A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 27
Mudança de Curso




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Mudança de Curso

    _ Impossível!
    Foi a primeira palavra que ouvi. Ela parecia vir de longe. Eu não entendo. Eu devia estar morto. Eu senti a lâmina me cortar, como fez com Parshes. Senti minha cabeça quase se desprender do corpo. O que estava me mantendo vivo? Talvez eu não estivesse vivo. Não, eu estava bem vivo, eu sentia o ar entrando e saindo dos meus pulmões. A voz novamente ecoou na minha cabeça, me dando uma tremenda enxaqueca.
    _ Impossível, Bradley – era a voz de Sammael – ele não poderia fazer algo assim.
    _ Ele não é uma criança comum, tio Sammael – era a voz do Brad – e é bom ele ainda estar vivo. Confesso que também estou surpreso.
    _ Isso prova que ele pode ser o inimigo que esperamos durante tanto tempo.
    _ Ninguém – Bradley sibilou – Ninguém vai tocar um dedo nesse garoto.
    A única coisa que eu conseguia sentir, além da vontade de abrir os olhos, era gratidão. Ouvi vários passos, havia mais de uma pessoa onde quer que eu estivesse. Mas eu estava tranquilo, meu tio estava bem ali.
    Eu me esforcei para movimentar, tentar mexer algum músculo. Percebi que estava dando certo quando ouvi alguns murmúrios e um “oh” surpreso e em voz baixa. Finalmente meus olhos se abriram. Eu ainda estava no salão, deitado no chão, enquanto meu tio continuava de joelhos ao meu lado.
    _ Céus! Matthew! Você está bem! – meu tio me segurou pelos ombros.
    _ Ahn... – foi a primeira palavra que consegui murmurar. Na verdade parecia mais um grunhido mas já era um começo para quem estava a beira da morte.
    _ Matthew? – eu podia reconhecer a voz de Abi sem nenhum problema – Você está bem?
    _ Acho... – finalmente! – acho que sim...
    _ Isso é bom. E assustador – abri meus olhos e Charlie estava ao meu lado, junto de Brian e Abi.
    _ Dominique está bem? – eu perguntei, me apoiando nos cotovelos.
    _ Foram só as asas – falou Brian – infelizmente, ele ainda está vivo. Foi levado ao dormitório.
    _ Não é tão ruim assim. Ninguém morreu, certo? – eu sorri, mas não me esforcei para parecer convincente.
    _ Você também está vivo – segui a voz áspera e meus olhos cruzaram os de Claus – estamos todos surpresos.
    _ Mas nem todos estão felizes – eu retorqui – principalmente você.
    Claus fechou a cara.
    _ Eles querem a chave, tio Brad... Onde ela está? – eu levei a mão ao pescoço quando percebi que ele não estava mais ali.
    Sammal levantou a mão, onde o bocal do trompete pendia sobre a corrente, reluzindo a luz da lua.
    _ Como eu disse, isso não é seu.
    _ Me surpreende você querer matar alguém da família – falou tio Brad – principalmente o neto do seu irmão.
    _ A profecia não escolhe a família. Você não percebe, Brad? – Sammael colocou a chave no bolso - Quem mais indicado para vir ao mundo com um objetivo tão ganancioso do que um próprio Vance? Por anos nossa família foi marcada por guerreiros que ambicionaram a máscara. Mas meu pai viveu longos anos tentando proteger o mundo desse perigo. Foram doze gerações temendo a realização dessa profecia. Você sabe que os Vance sempre foram suspeitos.
_ Mas Matthew não precisa ser essa pessoa – falou Brad- ele nem pensou em pegar a máscara. Não é mesmo, Matthew?
    _ Não – eu respondi com sinceridade – na verdade eu imaginei que, chegando à máscara primeiro, Sammael não a teria.
    Sammael sorriu maliciosamente e, em seguida, virou-se para meu tio.
