A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 2
A notícia esmagadora sob o luar




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A notícia esmagadora sob o luar

Seattle sempre foi meu lar. Cresci lá, vivi os melhores momentos da minha vida em um lugar que me acolheu de verdade. Não, na verdade, acho que vivi os momentos mais suportáveis. Seria hipocrisia dizer “melhores”. Não que minha vida seja ruim. Ela só não aconteceu como eu esperava.
    Eu adorava sentir o cheiro dos pneus queimando no asfalto pela manhã, enquanto eu caminhava até minha escola. Não era longe, mas nunca me importei em caminhar. Eu sempre gostei de me sentir livre. Mesmo com a fumaça negra do escapamento dos carros, eu podia apreciar a corrente de ar seco que jogava meus cabelos para trás, cabelos negros como os do meu avô em suas melhores épocas. Meus olhos foram heranças da minha avó. Ela morreu cedo, mas me deixou um presente especial. Os olhos azuis dos quais eu sempre me orgulhei.
     O céu estava bonito naquele dia, o que deixava mais um dia letivo do segundo ano algo não tão desmotivante para um garoto de dezesseis anos como eu. Não havia nuvens, nenhuma sequer. Literalmente, estava tudo azul. Exceto pelos raios dourados que rasgavam as vitrines das lojas, faziam meu rosto corar. Eu odiava ficar vermelho. Era impressionante a forma como meu rosto enrubescia com facilidade. Mas ainda sim, nada parecia insinuar um dia infeliz. Claro, a vida sempre deixa as surpresas para o final.
    Nem me dei conta de onde estava indo. Meus pés me levavam mecanicamente até minha escola. Eu estava absorto em pensamentos que me vieram à cabeça, mas eu não sabia porquê.
    Eu ia visitar meu avô nas férias todo ano, em uma cidadezinha da Califórnia. Não era ruim, definitivamente. As histórias que o velho me contava eram fascinantes. Ele sempre dizia que eu sorria pouco, dizia que não era saudável para alguém tão jovem, por isso me contava as histórias. Para me fazer rir, me espantar, me interessar. O mundo sempre foi tão desinteressante, mas com o meu avô, as coisas ficavam diferentes. Na verdade, ficavam melhores. Bem melhores.
    Eu adorava quando ele me contava os mitos mais sombrios. Adorava quando ele me levava para a varanda da sua mansão – e que mansão era aquela! – e nos sentávamos perto das orquídeas para contemplar a lua. Vovô me dizia que ela ficava nos vigiando constantemente. Sempre fui um observador. Adorava observar aquela bola prateada no céu. Era quase uma terapia.
    Meus pensamentos se dissiparam com a buzina. Olhei para o lado, não pude pensar em nada, a não ser ver aquele monte de metal vindo em minha direção. Um Meriva verde-metálico freou a uns dez centímetros de distância. Nem havia me dado conta que atravessara a rua com o sinal verde. Para meu desgosto, meu rosto havia corado outra vez. Os olhos de todos na calçada se voltaram para mim. Alguns perguntaram se eu estava bem. Caramba, foi só um susto! O motorista arrancou, praguejando contra mim, assim que saí da frente. Era só ter mais cuidado da próxima. Meus pés sabiam o caminho de cor, mas não tinham olhos. Eu precisei tomar o controle da situação dali pra frente.
    Continuei caminhando até a escola. O dia continuava lindo, e eu ridiculamente vermelho. Pessoas que passavam por um susto como aquele costumavam ficar pálidas, mas, eu não. Eu tinha que ficar vermelho. Meu sangue subia à cabeça muito fácil. Dizem que nosso corpo responde ao que sentimos, e eu me sentia patético sendo tão transparente assim. Se me fizessem uma pergunta ousada, lá estava o garoto rosado. Eu me esforçava para não deixar o sangue subir e, algumas vezes, eu era bem sucedido. Na maioria das vezes eu consegui ser inexpressivo. Sempre achei isso um ponto positivo. Esconder os sentimentos pode ajudar muito às vezes.
