A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 29
Onde está a maldita Sala?




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Onde está a maldita Sala?

    Quem eu era? Não conseguia responder a essa perguntar. Num determinado momento eu me sentia em casa, do lado das pessoas que realmente importavam. No momento seguinte todos eram um completo estranho, eu uma transição entre o inimigo e os aliados, acho que era assim que eu conseguia definir minha mistura louca de Homúnculo com Alucate. Eu não sabia ao certo o que essa mescla de origens me tornava, mas eu sei o que ela fazia em mim, me tornava algo completamente diferente. Minhas habilidades eram diferentes, instáveis a cada dia, e Angeline não era capaz de decifrar esse maldito mistério na minha vida.
    Minha força, ora tênue, ora absurda, agora estava se estabilizando no absurdo. Disseram que era normal, mas era difícil me concentrar em tantas coisas doentias acontecendo naquele lugar. Eu era um garoto normal, caramba! Eu ouvia Matchbox, Paramore, gostava de bandas japonesas como Orange Range, o que eu não ouvia há séculos. Tinha uma queda por pudim com calda de morango e tinha uma vasta coleção em quadrinhos, além da minha falta de sociabilidade, amigos normais e excêntricos. O que mudou? Eu era um Homúnculo, com poderes de Alucate, neto do Homúnculo mais forte em muito tempo registrado, antes perseguido por uma profecia imbecil e, agora com a profecia alterada, eu estava sendo escalado para um grupo de busca.
    Interessante como as coisas mudam. Seis meses após o ataque de Jericho Barclay, o roubo da chave seguida de sua fuga, foi o suficiente para alarmar o Conselho. Mas já haviam muitos envolvidos, então eles decidiram restringir aquela situação ao Submundo. Já havia muita gente envolvida, além do mais, ninguém sabia em quem confiar.
    Minhas roupas eram bem diferentes agora. Em seis meses meu corpo mudou de uma forma que eu não podia imaginar. Meus braços agora mais musculosos, um conjunto bem definido de músculos abdominais, um maxilar mais rígido e quadrado, os olhos muito mais azuis, eu sentia que minha força fluía com mais intensidade. Eu estava muito mais parecido com meu avô. Mas eu não era o único a sofrer mudanças. Todos estavam diferentes.
    Eu estava em cima da montanha, agora descoberta. Era noite de lua cheia, e meus olhos vermelhos brilhavam na noite densa. Meus cabelos, tão azuis e reluzentes quanto a própria lua, iluminavam um perímetro considerável a minha volta. Eu usava um sobretudo preto com a gola até as orelhas, uma camisa e uma calça preta, uma bota e luvas. Ficar admirando a moda do Submundo era o que mais me atraia naquele momento, quando eu preferia pensar em coisas inúteis a ter que me concentrar no dia seguinte, quando eu deveria entrar, junto com um monte de outros Homúnculos, em uma guerra sem tamanho.
    _ Ficar aqui em cima não adianta – era Abi, que saltou levemente, pousando ao meu lado com um baque surdo.
    _ Ah, oi. – eu disse, indiferente.
    Ela tinha os olhos escarlate mais lindos que alguém poderia ter, uma cor de brasa ardente, envolvente. Seus cabelos iluminavam um tom de cobre sutil, mas resplandecente. Ela estava fabulosa.
    _ Ficar passando dias a fio se preocupando com isso não vai adiantar muito. – ela disse – Charlie e Archy estão meio preocupados com você.
    Naqueles seis meses eu me aproximei de Archibald e de Charlie de uma forma inexplicável. Agora, somando Abigail e Brian, éramos um quinteto inseparável. Tinha o Dominique, que passou a nos considerar um tipo estranho de amigos, mas ele era frio demais para se aproximar, e eu não fazia muita questão, embora considerasse todos os Estranhos como amigos.
    _ Eu sei, sinto muito – eu respondi – eu tenho estado muito preocupado. Minha mãe me disse que papai está bem, e Emilliene começou a desenvolver os poderes precocemente – eu sorri, imaginando minha pequena irmãzinha erguendo uma pedra de uma tonelada.
    _ Ela é um prodígio. – comentou Abi – mais até do que você.