    _ Vê, Bradley. Ele pode não querer fazer nenhum mal agora, mas quando obtivesse a máscara, seria corrompido pela ambição, como aconteceu com todos os nossos descendentes.
    _ Isso não está certo – Bradley retorquiu – Matthew continuará vivo, vivendo como um homúnculo, com os amigos e a família.
    _ E se não concordamos? – perguntou Claus.
    Bradley me encarou, parecendo analisar a própria resposta. Havia algo diferente em sua expressão, ele parecia realmente preocupado comigo. Ele se importava. Naquele momento eu percebi, ele via em mim o próprio pai, da mesma forma como eu via nele o meu avô. Éramos a mesma pessoa.
    _ Eu também serei um inimigo da maldita profecia. Serão dois Vance na execução, tio Sammael. A escolha é sua.
    Sammael parou de sorrir. Havia algo em minha família que eu percebi desde cedo. Eles supervalorizavam o sangue e a família. Com certeza Sammael não iria suportar condenar o sobrinho, o que me pareceu uma vantagem.
    _ Então, o que? Querem me executar?
    _ Você pode manipular auras – disse Sammael – segundo a profecia, essa habilidade pertenceria aos dois protagonistas da profecia. Como você não é filho de humanos normais, não pode ser o escolhido pela lua. Então, o que resta...
    _ E por que eu não morri? – eu interrompi – eu tinha certeza que... Era o meu fim.
    _ Isso é um mistério até agora, Matt – disse meu tio, sorrindo orgulhoso – inexplicavelmente você se regenerou.
    Claus virou o rosto, evitando o meu olhar. De alguma forma, ele parecia decepcionado. Como poderia ele ser tão bom como diziam? Talvez ele fosse dissimulado, um farsante.
    _ Vamos voltar para o dormitório, Matt – falou Abi – está acabado por aqui.
    _ Ele não pode voltar. – disse Sammael – é um suspeito. Por que estava com a chave? Por que não nos contou que estava com ela? E, acima de tudo, por que se escondeu com os mestiços? Pra mim, isso parece um plano.
    _ Um plano feito por sua sobrinha – interveio Brian – vai matar ela por isso? Acho que não.
    _ Cuidado com a língua, rapaz.
    _ Eu não tenho medo de você. Na Célula de onde vim, os conselheiros são muito mais espertos para se tomar decisões. Cara, você me faz querer vomitar.
    _ Ora, seu...
    _ Claus. Não faça nada – Sammael avisou – ele não vai morrer fácil, de qualquer jeito. Não podemos criar uma tensão maior.
    _ Eu não vou sair daqui – eu disse – mas eu quero ouvir toda a verdade.
    _ Ora, você não está...
    _ Eu estou. – eu avisei. Levantei-me sentindo uma grande frustração. De repente, era viver ou morrer, e eu seria capaz de lutar com unhas e dentes para sobreviver – Eu não ligo pra quem é você, não me importo com o que esse Claus pode fazer, não dou a mínima para essas regras imbecis – eu me sentia bem melhor. De fato eu não esperava isso depois de quase morrer – eu só passei por muita merda para chegar até aqui! Eu lutei com uma quimera, fugi de cinco alucates doidos de pedra, viajei na barriga de uma baleia gigante e quase sou decapitado por um lobo de pedra! Acredite em mim, eu sou capaz de lutar por essa pedra, se for preciso!
    Todos os olhos me encararam, curiosos, alguns espantados, outros orgulhosos. Eu não sabia ao certo o que estava se passando na minha cabeça, eu só sabia que não podia confiar em ninguém que não fosse meus amigos ou minha família.
    _ Corajoso – falou Sammael – como o seu avô. É incrível como você se parece com ele. O rosto, a personalidade teimosa e destemida. Ele podia estar se borrando todo, mas nunca fugia de uma briga.
    _ Só que tem uma pequena diferença. Eu não estou me borrando.
