A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 30
Adorável Emilliene e o Diário




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Adorável Emilliene e o Diário

    _ Você conseguiu alguma coisa?
    O tom da voz de Brian era esperançoso, ou talvez suplicante. Evidentemente eles também não tiveram sucesso.
    _ Encontrei um livro – falei, desanimado –mas nem pude chegar perto. Orestes pode ser bem exigente quando quer.
    _ Quem?
    _ Deixa pra lá.
    _ O que vamos fazer agora? – perguntou Dominique, impaciente – chefe?
    _ Não seja babaca, Dominique – reclamou Archi – Matt, você está se saindo um ótimo líder.
    _ Eu NÃO sou líder – enfatizei a palavra líder – eu só quero acabar com isso. Jericho Barclay não pode ficar a solta depois do que fez.
    _ Devemos isso a Kristin – disse Ethan, decidido.
    _ Devemos isso a todos – falou Brian.
   
    Entramos no dormitório dos Estranhos, onde as garotas estavam debruçadas na mesa, martelando idéias e pensando em um monte de hipóteses, algumas convincentes, outras nem tanto.
    _ O que conseguiram? – perguntei, me jogando preguiçosamente em uma cadeira.
    Abi estendeu a mão em minha direção, como quem manda calar a boca. Ela estava absorta no papel sobre a mesa, relendo em voz baixa.
    “O que foi escondido já foi revelado. O começo da busca está nas mãos do passado. O híbrido não é puro, mas é essencial. Porque o primeiro passo te leva ao início, não ao final. No deserto a verdade foi deixada, e só lá existe o caminho para a máscara cobiçada”.
    Ela suspirou, desanimada. Não era de todo um desolamento, mas elas não pareciam estar nem na metade.
    _ Eu imagino... – Abi fez uma pausa, e continuou – Que esse “híbrido não é puro” pode ser um mestiço...
    _ Mas não precisa ser necessariamente alguém – falou Camille – pode ser uma pessoa.
    Olhei para os lados, como se faltasse alguma coisa. Pela primeira vez notei a ausência de Amanda. Ela não estava ali desde cedo, e a euforia me fez ignorar completamente a sua ausência.
    _ Hei, onde está Amanda? – eu perguntei.
    _ Ela foi essa manhã para a Célula em Charlotte – respondeu Charlie – ao que parece a mãe dela não a quer muito perto daqui. Sabe que as coisas aqui esquentaram muito depois... Você sabe.
    _ Eu me senti muito mal por isso. Amanda era uma boa amiga e seria de grande ajuda no grupo. Senti-me culpado por não ter dado falta dela antes, mas eu não podia culpá-la. As coisas haviam esquentado muito nos últimos seis meses.
    _ Ela vai voltar – falou Abi, certa do que dizia – ela não queria ter ido, mas a mãe a obrigou. Ela quer ficar, quer lutar ao nosso lado.
    _ Amanda nunca foi de fugir – concordou Ephraim – ela é esperta. Vai dar um jeito de voltar.
    _ Ok, mas isso não vem ao caso, vem? – retorquiu Camille. Ela continuava insuportável – não estamos procurando essa Amanda, ou estamos?
    Abi se levantou em um sobressalto, furiosa, encarando Camille com olhos assassinos.
    _ Você acabou de chegar – ela sibilou – então não venha nos lembrar do que temos que fazer. Ficamos juntos o tempo inteiro, perdemos uma amiga, e agora outra foi embora. Se não suporta isso, é melhor voltar pra casa... Sua Rubro fedorenta.
    Camille ficou perplexa, mas revoltada. A explosão de Abi não iria ajudar nenhum pouco.
    _ Escuta aqui, mestiçazinha infeliz! Se não quiser que eu te arranque essa cabeçinha minúscula...
    _ Hei, Hei! – eu exclamei, impaciente – não estamos aqui pra brigar, precisamos...
    _ Cala a boca, panaca! – elas gritaram em uníssono.
    Foi o que eu fiz. O dueto ofensivo me deixou em choque e, a julgar pelas suas expressões agressivas, qualquer movimento em falso poderia significar minha morte, metaforicamente falando... Ou não.
    _ É, temos mais o que resolver – falou Charlie – essa briga pode ficar para um outro momento, certo, meninas?
    Elas se encararam por alguns segundos, mas cederam. Voltaram aos seus lugares e, aos poucos a atmosfera foi se restaurando.
    _ Ok... Vamos começar por onde paramos – Charlie tomou a dianteira do grupo – pode ser um mestiço...
    _ Matthew – falou Brian, dando de ombros – Matthew sempre está envolvido nessas profecias mesmo.
