derrubar qualquer um que ameaçasse meus amigos.
    Estevan tomou impulso na direção de Atwood, já escolhendo seu inimigo. A equipe de apoio saltou, cada um sobre, um rival, escolhendo seus “parceiros de dança”. Sophie e Brian já não estavam mais parados, lutavam como se nem tivessem sido atingidos por colunas de concreto. Fiquei satisfeito em ter escolhido uma ótima equipe.
    _ Hei, garato – Loui me puxou pelo braço, me esquivando de um golpe inimigo – qual é? Para de sonhar e quebra a cara de alguém! Não posso ficar salvando a sua vida e a minha ao mesmo tempo
    _ Ah, o que?... Certo, foi mal!
    Ele me empurrou para o outro lado, caindo a alguns metros de joelho.
    _ Concentre-se na luta! – ele bradou. Saltou em seguida sobre um mascarado e começaram a trocar socos e chutes, provocando barulhos de impactos fortes.
    Droga, minha sensitividade não tinha me alertado. Concentrei-me na luta, não queria ser um peso pra ninguém.
    Havia um homúnculo mascarado caminhando em minha direção. Enquanto os pares de rivais se espancavam e se arremessavam contra paredes e destruíam tudo o que viam pela frente, ele permanecia em linha reta, seus olhos arroxeados, por trás da máscara, me encarando com determinação.
    _ Ok, achei meu inimigo – murmurei.
    Saltei sobre ele. Deixei meu instinto fazer a coisa toda. De repente, todos os meus movimentos já estavam escritos em minha mente. Ele ficou em guarda. Flexionei os joelhos, impulsionando meu corpo, inclinei a cabeça pra baixo, mantendo-me uma linha reta abaixo de sua cintura. Ele ficou em guarda. Como um jato emergindo até as nuvens, inclinei-me para cima, meu punho fechado em um movimento rápido pra cima. Ele desviou, mas antes que ele pudesse reagir, girei os calcanhares, me projetando logo atrás dele. Nossas costas se tocaram. Era o fim para ele. Meu cérebro já traçara todos os movimentos. Ergui a perna para trás, fechando seu pescoço em uma chave de joelho perfeita, era uma vitória garantida, dada a mim pelo meu talento natural em matar. Mas algo saiu errado. Alguma coisa forçou as minhas costas, como uma estaca sendo pressionada na minha pele. Demorou, mas eu senti. Meus ossos trincaram, e, com um pouco mais de força, ele conseguiu fazer sua mão atravessar o meu peito.
    Olhei para o meu próprio peito, onde sua mão havia atravessado depois de algum esforço. Eu o fitei, perplexo. Pelo seu olhar vitorioso, ele parecia estar rindo. O golpe me enfraqueceu, e ele se libertou da chave de joelho. Sua mão retrocedeu e, mais uma vez, forçou as minhas costas. Percebi a força que ele estava fazendo para atravessar o meu corpo, mas eu sabia que conseguiria. Meu osso esterno foi triturado, e sua mão atravessou o outro lado do meu peito, jorrando mais sangue. Ele recuou a mão mais uma vez e me soltou. Meu corpo estremeceu com a dor, e cambaleou. Antes que eu pudesse cair, ele agachou, apoiando o corpo com as mãos e, num giro rápido, passou os pés sobre a única perna onde eu estava me equilibrando, eu uma maldita rasteira bem elaborada. Caí no chão, ofegante, sentindo o sangue subir à garganta e escorrer pelo meu queixo. Cuspi no chão, sentindo a dor do golpe, o gosto de poeira invadindo minha boca.
    _ Não seja idiota, cara – ele falou com uma voz esganiçada. Não era um homem. Pela voz, com certeza era uma garota – Acha que Papah nos mandaria aqui sem um reforço extra?
    _ O qu... – não consegui terminar. Outro jorro de sangue saiu pela minha boca.
    _ Sou como você. Uma Haunter. – ela deu uma gargalhada – a diferença é que eu não tenho pena em te matar... Ah, e claro, sou muito mais forte.
    Tentei me apoiar com as mãos, mas ela havia me machucado feio. Olhei para o chão onde eu estava estirado, uma enorme poça de sangue havia se formado. Droga! Sua mão havia transpassado meu coração e fraturado minha coluna. Não conseguiria ficar de pé.
    _ Sua pele é dura – ela riu – mas você não vai sobreviver.
