A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 34
Um Plano Solitário de Uma Mente Suicida – Parte 3


Notas iniciais do capítulo

depois de uma semana, mais um capítulo postado! Desculpem a demora! xD
aproveitem a Fic!

LOL



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Um Plano Solitário de Uma Mente Suicida – Parte III

    Não esperei para ver a repercussão. De alguma forma, de alguma maldita e infeliz forma, Jericho sabia aonde eu estava e parecia saber mais do que deveria. Mas eu tinha muito mais a perder ficando ali esperando sua chegada. Corri no meio da pequena multidão, surpreso em ver como havia Patriotas, dispostos a darem as costas ao mundo e exaltar o Submundo. Bem, parte da minha vida ficou naquele antigo mundo onde habitei, eu me senti na obrigação de ajudar.
    Mas se eu soubesse que estaria ali, naquele momento, me embrenhando em meio a traidores, só pra fugir de Jericho, eu teria repensado esse plano. Comecei a crer que ir sozinho, no impulso idiota de pegar a chave, não era a melhor solução. Mas eu já tinha cometido um erro. Morrer seria o pior deles.
    Eu ainda estava com os olhos fechados, visualizando tudo a minha volta, me esquivando de uns e outros, tentando me manter escondido.
    _ Ele ainda está nos ouvindo – disse a voz de Jericho, o tom oscilando, parecia estar correndo – chame mais pessoas. Ele é forte.
    _ Consegue encontrá-lo? – perguntou Papah, fosse quem fosse.
    _ Sim – o som da voz dele era de pura apreensão – Ele também pode me encontrar.
    No momento em que ele deu a última resposta, as linhas que circulavam o seu corpo ficaram douradas. Não entendi como, ou o por que, mas ele era a única luminosidade dourada no manto negro desenhado de azul que compunha minha visão. Era como se estivesse se destacando.
    _ Como é possível? – era a voz de Papah – isso não poderia...
    _ Ele está nos ouvindo, Papah. – Jericho falou em tom de aviso, e Papah se calou.
    Continuei correndo como se minha vida dependesse disso. Bem, dependia, claro. Mas ainda assim ele parecia estar se aproximando.
    Jericho estava tão absorto em seus pensamentos que acabou trombando em um vulto, rosto que minha nova visão não me informava.
    _ Ah, imbecil! – guinchou Jericho.
    Por um minuto, a cor dourada em volta de Jericho ficou azul outra vez, e ele se misturou às outras pessoas que caminhavam no corredor do segundo andar.
    _ Aonde ele está Jericho? – perguntou Papah.
    _ Não sei, aquele cara idiota ali atrás me distraiu – ouvi a voz de Jericho em resposta.
    Novamente, Jericho ficou dourado.
    _ Pronto, Papah. Eu o encontrei.
    Corri o máximo que pude, tentando me misturar às pessoas, mas parecia impossível.
    _ Já o encontrou? – perguntou o homem.
    _ Ele está no primeiro andar – disse Jericho.
    Como ele poderia saber, eu estava me misturando às pessoas. Será... Talvez ele tivesse as mesmas habilidades que eu. De alguma forma, eu não compreendia como, partilhávamos de habilidades em comum, e o “sexto sentido” parecia ser uma delas. Talvez ele estivesse me enxergando em dourado como eu estava.
    _ Você acha que pode me pegar, Barclay? – eu arrisquei, observando se ele podia me ouvir.
    A resposta veio em seguida. Meus ouvidos captaram sua voz à distância.
    _ Você não vai conseguir sair dessa fortaleza, Vance. Conseguiu entrar, mas duvido que saia.
    _ Então assista, amigão – eu disse sarcasticamente.
    Então eu “desliguei” meu “sexto sentido”. Eu não podia me preocupar em onde ele estava e por onde eu andava. Decidi me focalizar em meu próprio caminho. Durante a corrida eu saberia o que fazer.
    A primeira porta que encontrei passei por ela. Eu estava em outro corredor. Meus olhos, como sempre, se acostumaram com a escuridão. Apurei meus ouvidos, apenas me concentrando o máximo possível. Ouvi a voz de Jericho, vagamente, mas ainda nítida.
    _ Eu o perdi – disse Jericho – acho que ele se desconectou, o contorno dourado sumiu.
    _ Consegue escutá-lo? – perguntou Papah.