    _ Não em todas. Eu não sou mais o cara mau da profecia – eu me defendi.
    _ Ok, mas mais uma pra sua coleção não vai fazer mal – comentou ele em resposta.
    _ Eu também imaginei Matthew – falou Abi – mas pode ser qualquer um. Somos todos mestiços.
    _ Menos eu – interveio Camille.
    _ E sobre o deserto – Charlie pensou por alguns segundos – pode não ser necessariamente um deserto. Pode ser uma metáfora, um simbolismo.
    _ Deserto poderia ser um lugar vazio – comentou Camille – inabitável, algo assim.
    _ Ou quente – completou Abi.
    _ A verdade foi deixada no deserto – Charlie franziu a testa – isso é confuso. Quer dizer, eu imaginei da seguinte forma. Você seria o híbrido e, como você estando aqui, no Deserto de Sonora, imaginei que, de fato, fosse você.
    _ Hum, faz sentido – assentiu Brian – Híbrido essencial, a verdade no deserto. Você descobriu mais do que muitos homúnculos em pouco tempo, Matthew. Pode, de fato, ser você.
    _ Ou você – retorqui – todos somos “híbridos”, e todos estamos no deserto. E o que quer dizer “o começo da busca está no passado”? Eu não viajo no tempo, sabem?
    _ Que você saiba até agora – Abi deu de ombros – você descobriu uma porrada de poderes em tão pouco tempo. Corpo invulnerável, adaptação, aquela coisa com a aura... Viajar no tempo poderia ser mais um.
    _ Não está certo – eu disse – esqueceu de sensitivo. E, sinceramente, não sinto que esse raciocínio esteja correto.
    _ “O primeiro passo te leva ao início, não ao final” – murmurou Abi – devemos ir aonde alguma coisa começou. Onde começou... Que diabos!
    _ Está muito mais difícil agora. Achei que estávamos perto – desanimou-se Charlie – agora tudo o que temos é uma vaga hipótese meia boca.
    Naquele momento, a porta se abriu com estrondo. Emilliene entrou furiosa, balançando o copo de um lado para o outro, deixando a água derramar. Ela atirou o copo contra a parede, enfezada, e me encarou com revolta.
    _ Os meus neurônios não vão acabar, seu idiota! – ela reclamou.
    _ Do que você...
    _ Você disse que eu ia gastar os neurônios. Mamãe disse que você é um mentiroso.
    _ Ah, não seja boba, Emi, eu só estava...
    Ah, como eu adorava ser sensitivo! Olhar para Emi me fez ouvir um estalo óbvio e claro dentro da minha cabeça, como se a resposta sempre estivesse ali, pairando no ar, só esperando ser notada. Eu não sabia como, nem o porque, mas eu estava começando a desconfiar que tudo parecia premeditado demais.
    _ Emilliene! – eu exclamei, eufórico.
    _ Hei, não precisa gritar – ela fechou a cara – eu estou bem aqui.
    _ Você é o híbrido!
    _ O que? – ela escancarou a boca, perplexa – vou contar pra mamãe que você me chamou de hibid... Hibi... Hidi... Hi-o-que?
    _ Ele não te xingou, Emi – Abi levantou-se, parecendo compreender o que eu estava pensando. Ela estava rindo – ele te notou.
    Ela fez cara de quem não entende nada.
    _ Emilliene é mestiça – eu arquejei, em completo frenesi – quando viemos para o Submundo, Emi ficou escondida por algum tempo. E, há pouco tempo, foi descoberta. “o que foi escondido, já foi revelado”!
    _ “O começo da busca está nas mãos do passado”! – Abi foi até Emi, segurando seus ombrinhos e fitando seus olhos confusos – você é a única que pode olhar para o passado! É tão óbvio! Matthew, você é incrível!
    _ Agradeça à sensitividade – eu sorri, orgulhoso de mim mesmo.
    _ Ok, agora vocês estão me assustando – Emi murmurou.
    _ Não seja boba, Emi. Você vai nos ajudar.
    _ Eu? – ela me olhou, curiosa. De repente, um belo sorriso se estampou em seu rosto – Como?
    _ Vamos voltar para a Biblioteca.
    _ O que você pretende fazer? – Abi perguntou.
    _ Encontrei um livro. Um diário na verdade. Era o diário do meu avô. Ele pode ter escrito algo que possa nos ajudar em nossa busca!
    _ Você acha que Emi pode ver “sombras de luz” em uma capa de livro? – perguntou Abi – ela não precisa de coisas que reluzam a luz? 
    _ Eu não sei – admiti – mas é a nossa única opção no momento.
    _ Realmente – interveio Brian – não há outra opção.
    _ Emi pode saber tudo o que meu avô escreveu – minha voz se sobressaltava a cada palavra – pode haver alguma resposta.
    _ O que estão esperando? – falou Camille – vão depressa!