    Brian sorriu, Abi, por outro lado, pareceu apreensiva. Provavelmente eu não deveria estar enfrentando um dos maiores homúnculos da história, mas eu não iria agir como um covarde depois de tudo o que eu passei.
    _ Talvez devêssemos contar o que sabemos – arriscou Claus.
    _ Fique quieto, Claus.
    _ Desculpe, Sammael. Mas eu apenas respeito aqueles que sobrevivem à minha lâmina.
    _ Escute Claus, Sammael – disse meu tio – conte aos garotos. Eu colocaria a minha mão no fogo por eles.
    _ Não leve isso para o lado pessoal Bradley. Ele pode ser seu sobrinho, mas não o descarta da profecia... Mas, enfim. Eu não sou um ditador, não posso tomar minhas decisões por um impulso. Precisamos levar isso ao conselho.
    _ Conte tudo a ele primeiro, tio – pediu Bradley – você ouviu o garoto. Passaram por muita coisa. Eu mesmo vi Blaine Grant e os seus seguidores tentando obter a chave do meu sobrinho. Ele é confiável.
    Sammael pareceu ouvir e absorver a informação com cautela.
    _ Ok – ele disse – vamos sair daqui. Meu dormitório, vamos para lá.

    Os dormitórios das torres na região nordeste da montanha não eram nenhum pouco modestas. Pareciam verdadeiros palácios, lustres e candelabros de ouro e prata, as portas bem talhadas e corredores de tijolos bem elaborados. Me dei conta que estava dormindo na periferia do Submundo, e aquele era um condomínio de luxo da classe mais alta.
    Quando entramos no quarto, eu senti uma pontada de pena dos Estranhos. Dormiam em buracos feitos nas paredes, enquanto um único homem ocupava um dormitório gigantesco, com uma lareira, um lustre de prata, uma cama confortável e uma mesa cheia de guloseimas que, naquele momento, eram bastante atrativas. Eu nem sabia quando foi a minha última refeição.
    _ Sentem-se – Sammael falou, apontando para a mesa retangular gigantesca – será uma conversa longa.
    Sammael sentou-se na ponta, Claus permaneceu de pé ao lado do amigo, como um cão de caça a espreita. Eu me sentei do lado de Sammael, Abi e Brian se sentaram ao meu lado. Meu tio e Charlie se sentaram do outro lado. Eu estava feliz em ter Charlie naquele momento. Eu ainda não havia descartado a idéia de apagar a memória de Sammael e Claus.
    _ Bem, por onde começo?
    _ Diga sobre a máscara – opinou Claus.
    _ Ah, exato. Bem, sobre a máscara de Agammêmnon. Acho que vocês estão cientes. Sabem quem a criou?
    _ O adivinho Calcas – eu respondi – que, na verdade, era Vance.
    _ Correto. Sabem o que ele queria com a máscara?
    _ Ele queria a guerra. Há indícios históricos de que ele tenha iniciado a guerra em Tróia – falou Abi – Ele usava captadores de auras para reter o máximo de auras dos mortos em guerras.
    _ Vocês realmente pesquisaram – comentou Sammael – parecem estar tão informados quanto nós.
    _ Não. Ainda não sabemos quem é confiável – eu disse, ríspido.
    _ Nossa intenção é manter a máscara segura – ele retorquiu – De tempos em tempos um membro de cada conselho de cada Célula espalhada pelo mundo se encontram em uma Assembléia para decidir onde esconder a máscara. Eles selam o esconderijo e, apenas com o fim do período, ela é aberta e um novo lugar é escolhido como o esconderijo.
    _ E que lugar seria esse? – eu perguntei.
    Claus me olhou, duvidoso. Provavelmente ele acreditava que eu era o cara mau na história.