    _ Ela vai ser incrível – eu disse – por isso eu ando preocupado. Agora, com as coisas esclarecidas, é seguro ela ficar. Mas Emi ainda é uma Mestiça, como eu. Como ela vai ser tratada daqui por diante?
    _ Como uma Vance – falou Abi – e como a filha de um Grant que abdicou da sua natureza em prol de uma amor impossível... Ainda existe bondade nas pessoas, Matthew. Os Homúnculos também estão aptos para amar. Não se esqueça disso.
    _ Vou me lembrar. – eu sorri.
    Abi me beijou no rosto e, por um breve minuto, senti meu rosto enrubescendo. Ela ainda mexia comigo, e, mesmo enfrentando quimeras e Aurupos, eu era covarde demais para dizer como a amava, como admirava aqueles lindos olhos mutáveis, como ela era especial, e as mil maneiras que eu morreria por ela. Era um amor secreto. Eu sabia disso, Abi. Homúnculos podem amar.
    Curti minha solidão um pouco mais. Os mais confiáveis de Sammael estavam prontos para uma possível guerra. Jaricho não poderia usar sua chave sem antes saber onde era a Sala Octogonal e, depois de nos darmos conta o quão próximos os inimigos estavam da máscara, decidirmos esconder o livro. Orestes era um velho de mais de dois mil anos, não se importava em continuar vivendo ou não. para ele, entregar o livro seria divertido, ver o circo pegar fogo. Em todo o caso, foi um grande custo convencer o velho Orestes a entregar o livro, sob o juramento de nunca o abrirmos. Apenas a cópia da localização da Sala estava com Sammael. Estava em boas maos.
    _ Matty!
    Era a adorável voz da minha pequena Emi, um dos grandes motivos que me impulsionavam em lutar para salvar mundo e Submundo.
    _ Emilliene – eu ri, vendo-a caminhar sobre o telhado com destreza.
    _ Estou feliz – ela disse, sentando-se ao meu lado – estamos juntos outra vez. Quer dizer, o papai está com o Sr. Phebo, mas ele está bem, certo?
    Emilliene fora a primeira a dar um nome ao sentinela do Oráculo. O velho com um corpo de fisiculturista se tornou um grande amigo de Emi. Ele se sentia grato por ter recebido uma identificação. Phebo não era um nome tão interessante, mas era melhor do que não ter.
    _ Logo tudo isso vai acabar, viu. Eu prometo.
    _ Eu sei – ela sorriu – mamãe me disse que você é forte.
    _ Isso é bom – eu retribuí o sorriso. Há algum tempo eu não tinha uma conversa familiar com minha mãe, e ela não parecia se incomodar tanto quanto eu.
    _ Vou fazer uma visita ao Sr. Phebo. – ela disse – e ver o papai.
    _ Diga que o amo, está bem?
    _ Pode deixar – ela se levantou e beijou meu rosto.
    Emi estava radiante. Seus cabelos estavam mais curtos, cortados por influência de Abi, que mimara muito minha irmã. Agora Emi era a Homúnculo mais bela que existia, e estava pronta para viver aquele mundou. Melhor. Submundo.
    Saltei da torre e corri até o pátio. Sammael me queria ao seu lado durante uma pequena reunião que haveria entre os conselheiros. Ele queria o meu dom de sensitividade para descobrir quem poderia ser o traidor. Era exatamente o que eu iria fazer.
   
    A reunião começou. Claus, a minha espera no pátio, estava me conduzindo até o Salão do Conselho, sempre com sua expressão séria e o mesmo cabelo rastafari.
    _ Quantos conselheiros? – eu perguntei.
    _ Hoje teremos trinta e dois – ele respondeu – será o suficiente.
    _ Onde está o resto?
    _ Foram para outras células. Transferidos. Na verdade, eles se transferiram, estão com medo da repercussão do conflito.
    _ Covardes.
    _ Estavam contando com a ajuda de Jericho, mas com a traição, eles não conseguem confiar em mais ninguém aqui na Célula de Sonora... Entenda, rapaz. Eles estão velhos, não podem continuar com isso. Foi melhor
    Claus passou a cultivar uma certa confiança em mim depois que sobrevivi ao seu ataque seis meses atrás. Com o tempo ele reconheceu o quanto eu era forte e passou a acreditar em mim.
