A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 3
Funeral, lembranças e chuva... Um pouco de dor em




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Funeral, lembranças e chuva... Um pouco de dor em um copo de uísque

 

            O céu estava cinza. As nuvens se aglomeraram, revelando um céu, não hostil, mas sombrio. A chuva caía vagarosamente, quase podia contá-las no ar. As gotas escorriam em meu rosto pálido, seguindo os traços da minha expressão dura. Não havia choro em qualquer rosto que olhássemos. Não havia desespero. Apenas tristeza, desolação. As lágrimas se misturavam à chuva insistente. Sempre odiei chuva, agora mais do que nunca.

            O grande caixão de mármore era trazido por quatro homens com ternos pretos. Um deles era meu irmão. Todos estavam segurando guarda-chuvas. Não eu. Na verdade, nem seria de muita ajuda. A chuva não me incomodava a esse ponto. Eu não consegui sentir as gotas acertarem meu rosto, nem mesmo as lágrimas quentes e salgadas que brotavam dos meus olhos. Eu não sentia absolutamente nada, estava sedado, todo o meu corpo adormecido. A dor havia me consumido até apagar todos os meus sentidos de vez.

            Eu também não conseguia enxergar mais o caixão. O borrão marrom carregado por quatro vultos pretos desapareceu. No lugar deles, um belo cômodo quente, iluminado por um abajur de couro, um belo sofá preto e um velho ocupando o lugar materializaram-se na minha frente. Era apenas um devaneio.

           

            _Entre, pequeno Matt. – disse o velho sentado no sofá. O lugar estava quente – Oh, você nem faz idéia de como eu estava ansioso para ver esse rostinho travesso outra vez.

            Eu me vi uma vez. Como há dez anos atrás, com apenas seis anos de idade. Meus cabelos negros estavam fielmente penteados para trás. Nunca meus olhos foram tão azuis como naquela época. Era um garoto franzino, descalço, que corria até os braços do avô, um homem com anos de experiência estampado em cada ruga, os lábios murchos, os cabelos volumosos e grisalhos, olhos azuis muito claros. 

            Ele me levantou em seus braços e me afagou em seu colo. Era tão bom estar com ele. Como se fosse impossível ser mais feliz em outro lugar. Ele apertou a ponta de seu dedo em meu nariz e sorriu, bagunçando meus cabelos com aquelas mãos enormes e enrugadas.

            _ A viagem deve ter sido cansativa. – Ele disse. Sua voz parecia seda – Aposto que vamos nos divertir muito esse verão.

            _ Não foi tão cansativa assim. – meu eu criança respondeu, sorrindo inocentemente. Havia me esquecido de como eu conseguia ser tão despreocupado – Mas acho que vou me cansar quando minha mãe começar a me mandar ir tomar banho. Por isso, não liguem se eu cair no sono antes disso.

            Ele gargalhou. Uma risada tão suave que parecia uma brisa quente no meu rosto. Ali, sentado no colo daquele homem, eu me sentia seguro. Eu me sentia mais forte, mais capaz.

            _ Duvido que sua mãe vá te deixar dormir com esse cheiro. – disse ele, levando as mãos às narinas, fingindo espantar o mau cheiro.

            _ Ah, não estou tão mal assim. – respondi, fazendo uma careta – Mas acho que o senhor pode me esconder em algum lugar, não pode?

            Ele riu, enquanto a porta se escancarava. Meus pais entraram. Papai tinha os cabelos castanhos claros na época. Seu sorriso era igual o meu, embora ele o exibisse com freqüência, como um prêmio da genética. Seus olhos eram cor de avelã. Minha mãe veio logo atrás, com seus cabelos muito negros presos em um rabo de cavalo, suas bochechas rosadas e seus olhos azuis vivos. Era o mesmo que enxergar uma foto antiga da minha avó.

            _ Matt não pode esperar para fazer uma surpresa – ela falou, abraçando meu avô carinhosamente – como o senhor está, papai?

            _ Fenomenal! – ele respondeu. Realmente, ele parecia indestrutível naquele robe púrpura – Que bom que vieram, Lisa! Oh, alô, George.

            _ Como vai, Vincent?

            Ele esticou sua enorme mão enrugada para o meu pai. Eles se cumprimentaram alegremente. Os dois sempre tiveram uma relação muito tranqüila. Uma amizade interessante. Na verdade, poderiam confundi-los como pai e filho. Era evidente que papai tinha enorme admiração por meu avô. Qualquer um teria.