    Emi veio correndo, aos meus calcanhares, acompanhando meus passos apressados. Não tínhamos muito tempo e, naquele momento, descobrir a verdade era a principal coisa a se fazer. Minha irmã parecia ainda mais empolgada do que eu. Ela sabia como usar sua habilidade única era divertido, mas usá-la porque eu havia pedido parecia ainda mais emocionante para aquele rostinho rosado tão adorável.
    _ Onde estamos indo? – perguntou Emi.
    _ Numa biblioteca – eu avisei – ela é meio diferente, e tem um senhor bastante simpático, mas ele sabe ser assustador as vezes.
    _ Não tenho medo – ela disse sorridente. Como era bom ter a ingenuidade de uma criança de oito anos!
    Passamos por Sophie e Estevan sem nem mesmo nos cumprimentarmos, o corredor estava escuro e Emi não conseguia enxergar através da escuridão como eu conseguia. Peguei-a no colo e corri até a Sala Octogonal antiga. Quando cheguei, Orestes já estava caminhando, absorto, folheando um livro. Os longos tubos fixos em sua pele cinzenta e saliente pareciam estar cheios de um líquido avermelhado.
    A cena provocou um súbito arrepio em Emi, que gemeu baixinho, mas o suficiente para chamar a atenção de Orestes. Ele se virou em nossa direção, abandonando sua leitura.
    Seus olhos, primeiramente, pousaram em mim. Ele sorriu, radiante, mas, quando olhou para Emi, sua expressão ficou congelada, paralisada. Eu nunca tinha visto um homem de idade milenar ficar chocado.
    _ Você... – ele murmurou.
    _ Eu voltei...
    _ Não você, rapaz... A menina...
    _ Minha irmã – eu disse.
    _ Ela é...
    _ Ela é...? – eu o fitei, curioso.
    _ Eu já vi o seu rosto – ele disse, mas não comigo. Estava falando com Emi – seu rosto estava nas anotações de Vince.
    _ Vince? – eu o encarei.
    _ Vincent Vance, o seu avô.
    _ O rosto da minha irmã estava no diário do meu avô? – eu o fitei, cético.
    _ Claro! – ele não estava mais pasmo. Estava sorrindo, radiante, estendo as mãos idosas em uma insinuação de abraço – Oh, deixe-me pegar a menina nos braços.
    _ Não quero – ela disse – o senhor... Não me parece saudável.
    Encarei Emi, urgente. Não era uma boa idéia ofender o velho Orestes. Mas ele apenas riu, alegre e sincero, como se Emi tivesse contado uma piada.
    _ Tão corajosa! – ele disse – como um verdadeiro Vance. Como Vince Vance.
    _ Vince Vance... – eu o encarei – taí um nome bizarro.
    _ Seu avô odiava quando eu o chamava assim – Orestes riu – venha menina, venha ver.
    Orestes ergueu a mão ao céu e, estalando o dedo, o círculo em chamas caiu, levantando um amontoado de pequenas brasas flamejantes. Ele sorriu, ainda em direção de Emi, como se ela fosse uma pedra preciosa.
    _ Adorável Emi – ele murmurou, contente – é tão bom conhecê-la.
    _ Como é possível você ter ouvido falar em minha irmã? – eu interroguei – ela...
    _ Ela está nas instruções do seu avô. – ele interrompeu – venham. Peguem o que precisam.
    Orestes apontou para a chama que crepitava, desinibida.
    _ O que? Entrar... No fogo? – perguntou Emi – eu sou criança mas não sou besta, velho.
    _ Emi!
    Orestes deu uma outra risada descontraída.
    _ Adoro o seu humor – ele disse – muito esperta.
    _ Ok, Emi – tentei ignorar a intimidade com que Orestes falava – apenas mergulhe a cabeça dentro do fogo... Confie em mim.
    Ela assentiu, ainda apreensiva.
    _ Vamos juntos – eu a encorajei.
    A queimação foi instantânea, mas logo cessou. Emi e eu estávamos de frente a um livro de capa vermelha, “Diário de Vincent Vance”. Emi o encarou, também curiosa. Lutei contra o desejo de querê-lo em minhas mãos para não ser arremessado novamente.
    _ É aquele amarelo? – ela perguntou.
    _ Não, aquele de capa vermelha – eu apontei para o diário.
    _ Não, Matthew. ele é amarelo.
    _ Não – eu teimei – é vermelho, eu tenho certeza...
    _ Quer que eu pegue o amarelo, ou não? – ela insistiu.
    Então eu me dei conta. Ele era vermelho PARA MIM. Para Emi, era permitido.
    _ Ok, Emi. Pegue o amarelo.
    Ela estendeu a mão para o diário e, como mágica, ele se desprendeu da muralha de fogo e flutuou até as mãos dela. Um vórtice de fogo nos engoliu e, quando nos demos conta, estávamos de frente para o círculo de fogo novamente, na antiga Sala Octogonal.
    _ Que viagem! – Emi exclamou – Podemos ir de novo?
    _ Quantas vezes quiser – Orestes sorriu.
    _ Não – eu interpus – não podemos Emi. Temos um serviço, esqueceu.
    _ Ah, claro.
    Estávamos saindo da Sala, quando Orestes me chamou a atenção.
    _ Nenhum livro pode sair daqui – ele disse, tranquilamente.
    _ O quer que façamos? – eu o fitei, irritado. Estávamos perdendo muito tempo.
    Orestes apenas sorriu, radiante, mais para Emi do que para mim. Ele estendeu os braços, como se tentasse abraçar a enorme construção embaixo das montanhas.
    _ Estamos em uma biblioteca. – ele anunciou - Pode ler aqui mesmo.