    Não demorei a chegar ao colégio. A mesma balbúrdia de sempre. Alunos correndo com selvageria, garotas fofocando, valentões provocando os “normais” e os nerds. Como toda escola que se preza, a minha tinha suas tribos bem selecionadas. Eu pertencia à tribo dos auto-isolados, que se sentavam no muro longe do pátio da escola e ficava admirando o horizonte vazio. Passei perto de quatro garotas que tagarelavam animadamente. Elas me olharam e trocaram sorrisos furtivos, e o chiado das fofocas começou. Pronto, fiquei vermelho outra vez. Será que elas realmente achavam que eu tinha algo de especial? Mas no fundo eu gostava de saber que, no consentimento geral das garotas, eu era bem apessoado. Outro presente de família. Não do meu pai. A família Chambers, o lado paterno, é bem grande, mas eu conheço poucos e, com certeza, não haveria beleza nenhuma para se herdar dali. Com a família da minha mãe era diferente. Os Vance, lado materno, sempre tiveram algo mais que beleza. Chegavam a ser... Fascinantes. Vovô que o diga. Aquele sim era um legítimo Vance. Talvez fosse por isso que eu me sentia tão próximo a ele, tão desesperadamente ansioso para envelhecer e ser como ele, agir como ele, ter aquele olhar indestrutível e aquele sorriso torto cativante. Que bom que eu o tinha do meu lado.
    Fiquei sentado na minha cadeira, ouvindo as vozes deprimentes dos professores se passando a cada aula. Me peguei observando a corrida entre os ponteiros do meu relógio de pulso. Eles estavam realmente eufóricos. Nem percebi que o último sinal havia tocado. A aula havia terminado. Parecia um dia normal que iria se estender por uma vida monótona inteira. Era tudo tão igual. As pessoas eram tão desinteressantes, e eu me sentia deslocado naquele mundo. Eu não sei como explicar, mas eu sentia como se houvesse algo maior me esperando. Ou talvez fosse só a vontade de chegar em casa e comer algo que tapasse aquele vazio. Não, era só fome.
    Assim que saí da sala, ouvi a voz atrás de mim.
    _ Hei, Matt! – aquela voz era desgostosamente familiar – Espere aí.
    Eu tinha duas opções. Sair correndo ou me virar e cumprimentar Kyle Kingsley. Correr estava fora de questão, eu não era tão anti-social assim. E Kingsley era um bom amigo, falava de mais, mas era um cara legal. Ele tinha a pele negra, cabeça raspada e olhos castanhos bem claros. 
    _ Alô, Kyle. – falei sorrindo. Gostei da minha performance, não soou tão falso quanto realmente era.
    _ A gente ficou te esperando o dia inteiro. – ele começou me bombardeando com aquele olhar reprovador, um tom de voz notavelmente irritado – Talvez você devesse explicar por que está nos evitando nesses últimos dias.
    _ Eu, evitando vocês? – tentei fazer cara de surpreso, mas meus olhos me entregaram. Eu ainda guardava aquele mesmo olhar desinteressado. Realmente havia me afastado. Mas a culpa não era deles, esse era meu jeito e pronto – Eu estive meio ocupado e...
    Antes que pudesse terminar a frase, outra voz aguda e irritantemente familiar me interrompeu. Era Camille.
    _ Matthew Chambers!
Ela falou, sua voz tinha uma mescla de desaprovação e contentamento. Odiava quando ela olhava pra mim. Seus olhos brilhavam e minhas bochechas ficavam vermelhas. Ela era linda, de qualquer maneira, mesmo sendo irritante. Ela continuou tagarelando:
    _ Não venha com desculpas! Eu vi você passando pelos fundos do pátio, só para não ter que se juntar a nós. Por que você gosta tanto daquele muro? Ele fica tão... Isolado!
    _ Ta bom, vocês venceram. – respondi, enfim – Não estava a fim de conversas hoje. Vocês ficam muito perto da cantina, é muito barulhento.