    _ Tudo o que posso contar é que o lugar onde ela fica se chama Sala Octogonal, um lugar protegido com armadilhas extraordinárias e cruéis. Mas, com o tempo, sua capacidade em proteger diminui, até esgotar a energia. Usamos corações petrificados como fonte de energia para manter a “vida” da sala Octogonal. Nós alternamos o lugar como uma proteção a mais. Acreditem em mim, aquela máscara teria poder para sustentar esse mundo por muitos séculos e, com a aura dos humanos, poderia sustentar o mundo por milênios incontáveis.
    _ E por que vocês acreditam que eu sou o cara da profecia? – eu perguntei.
    _ Você é forte, muito forte. Está com a chave e, juntando informações, descobrimos que você é capaz de usar habilidade homúnculo.
    _ Como conseguiram... Parshes! – eu exclamei.
    _ Ela está do lado dos Alucates – Sammael falou – uma Homúnculo ordinária.
    _ Ela conversava com Claus como se fossem amigos... Claro, isso antes de ser assassinada por ele – eu enfatizei o meu tom sarcástico.
    _ Eu não sou traidor – falou Claus – mas sou capaz de passar por cima da minha moral para salvar esse mundo, se assim for preciso. Eu fingi estar do lado dos Alucates, eu era como um “falso espião”. Quando Parshes nos passou informações importantes, eu estava prestes a levar para Sammael. Mas ela disse algo sobre saber onde estava a criança Homúnculo nascida de pais humanos.
    _ E por que a mataou?
    _ Eu li a mente dela – falou Sammael – algum tempo antes do seu encontro com eles. Eu conseguia informação, mas não queríamos que essa informação caísse nas mãos dos Alucates. Ela precisou ser morta.
    _ Vocês tomam decisões como essas, julgando quem deve ou não ser morto, e ainda dizem que eu sou o malvado da história. Vocês são mesmo uns panacas – eu reclamei.
    _ Não seja impetuoso, rapaz – falou Sammael com aspereza – mostre respeito ás regras do nosso mundo. Seu avô teria feito o mesmo.
    _ Eu espero que não.
    _ Enfim. Conseguimos tirar a criança de circulação.
    _ Peraí! Vocês mataram a criança que iria nos salvar? – perguntou Abi, perplexa.
    _ Não. Quando eu digo que tiramos de circulação, eu digo que a tiramos da mira dos Alucates. Ela está bem aqui, entre nós.
    _ E quem seria essa pessoa? – perguntou Brian.
    _ Seu nome é Jericho Barclay – Sammael sorriu – acho que vocês o conheceram.
    _ Como é? Aquele almofadinha? – Brian parecia pasmo, mas, acima disso, frustrado.
    _ Ele é mais forte do que pode parecer – falou Sammael – ele pode controlar a aura, materializá-la, visualizá-la, como você. – ele apontou pra mim.
    _ Não acredito – falou Abi, ainda surpresa – aquele cara... A criança da Lua.
    _ Pois é. Ele não é tão criança. Cresceu com os poderes sem saber o que significava suas mudanças. Mas ele precisa ficar em segurança, por isso colocamos nossos melhores guardiões, e mais confiáveis, como escolta.
    _ E por que isso? – eu perguntei.
    _ Bem... O motivo de nossa preocupação nesse caso é por causa das pesquisas feitas por Claus.
    O homenzarrão percebeu que aquela era a sua deixa.
    _ Eu colhi informações por algum tempo – ele disse – fingi estar de lados opostos, até descobrir uma coisa. Não existem apenas dois lados. Existem três lados em busca dessa máscara. O primeiro somos nós, obviamente. Mas queremos a máscara para mantê-la segura. O segundo grupo engloba todos os Alucates. Querem a máscara para criarem o mundo em um Submundo, sem humanos. O terceiro, é o pior... São Homúnculos. Eles estão entre nós, em todas as Células. Eles se intitulam Patriotas. Pretendem tornar a nossa espécie independente dos humanos e, de quebra, tirar todos os Alucates de circulação.
    _ Então é mais um motivo para não confiar em ninguém – explicou Sammael.
    _ Mas confia em nós – eu disse.