    Eles pareciam estar correndo bastante, usando a velocidade habitual de um Homúnculo.
    _ Não. Ouço muitos passos, mas se ele não disser nada, nenhuma barulho típico, fica difícil.
    _ Ele pode estar nos escutando?
    _ ... Sim.
    Eu não consegui conter um riso nervoso, mas aliviado. Então era isso. Ao que parecia, Jericho tinha a mesma habilidade que eu, capaz de ver com a visão em azul, e, estranhamente, ele era capaz de me ver em cores douradas. Então eu me dei conta.
    Quando eu estava concentrado nele, fui capaz de ouvir sua voz. Quando ele conseguiu me localizar, seus traços ficaram, curiosamente, dourados. Quando ele se distraiu no segundo andar e me perdeu de vista, ele voltou a ficar azul em minha visão. Quando ambos estávamos usando o “sexto sentido”, éramos capazes de nos diferenciar do resto. Eu não sabia como, ou por que. Apenas sabia.
    Continuei correndo. Agora eu tinha certeza que usar minha visão ilimitada não era uma boa idéia. Eu não poderia vê-lo, mas assim ele não poderia me achar. Mas mantive minha audição nele o tempo inteiro. A frustração deixou-o irritado e falante.
    _ Não acredito nisso! – ele reclamou – nós o perdemos, Papah! Ele estava quase...
    _ Não se queixe, apenas garanta que ele não saia daqui.
    Eles pareciam distantes, mas eu não queria arriscar. 
   
Todas as minhas terminações nervosas me diziam apenas uma coisa: perigo. Eu estava em território inimigo e, para tornar a minha situação menos promissora, eles sabiam que eu estava ali. Pior, se sabiam que eu estava ali, poderiam saber se eu estava sozinho também? Essa dúvida me petrificou por alguns segundos.
_ Ele não está longe Papah.
    Ouvi a voz esganiçada de Barclay, que acabou me despertando do meu estado de pânico. Eu precisava fugir, ou ficar e lutar. Mas eu sabia que a minha última opção provavelmente, me mataria.
    Eu me precipitei na direção de um pequeno grupo de homúnculos, próximos a um salão pequeno, mas que abria caminhou para quatro novos corredores escuros. Eu não tinha idéia de qual caminho tomar, mas eu tinha um trunfo. As poucas vezes em que minha intuição me deixou na mão foram culpa unicamente minha, por não ter valorizado e exercitado minha sensitividade com a mesma intensidade em relação à força e agilidade. Mas eu precisava arriscar e usá-la diante da minha situação desfavorável.
    Fechei os meus olhos, mas não para usar minha nova visão mais ampla. Podia ser besteira, uma tolice sem tamanho, mas fechar os olhos sempre funcionava nos filmes, além do fato de afastar qualquer distração. Ignorei os olhares curiosos do grupo de homúnculos e me concentrei nos quatro caminhos. “Apenas um”, murmurei, “Apenas um é o suficiente”. Instantaneamente, uma combinação de aromas invadiu minhas narinas. Quatro, para ser exato. Cheiros distintos, perceptíveis aos meus sentidos ampliados. Peixe podre, mel, sangue e queijo mofado. Com certeza o segundo corredor.
    _ Rápido Papah! – minha audição captou a voz de Jericho.
    _ Ele não vai a lugar nenhum, minha criança – respondeu o desconhecido, com um tom divertido na voz. Isso me apavorou – vamos pegá-lo.
    Os cheiros estavam nítidos. Entrei no segundo corredor, seguindo o aroma de mel. Imaginei que seria esse o aroma da sobrevivência.
    Entrei num corredor repleto de portas. Mesmo na escuridão, eu era capaz de enxergar através da escuridão, densa. Corri o máximo que minhas pernas se permitiram, sem chamar a atenção. Eu havia perdido os sons dos passos de Jericho e o tal Papah, mas eu não tinha tempo para rastreá-lo. Minha prioridade era viver. Eu estava longe o suficiente, ma algo que meu “sentido-aranha bizarro” não havia me alertado aconteceu. Senti uma mão me segurar firmemente pelo braço e, antes que eu pudesse olhar, fui arremessado para dentro de uma das dezenas de portas no corredor. Caí em uma sala escura e, antes que eu pudesse me virar, senti um punho maciço e furioso me acertar no maxilar com uma força monstruosa, me jogando contra a parede. Guinchei de dor, sentindo uma fina linha de sangue escorrendo pelo meu lábio cortado.
