A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 35
ChAngel




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ChAngel

    _ Que merda é você? – eu bradei contra a mulher. Ela continuava séria – Onde está o meu cachorro?
    Ela permaneceu imóvel, de pé, no celeiro, a minha frente. Parecia uma estátua, séria e inexpressiva. Eu estava pronto para repetir a pergunta quanto ela estendeu a mão, como se pedisse para eu me calar. Ela revirou os olhos amarelos. Sua feição, antes centrada, mudou para entediada e levemente divertida, como uma criança. Ela se jogou sobre um amontoado de feno preguiçosamente, deixando sua longa cabeleira cobrir seu corpo nu.
    _ Sem drama, ta legal! – ela falou. Sua voz era macia, tão impecavelmente pronunciada, etérea e ao mesmo tempo cômica. Era algo inusitado – você não ouviu? Eu sou um ChAngel. A propósito, pode me agradecer quando quiser.
    _ Onde está o brock? – perguntei irritado.
    Ela revirou os olhos, outra vez, me deixando ainda mais furioso. Ela segurou um tufo de cabelo prateado entre os dedos e começou a brincar com as pontas da própria cabeleira.
    _ EU sou Brock – ela disse como se fosse fácil compreender – sempre fui.
    _ Impossível – interpus – Brock é um cão... Macho.
    _ O que? Você acha que eu me pareço uma fêmea? – ela parecia mesmo era ofendida. Mas era inegável. O corpo, a voz, tudo deveria pertencer a uma mulher – eu não sou fêmea.
    _ Vai me dizer que é macho! – retorqui.
    Tampouco Sou apenas Caryenane.
    _ O que é isso? Uma nova definição para hermafrodita? – caçoei.
    _ Não seja idiota – ela falou, levemente impaciente – Caryenane é o meu nome. Nós, ChAngels, estamos acima dessa coisa de sexo. Não somos rotulados como “macho” ou “fêmea”.
    _ Mas você É mulher! – eu insisti – você tem tudo o que...
    _ Não, bobinho... Veja.
    Ela se levantou, jogando os cabelos para trás. Caryenane foi tão rápida e graciosa que nem pude cobrir o rosto a tempo. Ao invés disso me vi obrigado a admirar toda a extensão de seu corpo nu e iluminado.
    Os seios eram carnudos e arredondados, mas não havia mamilos. Não tinha umbigo, mas o abdômen era levemente torneado. Meus olhos se demoraram, perplexos, em sua virilha. Não havia nada, nenhum órgão genital. Apenas uma pele lisa e alva, que envolvia uniformemente o seu corpo. Era como um manequim vivo, porém muito mais belo.
    _ O que...
    _ Deixa de ser safado, Matt! – ela falou em tom zombeteiro, cobrindo seu corpo com os cabelos novamente.
    _ Hein?... Hei, eu não estava... – eu estava sim.
    Fiquei um minuto cultivando o silêncio, tentando absorver os últimos acontecimentos. Eu sentia que minha cabeça estava inchando com tanta informação.
    _ Meu cachorro... – eu murmurei – o cão do meu avô... Onde...
    _ Sou eu, Matthew. Sempre fui Brock. – ela falou pacientemente, com certa ternura – você é um bom amigo, sabia? Mas eu me transformar em Brock novamente não vai fazer as coisas voltarem ao normal. As coisas mudaram.
    _ Como você pode ser Brock? Eu exijo uma explicação! – repliquei, sentindo minhas orelhas queimarem e meu rosto ficar vermelho, não sabia se era por estar diante de uma linda mulher nua, ou por ter sido enganado pelo meu melhor amigo canino.
    _ Tudo bem – ela se jogou novamente sobre o feno – você merece a verdade... Bem, eu sou um ChAngel...
    _ Isso você já disse – interrompi.
    _ Cala a boca e escuta – ela replicou – como eu dizia... EU sou um ChAngel. Somos muito raros em todo o mundo. Somos uma espécie de anjos da guarda, se você preferir. Mas, por definição, nos chamam de Espectro de Luz. Nós tomamos a forma daquilo que os nossos protegidos julgam confiável.
