A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 31
As Peças se Encaixam




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As Peças se Encaixam

    _ Eu tenho a resposta! – cheguei aos tropeços e urros, entrando no dormitório com um chute certeiro na porta, arrancando-a das dobradiças e voando na parede. Meus amigos me encararam, pasmos, enquanto a porta era arremessada, mas não era minha intenção causar impacto. Na verdade, eu não conseguia pensar em absolutamente nada.
    _ Você conseguiu? – Abi levantou-se, animada, vendo Emi e eu entramos com um arquejo profundo.
    _ Corremos bastante até aqui – eu disse, suspirando – odeio esse corredor de retenção de poderes.
    _ O que vocês conseguiram? – perguntou Brian, sem dar a mínima para o meu cansaço.
    Me joguei em uma cadeira, ainda arfando, enquanto Emi se sentava no chão e encostava-se na parede, tão exausta da correria. Mas não importava, tínhamos a resposta. Pela primeira vez, uma força de esperança imensurável cresceu dentro de mim, uma garantia quase certa de que tudo daria certo no final. Mas, também, havia algo muito verdadeiro nessa história que me assustava. Emilliene estava muito mais envolvida na história, a ponto de ser usada como uma espécie de bússola para encontrarmos a Sala.
    _ Em primeiro lugar – eu disse – preciso que confiem em mim... O que eu vou dizer não tem sentido, mas, de alguma forma, eu sei. Meu avô deixou claro que confia em minha intuição, então eu vou confiar também...
    _ Perfeito – confirmou Abi, decidida.
    _ Em segundo... – eu dei uma pausa, absorvendo outra lufada de ar – Aconteça o que acontecer, Emilliene precisa estar protegida. E isso é uma trabalho de todos nós.
    _ O que Emi tem a ver com isso? – perguntou Dominique, confuso.
    _ Dependemos muito mais dela do que vocês imaginam – eu disse –Meu avô deixou isso claro.
    _ Ok, mas vamos logo ao assunto – disse Brian, impaciente – não precisa pedir para protegermos sua irmã, nós faríamos isso independente de qualquer coisa. mas precisamos nos focar em localizar a Sala também.
    Eu encarei Brian, confuso. Não sabia se sentia raiva de sua petulância, ou gratidão por estar disposto a cuidar dela. Bem, ela precisaria de muita ajuda agora.
    _ Ok – eu me debrucei na mesa – precisamos de um papel e caneta.
    Charlie trouxe rapidamente.
    _ Vou escrever tudo o que me veio à cabeça quando meu avô deixou a mensagem.
    _ Peraí! – Abi arqueou as sobrancelhas – seu avô deixou uma mensagem.
    _ Emi, explica tudo pro maninho enquanto eu escrevo, ok?
    Ela se levantou e, de boa vontade, com muito entusiasmo, começou a contar. Enquanto eu escrevia, ela contava sobre Orestes, sua simpatia, para mim duvidosa, o diário, o desenho, o dom de prever o futuro certo, a importância das lembranças deixadas para mim.
    Quando terminei de escrever, entreguei o papel para Abi, que leu em voz alta. Contava sobre a história que ela estava escrevendo, o romance entre a adoradora da Lua e o adorador do Sol. Ela me fitou, incrédula. Ela devia estar se perguntando o que uma história comum de uma garota (nada comum), teria a ver com a Sala. Eu me perguntei isso também. Ela descreveu minhas memórias sobre a história da sereia Madeleine e do ogro Murdock, de seu amor e a submissão do monstro diante da beleza da sereia. Ela leu, ainda sobre a lembrança que tive quanto meu avô, ainda vivo, me contara sobre a propriedade “mágica” da água. Um pouco de água era capaz de curar tudo, era o que ele dizia. Era o símbolo da coisa mais pura, mais cristalina, o símbolo da verdade transparente.
    _ Isso não faz nenhum sentido lógico – disse Abi, enfim- o que eu tenho...
    _ Não importa agora – eu interrompi – Abi, me conte tudo sobre a sua história.
    _ Eu nem terminei, o livro ficou na minha ca...
    _ Conte o que puder – eu exigi – não temos tempo.