    _ Não diga... – senti o sangue parar aos poucos, e a respiração foi ficando cada vez mais fraca – não diga... besteiras...
    Ergui meu corpo alguns centímetros, me apoiando na palma das mãos. Era como tentar erguer uma montanha, um esforço absurdo. Desejei que alguém estivesse menos ocupado com as próprias lutas. Olhei para todos os lados, aflito. Apenas Loui estava em meu campo de visão, e estava absorto demais em sua luta para se preocupar em olhar para os lados. O que significava que ninguém estava com a atenção voltada a mim.
    Ela se abaixou ao meu lado. Senti sua respiração aquecer o meu pescoço, causando uma tensão ainda maior.
    _ Hum... Jericho não falou que você tinha um cheiro tão bom... – ela murmurou...
    _ Pena... Não poder dizer... O me... mesmo... – eu forjei uma risada em meio á tosse e gotas de sangue – você... Fede...
    Ela levou a mão aos meus cabelos com violência, levantando minha cabeça alguns centímetros do chão. A dor me arrancou um gemido, gritar era impossível naquele estado.
    _ Ninguém pode te ver, rapazinho – ela murmurou – para eles, nós não estamos aqui.
    Embora meu corpo estivesse semi-lacerado, as palavras dela ainda eram compreensíveis para minha mente intacta.
    _ Quando eu te toquei – ela continuou murmurando com os lábios pressionados em minha orelha – desviei toda a luz que te refletia... Para eles, estamos “invisíveis”...
    Ela conseguia afastar a luz, mas não o som, por isso estava falando tão baixo, ou poderiam nos ouvir. Mas minha voz havia morrido antes de chegar à boca, e um grito de desespero estava fora de cogitação. Era humilhante.
    Ela pressionou minhas costas mais uma vez. Senti a carne que forrava meus órgãos revirar como se estivesse dentro de um liquidificador, causando uma dor cruciante. Ela estava procurando alguma coisa. E achou.
    _ Aqui – ela sibilou.
    Puxou a mão com força, e a vontade de morrer veio instantaneamente. “Acaba logo com isso”, eu pedi “Anda logo com isso”, senti lágrimas descontroladas escorrerem em meu rosto.
    Ela jogou um volume carnoso e ensangüentado ao lado do meu rosto, espirrando sangue em meus olhos.
    _ Eu roubei sei coração... – ela murmurou em tom brincalhão – literalmente.
    Olhei o meu coração, perfurado, lacerado, mas ainda pulsante, no chão, como se tentasse viver, assim como eu. Era terrível. Senti meu peito vazio, de verdade.
    _ Logo você vai morrer – ela disse – seu corpo é resistente, vai conseguir se manter vivo por alguns minutos e, se for realmente forte, pode continuar vivo uma hora inteirinha. Mas não vai voltar a se levantar, amor...
    Desejei, desesperadamente, que ela acabasse logo com isso. Viver sem um coração era a dor mais terrível e inimaginável, com certeza nada superaria isso. Ela mordeu a ponta da minha orelha, de forma doentia, deslizando sua língua úmida em uma carícia monstruosa, macabra.
    _ Sinto muito, lindinho... – ela disse, sorrindo – mas acaba aqui.
    _ PUTA DESGRAÇADA!
    A voz ecoou como um trovão tempestuoso. Olhei para o lado, e lá estava ela. Caryenane, correndo furiosamente em nossa direção, sua expressão cômica e travessa havia se perdido em algum lugar. Ela estava possessa, perturbada.
    _ O que... – a Haunter encarou o que, provavelmente, era visto como uma luz disforme – que merda é essa?
    Cary saltou sobre ela, agarrando-a pelo pescoço e arremessando-a metros de distância. A Haunter cortou o ar, gritando furiosa, enquanto seu corpo se chocava contra uma pilastra e era soterrada pelos escombros.
    _ ARGH! – Cary urrou.
    O chão estremeceu. O piso rachou e abriu uma fissura ao comando da sua voz, saindo do chão um prolongamento de terra, tomando a forma de um punho. A mão gigantesca investiu em direção à Haunter, soterrando-a por completo, abafando o seu gemido de frustração.
    Cary correu até mim, desesperada, me segurando pelo rosto.
    _ Matthew! – ela gemeu, ajoelhando-se, sem se importar com o meu sangue manchando seu corpo iluminado – Eu vou te tirar daqui!
    _ Não... dá... – eu murmurei – acho que eu vou...