    _ Hoje? Você não está a fim de conversas desde semana passada. – concluiu Kyle – as vezes parece que nós enjoamos você.
    Sabe qual a desvantagem em ser tão interessante? Você se torna o centro das atenções. Não, eu não sou esnobe e tampouco egocêntrico. Mas era isso que todos diziam. “Ele é tão calado, mas parece tão misterioso”, “será que ele não sorri nunca?”, “O que será que se passa na cabeça dele?”. Era o que eu ouvia as pessoas falaram entre dentes onde quer que eu passasse. Eu só queria ficar sozinho.
    Mas, no fundo, eu sentia uma certa necessidade em ter Kyle e Camille ao meu lado. Eles eram meus amigos, independente de qualquer coisa. Claro, Camille era surpreendentemente irritante, como uma irmã mais velha chata. Outras vezes, ela parecia algo mais.
    _ Será que podemos acompanhar você até em casa? – Kyle falou, me pegando de surpresa – Não sei se você se lembra, mas o prazo para o trabalho de história termina amanhã. Você disse que faríamos hoje.
    _ Ah – eu exclamei. Tinha me esquecido completamente – bem, vamos então. Só vou avisando. Meus pais foram visitar meu avô, então vamos ter que pedir uma pizza.
    _ Argh – Camille fez uma careta, e sua voz atingiu um nível absurdamente agudo – Outra vez? Por favor! Vamos pedir comida chinesa.
    Havia me esquecido dessa. Camille Takamoto era a garota de olhos puxados mais linda que eu já tinha visto. Sua pele era bronzeada e seus lábios eram bem rosados, que combinavam perfeitamente com cada fio negro de cabelo que escorria de sua cabeça ao seu ombro, um belo exemplar de garota oriental. Era como uma orquestra em impecável harmonia. Aliás, ela cantava muito bem, o que nunca me ajudou a entender o porquê de sua voz me incomodar tanto quando ela falava. Mas, por ela, eu até era capaz de suportar. Éramos amigos, afinal de contas. E eu tinha poucos.
    _ Que seja. – eu falei, inexpressivo. Eu me surpreendia de como eu conseguia ser arrogante, e me surpreendia mais em ver que eu não dava a mínima pra isso – comprem o que quiser, eu só quero fazer o trabalho.
    Mentira. Eu estava morto de fome. Pelo menos isso minha pigmentação não entregava.
    Caminhamos calçada a cima, enquanto Camille e Kyle discutiam sobre seriados de tv. Aparentemente, eles passavam o dia todo na televisão. Eu passava a maior parte do tempo ouvindo as discussões.
    _ Eu ainda acho que o pai deles não é tão mal assim. – dizia Camille – Quer dizer, ele matou o irmão e tudo o mais... Mas ele queria pagar a faculdade do filho que ele abandonou. Isso não é uma coisa boa?
    _ Pois é, seria sim. – retorquiu Kyle em defesa de sua opinião – Mas não se esqueça que ele MATOU o irmão. Como alguém que mata outra pessoa pode ser bom?
    _ Então tranque ele e jogue a chave fora! – falou ela, furiosa.
    _ Ótimo, talvez eu coloque vocês dois na mesma cela!
    Era impressionante, e chegava a ser engraçado, a forma como eles discutiam tão facilmente. Eu soltei uma risada grave, enquanto caminhava ao lado deles. Os dois me olharam e sorriram de leve. Eu não tinha o costume de sorrir com tanta freqüência, mas ao lado deles isso não era tão difícil.
    A discussão deles continuou, e eu suspeitei que eles estivessem fazendo aquilo apenas para me arrancarem mais algumas gargalhadas. Bem, vez ou outra eles conseguiam. Por um momento eu desejei estar por dentro do assunto, mas eu não via televisão há um bom tempo.
    A caminhada não demorou em nada. As avenidas estavam movimentadas, mas ainda assim nós fomos bem rápidos. Ah, como eu adorava a minha casa. A porta da frente pintada de vermelho, o salgueiro na entrada, uma árvore tão rude e selvagem que desprendia uma sensação tão doce e tranqüila; as janelas brancas, todo o resto pintado com um tom suave de creme.