    _ posso ler mentes. Com a exceção da sua, claro. Mas, ainda assim, percebo que vocês não estão envolvidos. Pelo não os seus amigos.
    _ Eu também não – eu retorqui.
    _ De qualquer forma – interveio Claus – não podemos saber quem está contra nós. Existem muitos homúnculos aqui. A alta Nobreza, assim como os Conselheiros, possuem uma jóia que protege seus pensamentos das intervenções de Sammael. É uma medida justa pelo fato de um dos grandes Homúnculos ser capaz de invadir a privacidade de qualquer um.
    _ Mas e o resto dos Homúnculos? Os Plebes, os Baixos Títulos...
    _ Eles... Não precisam disso. Não temos jóias para todos.
    _ Ah, claro. “O navio está afundando. Deixem que morram mulheres e crianças, salvem os ricos” – caçoou Brian.
    _ Por que simplesmente não param de proteger os humanos? – eu perguntei.
    _ Não podemos. – foi meu tio quem disse – como você deve ter ouvido, ser Homúnculo é uma espécie de maldição para as famílias principais. Um preço a se pagar pela ganância, ao destruir os pilares para obter mais poder. Os Grant foram amaldiçoados por não terem iniciativa em proteger a energia. Fomos marcados por esse compromisso. Se não o fizermos, nossa espécie morre. Ou vivemos para servir, ou morremos. Simples assim.
    _ Então estamos com a criança da Lua – eu disse – ótimo. protejam ela, logo vocês verão que eu não sou o cara mau. Barclay vai lutar com alguém mais interessante, vai matar alguém bem mal e, depois disso, tudo estará bem.
    _ Tudo bem, o garoto... Continua entre nós – falou Sammael, enfim mas primeiro nos diga tudo o que houve. Desde o momento em que descobriu seus poderes até por as mãos na chave. Tudo.
    _ Ok... Han, por onde eu começo... Ah, claro. Na verdade, eu sempre tive uma certa intuição pra coisas. Eu sentia cheiros, sabores, sensações estranhas. Tudo correspondia ao que estava por vir. Se era um cheiro bom, algo muito bom acontecia, o que era raro. Se era um cheiro ruim, vocês sabem. Coisas ruins. Até o dia em que enfrentei um cara na escola, quebrei o braço de um dos valentões sem esforço e, depois disso, corri como nunca. Depois veio uma coisa engraçada. Meus olhos ficaram vermelhos e os cabelos azuis na lua cheia. A partir daí comecei a praticar meus poderes.
    _ Por que estava treinando?
    _ Eu não estava treinando – retorqui – eu era um cara normal que descobriu ter o que todo garoto da minha idade gostaria: superpoderes. Um dia eu percebi que podia arremessar pedras de cem quilos. Bem, isso virou uma diversão. Até o dia em que entrei numa loja. Um tal de Augustus.
    _ Augustus? – Sammael franziu a testa – conheceu ele?
    _ Não, exatamente. Eu o vi sendo ameaçado por Parshes. Ela queria que ele desvendasse uma chave, mas eu a roubei antes. Só que estava sendo guardada por uma quimera.
    _ Isso é o que me intriga – falou Sammael – Augustus podia ser muita coisa, mas permitir uma quimera em sua loja?
    _ Aquilo parecia uma fábrica de quimeras, na verdade – eu disse – um monte de pedaços de gente.
    _ Como é? – Sammael arqueou as sobrancelhas – não havia nada lá quando fomos conferir.
    _ Mas havia. Olhos, pele, e uma quimera muito feia. Consegui derrubá-la, peguei a chave, enterrei a quimera com um pedaço do trompete.
    _ Mas o mais importante está conosco – Sammael deu um tapinha de leve no bolso.
    _ Mas ainda estão por aí. – eu disse – e podem tentar pegar a chave.
    _ Ela fica comigo – impôs Sammael.
    _ Talvez – foi Abi quem falou dessa vez, e parecia decidida, bastante convencida do que dizia – a chave continue segura conosco.