    _ Não, você não vai! – ela bradou, decidida – se fosse, eu saberia! Você vai sobreviver!
    Do que diabos ela estava falando? Meu coração tinha sido arrancado, lacerado e atirado no chão como quem atira carniça aos cães. Seria possível sobreviver a isso? Seria?
    A resposta veio com a fisgada repentina no peito. Eu gemi de dor, como se uma linha grossa em chamas estivesse me atravessando.
    _ Você vai ficar bem! – ela garantiu – me deixa tirar você daqui!
    _ Não... – eu falei, ainda fraco – me leve até... Lá embaixo...
    _ Matthew...
    _ Agora... – ela sabia que, se eu pudesse, teria gritado com ela.
    Ela assentiu, ainda apavorada. Segurou-me no colo, pisando, assim, no meu ego. Era tudo o que eu não precisava para minha primeira missão. Cary fez um movimento rápido com a cabeça e a fissura se abriu, revelando uma sala logo abaixo de nós. O que aconteceu em seguida confirmou os temores de Estevan.
    Oito aurupos enormes, maiores do que a maioria que eu já vira, saltaram para fora da fissura, correndo para lados diferentes, desgovernados, como se fossem treinados para caçar e cravar os dentes até terem certeza de que a presa estivesse morta. O hálito fétido e morno das criaturas era detectado de longe, ou talvez fosse minha intuição me avisando do quão perto da morte eu estava. Um deles se lançou contra Cary. Mas não concluiu o ataque. No segundo seguinte, já não estávamos mais na igreja. Estávamos em uma sala desconhecida.
    _ Não temos tempo para outra briga – falou Cary, ainda com a voz trêmula e apavorada.
    Ela tinha nos transportado para a sala abaixo de nós. Ouvi os uivos e rosnados agressivos dos animais no andar de cima, mas não pareciam ter percebido nossa invasão à sala. Arrisquei uma rápida olhada para cima. Além da poeira e dos vultos rápidos, não havia nenhum sinal de que estavam nos seguindo.
    _ Me coloque ali... – eu pedi – no canto...
    _ Eu não...
    _ Por favor, Cary... – eu a olhei, minhas pálpebras estavam ficando pesadas – me coloque ali...
    Hesitante, ela me apertou em seus braços, tomando o cuidado para não me machucar. Por fim, atendeu ao meu pedido, me colocando sentado no chão, encostando minha cabeça na parede. Senti o ar, misteriosamente, entrar e sair pelas minhas narinas. Estava respirando com mais facilidade.
    _ Vá até aquela sala... – falei, minha voz um pouco mais nítida – entre. Pegue tudo o que parecer importante, principalmente... Música... Coisas de música.... Use sua habilidade de teletransporte... E leve-os a um lugar seguro.
    _ A célula? – ela murmurou.
    _ Pode ser. – eu forcei um sorriso.
    Lá fez o que eu pedi. Entrou na sala, não muito longe de mim. Ela precisava estar próxima a mim para sua habilidade de teleportar ser eficiente. Aguardei, pacientemente, sentindo a linha grossa passando dentro de mim como se... Como se estivesse costurando alguma coisa. Sua ponta queimava e atravessava minha pele como uma agulha em tecido fino.
    Arrisquei uma olhada breve. Havia algo ali, no centro do meu peito, uma bolsa de carne, vermelha e pulsante. Para o meu espanto, era um coração. Não, exatamente, um coração. Parecia ser mais o resquício de um coração. Então eu me dei conta. Meu corpo estava se regenerando.
    Protuberâncias brancas começaram a crescer de dentro pra fora, os ossos do esterno estavam se formando rapidamente, e as costelas estavam se remendando. As fibras do coração começaram a se unir e tomar a forma exata de um coração humano, palpitante, cada vez mais vivo. Os outros órgãos estavam tomando suas formas originais, recompondo cada tecido, cada célula fundamental. Era terrível, com certeza, sentir os ossos surgirem do nada, uma dor insuportável, a ponto de arrancar lágrimas dos olhos.
    Os dois enormes buracos em meu peito eram, agora, úlceras sangrando, uma imagem menos asquerosa do que antes. Pousei minha cabeça preguiçosamente na parede, a medida em que a dor ia me deixando, era mais fácil respirar.