    _ Vamos, vocês precisam fazer o pedido de vocês. – eu disse, sorrindo. Meu humor estava ótimo – Só não peçam nada muito apimentado.
    _ Eu sei, você odeia pimenta. – caçoou Camille, mas eu senti uma certa preocupação em sua voz em me mostrar que ela me conhecia muito bem.
    _ Ah, então acho que vou ter que descartar aquela sopa mexicana. – Kyle disse, também em tom de zombaria – talvez você queira um algodão-doce.
    Entramos em casa, jogando nossas mochilas em cima da poltrona.
    _ Não seja estúpido, Kylls.
    A sala era confortável. Poltrona, dois sofás, uma lareira, as escadas que davam no segundo andar, vários enfeites (minha mãe sempre gostou de vasos de porcelana e quadros que não faziam nenhum sentido para ninguém), pratarias. Tudo que uma casa comum poderia ter. Como eu havia dito, eu não tinha nada de tão especial.
    Eu peguei o telefone sem fio do gancho e joguei para Kyle. Eu só queria comer. Desde que não tivesse pimenta, poderia ser qualquer coisa.
    _ Faça o pedido. Eu vou ver se está tudo bem aqui em casa. – me aproximei da escada, olhando pra cima – Richard! Emilliene! Já cheguei!
    Segundos depois, uma garotinha veio correndo em minha direção. Cabelos tão negros quanto os meus, só que escorriam até suas costas. Os olhos eram tão azuis quanto o céu lá fora. A pele dela era rosada e delicada, os lábios eram tão vermelhos quanto um morango. Era baixinha, com seus oito anos de pura inocência e ingenuidade. Ela pulou nos meus ombros, saltando dois degraus da escada.
    _ Maty! – era assim que ela me chamava, enfatizando o “ty” no final, com aquela voz tão doce. Seu sorriso era espantosamente parecido com o de minha mãe.
    Eu sorri, passando minha mão por baixo de suas perninhas, levantando-a no meu colo. Eu beijei sua testa e a coloquei no chão, sem soltar sua mão.
    _ Vamos pedir comida. Você vai querer alguma coisa? – eu perguntei.
    _ Quero sorvete, claro. – ela respondeu com o meu sorriso predileto – coco ao leite e passas.
    _ Ouviu isso, Kyle? – eu falei para meu amigo, que ainda segurava o telefone, decidindo o que iria comer.
    _ A baixinha quem manda. – ele respondeu piscando para Emilliene. Ela sorriu, exibindo duas covinhas em suas bochechas.
    _ Rich! – gritei escada acima – Richard! Vai querer alguma coisa?
    _ Eu vou comer sorvete, Rich! – Emilliene parecia empolgada com a idéia.
    Richard desceu as escadas. Eu relutava sempre que diziam, mas no fundo eu concordava. Richard e eu nos parecíamos muito. Os mesmos olhos azuis e rosto “rosável”, cabelos muito negros. Eu usava meus cabelos arrepiados, Richard moldava os seus em um topete impecável. Ah, claro. Ele tinha o porte atlético que eu sabia que um dia teria. Estava praticando para isso. Ele tinha dezenove anos.
    Richard se abaixou e beijou a testa de Emilliene, e passou a mão pelos meus cabelos, bagunçando o meu penteado fielmente alinhado em uma camada de gel.
    _ Hey! – eu protestei – Não toque, nunca.
    _ Falou, Matyzinho! – ele caçoou – pede uma pizza pra mim, ta bom? To no meio de um documentário fascinante sobre as fases da lua e sua influência na gravidade.
    _ Boa sorte. – eu respondi, mau humorado, tentando arrumar o cabelo – sabor?
    _ Quatro queijos com Champignon, picles, cem cebola... Ta anotando tudo, Kylls?
    Kyle deu um sorriso amigável, segurando uma caneta imaginária e escrevendo na palma da mão, ou em algum bloco de papel invisível.