    _ Ok, apressadinho – ela cruzou os braços – mas não acho que vá ajudar.
    _ Deixa que eu digo isso – falei. Não queria ser ríspido, mas a pressa me deixou um pouco insensível – apenas diga tudo o que você se lembra sobre ela.
    Todos nos sentamos, Emi ao meu lado. Peguei o papel e a caneta e, a medida em que Abi contava sua história eu ia escrevendo.
    _ Bem, por onde eu começo – ela ficou reflexiva e, enfim, começou – Existia uma lenda antiga, uma especulação. Os antepassados diziam que, se nós, Homúnculos, tirávamos nossa força da Lua, os Alucate tiravam sua força do Sol, já que a aura deles não se alteravam com a Lua Cheia. Isso foi uma história tomada como verdadeira por muitos séculos. Mas foi desmentida. O fato de Alucates não mudarem com as fazes da Lua se deve a covardia e egoísmo do primeiro Grant. Ele não quis proteger os pilares, e, embora os outros três, Vance, Renwick e Brair, tenham sido ambiciosos, estavam dispostos a salvar o mundo. Dessa forma, os Grant foram “visto” de forma menos nobre pela lua. Hoje sabe-se que o Sol não os influencia em nada, mas tribos de Alucates, anualmente, cortejam o Sol em zombaria à Lua, uma forma de expressar seu antagonismo com os Homúnculos. Uma forma de concretizar o que verdadeiramente são, os Inimigos da Lua.
    “Essa inimizade surgiu de forma sobrenatural, imposta pela energia da lua, para que houvesse um equilíbrio entre os poderes da Lua. Mas é claro que os Alucates não se sentiram bem sendo privados de habilidades típicas e mudanças com a Lua Cheia, mesmo sendo capazes de materializar a própria aura”.
    _ Isso é importante? – eu perguntei, impaciente.
    _ Você pediu que eu contasse tudo, certo? Então para de ser um cretino e me ouve.
    Eu revirei os olhos, impaciente. Voltei a me calar, atento à história.
    _ Enfim, foi isso que me deu inspiração para o “romance” – ela fez uma careta quando disse a palavra “romance” – Um homem era adorador do Sol, e não podia vagar durante a noite. A mulher era da tribo dos adoradores da Lua, e não podia vagar durante o dia. Mas eles se conheceram através de poemas e pensamentos amorosos que escreviam em uma pedra no centro da floresta. Ele se apaixonou pelas palavras dela, e ela pelas palavras dele. Mas eu terminei aí, porque não sei como terminar a história. Durante o eclipse, eles poderiam vagar sob o céu, o único momento em que poderiam se encontrar. Mas eram mortais, e logo ficariam velhos, e morreriam. Só teriam um eclipse, e eles ficaram em um dilema: se encontravam uma única vez e passariam o resto da vida sofrendo por um amor impossível; ou tentarem se esquecer de vez, e nunca se encontrarem, mesmo com as tribos tentando impedir o encontro, temendo que uma terrível maldição caísse sobre o mundo. No final, eles decidem se encontrar debaixo do eclipse, mas não sei como terminar. Ficou muito melodramático.
    _ Abi... – murmurou Charlie – ficou lindo.
    _ Isso é coisa de boiola – criticou Archi – o que há? Ninguém morre tragicamente? Nenhum sangue?
    _ Você quer ver sangue, Archibald? – sibilou Abi – eu posso te ajudar nessa parte.
    _ Ok, pessoal – eu intervim – valeu, Abi. Sua história é incrível. Agora precisamos de conseguir, de alguma forma, ligar essas informações.
    _ Uma sereia, um ogro, uma ferida no peito, um coração jogado no oceano, uma tribal da Lua e um do Sol, água para curar... – Brian ficou pensativo – que merda de dica é essa! Seu avô é mesmo um sacana!
    _ Dobre a língua, Brian – eu sibilei – ele é muito mais incrível do que qualquer Renwick poderia ser.
    Ele cerrou o punho e fechou a cara, mas se manteve em silêncio. Ele percebeu o quão longe havia ido ofendendo o meu avô.