    Então, repentinamente, a dor sumiu. Eu me estiquei pra frente em uma contração rápida e involuntária, soltando uma golfada de ar, cuspindo as últimas gotas de sangue. A dor havia acabado e meu corpo estava, novamente, inteiro. Tateei a minha camisa furada, manchada de sangue, por garantia. Nenhum buraco, nenhuma feridazinha. Sorri, aliviado. Eu estava vivo.
    Mas, como sempre, minha felicidade durava pouco. Do buraco que ligava o térreo e subsolo, saltou uma figura vestida de negro, usando a máscara de búfalo. Fitei a figura. Era a garota Haunter. Sua máscara estava rachada, o chifre quebrado e sua cabeleira ruiva e o olho direito exposto. A expressão da Haunter era de profunda indignação.
    _ Você é que nem barata! – ela urrou – Não vai morrer não, é?
    Ela enfiou a mão por dentro do orifício dos olhos e, violentamente, arrancou-a de sua cabeça. O crânio de búfalo espatifou antes mesmo de tocar o chão.
    _ Eu sou do tipo teimoso – sorri, levantando-me, bem-disposto.
    _ Então eu vou te ensinar bons modos.
    _ Você foi muito longe – eu repliquei – longe demais. E é aqui que você cai.
    _ Ora, o que você...
    Eu ergui minha mão em sua direção. Ela me encarou, confusa.
    _ O que você pretende fazer? – ela ficou em posição de ataque, desconfiada.
    _ Vou te matar... Estilo Aurupo... Sem sangue, sem sujeira.
    Eu sabia que não podia subestimar um Haunter, agora tinha certeza. Deixei a aura que circulava no interior do meu corpo emanar a minha volta, como um aroma vívido e intenso. Nas pontas dos meus dedos, arqueados, um ponto de luz surgiu, um azul-prateado. Ela ficou perplexa.
    _ Como...
    Disparei a energia contra ela e, por um triz, ela se esquivou. Rolou para o canto, me encarando com uma nova expressão: receio.
    _ VOCÊ PELO MENOS SABE QUEM DESAFIOU PARA LUTAR? – eu bradei, contra ela.
    Ela não respondeu. Estava ocupada demais mantendo sua atenção às minhas mãos. Atirei outra esfera de energia contra ela, e, novamente, ela conseguiu esquivar, mas por pouco.
    _ MATTHEW VANCE! – gritei – FILHO DE ALUCATE, FILHO DE HOMÚNCULO! UM HAUNTER! EU SOU A PIOR ABERRAÇÃO QUE JÁ EXISTIU NESSA MERDA DE SUBMUNDO! – estava extravasando toda a raiva, disposto a recompensar o meu ego pela humilhação que a garota me fizera passar.
    _ Você não vai conseguir... – ela murmurou. Eu tomei passadas largas em sua direção, e ela retrocedeu, receosa, a mesma quantidade de passos – você não é forte o suficiente para deter os planos de Papah.
    _ Quer apostar? – eu sorri maliciosamente. Eu queria ver o sangue dela em minhas mãos. Um desejo comum, estando diante de minha quase-assassina.
    _ Você não quer me matar – ela falou, mais para si mesma do que pra mim – Você é todo certinho... vai mesmo bater em uma...?
    Me lixei para as palavras dele. Tomei impulso e me atirei em sua direção. De repente, a cena ficou em câmera lenta. Os lábios dela se mexeram lentamente, e tudo a minha volta parecia estar em repouso, quase congelado. Aproximei-me dela com passos rápidos. Seus músculos lutaram para sair do meu caminho, seus olhos arregalados e apavorados. Ela conseguia acompanhar meus movimentos com os olhos, mas seu corpo não. Minha velocidade havia atingido um novo patamar. Era como se, a cada luta, a cada despertar de energia, meu corpo se tornasse mais forte, mais rápido. Uma onde de euforia me dominou, me encorajando a cada movimento calculado.
    Cheguei próximo o suficiente para sentir o cheiro de sangue em seu pescoço, o suor molhando suas bochechas.
    _ Eu não vou morrer – sussurrei no ouvido nela – não aqui, não agora, não por você... Mas você tem razão... Não quero te matar...
    Então, de repente, o ritmo tomou sua velocidade normal. Ela estava ofegante, sentindo a ponta dos meus dedos provocarem uma linha fina de sangue em seu pescoço. Por um momento, o que eu queria era poder arrancar sua cabeça, garantir que aquele sorriso ordinário nunca mais pudesse ser exibido como um troféu. Mas eu não era isso. Não era um assassino, e ela era apenas uma garota. Um Haunter, mas eu não era como os conselheiros da FourFace. Eu não tinha o direito de condená-la.