    _ Seu idiota – uma voz sibilou, quase em um sussurro – nunca mais coloque as mãos em mim.
    Eu pisquei duas vez, encarando o vulto a minha frente. A escuridão foi superada pelos meus olhos e, quando percebi quem era o meu agressor, fiquei imóvel, perplexo.
    _ Estevan! – exclamei, me levantando pronto para uma possível batalha.
    _ Shhhh! – ele chiou – quer que nos ouçam?
    Minha mente funcionou com uma rapidez tremenda, o suficiente para eu perceber que Estevan não parecia ser meu inimigo, tampouco queria me matar. Minha intuição havia me levado até ele, afinal de contas.
    _ Estevan...
    _ Eu não sou um Patriota – ele falou logo de cara – estou aqui como um espião. Sou leal a Sammael. Como você.
    _ Mas eu vi você e Claus...
    _ Você entendeu errado. Eu estou aqui porque consegui provar para os Patriotas que sou leal. Mas é tudo parte da minha habilidade...
    _ Persuasão, certo? – interrompi.
    Ele me fitou, surpreso.
    _ Sim. Como sabe?
    _ Então use-a e tire-nos daqui – eu ignorei a pergunta.
    _ Não, garoto. Você não entendeu. Isso não funciona com Jericho, nem com Papah ou com qualquer pessoa que use as jóias da nobreza. Precisei persuadir as pessoas certas e isso me levou muito tempo. Não tem essa de “tire-nos daqui”, você vai sozinho.
    _ Sua habilidade é uma bosta. – eu murmurei.
    Ele me encarou, uma mescla de ofensa e impaciência.
    _ Vá para casa – quando ele falou, senti seu olhar penetrante emanando uma energia quente, avermelhada. Ele estava usando sua habilidade em mim – Não volte aqui, e não diga a ninguém que esteve aqui. E tenha cuidado, Claus Yakov é um homem perigoso, não é o que parece...
    _ Claus é um cara legal – interrompi – eu o conheci melhor. Ele me respeit...
    _ Mas que merda! – ele chiou – Minha habilidade não funciona nem com você?
    Eu dei de ombros, sorrindo sem jeito. De repente, notei como Estevan era tão humano por trás da pele cinza e olhos alaranjados.
    _ De qualquer forma, evite ficar perto de Claus. Ele é perigoso, rapaz. Ele é um espião a favor dos Patriotas... Não se preocupe, Sammael sabe disso, por isso o mantém tão perto. Estamos tentando encurralá-lo, mas leva tempo. Você precisa fugir, imediatamente. 
    _ Não sei se consigo fugir – murmurei – Jericho sabe que estou aqui.
    Se era estranho ver Estevan com a pele cinza, vê-la ficar verde era ainda pior. Ele ficou lívido, me encarando com perplexidade. De repente era como se ele estivesse diante de uma bomba relógio com o cronômetro ligado.
    _ Como ele...
    _ Eu não sei – interrompi – ele não me viu. Eu o estava rastreando, e acho que ele me encontrou também.
    _ O que quer dizer com rastreando?
    _ Ah, longa história. Não temos tempo para isso agora. Estevan, se você está do meu lado, precisa sair de perto de mim. Jericho ainda não sabe de você, então...
    _ Sem chance – ele em interrompeu, decidido – sou um espião, mas acima de tudo, sou um guerreiro. Não vou deixar você aqui sozinho. Não sou covarde.
    _ Você não...
    _ Além do mais – ele continuou como se não estivesse me ouvindo – eu devo isso ao seu avô.
    _ Não, escuta... – eu o encarei com inquisição – o que quer dizer com isso?
    _ Seu avô me salvou inúmeras vezes. Eu era uma espécie de pupilo. Agora eu vou retribuir.
    Senti uma onda de pânico se alojar em mim enquanto ele falava. Já era bastante arriscado ser um espião e, ainda por cima, suposto amigo de Claus. Essa infeliz confusão iria acabar com a vida de Estevan e, tudo isso, porque fui impetuoso e idiota em procurar Jericho cozinho.
    _ Não, Estevan – eu pedi, quase em súplica – você não pode. Meu avô não ia...