    Emi jogou o diário no chão, sem nenhum cuidado, debruçou-se sobre o piso frio e abriu a capa. Era muito confuso todos os acontecimentos. De repente Orestes via em Emilliene uma incrível garota, quase como se a conhecesse, mesmo sem nunca tê-la vista pessoalmente. Era perturbador.
    Orestes estava absorto novamente em suas chamas literárias, lendo qualquer livro menos interessante do que o que eu buscava. Ele parecia tranquilo, entediado, mas, vez ou outra, lançava olhares de estranho afeto em direção à minha irmã. O que ele vira de tão especial nela?
    _ O que foi? – minha irmã me perguntou, notando meu olhar perdido em sua direção – por que está me olhando assim?
    _ Ah, nada. Vai, chega pra lá. Eu também quero ler.
    Eu me sentei ao lado dela, curioso, sentindo uma estranha expectativa. A primeira página era perturbadora. Não eram palavras, mas um desenho a tinta, perfeito, idêntico ao rostinho da minha irmã. Cálido, sorridente, inofensivo. Era impossível. Tudo bem que meu avô a admirava com todo o seu coração, mas a data não fazia sentido. O desenho tinha sido feito há mais de sessenta anos atrás.
    _ Hei, Tio Ory – eu gritei, chamando a atenção do velho milenar – o que significa isso?
    _ O que... Ah! Isso... – ele deu uma risada – sabe, eu sempre tive acesso a todas essas palavras, a esses livros. Uma incrível maravilha. Mas nunca pude falar sobre nada disso. Estou proibido de falar, sabem... Coisas de Juramentos.
    _ Por que o rosto da minha irmã foi desenhado há mais de sessenta anos atrás? – eu questionei.
    Novamente ele sorriu.
    _ Sabe, esse diário é a obra mais intrigante em toda a biblioteca. Por um motivo muito simples. O mais importante eu não posso ler.
    _ Como assim?
    _ Vê esse desenho? – ele disse, radiante – leia o que está a frente. Surpreenda-se, jovem.
    Eu o fitei, desconfiado. Eu adquiri o péssimo habito de não confiar na bondade das pessoas, e temi viver com essa desconfiança pelo resto da vida.
    Mas, enfim, decidi fazer o que ele havia dito. Virei a página do diário, tentando ignorar a arte do rosto de Emi. Eu tomei o diário nas mãos e li em voz alta.
    A primeira coisa que eu notei foi a data. tinha sido escrito em março do ano passado.
   