    _ O que quer dizer?
    _ Se eles querem a chave, com certeza vão buscar naqueles capazes de protegê-la. Quem suspeitaria de jovens Mestiços?
    Sammael pareceu cogitar a hipótese, mas estava relutante.
    _ É muito arriscado – falou Claus – não vamos nos dar ao luxo...
    _ Cala a boca, grandão – resmungou Brian – você late quando o tio ali mandar.
    _ Ora, seu moleque...
    _ Chega, Claus – pediu Sammael – são crianças rebeldes, apenas isso. Mas, de fato, a garota é esperta. Aprecio isso. Talvez eu devesse deixar a chave naquele lugar. Mas não com vocês. Vou colocar nas mãos de Jericho.
    _ O que? – eu bati a mão na mesa, furioso – ele acaba de chegar e já é digno de alguma confiança?
    _ Ele possui a marca, rapaz – disse Sammael – ninguém melhor do que o próprio protetor da profecia para proteger a chave.
    _ Isso é um absurdo!
    _ É muita sacanagem – reclamou Brian – odeio essa burocracia.
    _ Não importa com quem fique – tio Bradley falou – desde que fique sem segurança.
    _ Afinal, como Parshes conseguiu a chave da primeira vez? – eu perguntei.
    Aquele era o momento ideal para se perguntar. A chave deveria ficar sob proteção dos homúnculos. Porque, afinal de contas, estaria nas mãos da traidora?
    _ Foram os Patriotas. – disse Claus – acreditamos que um dos conselheiros pode fazer parte desse clã.
    _ Eu voto no Sammael – disse Brian.
    _ Isso não é uma votação, Brian – eu retorqui. Havia muito mais nessa história – Se existe mesmo um conselheiro traidor, vamos ficar mais seguros com a chave nas mãos dos Estranhos.
    _ Está decidido, então – falou Sammael, encerrando a conversa – vamos entregar a chave aos Estranhos... Eu levarei até Jericho.
   
    Abi, Brian, Charlie e eu saímos do dormitório, juntos. Senti falta do peso do metal preso ao colar, eu não me sentia seguro sem ele.
    _ Ele não é tão ruim. Sammael – falou Abi – não era o cara mau que pensávamos ser.
    _ Eu ainda tenho minhas dúvidas – refletiu Brian – aquele Claus também não me parece confiável.
    _ Precisamos acreditar em alguém – respondeu Charlie – que seja neles, então.
    Estávamos no pátio, perto da escada para a torre dos Estranhos, quando uma mão me segurou com agressividade. Me virei com o susto e deparei com os olhos acinzentados de Angelie White. Ela me encarava com uma expressão assustada, urgente. Comecei a sentir uma sensação estranha. Não parecia ser boa, ou ruim. Era uma espécie de aviso estranho, inexplicável.
    _ A profecia mudou – disse Angeline – eu não sei se fiz direito. Mas, se eu estiver certa, o curso pode mudar...
    As palavras de Angeline não pareciam ter muito sentido até aquele momento. Era como se eu tivesse me esquecido de alguma conversa que tivemos.
    _ Do que está falando, Angeline?
    _ A profecia. Ela não é a mesma. Ela mudou.
    _ Impossível – falou Charlie – Angeline, foram doze gerações de Oráculos confirmando essa profecia.
    _ Mas eu vi. Ela mudou.
    _ Como você poderia... – Abi levou a mão à boca – Angeline, você fez a transição antes do tempo?
    _ Sim, eu fiz. Não foi por mal, eu só estava com uma sensação estranha.
    _ Ok, do que vocês estão falando? – eu perguntei.
    Angeline veio até mim, segurando-me pelos ombros. Embora fosse cega, seus olhos transbordavam de um brilho diferente. Como era possível ela enxergar com aqueles olhos? Ela devia ter um outro meio de se orientar.
    _ Matthew. A função dos Oráculos é confirmar as profecias.