    _ Vincent Vance foi um grande homem e, se você for metade do homem que ele foi... Acredite, estarei fazendo um favor para o mundo.
    _ Eu não sou nem metade...
    _ Você é, Matthew. Posso ver em seus olhos.
    Droga. Ele não iria me ouvir. Mas eu não estava disposto a desistir. Não queria ver ninguém morrendo por minha causa.
    _ Estevan... Você tem tudo sobre controle. Está a par de todo esse complô de traidores. Meu avô sempre será grato por ter se colocado a disposição para me salvar, e eu também. Mas tanto eu quanto ele sabemos como sua tarefa é fundamental. Em uma hora como essas, precisamos de informações, não de força bruta. Você tem muito mais acesso a esse lugar do que qualquer um. Lembre-se, sua prioridade como Homúnculo é proteger o resto do mundo, não o neto de Vincent Vance. Eu posso me virar.
    Estevan era muito mais útil vivo e, se eu o quisesse assim, teria de convencê-lo. Ele me encarou, sensivelmente frustrado. Sabia que eu estava certo, e que não podia se preocupar comigo, não quando havia coisas muito maiores para se preocupar. Ele estava analisando as opções e absorvendo minhas palavras.
    _ Mas e você? – ele perguntou, enfim.
    _ Eu me viro Sou mais forte do que imagina.
    _ Ah, legal. Você vai morrer esmagado pelo seu ego.
    _ Apenas confie em mim, como confiava em meu avô, como confio em você.
    Ele estreitou os olhos, confuso. Estava lutando contra as opções. Eu tentei esconder minha real expressão, aquela que dizia “fique e me ajude a viver”. Mantive a clama e a seriedade para parecer mais convincente.
    _ Não morra, garoto. – ele disse, enfim, após um minuto em silêncio – me prometa que vai sair daqui vivo.
    _ Só se você prometer não agir como um imbecil e tentar me salvar.
    Ele pareceu avaliar a minha proposta. Ao que parecia, era exatamente o que ele pretendia. Enfim, estendeu a mão, embora seus olhos me encarassem como se dissessem “adeus”.
    _ feito... Não-Morra – ele enfatizou.
    Assenti com a cabeça, fazendo a promessa mais para mim mesmo do que para ele. Me empenharia para cumprir, embora soubesse que seria difícil. Jericho era um monstro rodeado de escória traidora, e eu estava sozinho. Aquilo era uma ratoeira.
    _ Saia daqui – eu pedi, sem saber se era isso mesmo o que EU queria – voltei mais tare, como se não soubesse de nada.
    _ Eu vou dar a ele uma informação – Estevan disse – uma falsa informação. Vai atrasá-los. Só espero que o dia de hoje não atrapalhe os planos...
    _ Eu sinto muito.
    _ Não sinta. Fuja.
    Nos encaramos por um longo minuto, e, por fim, ele assentiu com a cabeça, eu retribui o gesto e ele correu pelo corredor, desaparecendo de vista. Eu não sabia o quão longe ele poderia ir, nem se ele se sairia bem dessa, mas eu precisava encontrar uma saída, embora não tivesse descartado o meu principal objetivo, que era recuperar a chave.
    Era a minha chance. Corri em direção ao cheiro de mel, que parecia ter diminuído sensivelmente. O perfume adocicado parecia ficar cada vez mais fraco, e eu lutava, enquanto corria, para mantê-lo seguro em minhas narinas. Apurei os ouvidos. Ao que parecia Jericho sabia onde eu estava,a julgar pelos passos que ecoavam em minha direção. Ouvi vozes como “Peguem o garoto” e ordens do tipo “Tragam-no vivo”. Era assustador correr sem saber para onde, sendo perseguido por pessoas que não hesitariam em me destruir, embora, curiosamente, me quisessem vivo. Talvez eu fosse ser usado como uma espécie de troca, um refém.
    Ao longe, ouvi a voz familiar de Estevan. Ele estava falando com Jericho.
    _ Sr. Barclay – ele disse, como um soldado se dirige ao general – por que tamanha movimentação?
    O que ele tinha em mente? Pensei comigo.
    _ Matthew Vance está aqui – Barclay respondeu – um dos mestiços. Ele parece ser um Haunter.
    _ Matthew Vance? Um Haunter? – perguntou Estevan. Senti sua perplexidade no tom de voz trêmulo.