    _ O seu pedido é uma ordem.
    Richard se virou para Camille, sorrindo.
    _ Camille.
    _ Richard.
    Ele foi até a cozinha. Ouvi o barulho do microondas funcionando e a pipoca estourando discretamente.
    _ Emi, me faz um favor, ta bom? – eu pedi, me ajoelhando no chão para ficar de igual tamanho com minha irmã – eu e o pessoal vamos fazer um trabalho. Posso contar com a sua ajuda? Vai ficar quietinha até eu terminar?
    Emilliene levantou a mão direita e colocou a esquerda para trás, tomando uma pose de quem se sente muito importante.
    _ Palavra de escoteira.
    _ Ah, claro. Desde que você não tente dar nenhum nó...
    Ela riu e saiu correndo escada acima.
    _ Cuidado aí, garota! Não vá se machucar, hein. – eu gritei pra ela, antes de ver seus calcanhares sumirem por trás da porta do seu quarto.
    _ Em meia hora. – falou Kyle – podemos apressar o trabalho enquanto isso.
    _ Sabe, Kyle. As vezes acho que você vem só pra comer de graça – observou Camille.
    _ Obviamente. – respondeu Kyle, rindo – que graça teria?
    Nós pegamos cadernos e livros e subimos para o meu quarto. Nosso trabalho estava longe de terminar.
    Meu quarto era comum. Cama, televisão embutida na parede, guarda-roupa, estante com alguns brinquedos antigos que serviam de decoração, quadros neutros, pôsteres do “Matchbox Twenty”, “Paramore” e “Oasis” decorando as paredes cor de pistache. Era o meu território.
    Liguei o meu computador e, minutos depois, começamos a pesquisa. Coloquei “Unwell” de “Matchbox” para tocar enquanto fazíamos as pesquisas. Nem vimos o dia passar lá fora, de tão penetrados na tarefa. Só me dei conta que havíamos terminado depois que Camille soltou um suspiro profundo e cansado. As embalagens de pizza e comida chinesa vazias jaziam sobre a escrivaninha. Camille estava deitava de barriga pra baixo em minha cama, com os calcanhares cruzados no ar. Kyle estava sentado ao seu lado, pernas cruzadas sobre a cama, livro e cadernos apoiados eu seu colo.
    _ Uhnf... Acabamos, hein. – Kyle falou, espreguiçando seu corpo magrelo – Acho que podemos ir.   
    _ Hei, por que não ficam? – eu falei. Não estava com um pingo de sono, e eu comecei a sentir uma estranha necessidade em ficar com alguém hoje... Como se eu fosse precisar deles. Era uma sensação desagradável – podemos ver um filme, comer o resto do sorvete da Emi.
    Camille foi a primeira a responder.
    _ Sinto muito. Minha avó deve estar uma fera comigo. Disse que estaria em casa há uma hora atrás.
    _ Eu posso te levar se quiser. – Que prazer! Eu havia tirado minha habilitação há duas semanas.
    _ Claro, eu vou a pé. – disse Kyle.
    _ Não seja imbecil. – falei, jogando uma almofada na cara dele, enquanto Camille ria – Eu levo vocês. Está tarde, realmente.    
    Minutos depois, estávamos na garagem. Meu pai nunca me deixaria sair com o carro novo, então peguei o velho Opala do meu irmão.
    _ Expresso Banheira, aí vamos nós. – falou Kyle num tom malicioso.
    _ Ah, claro. Eu não iria deixar vocês sujarem o Mercedes do meu pai.
    _ Dá licença. – disse Camille, abrindo o porta-luvas – a sua humildade deve estar aqui em algum lugar.
    Eu dei uma risada descontraída. Mas alguma coisa me dizia, bem dentro do meu peito, que eu não devia estar rindo.
    Liguei o motor, a garagem se abriu automaticamente, e eu arranquei. Demorou bem uns vinte minutos para deixar Camille em casa, e mais uns quinze para deixar Kyle.