    _ Estão procurando o outro guerreiro com a marca da Lua – ele disse – mas está difícil. A Profecia não indica de onde vem esse guerreiro, está muito inconstante. É o que dá apressar a profec...
    _ Ela salvou nossas vidas, Claus – eu contrapus – ela merece todo o crédito que pudermos dar a ela.
    _ Sim, de fato.
    Continuamos nossa caminhada insistente até um corredor. No fim dele, havia uma longa escada de pedra escura, como era feito todo o lugar. Tochas queimavam discretamente, estalando a cada crepitar das chamas vivas e inconstantes. Era o caminho para o Salão do Conselho.
    Descemos as escadas até uma enorme porta, alta e vermelha, com dois enormes aros de metal no lugar de maçanetas. Eu forcei a entrada e a porta cedeu, abrindo com um rangido estridente.
    O salão era meio oval, não havia quinas no teto. A parede arredondada formava uma espécie de cúpula de concreto negro, onde várias lamparinas com fogo azulado queimavam sutilmente sobre uma mesa redonda, com vários assentos. Trinta e dois lugares ocupados, e uma cadeira vazia bem ao lado de Sammael. Lá estava minha mãe.
    Eu descobri que ela era uma conselheira acidentalmente, quando ouvi uma conversa entre meu tio Brad e Claus. Tio Brad também estava lá, mas ele não era conselheiro, ele apenas escrevia a ata. Engraçado ver diplomacia regendo em um buraco embaixo de uma montanha, no meio do deserto. A civilização existe em tantos lugares!
    _ Vamos começar – Sammael falou prontamente.
    _ O que o jovem está fazendo aqui? – quem perguntou era um homem de cabeleira longa, jovem, com os olhos alaranjados e um rosto triangular ossudo. Era impossível distinguir se era homem ou mulher, se não fosse sua voz. Eu o conheci há pouco tempo. Era Ross Grant, o Conselheiro Alucate, o único Alucate da FourFace.
    _ Ele irá me fazer um grande favor – disse Sammael – ele vai reunir um grupo e sair em busca da Sala Octogonal.
    Eu já sabia disso. Naquele mesmo dia estávamos em uma longa discussão. Eu não queria isso. Eu queria caçar Jericho, fazê-lo sentir muita dor, sofrer como ninguém sofreu. Ele era cruel. Embora a pessoa que eu fosse menos relacionado fosse Kristin, saber que ela tinha morrido era algo que me assombrava dia e noite. Era uma amiga, apesar de tudo.
    _ Será uma assembléia rápida – falou Sammael – eu sei que vocês podem não concordar. Mas eu vi como esse garoto luta. Ele e seus amigos estão aptos a isso.
    _ Ele não pode – falou minha mãe.
    _ Não se preocupe com ele, Lisa. Nada vai...
    _ Não estou preocupada – ela disse secamente – eu sei que ele é plenamente capaz de se defender. Mas não acho que isso possa ser colocado nas mãos de uma criança.
    _ Estamos com poucos guerreiros – explicou Sammael – muitos Homúnculos, estão certos. Mas não sabemos quais são confiáveis. Estamos cercados de traidores.
    _ E se ele falhar? – falou Ross.
    Era notável a diferença entre um Alucate e Homúnculo. Alucates tinham algo que o diferenciavam da aparência humana, uma expressão diferente, como um desenho animado. Eu não gostava de Ross nenhum pouco, embora fosse preciso aturá-lo.
    A Assembléia foi longa e cansativa. Depois de uma pequena discussão, eles decidiram que eu poderia organizar um grupo. Eu não queria comandar Homúnculos, nem caçar Sala nenhuma, mas era isso ou nada. Afinal, se eu encontrasse a sala mais rápido, eu poderia ir atrás de Barclay em breve.
    _ Ele não vai falhar.

    No caminho ao dormitório dos Estranhos, encontrei com minha irmã. Ela parecia bastante contente brincando com um copo de água. Ah, claro, depois de descobrir seu dom, com a ajuda de Angeline, usá-lo se tornou uma diversão sem tamanho.