    Haunter? O que diabos era aquilo? Apurei meus ouvidos para ouvir mais.
    _ Lidere a equipe dois – avisou Jericho – e encontre o garoto. Papah o quer vivo.
    _ Sim, senhor. Por aqui, homens!
    Ouvi a voz de Estevan e os murmúrios de, pelo menos, oito homens, se afastar aos poucos, até estarem a uma distância considerável. Ótimo. estevan havia encontrado um jeito de me ajudar sem se comprometer, afastando uma grande quantidade de homúnculos do meu rastro. Agora o grupo de Barclay estava reduzido. Mas Jericho continuava em sua caça furiosa, sua respiração era tão frenética que, era como se ele sentisse prazer em me procurar, como um jogo doentio. Havia pouco mais de vinte homens atrás de mim, a julgar pelos passos.
    Embora conseguisse usar minha velocidade ao máximo, os corredores eram longos e serpenteantes, me deixando confuso. Seguir o cheiro de mel estava ocupando toda a minha atenção, logo já não estava mais ouvindo nenhum passo, apenas o meu, rápido e urgente.
    Então sumiu completamente. O cheiro doce de esperança havia me abandonado, e, no lugar dele, apenas o cheiro de mofo, um ar úmido natural do ambiente.
    _ Merda! – eu chiei.
    Nada. Não havia mais de uma possibilidade, apenas manter o caminho em linha reta, em uma rota incerta e pouco otimista. Não podia voltar, eu sabia que Jericho já deveria estar no corredor em minha procura. Era impressionante como eles construíam extensas moradas subterrâneas, a perder de vista. Mas eu não estava interessado na engenharia homúnculo. Viver parecia mais interessante.
    Corri até o fim do corredor, onde havia um buraco gigantesco ornamentado com pepitas de ouro e fitas de couro que se esticavam do teto até o chão, como uma cortina franjada. Atravessei-a, entrando em uma outra sala. Estava pouco iluminada, o suficiente para enxergar no mesmo instante os rostos furiosos e maliciosos.
    _ Que bom que se juntou a nós – a voz de Jericho fez o meu corpo enrijecer.
    Olhei adiante. Lá estava ele, na extremidade da sala, rodeado de outros sete homúnculos. Virei-me para trás, na esperança de correr de volta para o buraco e encontrar outra saída no corredor. Mas não foi possível. Haviam certa de dezoito Homúnculos carrancudos e com sorrisos macabros cobrindo a passagem. Eu estava encurralado.
    Meu corpo ficou imóvel, frio, mas meus nervos saltavam com se quisessem explodir. Mais uma vez minha sensitividade havia me deixado na mão.
    _ Essa sala não tem outra saída – avisou Barclay, radiante – acho que é o fim... De certa forma.
    _ Não, não é – eu o desafiei, tentando exibir o máximo de segurança em minha voz – eu posso derrubar essa muralha de traidores bem atrás de mim, se quiser.
    _ Eu sei que, talvez, você possa – ele sorriu, indiferente – mas sabe que nunca correrá tanto quanto eu.
    Ele estava amargamente certo.
    _ Ótimo – eu cuspi – então acabe com isso. Mas eu não caio antes de derramar a sua última gota de sangue! Seu verme sujo!
    _ Olha a boca suja, garotinho! – ele falou em falsa brandura – quem disse que te queremos mortos? Você tem uma saída. Na verdade, uma opção.
    Eu não compreendi. Continuei encarando Barclay, esperando uma resposta. Então os olhos dele se dirigiram à entrada da sala, onde uma pequena movimentação entre os Homúnculos que guardavam a saída me chamou a atenção. Me virei, observando o movimento deles. Os homúnculos se posicionaram em duas filas, abrindo passagem no meio como o mar vermelho. Um homem desconhecido passou entre eles, sorrindo tranquilamente. Com certeza era Papah.
    _ Papah! – Jericho falou com extrema paixão, confirmando meus temores – cá está ele.
    Papah era velho e muito feio. O tosto enrugado, os olhos castanhos fundos, cobertos com uma películas esbranquiçada, cabelos ralos e grisalhos, o corpo relaxado, descontraído, mas tão idoso e encurvado quanto o seu rosto. Estava decrépito.