    _ No meu caso...
_ No seu caso, assim como o seu avô, - ela continuou - “o cão sempre é o melhor amigo do homem”. Por considerar o cachorro leal, tomei essa forma. O problema foi que, por muito tempo, fiquei presa naquela forma. Seu avô me pediu que eu cuidasse da mansão e, como nunca nada acontecia por lá, me acostumei a viver como “Brock”, já que você havia adotado a imagem de Brock como leal.
    _ E como você me encontrou? Como entrou lá? – eu perguntei.
    _ Caramba, que cara curioso... Bem, isso é meio que minha obrigação – ela deu de ombros, eu sempre sei onde você está. Posso me teleportar para onde meu protegido estiver, independente da distância. Ao seu lado, minha habilidade de teletransporte fica ilimitada. Posso ir para qualquer lugar.
    _ Você poderia me levar de volta a Sonora?
    _ A Célula? Claro – ela sorriu.
    Eu a fitei por alguns segundos. Era tão humana! Seu rosto alegre, suas expressões, o olhar preocupado e protetor. E ao mesmo tempo tão surreal com sua beleza inconfundível, sua singularidade. Mas meu transe foi quebrado por uma preocupação.
    _ A chave! – eu gemi – Droga, eu não consegui! Tudo o que eu queria era pegar a chave e acabei...
    _ Isso? – ela me interrompeu. Estendeu a mão e, lá estava, uma corrente balançando entre seus dedos, cuja extremidade estava presa a um bocal de trompete – eu peguei quando saltei sobre aquele maluco. Devem estar furiosos! – ela deu uma gargalhada travessa.
    Ela lançou a chave para mim e eu a peguei ainda no ar. Assim que minhas mãos se fecharam sobre o bocal, senti a textura familiar do metal frio, produzindo uma sensação extremamente reconfortante, como se, de repente, eu estivesse relaxado. Voltei minha atenção para a ChAngel.
    _ Obrigado, Brock... hã, Caryenane... Como eu devo...?
    _ Me chame de Cary – ela pediu, sorrindo como uma criança que recebeu o que queria – era assim que seu avô me chamava.
    _ Ok... Cary – eu retribuí o sorriso. De repente, um elo estranho entre nós havia se formado, um laço inquebrável, capaz de superar tudo. Como eu poderia estar tão ligado a uma pessoa que eu acabara de conhecer – Você... Não tem família?
    _ ChAngels não vivem com suas famílias. Nós vivemos para proteger.
    _ Mas, você não tem irmãos... Pais?
    _ Somos muito raros. Até para um ChAngel é difícil encontrar outro. Existem poucos... Talvez uns cinco ou seis.
    _ Só isso? – eu arqueei as sobrancelhas, incrédulo.
    _ Pois é...
    Ela fez uma pausa. Cary não parecia se importar com isso, ela parecia satisfeita em estar ali comigo. Estranhamente, eu sentia a mesma coisa.
    _ E por que decidiu me proteger? – eu perguntei.
    _ Eu não decidi isso, exatamente. Foi eu avô quem me escolheu de certa forma. Veja bem, quando somos apenas bebês, nossos pais nos abandonam. Faz parte de nossa natureza. Por isso existem poucos de nós, quase nenhum sobrevive. Mas, em raros momentos, pessoas nos encontram e, movidas de compaixão, cuidam de nós, até estarmos maduros o suficiente para vivermos por nós mesmos. Foi isso que seu avô fez por mim. Ele me protegeu até minha maturidade. Depois foi a vez de protege-lo. Quando ele morreu... Bem, aí eu te escolhi.
    _ Por que a mim?
    _ Por que você me via como um amigo. Quando nosso protegido morre, nossa proteção para um parente próximo. É tudo muito místico para ser explicado. Vivemos sob o impulso de proteger.
    _ Você deveria ter escolhido Emi – eu retruquei.
    _ Não é preciso – ela sorriu – ela já tem você.
    Sorri involuntariamente, sentindo o calor daquelas palavras tranqüilizadoras. Mas eu ainda tinha muitas dúvidas que fervilhavam na minha mente.