    “Desde a minha juventude eu sonhei com esse rosto. Era magnífico. Ela estava em meus sonhos, uma linda menina que atravessava uma cortina de água e me abraçava, tão carinhosamente! Ela era tão parecida com minha mãe. Os olhos azuis, os cabelos negros e densos, a pele macia e rosada.”
    “Apenas hoje decidi falar. Depois de muitos anos, eu sonhei novamente e minha memória fraca acabou por não me deixar na mão. Cheguei à casa de minha filha, onde fui recebido pelos meus queridos netos. E lá estava o rostinho que eu havia sonhado, que eu sempre sonhei. O futuro, sempre vivendo em meus olhos atentos, agora estava muito mais claro. Eu estava certo disso, eu precisava proteger.”
    “Ah, minha adorável Emilliene! Tão meiga, com seu sorriso travesso e seu jeito encantador. Conquistou-me com apenas uma semana de vida. Ela tentava abrir os olhos preguiçosamente, e seu sorriso de abriu como um raio de sol. Minha neta, minha querida neta. Tão pequena, já destinada a algo tão grande.”
    “Aos oito meses ela descobriu que havia algo de interessante nas chaves do meu carro. Ela acabou escondendo-a de mim e, mesmo sendo incrivelmente rápido, ela tinha seu jeitinho especial para me deixar tão mortal e vulnerável. Levei horas para encontrar a chave, escondida dentro do Grupe, seu ursinho de pelúcia.”
    “Com um ano ela não andava. Ela corria. Falar é algo relativo, certo? O som da voz dela era uma música, para ser sincero. Meu coração apertava a todo o momento, imaginando seu futuro tão incerto, e ela ali, uma simples criança, uma mestiça carinhosa e dócil, pronta para amar o mundo se ele permitisse.”
    “Seus dois anos lhe renderam complicações. Ela sumiu pela vizinhança e ficamos caçando a fugitiva por horas. Era tão difícil encontrá-la, ela tinha um dom quase sobre-humano para não ser encontrada, se não o quisesse. E, depois de horas de aflição, ela apareceu no balanço do quintal, rindo feito uma boba, com o Grupe bem firme em suas mãos.”
    “Com cinco anos ela já tinha um temperamento impetuoso, como a mãe. Energética, desordeira e, ao mesmo tempo, tão quieta e singela, era impossível saber quando estava aprontando alguma coisa. E, quando descobríamos, ela caía na gargalhada.”
    “Aos sete anos, ela já sabe falar melhor do que eu, cantar como ninguém, pular nem se fala! Mas o que me surpreende de verdade são aqueles olhos. Tentei desenhar seu rosto, mas fracassei nos olhos. Eles são tão cheios de vida, que nenhum pedaço de papel pode converter em imagens ou palavras. Sortudo é aquele que pode encarar aqueles olhinhos azuis. É reconfortante! Por isso preciso preparar tudo com cautela. Matthew vai ter cuidar dela. Eu sei que Richard também o faria, mas é um rapaz problemático, um Rubro teimoso, e eu sei melhor do que ninguém como é o temperamento de um Rubro. Enfim, eu consegui ver um futuro que pode não ser tão promissor. Mas eu sei que meus garotos vão chegar longe. Espero que Matthew tome a decisão certa. Minha adorável Emi é a única que pode ver o que eu tenho a dizer. E Matthew é o único que pode trazê-la ao caminho certo”
.
   