    _ Não ligue para minha aparência – diferente de antes, seu tom de voz era quase paternal – mil e seiscentos anos é muito tempo para se viver. Não sou jovem como você, criança.
    Me perguntei quantos anos vivia um homúnculo.
    _ Ninguém aqui lhe fará mal – ele me assegurou, como se amansasse um cão acuado – eu vou te proteger.
    _ O que você quer de mim? – eu falei, irritado, mesmo sabendo como essa frase era um clichê em filmes clássicos que alguém sempre diz antes de morrer.
    _ Tudo – ele disse, exibindo um sorriso de dentes amarelos e consumidos pela cárie – mas antes preciso ter certeza que você é um haunter.
    _ Um haunt...
    Não consegui terminar minha frase. Quatro homúnculos saltaram sobre mim, enquanto os outros se afastavam e fechavam um círculo espaçado, como se fosse um ringue.
    Os quatro chegaram bem perto, cada um de um lado. O meu sangue ferveu. Meus dedos tremeram de excitação, um nervosismo estranho, que, de repente, deixou em estado de alerta todos os meus sentidos. Fui mais rápido. Derrubei o que estava a minha frente com um golpe desferido no queixo, lançando meu adversário alguns metros de distância. Os outros dois, de ambos os lados, se aproximaram com agilidade, mas consegui me abaixar e, esquivando-me do golpe, segurei o primeiro, lancei-o contra o Homúnculo que vinha logo atrás, e os dois se misturaram nos escombros de tijolos quando atravessaram a parede sólida. O último foi mais fácil. Ele parecia lento, fui rápido o suficiente para me esquivar do soco e golpeando-o na barriga com um chute, ele foi arremessado outros metros para trás. Mas eles se recompuseram rapidamente, como se não tivessem sofrido nenhum ataque.
    _ Não me surpreendeu – disse Papah, desapontado – todos! Ataquem para matar!
    A ordem me pareceu uma sentença de morte. Os vinte e cinco homúnculos investiram em um ataque em grupo. Todo o meu corpo gritou em desespero, desejando viver, enviando milhares de informações rápidas para cada músculo, cada célula excitada com a luta. Uma sensação estranha foi despertada em mim.
    Talvez fosse assim que se sentisse um animal acuado. Uma espécie de afirmação me veio a cabeça: Não havia como fugir. E outra veio logo em seguida: matar ou morrer. Subitamente, senti um instinto sedento estufando em meu peito, consumindo meus pensamentos e me obrigando a lutar. No mesmo instante eu soube, muito sangue seria derramado.
    Meus pés se desprenderam do chão em um salto furioso e violentamente decidido. Com os braços estendidos, segurei dois rostos inimigos. Tudo parecia em câmera lenta outra vez, e eu parecia ser o mais rápido naquele aglomerado desorganizado e covarde de traidores. Meus dedos, tão firmes nos rostos, estremeceram e, num acesso de fúria, eu os pressionei, fechando o funho. Senti os ossos de cada crânio se quebrarem entre meus dedos, ouvi o craque seco. Minha mão atravessou o crânio e senti algo esponjoso na ponta dos meus dedos, algo parecido com cérebro. Minha mão ficou encharcada de sangue, mas eu não parei para ver o resultado. Atirei os dois corpos inertes contra o grupo de homúnculos e me mantive concentrado na luta, sabendo que havia dois a menos no grupo.
    A multidão se aproximou com desespero, tentando me conter. Me esquivei de vários golpes, usando facilmente minha velocidade. Segurei outro homúnculo e, usando-o como uma marreta, acertei outros dois sem nenhum esforço. A cada golpe, eu tinha certeza. Aquele estava morto.
    O cheiro de sangue tomou conta do lugar, e os borrões rápidos cobriam toda a minha visão. Agora haviam vinte Homúnculos, eu podia contar apenas ouvindo seus passos frenéticos e sem ritmo. Saltei sobre dois deles, me mantendo fixo em um homúnculo em específico, um musculoso com potencial para um grande inimigo. Arrastando-me entre os golpes, passei por eles como uma sombra, um fantasma intocável. Me aproximei do homúnculo gigantesco e musculoso. Ele tentou me segurar com seus braços enormes, mas não me parecia grande coisa. minha mão atravessou o seu peito. Senti o esterno se partindo na ponta dos meus dedos, a textura úmida e lisa dos seus órgãos sendo dilacerados pelo golpe. Os olhos dele saíram de foco e, depois de cuspir uma enorme quantidade de sangue, puxei a minha mão, deixando, no lugar, um enorme buraco. Ele caiu imóvel.