    _ Bem, vamos voltar nossa atenção aqui, por favor – pediu Charlie.
    _ Ok – continuou Abi – Muito confuso, o que tudo isso quer dizer?
    Eles iniciaram uma longa discussão enquanto eu deixava minha mente fluir naturalmente, os pensamentos indo e vindo sem ordem ou seqüência, apenas surgindo. Me disseram uma vez que eu precisava apreciar mais minha sensitividade, e era isso que eu estava tentando fazer.
    _ O tribal do Sol – falava Abi. Eu estava parcialmente atento a conversa – pode significar um Alucate bonzinho. É assim que eu o imagino.
    _ Ross Grant? – arriscou Brian.
    _ Mas e a tribal da Lua? – questionou Archi – quer dizer, ele não gosta de nenhuma Homúnculo, até onde eu sei.
    _ Ele não gosta de ninguém, até onde todos nós sabemos – corrigiu Brian.
    Foi como se a resposta estivesse pairando bem à minha frente. Estava começando a ficar fácil obter todas as respostas. Minha mente foi engolfada por uma lembrança que não deveria fazer sentido. Mas fez. Uma foto de casamento do meu pai e da minha mãe preso na parede do quarto.
    _ Meus pais! – gritei – Um Alucate e uma Homúnculo!
    Abi me fitou e, de repente, seu semblante ficou tão iluminado quanto o meu. Ela havia entendido perfeitamente.
    _ Seus pais podem ser a resposta! – falou Abi de repente – é claro! O único amor entre um Alucate e Homúnculo conhecido!
    _ Só pode ser isso – falou Brian, sorridente. Tínhamos entrado em um acordo.
    _ Seu pai é um Grant? – perguntou Dominique, curioso.
    _ Abolido – eu disse – perdeu os poderes quando traiu sua raça para salvar o mundo.
    _ Legal – Archi murmurou – epa, quer dizer... Trágico.
    _ Ok, mas... Aonde isso nos leva? – perguntou Dominique.
    _ A uma coisa óbvia – Abi sorriu.
    Ela tinha uma inteligência impressionante e, eu podia jurar que, se não fosse uma animorfa, poderia muito bem ser uma sensitiva. Sua capacidade de relacionar os fatos e ligá-los era extraordinária.
    _ O eclipse – ela falou, vendo a dúvida no rosto de todos. Eu já sabia o que ela iria dizer – O eclipse é a chave.
    Charlie pensou por um segundo.
    _ Pode fazer sentido – Charlie ficou pensativa mais uma vez – mas, o próximo eclipse só vai acontecer dentro de três anos e, ainda que fosse... Se fizermos as contas, o dia determinado para abrir a próxima sala não coincide com o período de eclipse. Não haverá um nesse dia. Então não pode ser a maneira de abrir a Sala.
    _ Não, você se engana – eu disse – Meu avô já sabia o que estava pro vir antes de fechar a próxima sala. Com certeza ele nos deu a chance de abrirmos a porta antes do tempo previsto.
    _ Isso nos colocaria um passo a frente dos inimigos – pensou Brian, certeiro.
    _ Ou... - Dominique se levantou, pela primeira vez, como se empenhasse em ajudar – Talvez não se trate apenas do eclipse.
    _ O que quer dizer com isso, Domi? – perguntou Charlie.
    _ Qual relação teria um eclipse com os pais de Matthew? Nenhum – ele respondeu antes que eu pudesse. De fato, ele estava seguindo um raciocínio bem lógico – Vejamos dessa forma. E se o eclipse não fosse a causa dessa união? E, se, na verdade, fosse...
    _ A conseqüência do amor entre eles! – completei.
    _ Isso significa – Dominique me encarou – você é o eclipse da história.
    _ Não – eu contrapus, certo. Olhei para minha irmã, absorta em nossa conversa – Mas Emilliene sim.