    Terminei de ler, perplexo. Era a sua caligrafia, impecável, os traços tão perfeitos e definidos. Ouvi um murmúrio ao meu lado e fitei os olhos cheios de lágrimas da minha irmã.
    _ Ele era muito bom – disse Emi em meio aos soluços.
    _ Só consigo ler isso – disse Orestes, interrompendo o clima familiar – o resto eu não posso ler.
    Eu voltei minha atenção para o diário. Virei a página, mas estava em branco. Virei mais uma, e mais uma, e depois outra. Eu estava no meio do diário e não havia nenhuma outra escrita, nenhum garrancho sequer. Eu encarei Orestes, frsutrado.
    _ Eu também não.
    Ele deu de ombros e voltou sua atenção ao seu livro.
    Continuei folheando, até chegar à contracapa. A única coisa era um espelho, preso à contracapa. Um espelho velho, trincado no meio, com a moldura dourada com pedras amarelas incrustadas nas extremidades.
    _ Um espelho... – eu o fitei. De repente, ficou tudo muito claro – Um espelho!
    Eu dei um salto eufórico, encarando Emi com alívio. Pareceu muito óbvio de repente. Era um espelho!
    _ Tome, Emi – eu entreguei o livro, com a contracapa exposta – faça a sua mágica.
    _ Como?
    _ “Minha adorável Emi é a única que pode ver o que eu tenho a dizer” – eu repeti o que havia no diário – por que ele diria “ver o que eu tenho a dizer”, ao invés de “ler” ou “ouvir”? Eu não sei como, Emi, mas o vovô sabia do que você era capaz! Ele sabia que minha sensitividade nos traria até aqui. Ele confiou em nossas habilidades!
    _ Então só eu posso ver o que o vovô tem a dizer? – ela perguntou, radiante.
    _ Eu quero ver também – eu pedi – eu sei que é cansativo, Emi, mas eu preciso ver.
    _ Tudo bem – ela assentiu sem hesitar – eu posso fazer um esforço para ajudar.
    Emi era capaz de projetar as “sombras de luzes” gravadas em objeto, como se fosse um retro projetor de filme antigo, embora isso desgastasse demais a sua força. Mas, assim como eu, sua aura era renovada, ela não corria nenhum risco.
    _ Posso? – ela disse, apreensiva.
    _ Manda bala, “piquena” – eu esfreguei as mãos, ansioso.
    Emi colocou o livro novamente no chão e, apoiando as mãos levemente sobre a superfície lisa e refletora, ela fechou os olhos, bem apertados, como se fizesse muita força. O diário estremeceu. Primeiro achei que nada iria acontecer. Ela forçou mais um pouco. E aconteceu.
    Pude ver a aura dela fluindo do seu corpo, tomando a atmosfera com a sua habilidade. O espelho, então, estourou, não em cacos, mas eu grãos minúsculos, luminosos, um brilho azul sutil, e como um vórtice de areia, o espelho reduzido a poeira pairou sobre nós, as luzes azuis começaram a tomar cores diferentes, feixes de luzes começaram a se ligar. Amarelo, azul, lilás, vermelho, bege, marrom, todas a cores se formando aos poucos.
    O cenário havia se transformado. A Sala Octogonal e o tio Orestes não estava mais ali. No lugar dele, um quarto com paredes de pedra escura haviam sido erguidas. Estavam bem claro que ali era um dos milhares de alojamentos da Célula do Deserto de Sonora. A imagem do meu avô estava projetada bem a frente. Ele estava bem mais novo, os cabelos ainda negros, um sorriso jovial, aparentando pouco mais de trinta anos. Ele era incrível, como eu sempre me lembrei. Ele estava diante de um espelho, e sorria tão amigavelmente, mas parecia urgente.
    _ Vovô... – eu murmurei.
    _ É sim – Emi assentiu, tão impressionada quanto eu.
    Meu avô estava encarando o espelho como quem encara uma pessoa. Ficou muito claro, era como se ele quisesse deixar uma mensagem para que Emi pudesse vê-la.
    _ Oi, testando... – meu avô deu socos leves na superfície do espelho – Hehe, acho que isso não ajuda... Bem... eu estou aqui para poder deixar uma mensagem. Primeiro, vocês não devem me conhecer, bem, da forma como estão me vendo. Eu estou bem mais novo. Vocês já devem saber sobre tudo, Homúnculos e coisa e tal...