    _ O que está vendo, dessa vez? – eu perguntei.
    _ Você sabia – ela começou a falar, e eu supus que ela não havia ouvido minha pergunta – que essa água passou por uma aldeia de índios no século XIX? – era estranho ouvir minha irmã falar sobre datas, como se fosse uma velha sábia – Parte dessa água foi usada para lavar as feridas de uma índia, Tarank.
    _ Você não se cansa? – eu perguntei, revirando os olhos.
    _ Nenhum pouco – ela riu – a outra parte dessa água passou pelo estômago de um puma. Eca, que nojo... Ah, olha! A outra parte abastecia uma cidade há poucos meses.
    _ Você não tem medo de gastar isso?
    _ O que, meu poder? – ela revirou os olhos – isso não acaba.
    _ Não, eu falo dos seus neurônios – eu provoquei.
    Ela botou a língua pra fora, fechou a cara numa carranca e me deu as costas, irritada.
    Emilliene descobriu um dom especial. Há alguns anos homúnculos descobriram que corpos refletores, moléculas cristalizadas ou qualquer outra matéria capaz de refletir a luz tinha uma propriedade singular. Eram capazes de armazenar a “sombra da luz” neles refletidas. Essa sombra, na verdade, era o espectro, o resquício da luz que foi refratada, refletida ou transpassada. Isso também incluía ondas, como ondas do som. Emilliene era capaz de trazes esses resquícios à tona, como se todos esses objetos cristalizados, como a água, fossem uma câmera, uma lente que registrou tudo e apenas ela era capaz de ver. era muito melhor do que sensitividade, com certeza.
    _ Hei, Emi – eu gritei. Ela se virou, mas continuava brava – avise a mamãe que eu estou na sala com os Estran... Com os meus amigos.
    _ Ta bom – ela respondeu secamente.
    Como era difícil agradar aquele projeto de gente! Mas vê-la feliz me fez pensar uma coisa. Eu poderia ser feliz também. Ela estava sabendo lidar com todas aquelas mudanças, e era apenas uma criança. Eu, por outro lado, era praticamente adulto, independente, tinha que lidar com isso também. Era estranho tomar minha irmã caçula como exemplo. Mas ela era um adorável exemplo. 

    Fui me encontrar com meus amigos no dormitório dos Estranhos. Todos estavam lá, inclusive meu tio. Ele estava muito mais ansioso do que eu, provavelmente preocupado com a repercussão de nossa “missão”. Eu não estava ansioso, nenhum pouco. Tudo o que eu queria era que isso acabasse logo. Mas havia muita coisa pela frente.
    _ Ah, que bom que chegou Matthew – falou meu tio – preciso falar com você.
    De repente todos estavam me tratando como se eu fosse uma espécie de chefe. Nos últimos dias eu preferi ficar na presença de Dominique e Brian, eles me ajudavam a lembrar que eu era apenas um “idiota híbrido”.
    _ Eu me encarreguei de trazer algumas pessoas para o grupo – ele disse – não se preocupe, eles são confiáveis.
    _ Tio, será que pelo menos você pode parar de me tratar como se eu fosse um, sei lá, ancião?
    _ Ah, ok, me desculpe – ele deu uma risada – veja bem... O tio Sammael é um cara que respeita muito essa coisa de família. Ele está tentando te recompensar por quase ter te matado.
    _ Ele quer me recompensar? Ele está fazendo do jeito errado. – eu revirei os olhos.
    _ Tem alguém que eu quero que conheça – ele disse – ela recebeu os poderes recentemente. Uma Rubro.
    _ Mais um Rubro na equipe? – falou o meu irmão, malicioso – ela? Hum, as coisas estão ficando boas.
    _ Ela é de Seattle, como você – meu tio sorriu – quem sabe vocês não se conheçam.
    _ Onde ela está? – eu perguntei.
    _ Está chegando... ah, veja, está aqui.
    Um vulto negro atravessou a janela, pousando delicadamente ao lado de Bradley. Meus olhos simplesmente se recusaram a acreditar.