    A luta prosseguiu. Os ossos se partiam como isopor, o sangue sujava meu rosto e minhas mãos. Era como se eu estivesse em transe, fazendo movimentos já ensaiados, sem ter plena consciência do que estava fazendo. Apenas agindo.
    _ Parem! – a voz de Papah ordenou, imponente. O som estridente de sua voz me despertou do transe.
    Eu parei, abandonando um corpo no chão, inerte. Outro estava morto. Olhei para os lados, piscando várias vezes, como se tentasse analisar o que, exatamente, havia acontecido. Eu tinha agido por impulso, puro instinto. Nada era racional em meus movimentos. Quando me dei conta, apenas doze homúnculos estavam de pé, me encarando, trêmulos, hesitantes. A minha volta, corpos ensangüentados cobriam o chão. Eu havia feito aquilo?
    Encarei Papah, que sorria com intensa satisfação, como um pai faz quando o filho anda em bicicletas sem rodinhas. Aquilo era muito mais complexo que andar de bicicleta.
    _ Você é um haunter! – ele disse, enfim.
    Eu chacoalhei a cabeça, atônito. O que era haunter? O que diabos ele queria comigo? O que ele queria provar, afinal? Era como se ele, realmente, quisesse, que eu matasse tanta gente.
    _ O que é um Haunter? – eu balbuciei.
    Jericho vez uma reverência para seu senhor e, caminhando em minha direção, falou:
    _ Pessoas como eu e você. Caçadores natos, rastreadores hábeis e indomáveis.
    _ Eu não...
    _ Ora, Matthew! veja o que você fez! – Ele abriu os braços, exibindo o cenário a nossa volta, toda aquela chacina provocada por mim. Por um segundo tive o vislumbre de algo metálico pendurado no pescoço de Jericho. Era a chave – Você derrubou treze homúnculos quem suar, sem sofrer um arranhão. Você É um Haunter, Matthew. E aqui, você será aceito.
    _ Eu ainda não sei o que é um Haunter! – falei com rispidez.
    _ Pois bem – ele se aproximou um pouco mais – Haunter é uma categoria de Homúnculos, assim como Alvos e Rubros. Você sabe por que fomos divididos dessa forma, Matthew? Eu vou dizer. Nos primórdios de nossa espécie, determinados Homúnculos nasciam, indiferentes à cor da Lua. Alvos, da lua branca, são pacificadores. Veja as habilidades deles, Matthew. Não são habilidades de natureza destrutiva. Os Rubros, por outro lado, possuem habilidades de contenção. Possuem habilidades ofensivas para conter inimigos... – ele fez uma pausa, como deixasse o melhor para o final – e, por fim, e de fato o mais importante. Nós, os Haunters. Nascidos para caçar, possuidores de habilidades úteis para rastrear e eliminar. Nós somos assim, Matthew.
    _ Nunca ouvi falar nisso – falei, ainda tentando me recuperar do choque. Eu não era um assassino.
    _ Mas é claro que nunca ouviu falar em Haunters. A Four Face se encarregou de eliminar todos. A habilidade caçadora era obtida de geração em geração, pela linhagem de famílias únicas, uma herança genética. Mas o Conselho da Fourface achou que eram perigosos demais... Matthew, eles executaram todas as famílias de Haunters, friamente, covardemente. Usaram da falsidade, da mentira, para atrair os Haunters para uma ratoeira.
    _ Se as famílias haunters foram eliminadas, como podemos ser...
    _ Ninguém sabe – me interrompeu Jericho – mas o fato é que está acontecendo. Existe alguam seleção aleatória desconhecida. Isso começou em minha geração, e continua até agora. Haunters estão nascendo, irmãozinho. Alguns homúnculos, curiosamente, nasceram com essa habilidade... Você se lembra quando usou o seu radar, Matthew? Aquela visão nova, mais ampliada?
    Então era esse o nome da habilidade. Radar. Eu ainda preferia “sexto sentido”.
    _ Com ele, nós, haunters, podemos nos conectar. – ele continuou. De repente, era como se fossemos amigos - Por isso podemos nos ver destacados em nossa visão. É assim que conseguimos encontrar outros Haunters.