    Era estranho ver o meu avô agindo como um garoto sem graça, como quem fica constrangido diante das câmeras.
    _ Bem, antes de mais nada... eu também sou homúnculo. Tadân! – ele fez um gesto de fingida surpresa e riu timidamente – ok, eu não sou doido. Vocês devem me conhecer como um velho chato e besta.
    Ele não sabia o quanto estava errado!
    _ Bem, vou ser direto. Tenho certeza que fui um bom avô, mas isso não vem ao caso. Emi e Matthew, eu sei que vocês estão me ouvindo, e sei por um motivo simples. Posso ver o futuro. Não como esses Oráculos, eles vêem espectros do possível, eles vêem um provável futuro. Mas eu posso, realmente, ver o que vai acontecer. Matthew, você é esperto, é capaz de ver além das mentiras, por ser sensitivo. Emi, você pode ver o passado e, por mais que soe bobo, é algo extraordinário.
    As palavras dele eram, cada vez, mais inacreditáveis. Era como se, de alguma forma ele soubesse tudo o que iria acontecer.
    _ Convivi com essas verdades até... Na verdade, desde hoje – ele continuou – Vi o futuro... Matthew, eu vi que você seria o provável inimigo da profecia. Mas vi as coisas mudarem, e Jericho Barclay, aquele destinado a nos ajudar, se virar contra nós. Bem, de alguma forma, eu já sabia de tudo isso. Pois bem, eu quero que você saiba de uma coisa. precisa esconder a máscara. Sei que Barclay deve estar com a chave nesse exato momento, e eles possuem formas de conseguir chegar à Sala Octogonal. Vocês precisam chegar a ela primeiro.” Eu estava junto quando a máscara foi guardada nessa mesma sala onde você está, a Biblioteca. Não se surpreenda, eu sou bem mais velho do que você já pode ter ouvido falar.Quando ela foi tirada daí, levamos ela para uma nova Sala. Bem, lembre-se de tudo o que eu te disse, todas as histórias, tudo o que as pessoas te falaram. Eu sabia de tudo o que você ouviria, Matthew. e usei todas as banalidades como pista para te levar ao lugar certo. Lembre-se, Matthew, você sabe onde está a máscara, só precisa procurar um pouco mais dentro da sua cabeça, nas suas lembranças.
    Ele pigarreou, olhando para o lado.
    _ Meu irmão está me procurando. Eu não contei nada a ninguém e vocês também não devem contar. Sei que Sammael é um bom homem, mas não contem nada a ele, isso será um segredo entre você e Emi – ele sorriu com a simples mansão do nome dela – Emi, você é especial. Uma garotinha incrível.
    Eu a fitei, também sorrindo. Não era preciso ser um Oráculo para saber que Emilliene seria uma grande guerreira.
    _ Não deixe nada escapar de sua mente, Matthew – ele disse – não posso dizer mais nada, porque as respostas estão na sua mente e, a partir desse momento, eu não sei mais o que pode acontecer. Minhas visões acabam bem aí, com vocês me olhando de frente para o espelho, falando que nem bobo.
    _ Vovô...
    _ Ele não pode te ouvir, Emi – eu a lembrei – é só a sua visão do passado, certo?
    Ela assentiu, frustrada.
    _ Matthew, você sabe tudo, pense nisso, coloque sua mente para funcionar. Tudo o que te disseram. As repostas estão aí.
    A visão foi enfraquecendo aos poucos, perdendo as cores, ficando desbotado. Consegui ver Orestes através da imagem do meu avô, como se duas dimensões se misturassem.
    _ Não se preocupem – meu avô falou – disse tudo o que precisava. Agora é com você, Matthew. Lembre-se de suas conversas com Abi, das histórias que eu te contei, das lendas sem importância.
    A imagem sumiu por completo. Estávamos de volta à Biblioteca.
    Várias lembranças se passaram pela minha cabeça, aos tropeços, desordenados. Mas eu era sensitivo, minha habilidade de intuição iria facilitar. Foi o que aconteceu.
    Lembrei-me da minha conversa com Abi há algum tempo atrás. Ela estava escrevendo uma história. Algo sobre o Sol e a Lua.
   