    _ O que mais você pode fazer? Quer dizer... Se vai proteger alguém, teleportar não pode ser a sua única opção, certo? – eu arrisquei.
    Ela deu uma risada.
    _ Bobo, você acha que eu sou tão inútil? Veja você mesmo.
    Havia um trator no fundo do celeiro e, subitamente, ele começou a levitar. Pela expressão travessa de Cary, ela estava fazendo aquilo. Pás, amontoados de fenos, carrinho de mão, sacos de adubo e bancos velhos de madeira começaram a levitar, girando em uma dança ensaiada, o trator acompanhando o movimento. Por um momento, ela quase quebra a escada de madeira. Ela pousou os objetos novamente no chão e me fitou, rindo, mas ansiosa, como se esperasse uma nota para o número.
    _ E então? – ela perguntou.
    _ Demais! – eu exclamei – o que mais?
    _ Bem, temos afinidade com os elementos da natureza, mas só consigo usar todas essas habilidades ao seu lado. Afinal, você é meu protegido. Ah, somos tão fortes quanto qualquer homúnculo, porém mais belos.
    _ Homúnculos não precisam de proteção – eu caçoei.
    _ Principalmente você – ela disse, levemente desanimada – um Haunter, quem diria...
    _ Você sabe sobre isso também?
    _ Eu já disse, é meio que uma obrigação. Mas não me importo com o julgamento da FourFace em relação à sua categoria. Você tem um grande coração, como o seu avô. Duvido que seja um assassino.
    Eu sorri, aliviado em ouvir a convicção em sua voz, e tentei afastar do pensamento a imagem de Homúnculos ensangüentados a minha volta.
    _ Eles sabem que eu tenho um ChAngel – eu disse – eles viram você.
    _ Não exatamente – ela interveio – na forma de cão todos podem me ver, mas na minha forma original, apenas o protegido pode me ver como realmente sou. Para o resto do mundo, eu sou uma mancha brilhante e disforme no ar... Daí o nome, Espectro de Luz.
    _ Eles podem... Te fazer algum mal? – eu estava preocupado. Lembrei-me de Estevan querendo me proteger.
    _ Na forma de cão, eu sou imortal, por assim dizer. Eu fico protegida dentro daquela forma. Mas na minha forma original sou tão vulnerável quanto você. Não se preocupe, eu sei me cuidar.
    _ Ok... Fico feliz em ouvir isso. Mas vou deixar as perguntas para depois. Preciso que você me leve para Sonora.
    _ O que? Agora? No way! – ela respondeu, espreguiçando-se e bocejando – estou cansada.
    _ Como assim? Você é minha ChAngel, deveria...
    _ Eu te protejo, mané. Não sou sua escrava. Qual é, eu não sou besta não! Quando eu repor minhas energias eu levo você aonde quiser, ok?
    _ Ah, mas você só pode estar brincando! Repor energias? Você não fez nada!
    _ “Não fiz nada”? – ela me encarou, falsamente ofendida – achei que salvar a sua vida valesse alguma coisa pra você.
    _ Você entendeu o que eu quis dizer! – eu retorqui – eu não posso ficar parado aqui esperando você tirar um cochilo! Eu tenho...
    _ Ih, parece mulher grávida! Desencana, guri! – ela se acomodou no feno e ajuntou, com as mãos um pouco de palha como um travesseiro – Tira um cochilo, descansa as “cadeira”, a viagem não vai demorar nada. Sem pressa.
    _ Sabe, você era muito melhor como cachorro. – repliquei, cruzando os braços.
    _ Se não fosse as pulgas eu até concordaria.
    Ela dormiu antes que eu pudesse retrucar.

    Brock, ou melhor, Caryenane, só foi acordar ao amanhecer. O sol invadiu as frestas do celeiro, misturando seu sutil tom dourado com a cor prateada do ChAngel preguiçoso. Passei a madrugada acordado, incapaz de pregar os olhos, tentando me convencer de que a noite passada deveria ser um borrão, uma lembrança ruim a ser esquecida. Tentei me livrar da culpa, do medo, do receio em ser eu mesmo. Era estranho, Angelin White, o Oráculo, me dissera que não havia lugar mais seguro do que dentro de mim. Eu não me sentia dessa forma. Passei o tempo assistindo a estranha aparição dormindo em meu celeiro, aquilo que não era mulher nem homem, e insistia em me proteger.