    Olhos puxados, cor de avelã. Pele bronzeada, lábios rosados e uma longa cabeleira negra. “Um belo exemplar de garota oriental”. Camille Takamoto, minha amiga, minha algo-mais, minha antiga paixão. Ela estava bem a minha frente, sorrindo estranhamente, como se soubesse exatamente onde eu estive. Como era possível? Camille? Homúnculo?
    _ Minha mãe achou que você fosse normal – foi a primeira coisa que ela disse. Sua voz continuava insuportavelmente linda – Rá rá, como se, em algum lugar nesse mundo, você fosse normal.
    _ Ca-Ca – era estranho não conseguir completar a palavra a início. Seu nome simplesmente não combinava com Submundo – Camile...
    A lembrança me veio convenientemente, como se fosse uma espécie de sensitividade. Ah, claro, era meu dom. Na lua vermelha, lá estava eu e Kyle batendo na porta de Camille, quando sua mãe saiu, muito suspeita, e nos expulsou, dizendo que chamaria a polícia se voltássemos.
    _ Ah, minha mãe pede desculpas – Camille disse, normalmente – ela não sabia que você era... Hum, especial.
    _ Eu não acredito... – era a coisa mais sensata a se dizer.
    Então ela sorriu. Um sorriso tão familiar, tão necessário, que não pude me controlar. Respondendo aos nossos anseios, nos lançamos em um abraço longo e cheio de saudade, eu pude sentir uma lágrima besta e teimosa tentando escapar. É claro que meu autocontrole prevaleceu.
    _ Eu não acredito!
    _ Você já disse isso, besta.
    _ O que mais eu poderia dizer?
    _ Sei lá. Diga que está com saudades.
    _ Mas eu estou, e muita.
    _ Isso é bom – ela sorriu.
    Senti uma tensão estranha vindo do meu lado. Abi estava lá e, estranhamente, não parecia nenhum pouco feliz com a minha felicidade. Eu segurei o desejo de rir, triunfante, quando Brian percebeu o ciúme quase incontrolável de Abi.
    _ Pessoal – eu anunciei – essa é minha amiga de infância. Camille Takamoto.
    _ Camille Renwick – ela corrigiu – uma Rubro.
    _ Sério? – Brian fitou-a – uma Renwick? Não esperava encontrar uma por aqui tão cedo.
    _ Eu sei – ela disse – Os Renwick provêm do oriente. Mas, como você pode ver... – ela apontou para os olhos puxados.
    _ Ah, claro – ele revirou os olhos.
    _ Então – meu tio interrompeu – o grupo está formado. Camille é recente no Submundo, e viveu em uma Célula de bastante neutralidade. Ela é uma de nós.
    _ Isso é bom – eu disse, sincero – o grupo vai ficar muito melhor.
    _ Comigo aqui, bem – Camille piscou – nada poderia ficar menos que ótimo.
    Eu sorri, involuntariamente. Era como se uma parte da minha normalidade pudesse ser recuperada naquele pequeno momento. Um velho amigo da minha infância perfeitamente normal era tudo o que eu precisava para me lembrar quem, de fato, eu era.
    _ O que precisamos fazer? – Abi perguntou, em tom monótono, como se tentasse ocultar um tom bastante agressivo em sua voz. Eu estava adorando aquilo – Por onde começamos?
    _ Bem – Tio Brad tirou o “xérox” que Orestes havia nos entregado do bolso – Aqui estão as instruções. Mas, existe um pequeno problema.
    _ Qual? – perguntou Abi, mais calma.
    _ Existem vários desenhos estranhos, mas apenas uma escrita – ele respondeu, meio desanimado – ouçam... “O que foi escondido já foi revelado. O começo da busca está nas mãos do passado. O híbrido não é puro, mas é essencial. Porque o primeiro passo te leva ao início, não ao final. No deserto a verdade foi deixada, e só lá existe o caminho para a máscara cobiçada”.
    _ Cara, eu odeio charadas – reclamou Brian.
    _ Se não houvesse charadas, o caminho seria fácil para o inimigo também. – retrucou meu tio – enfim, eu não tenho idéia do que isso significa.
    _ Ah, isso as torna muito úteis – Brian enfatizou sua opinião.
    _ Não é tão complicado – falou Abi – precisamos analisar tudo com cuidado.