***************************flashback**********************************

_ Tenho que confessar uma coisa. – ela sussurrou, me entregando o exemplar de “Enigma dos Quatro” depois de admirá-lo – eu sou viciada em leitura. Sabe, eu estou escrevendo um livro.
    _ Sério? – eu a olhei, admirado. Era uma garota de talentos – gostaria de ver algum dia. Sobre o que é?
    _ É sobre uma garota que se apaixona por um cara, mas eles não podiam ficar juntos, pois pertenciam a mundos diferentes. – ela parecia orgulhosa a cada palavra.
    _ Ah, o tipo Romeu e Julieta?
    _ Não, nem perto. Na verdade, esse mundo diferente é bem mais que status social. Ele pertencia a uma colônia de adoradores do Sol, e de lá eles tiravam todo o seu poder. Ela pertencia a uma colônia de adoradores da Lua e...
    _ Ela obtinha poderes da Lua? – eu arrisquei.
    _ Exato. Mas não é só isso. Eles enfrentam outras colônias.
    _ Uau! – eu exclamei – uma garota do segundo ano escrevendo histórias de ficção e romance.
    _ Na verdade... – ela olhou para a janela – eu não considero um romance. Acho que é só sobre duas pessoas com destinos diferentes. Eles não podem viver juntos, porque a Lua e o Sol nunca se encontram.
    _ Mas sempre há o eclipse.
 
Lembrei-me da história que meu avô havia me contado.
Ele me contou da história do grande Murdock, um ogro que se apaixonou por uma bela sereia. Ele me explicou que sereias não são como mostram nas histórias, metade mulher, metade peixe. Sereias são mulheres que caminham nuas nas profundezas do oceano, controlam as correntes dos mares e possuem o semblante lindo, perfeito. As sereias emergiam apenas quando a face da lua cheia tocava o mar, quando os portões dos mares profundos ligavam os dois mundos. Vovô me contou que, na história de Murdock, o ogro se apaixonou por uma sereia em especial, Madeleine. Madeleine, diferente de todas as outras sereias, não podia cantar, ela era muda, e não conseguia encantar o coração de nenhum homem. Murdock, por outro lado, apaixonou-se mesmo não estando sob o efeito do encanto, era um sentimento verdadeiro que nasceu naturalmente, e jurou seu amor, mas ela só queria uma coisa dele: o seu talento. Murdock talhava instrumentos de madeira usando suas unhas compridas. Ele, então, talhou uma flauta para Madeleine. Ela assoprou e, de repente, foi como se pudesse cantar como todas as outras sereias. Ela seduziu Murdock para as profundezas do oceano, e morreu afogado. Madeleine, arrependida, passou o resto da noite tocando sua flauta sobre um rochedo, até que a lua cheia se foi. Ela não conseguiu voltar antes do nascer do sol. Ela sabia que iria se tornar parte do mundo onde estava no instante em que o sol tocasse sua pele. Então, antes de se tornar um monte de pedras, arrancou o próprio coração e o jogou no mar. Era a forma de manter a paixão que tinha por Murdock viva. Era o único jeito de provar a si mesma que não tinha um coração de pedra. Assim que o sol nasceu e os primeiros raios de sol tocaram sua pele fria, Madeleine ficou imóvel, petrificada. Ela passou a ser parte do rochedo, e nunca mais poderia voltar para casa. Mas seu coração estava em algum lugar, ainda vivo, feito de carne e sentimentos, onde o sol não poderia aquecer, mas jamais conseguiria endurecê-lo.

    Lembrei-me do que ele havia me dito sobre as feridas.
    _ Matt, meu pequeno... – ele disse, sua voz parecia um analgésico em meus cortes – por que chorar quando a dor é tão superficial? Nada que um pouco de água não resolva. Ela lava qualquer ferida. Nunca se esqueça disso.

“Nunca se esqueça disso”...

***********************FLASHBACK END*****************************

    Eu não sabia como, nem por quê. Eu só sei que sabia. A confusão deixou minha mente, era como uma neblina se dissipando. Eu sabia. Aquelas lembranças não vieram a minha mente a toa. 


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