    Estávamos muito perto. Então era precisávamos de um eclipse e Emi parecia ser a chave, o nosso eclipse metafórico. Ela estava bem empolgada com a alusão ao fenômeno, mesmo sem nunca ter visto um. Mas uma coisa estava certa. Precisaríamos esperar três anos. Nesse tempo, surgiria um eclipse. E tínhamos o resto das minhas lembranças convenientes a serem colocadas em discussão. Ainda não sabíamos o que a fábula da sereia e o ogro, a propriedade mística de água e a história de Abi tinham em comum. Torci para que meu avô não tivesse superestimado minha capacidade sensitiva.
    Passamos o resto do dia tentando compreender como conectar o que parecia ser desconexo. Quando a noite finalmente ficou densa e pesada em nossas mentes cansadas, decidimos descansar. A manhã seguinte seria estafante.

    Cerrei em um sono pesado. Minha cabeça rodava e eu estava sobre uma pedra, isolado em alto-mar. Eu podia sentir a brisa gelada e os salpicos salgados do mar em meu rosto, o céu negro, mas limpo, com uma lua prateada complementando o cenário. Eu me dei conta que eu estava em sonho.
    Eu não estava sozinho. Ao meu lado havia uma mulher nua, as suas belas pernas pálidas e torneadas, um corpo tão perfeito, os seios redondos e robustos, um sorriso admirável. Os enormes cachos molhados ondulavam em seu corpo, e ela sorria inocentemente em direção à um homem que parecia flutuar sobre a superfície do oceano.
    Era um homem feio, com a pele cinza, os olhos grandes demais, uma cabeça minúscula, corpulento, com mãos grandes e unhas maiores ainda. De imediato visualizei a história que meu avô me contara. Madeleine e Murdock, um amor que surgira fora do encanto de sereia, o simples olhar de um ogro apaixonado por uma mulher que só queria ser como as outras de sua espécie.
    Ela estendeu a mão em direção a Murdock, e seu rosto se incendiou com um sorriso iluminado, apaixonado. Murdock estendeu, em resposta, uma flauta de madeira. Em tentei gritar, mas era impossível, minha voz havia me abandonado, meu corpo estava imóvel como uma pedra. Eu só podia assistir, sabendo o que aconteceria com Murdock.
    Madeleine tocou a flauta e, logo, Murdock entrou em um transe intenso, e seu corpo começou a ficar pesado. Aos poucos a água começou a devorá-lo, e ele nem se dava conta disso. Mais uma vez tentei gritar, mas foi em vão. Murdock desapareceu nas profundezas. Madeleine parou de tocar, e seu rosto se banhou em lágrimas. Não sabia se era medo, pânico, ou remorso. Fosse o que fosse, ela queria não ter sido tão cruel. Ela chorou por um longo tempo, mas me pareceu alguns segundos.
    Logo a lua abandonou o céu, dando espaço ao sol dourado e morno. Eu sabia o que viria em seguida, e foi exatamente o que aconteceu. Madeleine enfiou sua mão tão delicada e aparentemente frágil no peito, fazendo um buraco onde tocava. Sua expressão de dor não era tão lamentável quanto o remorso que ela parecia sentir. Eu a vi remover o próprio coração, vermelho, ensangüentado, e ainda pulsante, e arremessá-lo no mar. As águas engoliram o coração que ainda lutava para bater. Não pude ver mais nada. O sol iluminou o cenário, e vi Madeleine se enrijecer, cobrir o peito e fechar os olhos, ainda em lágrimas. Então aconteceu. Seu corpo se transformou. Estava petrificada. O Sol, subitamente, desapareceu. O mar se levantou em uma onda gigantesca, mas não veio em minha direção. Ele enegreceu, petrificou como Madeleine, e logo eu estava em volta de enormes muralhas de pedra escura, caído no chão frio, feito do que parecia ser granito. Tentei me localizar, mas não consegui. Tateei o chão em meio à escuridão e senti algo metálico e frio. Puxei para perto de mim e consegui ver. O bocal, a chave. O fragmento do trompete estava de novo em minhas mãos. Ao longe, o som do mar debatendo-se contra o rochedo pareceu se difundir ao som de aves. Logo, não era o som das gaivotas ou do mar que eu estava ouvindo. Mas um sussurro, baixo, mas nítido. “Nada que um pouco de água não resolva”. Quando meus olhos se voltaram para minha frente, Madeleine de pedra, com a mão sólida e maciça sobre a ferida em seu peito, chorava longos filetes de lágrimas, enchendo, logo, abaixo dela uma...