    _ Uma coisa é clara – falou Camille – a máscara de Agammêmnon está no deserto. “No deserto a verdade foi deixada, e só lá existe o caminho para a máscara cobiçada”.
    _ Como você sabe da...
    _ Seu tio me deixou a par de tudo – ela me interrompeu.
    _ Ok, mas em que deserto? – perguntou Archi, que só foi se manifestar naquele momento – Seria esse?
    _ Não acha que estão precipitando? – perguntou Charlie – é uma charada. Não é pra ser tão simples.
    _ Eu sei o que fazer – eu disse – Abi, Camille e Charlie, vocês são incrivelmente inteligentes. Fiquem aqui e pensem no que poderia ser. Eu, Archi, Brian, Dominique e os gêmeos Gifford vamos procurar em outros lugares. Tio, será que o senhor pode nos permitir entrada na biblioteca?
    _ Orestes vai ficar feliz em ver você outra vez – meu tio sorriu.
    Pela primeira vez em parei pra pensar. Aquela era a biblioteca, claro! Como Brian havia dito antes. Na confusão dos acontecimentos, eu nem havia notado. Tio Ory era como uma espécie de bibliotecário, e todos os livros estavam bem guardados naquele círculo de fogo. A biblioteca, então, era a antiga Sala Octogonal.
    _ Ah, claro – eu disse – eu vou lá. Vocês se espalham e conversem com os homúnculos mais antigos, aqueles com mais influências em outras Células, principalmente as localizadas em desertos.
    _ Não somos seus servos – retrucou Dominique.
    _ E eu não quero ter que te machucar – eu retorqui. Suspirei impacientemente e continuei – você não vai obedecer a minha ordem, Dominique. Você vai apenas fazer o que é melhor para o Submundo. Quer ajudar? Comece colaborando.
    _ É Domi – caçoou Archi – perdeu uma oportunidade de ouro pra ficar calado.
    _ Que seja...
    _ Bem, estamos combinados – eu esfreguei as mãos. Era estranhamente prazeroso ser uma espécie de líder. Eles me obedeciam, não por eu ser uma espécie de mestiço com poderes alucates, ou um herdeiro de Vance, mas pelo simples fato de ter conquistado respeito no meio deles.

    Quando eu cheguei na porta onde deveriam estar os Aurupos, a única coisa que encontrei foi um enorme buraco com dois Homúnculos poucos conhecidos. A primeira era uma mulher com um olhar hostil. Olhos e pele negros, pele pálida como a neve, lábios vermelhos muito intensos. Uma Rubro com aparência terrorista. O segundo era um homem, tinha pele cinzenta, olhos alaranjados, rosto ossudo, cabelos compridos amarrados em um rabo de cavalo, orelhas pontiagudas. Não era nenhum pouco bonito como a maioria dos homúnculos. Talvez fosse para alguns, mas, definitivamente, ele era muito mais assustador.
    _ Eu preciso passar – eu disse.
    _ Eu sei – falou a mulher. Seu nome era Sophie Fescherr.
    _ Seja breve – falou Estevan Alley, o Homúnculo.
    Entrei na sala o mais rápido possível. Corri pelo corredor, sem me preocupar em acender a luz com o fogo vermelho, entrei na sala octogonal e chamei.
    _ Orestes... Er... Senhor Orestes.
    Houve um silêncio momentâneo. Por um breve momento, achei que não havia ninguém, mas a voz veio depois de alguns segundos.
    _ Ora... – a voz era idosa e muito simpática – Não seja tão formal. Me chame de tio Ory.
    _ Ah... Tio Ory, então – eu rorri, fracamente.
    Ele surgiu do chão, como da primeira vez. Seu olhar era inquisidor, embora seu sorriso fosse tranqüilizador.
    _ Não imaginei que fosse vê-lo tão cedo.
    _ Nem eu – eu confessei – mas preciso do senhor. Preciso da sua ajuda.
    _ Se estiver ao meu alcance... – ele deu de ombros, balançando os tuboes que ficavam presos ao seu corpo. Eu imaginei por que ele usava todos aqueles tubos e fios estranhos, mas não era um bom momento para perguntar.
    _ Limos a mensagem deixada no papel que o senhor nos entregou – eu disse – e a informação é muito imprecisa. Dessa forma nunca iremos encontrar.