    _ Mas tem um detalhe... Eu não sou como você! – chiei, furioso.
    _ É sim – ele sorriu triunfante – você matou, meu irmão. Muitos, veja com os seus próprios olhos. O sangue em suas mãos, em seu rosto. Seu instinto ainda bruto não pode ser controlado, mas fique conosco, e poderemos te ajudar a controlar isso.
    Lembrei-me dos ossos quebrados, minha mão atravessando como uma estaca no peito de um Homúnculo, minha indiferença.
    _ Eu me defendi – falei em minha defesa.
    Aceite a sua natureza, Matthew! – ele falou em tom de expectativa – Somos como irmãos, pertencemos a uma nova raça, ainda maior que os Homúnculos tradicionais!
    _ Agora você pretende matá-los também? – eu repliquei.
    _ Não seja tolo, Matthew – falou ele – por que mataríamos nossa própria raça. Eles apenas cometeram um erro quando eliminaram os haunters. Mas podemos mostrar que somos muito mais úteis, e, aqueles que concordarem, poderão viver ao nosso lado. Sem humanos, sem Alucates. Apenas Homúnculos. Não é incrível?
    _ Não, é doentio! Não vou fazer parte disso! Sou fiel aos meus amigos! Vou morrer lutando bem aqui, se for preciso.
    Jericho parou de sorrir. Me encarou, com certa amargura e tristeza. Ele se virou para Papah, que assentiu com a cabeça alguma ordem que eu não entendia.
    _ Entendo... – disse Barclay, voltando sua atenção à mim novamente – então... Terei que te mostrar o caminho certo a força. Espero que me perdoe por isso.
    Num segundo Jericho já havia saltado sobre mim. Era tão rápido que, naquele instante, eu já sabia que não conseguira me esquivar. Meus olhos eram capazes de acompanhá-lo, mas meu corpo jamais iria superar aquela velocidade.
    No segundo seguinte, um estampido forte e estridente seguido de um clarão surgiu entre nós. Uma intensa luz prateada banhou o salão. Ouvi o murmúrio confuso de Papah e um grito de revolta de Jericho. Até mesmo eu estava confuso.
    Quando a luz cessou, a visão se tornou nítida outra vez, e eu vi o que acontecera. Jereicho Barclay esava sacudindo o braço com violência, enquanto uma bola de pelos marrom se matinha firme colado em seu braço, rosnando agressivamente.
    _ Brock! – eu gritei, exasperado.
    Era surreal demais. Meu cachorro estava bem ali, atacando o homem que estivera perto de acabar comigo. Eu me lembro perfeitamente quando ele era pacifico e preguiçoso, como ele poderia ter se tornado tão violento e determinado como aquele? Brock estava ali, diante dos meus olhos, com seus dentes afiados cravados na pele de Barclay.
    Ele sacudiu com fúria, e Brock foi arremessado para cima, caindo macio no chão. Meu cachorro continuava rosnando, olhando Jericho com revolta.
    _ Que droga é essa? – urrou Barclay – de onde...
    Brock eriçou os pelos, como se quisesse responder à pergunta. Sua pelagem marrom começou a crescer descontroladamente, se alongando como longos cabelos. Ele se ergueu em duas patas, de forma ameaçadora. Sua pelagem começou a mudar. O tom marrom foi consumido por uma luz prateada que o envolveu completamente.
    O focinho começou a encurtar, as patas traseiras se alongaram, os pelos formaram uma espessa camada de cabelos prateados. No lugar de Brock, estava uma mulher.
    Sua pele era pálida, emanando uma luz alva e morna, a longa cabeleira prateada ia até a cintura. O nariz era fino e um pouco comprido, o rosto triangular, de traços sutis, exceto pelos olhos, amarelos e decididos. Ela estava nua, com seu corpo iluminado, como um anjo.
    _ Um ChAngel! – gritou Papah, de repente ensandecido – acabe com ele!
    Jericho não teve tempo. A mulher se virou em minha direção e correu até mim, me envolvendo em um abraço quente e cheio de ternura. Sentia sua luz me consumir e, logo, meu corpo estava leve, formigando como se eu tivesse acabado de despertar de um sono longo.
    Quando ela, finamente, me soltou, estávamos no celeiro da mansão Vance.


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