            Demorou uns cinco minutos até colocarmos as bagagens no quarto de hóspedes. Para um velho, meu avô tinha um pique de um garoto de quinze anos. Eu sempre suspeitei que vovô tivesse um método secreto de descobrir quando chegaríamos. Quando fomos á cozinha, a mesa estava posta, cinco lugares prontos para uma refeição deliciosa: ensopado de frango, estrogonofe e lasanha. Na época, Emilliene não tinha nascido. Apenas Richard e eu ocupávamos as cadeiras de madeira mais altas. Rich tinha nove anos. Só cheguei a conhecer minha avó em retratos antigos. Ela morreu quando minha mãe ainda tinha doze anos.

            O jantar foi normal, se é que alguma coisa poderia ser considerada normal com o velho Vincent no meio. Nunca soube de nada que ele não soubesse fazer. O frango estava ótimo, o suco de laranja era feito de frutas da própria estufa do vovô. Não era de se admirar que em questão de minutos as travessas estavam completamente vazias. Não demorou muito e minha mãe já estava nos mandando pra cama.            

            Vovô gostava de nos contar histórias antes de dormir. Era engraçado como ele nos tratava tão diferente. Comigo, ele era natural, sorridente, contava segredos, às vezes me deixava comer biscoitos escondido. Eu me sentia culpado, às vezes. Mas ele meio que me apoiava a fugir das regras, um pouco.

            Com Rich, no entanto, era diferente. Vovô ficava de olho nele direto, explicando, detalhadamente, o que era certo, o que era errado, o que fazer em algumas situações. Se o visse cometendo algum tipo de irregularidade, como pegar um biscoito escondido, ele ralhava (claro, com aquele jeito de avô bravo que ele não tinha de nada). Ainda assim, era diferente. Será que ele precisava ser mais disciplinado? Bem, eu nunca me incomodei.

            A história que ele contou aquela noite, eu ainda me lembro. Era sobre um jovem que tinha um sonho diferente. Ele queria morar na lua. Até o dia em que ele foge de casa para encontrar um foguete que o levasse ao seu destino idealizado. Ao invés disso ele encontra um elfo chamado Lazarus, que prometia realizar os segredos mais secretos do garoto. Ele pede para morar na lua. Lazarus realiza seu sonho. O garoto saboreou cada momento flutuando nas crateras, até perceber que não havia ninguém lá. Vovô disse que, quando sonhamos sozinhos, tendemos a vivê-lo tão só, que o sentido se perde no ar, como se não fosse o bastante sem alguém para desfrutá-lo. A história ainda me faz pensar até hoje.

            Antes de dormir, um beijo de boa noite. Ele sorria, aqueles olhos azuis-piscina fixados em mim. Ele apagava a luz e eu dormia em segundos. Rich rolava no colchão em cima do beliche. O barulho do edredom me fez lembrar de alguma coisa. Ah, claro. Era a chuva, que caía serena, batendo debilmente no mogno...

            O quarto se dissipou no ar como fumaça. Eu me vi de frente a um caixão de mogno, carregado por quatro homens de terno. Um deles, Rich. Ao meu lado, Carmem, uma tia distante, chorava baixinho, murmurando coisas tão tristes quanto o clima que me envolvia.

            _ Isso não pode ser justo... – ela dizia, sua voz engasgada, doce, quase num sussurro – um homem com um coração tão grande, tão bom, não poderia morrer desse jeito.

            _ Ele estava dormindo, Carmem. – dizia uma mulher ao seu lado, que não reconheci. Sua voz era branda, mas me dava calafrios, quase como um agouro – ele morreu sem sentir dor, sem sofrer. Ele foi forte até onde conseguiu.

            Em uma outra situação, aquela voz poderia ter me acalmado. Ao invés disso, senti um frio descendo minha espinha. Lutei contra um desejo bizarro de me atirar sobre aquela mulher e arrancar-lhe a garganta. Como podia sentir tanto ódio de alguém que não conhecia? Respirei fundo, senti a chuva e o ar gélido passarem por meu rosto. Consegui dominar o ódio, que se transformou em uma tristeza avassaladora. Tive que fechar os olhos e morder no lábio, segurando a vontade de gritar.