    _ Talvez seja esse o ponto.
    Eu o fitei, confuso.
    _ Como assim.
    Ele sorriu como se a resposta fosse óbvia.
    _ Se vocês, que têm a pista, não fazem idéia de como encontrar, como os seus adversários poderiam? – ele questionou.
    Verdade. Ele estava certo. Nós tínhamos o “mapa”, eles tinham a chave. Sem um, o outro era quase inútil. Mas eu sabia que precisava dessa máscara. Existia o perigo e, se não fosse resolvido agora, o Submundo sempre seria assombrado pela possibilidade de uma traição contra os humanos. A máscara não estaria segura até que os inimigos não fossem derrubados.
    _ Nós precisamos acabar com isso – eu falei, decidido – ou vamos viver uma tensão pelos próximos anos.
    _ E se você conseguir colocar as mãos na máscara? – ele perguntou – e se a profecia mudar?
    _ Como... Como assim?
    _ Você sabe que o futuro é incerto – ele disse – mas, e se a profecia antiga voltar a valer? A ganância pode de tomar, como havia sido mostrado. Você é o inimigo da antiga profecia, lembra-se?
    _ Não! – eu bradei – isso não vai acontecer! Brian e Abi entraram em minha vida! Eles mudaram isso! Odeio admitir, mas devo muito ao Brian. E isso vai ser o bastante para ferir o meu ego. Não preciso alimentar a idéia de me voltar contra meus amigos!
    _ Espero que tenha razão... – ele murmurou – Diga, rapaz... O que deseja?
    _ Livros – eu disse – muitos livros. Que possam me ajudar com a maldita charada que nos leva a próxima Sala Octogonal.
    _ Pegue os que você quiser – Orestes ergueu a mão e, como da primeira vez, o círculo de fogo caiu – ou melhor, os que lhe forem permitidos.
    _ Eu preciso ver todos – eu sibilei.
    Orestes sorriu, pacificamente, inocentemente, como se fosse me dar uma boa notícia.
    _ Quer que eu o tire dessa sala, jovem Vance? – ele disse. Havia um tom de desafio, ou talvez ameaça, eu sua voz – eu posso fazer isso, se quiser.
    Eu o fitei. Por um momento eu queria retrucar, mas seus olhos diziam que era perigoso demais. Eu apenas acenei com a cabeça.
    _ Mergulhe a cabeça nas chamas – ele disse – aqueles que lhe forem permitidos possuem a capa amarela. Os livros de capa vermelha são proibidos.
    Assenti com a cabeça. Me aproximei da chama morna. Não era tão quente, talvez não fosse me queimar. Mas me enganei. Assim que mergulhei o rosto, senti uma queimação terrível no rosto, como se torrões de brasa fossem arremessados em minhas bochechas. Mas resisti a dor e, depois de muito aturar, consegui ver os milhares de livros flutuando em meio a uma parede de fogo lilás. Era uma visão perturbadora, surreal.
    “Aquele livro”, imaginei, e, como mágica, o livro de capa vermelha que eu estava encarando flutuou até mim. “Passados Deixados Para Traz” era o título. Ele se abriu com o meu pensamento e, percebi, então, que tudo ali funcionava de acordo com a vontade da mente.
    Vasculhei vários livros, mas nenhum parecia ter a resposta. Imaginei se alguém estava tendo sucesso. Era frustrante. A decisão de esquecer isso e viver nossas vidas sem preocupações com a máscara parecia ser tentador, mas, o simples fato de imaginar Barclay vivo, depois de matar Kristin e nos trair, além de nos roubar a chave, era o suficiente para me incentivar a correr atrás.
    Depois de muito procurar, encontrei um livro. Um que me chamou a atenção. Um de capa vermelha. Tinha as escritas “Diário de Vincent Vance” na capa. Aquilo me pareceu tentador. Era do meu avô, eu tinha o direito. Mas foi tudo muito rápido. A simples vontade de querer o livro o fez estremecer e, como um relâmpago, fui jogado pra fora das chamas. Eu não havia conseguido nada, e o diário de meu avô estava flutuando em algum lugar dentro do fogo.
 
      


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