    _ Até amanhã, Matt. – despediu-se Kyle.
    _ Até, Kylls.
    Antes de dar a partida, a luz refletida do capô do carro chamou minha atenção. Olhei pra cima e uma bela lua cheia estava iluminando toda a rua. Dava para ver o encontro das nuvens no céu negro, os pontos prateados que brilhavam timidamente perto da grandeza da rainha da noite. Eu sorri para o céu, como se alguém lá em cima pudesse estar me observando agora.
    Dei a partida no carro e dirigi até minha casa. Não demorei nem meia hora. O portão da garagem se abriu e eu estacionei do lado do Mercedes prateado. Um súbito aperto me atingiu em cheio no peito. Não era nada, talvez fosse só a pizza. Ou aqueles camarões ao molho shoyo.
    Entrei em casa, suando. Não sabia o porque. Eu estava prestes a entender.
    Assim que entrei, Richard estava sentado no sofá, os olhos mareados, muito vermelhos. O brilho daquele garoto animado e forte havia desaparecido, dando lugar a um irmão mais velho triste e desolado. Eu fiquei sério e corri até ele.
    _ Rich! _ Hei, Rich. – eu disse, em um tom meio suplicante, me sentando ao lado dele – O que houve, cara?
    Um silêncio momentâneo. “Rich”, eu sussurrei. Estava com medo do que viria a seguir. A dor me invadiu de novo. Um cheio desagradável entrou nas minhas narinas. Era um cheiro podre.
    _ Matthew. – Richard disse, com cautela, mas sem poder esconder o tremor em sua voz – O que eu vou te dizer... Você precisa estar preparado pra ouvir.
    Eu pude sentir meu rosto se contorcer, a cor se esvair de meu rosto. Eu percebi que estava pálido. O sangue não conseguiu subir dessa vez.
    _ Rich... Richard! – minha voz era urgente – O que houve? Onde está Emilliene? Aconteceu alguma coisa com ela?
    _ Não, ela já está dormindo.
    _ Então o que? O papai ligou, eles..? Aconteceu algo com eles?
    Richard ficou imóvel, rígido. Por um momento em me imaginei que algo havia acontecido com eles. Meu irmão percebeu logo pela minha expressão, e falou apressadamente:
    _ Não! Papai e mamãe estão bem, Matt... Mas eles ligaram e...
    _ E...
    _ O vovô.
    A dor no peito veio com tudo, transpassando pela minha espinha, apertando meu coração, como se tentasse me estraçalhar por dentro. Ela me atingiu como um pedaço de concreto. Era frio, doloroso, esmagador. Eu pude ver o desfecho da conversa nos olhos dele.
    _ O vovô... – Richard levou as mãos ao rosto, enxugando os olhos, ainda tapando o olho direito – Ele sofreu uma taquicardia agora a pouco... Matthew... O vovô morreu.
    Era como se estivesse chovendo pedras na minha cabeça. Meu peito não doía. Nada era tocável. Não sentia o ar percorrer meus pulmões, não sentia o ar quente da lareira crepitando. Eu estava sedado, entorpecido pela notícia. Eu poderia ser atropelado por um caminhão e a dor não seria nada, absolutamente nada. A sala foi ficando escura, meus ouvidos ficaram tapados por uma bolha invisível. 
    Levantei-me silenciosamente. Richard cobriu o rosto com as mãos, se curvando para apoiar-se nas próprias pernas. Caminhei até a janela, tentando encontrar algum indício de que tudo o que acabara de ouvir era apenas uma alucinação, uma peça pregada pelo meu cérebro traiçoeiro e cruel. Movi a cortina com as pontas dos meus dedos e observei a lua mais uma vez. Não, era a mais pura verdade. Era real. A lua não deixava mentiras expostas. Meu avô havia morrido. Sua luz pálida me rasgou, me perfurou, e me causou a dor que eu tinha tanto medo de sentir um dia. As lágrimas vieram sem piedade. A lua não era tão interessante naquela noite.     


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