    _ Por que... – ela murmurou – Por que vai me deixar viva?
    _ Por que agora eu sei – falei, sorrindo, ainda sussurrando em seu ouvido. Era a minha vez de estar no comando da luta – que posso te vencer a qualquer momento. Você não é nada.
    A respiração acelerada da minha adversária aumentou o ritmo. Ela não ousou responder.
    _ Saia daqui – eu sibilei – desapareça. Não volte. Se esconda de Papah... Se esconda de mim. Ou um de nós irá te matar... Apenas suma daqui, fuja dessa luta...
    O olhar dela, apavorado, encontrou meus olhos estreitos e ameaçadores. Ela não ousou responder. Eu me afastei alguns centímetros, percebendo que havia encurralado-a na parede. Dei a ela espaço para se mover. Ela permaneceu com os olhos fixos em mim. Estava apavorada.
    _ Matthew! – a voz de Cary gritou logo atrás de mim. Ela vinha a toda velocidade.
    _ Calma aí, Cary! – eu pedi, estendendo a mão para ela, mas sem tirar os olhos da minha adversária – ela não vai fazer nada.
    A Haunter tomou impulso e, com sua expressão congelada em um pavor assombrado, saltou pelo buraco, sumindo de vista. Mas eu não podia me dar ao luxo. Usei meu radar. Ela estava fazendo o mesmo, provavelmente garantindo que eu não ia segui-la.
    _ Que bom que tomou a escolha certa – murmurei. Ela estava correndo para longe da catedral, para qualquer lugar longe daquela luta.
    _ Jericho tinha razão... – ela murmurou com a voz trêmula – você é um monstro...
    E dizendo isso, “desligou” a nossa conexão. Não, eu não era um monstro. Havia superado aquele instinto assassino. Estive bem perto de matar, mas não o fiz. Não iria permitir que minha natureza me dominasse. Iria traçar meu próprio ser, a minha maneira.
    _ Por que a deixou fugir? – Cary perguntou, exasperada.
    _ Ela não representa perigo – eu respondi.
    _ Ela é um Haunter, Matthew!
    Eu me virei para Cary.
    _ Eu sou perigoso, Cary? Também sou um Homúnculo. Se quer detê-la por ser um Haunter, então eu peço que você me mate primeiro. Não faço nenhuma objeção, se for essa a sua vontade.
    Ela me encarou, perplexa.
    _ Está... Defendendo ela?
    _ Não – respondi – Só quero justiça. Não acha que já temos muito pouco disso por aqui?
    Ela analisou minha expressão e, por fim, assentiu, sem discutir.
    _ Conseguiu o que eu pedi? – perguntei, exibindo um leve sorriso.
    _ Claro – ela tomou sua antiga expressão adorável – na verdade eu levei tudo. Está na Biblioteca.
    _ Ótimo. Vamos ver como está a briga lá encima.

    Cary e eu saltamos para fora do buraco no subsolo. Lá estavam eles. Estavam todos exaustos, suando frio e, pela primeira vez, eu percebi como eu mesmo estava ofegante. Foi uma luta estafante, um dia tortuoso para todos nós.
    Corri até eles, temendo ter... Perdido alguém. Analisei todos os rostos. Estavam todos ali, todos bem. Apenas Estevan estava mais ferido do que os outros.
    _ Por pouco ele não consegue – falou Sophie, acariciando a bochecha do rapaz, deitado no chão com certa dificuldade para respirar – Atwood é muito forte.
    _ Onde eles estão? – perguntei.
    _ Fugiram – respondeu Brian, radiante – Atwood teve que sair daqui carregado. Se Estevan não tivesse arrebentado aquele panaca, os comparsas dele não teriam interrompido a luta para ajudar o chefe... Uma pena, eu estava por cima.
    _ Que bom que estamos todos vivos – falei, aliviado.
    _ E a sala? – perguntou Loui – conseguiu...
    O olhar dele se perdeu logo atrás de mim. Ah, droga! Na euforia do momento, havia me esquecido que Cary ainda estava em segredo.
    _ Isso... – Loui gaguejou, apontando para a ‘luz disforme”. Todos olhavam para Cary, perplexos – isso é um... ChAngel?
    _ Ah... – eu cocei a cabeça, fingindo de desentendido – esqueci de mencionar esse detalhe... Er, então... Vamos?


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