    Ela dormia como um ser superior, uma dama, mística, um anjo. Sua respiração era leve e seu seio acompanhava o inflar dos pulmões, tão discreta e jovial, que não ousei acordá-la.
    Ela levantou, espreguiçando-se, bocejando indelicadamente. Quando estava acordada, parecia agir, propositalmente, como um humano normal. Ela me olhou e, sorridente, acenou.
    _ Bom dia.
    _ Não tão bom – eu murmurei, mas retribuí o gesto – Não consegui pregar os olhos.
    _ Noite difícil, hein – ela comentou.
    _ Nem me fale... Se meus amigos estivessem aqui.
    Ela pigarreou.
    _ Ah, claro, além de você, Cary.
    _ Assim é melhor – ela se aproximou de mim, sentando-se ao meu lado, em um tronco velho que há muito meu avô havia escolhido para reformar o galinheiro.
    _ Eu estou preocupado – eu confessei – tantas coisas estão acontecendo comigo... Primeiro, a coisa toda entre Alucates, Patriotas e nós. A máscara, a busca pela Sala Octogonal... E, agora, para arruinar a minha vida, vem essa de Haunter... Eu não sou um assassino, Cary.
    _ Eu sei que não – ela afirmou – e eu sei que o fardo que você está carregando é do tamanho de uma montanha, mas as coisas vão ficar feias, eu posso sentir. Por isso você precisa de mim... Além do mais, alguém precisa te dar umas dicas de moda. Essa coisa de Couro banhado em sangue de Homúnculo já ta fora de moda.
    _ Você acha? – eu sorri fracamente.
    _ Acho sim. Vamos, vá para o seu quarto e vista algo limpo e que não cheire a estrume de lhama. Nossa próxima parada é a Célula de Sonora.
    _ Ok, me espere aqui. Não demoro.
    Corri para a mansão, estava destrancada. Fui até a escada aos tropeços e, pela primeira vez, eu me senti em completa solidão. A copa vazia, cheirando a abandono, o silêncio pressionando o meu corpo contra o chão, a melancolia sólida e consistente congelando cada músculo do meu rosto. Meus olhos formigaram. Não, lágrimas agora não. O que, afinal, me seria útil começar a chorar? Eu era um Homúnculo! Um guerreiro. Eu tinha que ser forte. Por mim e pelas pessoas que foram fortes para me proteger.
    Subi as escadas, esfregando os olhos fervorosamente, sentindo a angústia tapar minha garganta, me obrigando a soluçar vez ou outra. Abri meu armário, tirei a primeira roupa que vi. Uma camisa branca, um moletom cinza e calças jeans. Um tênis velho e uma meia furada. Olhei-me no espelho, encarando um rosto completamente desconhecido. Há quanto tempo não via o meu reflexo? Era outra pessoa, alguém que eu não conhecia.
    _ Que grande idiota você é – resmunguei para um Matthew abatido.
    Desci as escadas, deixando a porta da frente aberta, voltei para o celeiro. Cary estava a minha espera, como eu a havia deixado. Assim que ela me viu, sorriu, radiante.
    _ Ora, o bom e velho Matthew – ela bateu palmas, dando saltos meio bobos – estava com saudades disso.
    _ Vamos ou não? – falei secamente.
    Ela veio até mim.
    _ Só se for agora.
    Ela me abraçou como fizera antes.
    _ Isso é mesmo preciso... Eu não me sinto a vontade... Bem, abraçando...
    _ Uma mulher nua? Acostume-se, bem... Vamos estar lá em três, dois...
    Antes que ela terminasse de falar, uma luz alva me envolveu.
    _ Um.
    Quando abri os olhos, estávamos no pátio da Célula de Sonora.    


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Notas finais do capítulo






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