    _ FONTE! – eu acordei aos gritos.
    Olhei em volta. Estava de volta no dormitório dos Estranhos, dentro de um buraco na parede. Eu estava acordado, mas não podia afirmar que estava sonhando. Era real demais para dizer ser um sonho. Não. Era a verdade.
    _ A Fonte! – eu gritei mais uma vez, agora em alerta. Tudo pareceu se encaixar como meu sonho havia me mostrado.
    Me levantei num sobressalto, precipitei pelo buraco na parede, saltando sem usar a escada, caí com estrondo no chão. Olhei para os lados, ninguém parecia ter acordado com o meu grito.
    _ A FONTE!! – eu gritei mais uma vez. Precisava compartilhar daquele segredo com meus amigos. Eu sabia exatamente o que fazer. 
    _ Hei! – Abi surgiu do seu quarto-buraco, mau-humorada – por que está gritando?
    _ Eu consegui! – eu exclamei, eufórico – encontrei a resposta. Sei exatamente o que fazer!
    Ela me fitou, incrédula, mas contente. Saltou sem cerimônia, veio até mim numa velocidade absurda. Em menos de um segundo, todos estavam a minha volta. Lembrei-me de Amanda mais uma vez. Quanto menos gente envolvida, talvez fosse melhor.
    _ O que você descobriu? – perguntou Abi.
    _ Tudo faz sentido, agora! – eu disse, ainda tentando reorganizar as imagens em minha mente – eu vi cada...
    _ Matthew, não! – era Emilliene, que invadiu o círculo que havíamos formado.
    _ O que foi Emi?
    _ Não pode! – ela disse – o vovô nos pediu.
    _ Do que você...
    _ Ele pediu, Matt – ela fechou a cara – não podemos contar a ninguém.
    _ Ah...
    Eu fitei meus amigos. Já tinha feito muito revelando minhas lembranças a eles. Não poderia contar sobre a certeza que eu tinha. Não poderia jamais. Uma coisa que eu havia preservado em minha antiga natureza era que a palavra de Vincent Vance deveria ser ouvida e guardada como uma jóia. Era isso que eu tinha que fazer.
    _ Tem razão – eu disse, mostrando menos animação – foi mal, pessoal...
    _ O que? – Brian me encarou, incrédulo – você nos mete nessa palhaçada, faz a maior algazarra, nos acorda, para dizer que não pode nos contar por que o seu avô morto não quer?
    _ Eu já disse, Brian! – eu bufei – dobre essa língua.
    _ Ele morreu, cara! – Brian parecia ignorar o meu aviso – está morto! Você não pode dar ouvidos a ele por ver o futuro. Como ele morreu, afinal? Um homem que vê o futuro e ainda assim morre em batalha não pode ser muito esperto!
    _ Escuta aqui... – eu estava prestes a dizer absurdos, mas o que ele disse me chamou a atenção – Batalha? Do que está dizendo?
    _ Seu avô morreu em batalha! – ele disse – ele estava tentando conter um conflito em Ruanda, na África, entre as tribos Alucate e uns mestiços da Célula do Congo.
    _ Isso não é verdade! – eu retorqui – ele é o mais forte, não poderia morrer...
    _ Mas morreu! – Brian cuspiu as palavras na minha cara com dureza – desse jeito. Você vai dar ouvidos a um homem que se deixou ser morto por um bando de amadores para confiar nos seus amigos?
    _ Não me faça perder o controle, Brian... – eu sibilei – ele ainda é meu avô!
    _ Então nos conte! Ele não está aqui pra te ajudar, não mais! Mas nós estamos! Você precisa ser leal aos seus amigos, que estão vivos, não a um defunt...
    Não percebi quando minhas mãos, abertas em posição de ataque, agarraram a cabeça de Brian. Com um movimento rápido e ofensivo, ergui-o no ar e afundei seu rosto no chão. As estruturas estremeceram. Ainda insatisfeito, levantei-o com a mesma agilidade, a fúria e a irracionalidade se misturando aos meus pensamentos, agora inconstantes. Eu só queria fazer Brian retirar tudo o que havia dito, nem que, para isso, eu precisasse ver o seu sangue derramando.