 

            De repente, me vi sentado no amontoado de folhas secas. Meu corpo franzino de dez anos atrás estava todo arranhado. Meus olhos estavam marejados, minhas mãos sujas de terra. Eu estava no quintal da mansão de meu avô. Ah, eu me lembro. Era outono.

            Ele me segurou no colo. Eu havia caído da árvore, mas o amontoado de folhas que ele reunira perto do tronco naquela manhã tinha amortecido minha queda. Tudo o que ele fazia me deixava seguro. Vovô secou minhas lágrimas e sorriu.

            _ Matt, meu pequeno... – ele disse, sua voz parecia um analgésico em meus cortes – por que chorar quando a dor é tão superficial? Nada que um pouco de água não resolva. Ela lava qualquer ferida. Nunca se esqueça disso.

            A última frase dele me pareceu tão nítida, tão real, que olhei para trás, assustado. Por um momento, foi como se ele dissesse perto dos meus ouvidos. Mas os murmúrios e a chuva poderiam ter causado esse feito. Nunca se sabe que tipo de peça nossa mente nos prega em situações como essa.

           

            Tia Carmem continuou seu choro silencioso. Eles já estavam baixando o caixão. Naquele momento duas mãos me tocaram. Uma era lisa, como seda. Camille segurava a minha mão esquerda, seus olhos revelavam certa compaixão. Outra mão, essa maior e mais ossuda, me segurou nos ombros. Era Kyle. Meus amigos estavam comigo, prontos para me ajudar. Isso era bom, muito bom.

            A chuva continuou caindo. Me dei conta, de repente, que eu era o único sem guarda-chuva. Quando as gotas não me alcançavam mais o rosto, percebi que Kyle e Camille me cobriam com o guarda-chuva deles.

            _ Não. – eu murmurei – Eu quero sentir. A água lava as feridas.

            E sorri para mim mesmo, como se tivesse aprendido a lição. Eles se afastaram um passo, mas sem me largar um minuto sequer. Eu nem pensei em pedir isso a eles. Senti que, talvez fosse desabar, e eles estariam ali para me segurar. Mas eu não desabei. Eu aprendi a ser forte com o homem que não resistiu a um coração doente. Agora, pela primeira vez, eu me senti sozinho o suficiente para não querer sonhar.

            As pessoas foram se dissipando aos poucos. O caixão já estava na cova, o chão encharcado, a lápide tão fria quanto a chuva, que parecia mais insistente agora. Apenas minha mãe e meu tio estavam ao meu lado agora. Richard estava ajoelhado de frente à lápide, deslizando os dedos sobre a frase talhada “Pai, marido, avô, acima de tudo, guerreiro zeloso”. Outro frio na espinha. Meu tio e minha mãe se abraçaram silenciosamente e caminharam até o carro. Richard passou por mim, segurando meu ombro, me olhando com olhos tristes.

            _ Vou ficar mais um pouco. – murmurei para ele.

            Rich me abraçou e murmurou, dizendo que tudo ficaria bem. Não, ninguém poderia me consolar agora, ninguém iria conseguir. Assim que me vi sozinho ao lado da lápide, me joguei na terra fofa. Eu quase podia sentir o calor do hálito do meu avô. Eu quase podia ouvir seu riso. As lágrimas caíram sem nenhuma resistência. Elas precisavam sair também, desabar no chão, limpar toda aquela ferida aberta, incurável. Envolvi a lápide fria com meus braços como se, de alguma forma, pudesse alcançá-lo. Não, estava frio, sem vida. Não havia um velho Vincent para me sorrir e me fazer companhia, me contar histórias. Não havia menino algum querendo ir à lua, elfos não existiam. Nem a lua poderia prometer mais nada com seu brilho encantador.

            O cheiro estava diferente. Não era chuva, não era grama. Era apenas dor. Um líquido triste e invisível descia na garganta, diluído em álcool. Um gosto ácido, com um cheiro forte de uísque. Meu avô gostava de uísque. Era sua segunda opção quando se tratava de limpar feridas. Era assim que ele sentia o sabor da dor, da perda. E agora, nós dois compartilhávamos do mesmo aroma, do mesmo gosto. O líquido transparente era uísque, era dor.  

            Encostei minha cabeça na pedra cinza e gelada, meu corpo adormecido, meus olhos cansados de resistir à dor. Senti os últimos pingos de chuva deslizarem em minhas bochechas antes de adormecer.

 


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