    _ Ok, e o que tem isso?
    _ A cada geração nasce um Oráculo. E, quando ele completa cinqüenta anos, seus olhos se abrem. Em outras palavras, todos os oráculos nascem cegos, e enxergam aos cinqüenta anos. Nesse momento, eles vêem a confirmação da profecia, ou se ela modificou.
    _ Ok... Mas, você é o Oráculo... E você ainda é cega. Como pode ter visto a mudança da profecia? – eu perguntei.
    _ Eu induzi a visão – ela disse – lembra-se daquela profecia que eu havia passado pra vocês por meio da minha irmã?
    Eu enfiei a mão no bolso. O papel que Louise havia me entregado ainda estava ali. Eu a peguei, lendo-a mais uma vez em voz alta.
   
“Assim como um triângulo, seus vértices são opostos, mas se ligam em um mesmo ponto central. Mas de três, dois são destrutivos, um deseja a ordem. O perigo nasceu de onde menos se esperava, e agora está entre nós e segue ordens dos perversos”
 
    _ Exato – continuou Angeline – eu passei a noite em claro pensando nisso. Me parecia muito estranho. Então eu fiz o que devia.
    _ O que?
    _ Ela roubou um coração petrificado de um líder homúnculo – disse Abi, cruzando os braços em tom reprovador – é a única forma de se obter poder para apressar a profecia. Mas isso tem um preço, Angeline. Você sabe.
    _ Eu sei... Nunca mais vou enxergar. Mas eu não ligo, me acostumei com essa vida, sou independente tanto quanto vocês. O mais importante era essa dúvida que me atormentava. E eu vi.
    _ O que você viu, Angeline?
    _ Os “vértices opostos”. Três lados diferentes, lutando um contra o outro, mas com o mesmo objetivo, “um mesmo ponto central” – tudo o que ela dizia fazia sentido, batia com as informações de Sammael – um deseja a ordem, ou seja, apenas um quer proteger a máscara. Os outros pretendem usá-la. Mas isso não é o pior.
    _ Se apresse, Angeline, estou curioso.
    _ Você precisa ver o que eu vi, Matthew – ela disse.
    _ Como?
    Ela não me respondeu. Simplesmente me segurou pelo rosto e beijou-me subitamente. Seus lábios quentes fizeram minha cabeça girar. As cores se misturaram como no nosso “primeiro beijo”.
    Havia uma criança. Ela estava em uma casa, pessoas normais. Humanos normais. Havia uma marca bem no pulso, uma marca em forma de lua nova. A mão segurava uma máscara dourada. As cores se misturaram, e outro cenário tomou forma. Havia um vulto, ele brilhava, um azul muito intenso. Havia uma marca no pulso, um formato de lua nova, mas a imagem estava embaçada. Então a imagem mudou. Duas pessoas lutavam, e uma delas tinha uma máscara. Então a imagem mudou de forma. Havia muita confusão, parecia uma guerra. Corpos caídos, pessoas feridas, mas a luta entre os dois protagonistas da profecia continuava. O mais estranho era que ambos pareciam ter marcas no pulso, marcas de uma lua. E um deles segurava uma máscara... A máscara de Agammêmnon!
    As cores voltaram e enxerguei a realidade. Eu estava suando frio, sentindo o nervosismo. Agora entendia perfeitamente.
    _ “O perigo nasceu de onde menos se esperava” – eu recitei a profecia, atônito – o perigo nasceu do escolhido pela Lua? É isso?
    _ Exato – Angeline acenou com a cabeça, eufórica – O escolhido da lua, o garoto da Lua Nova, ele se tornou o inimigo. Não sei como ou por que, mas ele precisa ser detido.
    _ Ah, não...
    Estava muito claro agora. Estávamos em uma fria.
    _ Estamos em uma fria – foi o que eu disse – Sammael acaba de levar a chave para Jericho Barclay. O garoto com a marca da Lua Nova.


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