    Abi deu um grito agudo e desesperado, mas não dei atenção. Arremessei Brian contra a parede com toda a força que eu podia ter reunido. Ele atravessou a parede. Brian ficou cravado na pedra escura, inconsciente, o sangue cobrindo o seu rosto.

    Quando ele finalmente conseguiu curar suas feridas, já estava bem longe de mim, caminhando, revoltado, em algum pátio movimentado da Célula de Sonora. Minha cabeça estava a mil e, para piorar, Abi estava furiosa comigo, Charlie e Archi, sempre leais a mim, estavam apreensivos, como se não fosse seguro estar ao meu lado. Dominique e os gêmeos Gifford, embora não tivessem muita simpática com Brian, não aprovaram minha atitude. Eles prezavam a amizade, e eu havia quebrado esse pacto tão rigidamente construindo nos últimos meses.
    _ Você foi muito rude, Matt – falou Emi, sentando-se ao meu lado. Apenas nós dois estávamos no Dormitório – ele é seu amigo, não deveria...
    _ Você não entende, Emi – eu disse, coçando a cabeça violentamente – eu não queria... Eu apenas fiz. Alem do mais, ele passou dos limites.
    _ Amigos não passam dos limites – ela disse.
    Suas palavras pareceram tão sábias e verdadeiras que senti vontade de abraçá-la e chorar como uma criancinha. Mas eu me lembrei, ela era a criancinha ali.
    _ Me conte – ela pediu – o que você viu?
    _ Vi o... Ah, claro – o meu sonho.
    _ Você sabe a verdade. – ela disse, segurando o meu braço – o vovô quer que eu ajude, certo? E disse para guardarmos esse segredo só entre nós. Mais ninguém pode saber.
    _ Acha que pode guardar esse segredo? – perguntei.
    _ Não fui eu que acordei gritando e quase amassei a cara do meu amigo? – ela zombou.
    _ Tudo bem, você ganhou.
    Eu tentei reajustar as idéias, como estava fazendo antes. Agora, com a mente mais calma, eu sabia exatamente o que precisava fazer.
    _ Lembra-se da fábula da Sereia e o Ogro? – eu perguntei.
    _ Vovô me contava ela todos os dias – ela sorriu – nunca me cansava de ouvir.
    _ Eu tinha uma chave – eu disse, ainda tentando organizar as idéias. Era difícil conversar sobre algo tão sério com uma garotinha de oito anos – um bocal de um trompete. Ele seria usado para nos levar à máscara de Agammêmnon.
    _ O que isso tem com a sereia e o ogro?
    _ De alguma forma, a flauta que Murdock fez para Madeleine... De alguma forma, eu sei que a flauta e o bocal são a mesma coisa, ou pelo menos têm o mesmo efeito. Ambos são um só, a chave.
    _ Ok...? – ela me encarou, confusa.
    _ Ela é a fonte – eu disse, sentindo a euforia me tomando aos poucos – a fonte lá embaixo, no pátio. Aquela mulher triste, com a ferida no peito coberta com as mãos. E Madeleine.
    _ É mesmo! – até para ela parecia óbvio.
    _ Ela tem uma ferida no peito. E, lembra-se do que vovô dizia sobre curas?
    _ Nada que um pouco de água não resolva – ela disse – ele sempre se deitava na grama comigo em tempos de chuva quando eu me machucava no balanço, ou estava triste.
    _ Exato – eu respondi, radiante – vovô queria nos mostrar, não que a água cura tudo, mas que, num caso específico, ela é capaz de curar. No caso de Madeleine.
    _ Então... Tudo o que precisamos fazer é colocar água na ferida dela? – perguntou Emi, quase tão animada quanto eu.
    _ Não creio que seja tão fácil – eu respondi – A ferida foi depois de tudo o que Madeleine passou. Acho... Não, acho não. Eu sei. Eu sei que precisamos da chave. Antes de qualquer coisa, precisamos recuperar a chave que está com Jericho.
     


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