A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 23
Perdendo o Controle




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Perdendo o Controle

    Como se já não bastasse a minha vida turbulenta, agora os Estranhos estavam me evitando, até mesmo meu irmão. Ele, Abi e Brian eram os únicos que conheciam o verdadeiro motivo de estarmos ali, e isso deixava Rich mais receoso em conversar comigo, era quase como se estivesse com medo. Os Estranhos pareciam chateados comigo, provavelmente imaginando que eu havia tomado partido do meu irmão, e um pouco assustados. 
    O fato era que, agora, apenas Abi e Brian estavam sentados ao meu lado. Não havia uma mesa, mas as cadeiras ainda estavam inteiras. Naquela noite as janelas foram abertas, permitindo a luz fina e discreta da nuvem banhar os dormitórios. Charlie apareceu no salão apenas para dizer que um “quarto-buraco” tinha sido disponibilizado para os rapazes, e Abi iria ficar com Charlie. Fora isso, ela não disse nada. O clima tinha acabado por completo.
    _ Não esquenta, você é diferente – disse Brian de modo que mais ninguém pudesse ouvir – você é um pouco mais forte que a maioria, e tem... Bem, aquela coisa com a aura.
    Eu não sabia ao certo se deveria dizer ser capaz de visualizar auras também, mas por hora era melhor ficar de boca fechada.
    _ Amanhã tudo isso vai passar, vamos dar uma volta pelo lugar, você ficou agarrado naquele Duelo muito tempo.
    _ É... – até aquele momento tudo estava perfeito.
    _ Estamos do seu lado, Matthew. Droga! Isso deveria bastar! – Abi levantou-se furiosa.
    Eu a encarei, confuso. Porque, cargas d’água ela estava com raiva? Eu estava com problemas, eu precisava de apoio, não de uma crítica. Mas ela estava certa. Eu não poderia ter mais do que eu já tinha. Brian se mostrou um bom amigo, mesmo não nos dando muito bem e, pela primeira vez depois de Camille, eu sentia algo por uma garota que não havia explicação racional. Apenas gostar, e isso bastava.
    _ Foi mal – eu disse para Abi. Ela parou no meio do caminho, ainda de costas – Vocês tem sido ótimos, e eu só me queixo. Você tem razão, Abi. E eu sinto muito. Vou tentar sorrir mais daqui pra frente.
    Ela se virou, os olhos marejados. Um sorriso discreto foi o suficiente para tranqüilizar o meu coração frenético. Ela virou-se novamente e subiu para a sua toca. Ela teria bons sonhos, eu esperava, mas eu não conseguiria dormir outra vez.
    _ Você não pode deixar ela se sentir assim, Matthew – falou Brian – ela gosta de você.
    _ Por que está se preocupando? Você gosta dela.
    _ Isso não faz diferença se ela só tem olhos pra você.
    _ Ela não gosta de mim. – eu retorqui.
    _ Deixa de ser idiota, Matthew. Ela é uma ótima pessoa... Olha eu sei que eu ás vezes eu sou um crápula, muito chato, mas gosto dela, e eu seria capaz de ser a pior pessoa se isso fosse fazê-la feliz. Estou me abrindo com você porque quero que saiba de uma coisa: ela escolheu você. Mas se a fizer chorar mais uma vez, quem irá pagar pela escolha ruim será você.
    Brian virou-se e sumiu no ar. Tinha ido até a sua toca, a toca onde eu, ele e Richard iríamos dividir espaço. Seria uma noite longa e desagradável. Meu irmão não me olhava nos olhos e Brian não estava feliz com a minha reação diante de Abi. O que mais eu poderia pedir?
    Senti a brisa do deserto entrar, trazendo uma nuvem de areia. Eu precisava de ar fresco.
    Deixei os tornados de areia que se formavam no solo árido me guiarem. Meus sapatos enterravam na areia, mas eu me sentia bem. Era como sair de uma caixinha depois de muitos anos, como se, novamente, eu pudesse mergulhar no mundo real. Estava começando a sentir falta da vida como um simples humano, e isso me deixou ainda mais deslocado, enchendo a minha cabeça de perguntas.
    A noite nublada não era suficientemente capaz de cobrir o esplendor da lua, e o banho de luzes prateadas me deixava ainda mais vivo. Sentir o corpo pulsando era consolador depois de um dia como aquele. Eu deixei os problemas escaparem da minha mente, senti o bocal gelar a minha garganta, sentindo-me ainda mais vivo, lembrando-me daquela manhã. Dominique devia estar mal. Mas Sammael. Como ele era nobre! Não apenas um título, mas de princípios! Aquela figura era capaz de suprir todas as falhas que os Vance deixaram na história. Imaginar que meu avô era ainda mais forte me deixava tranquilo. Ele foi um grande homem, ou melhor um grande homúnculo.
    O ventou aumentou e eu quase não conseguia enxergar por causa dos grãos de areia arremessados no ar. Aos poucos meus olhos se acostumaram com a visão turva, e comecei a ver além da poeira. “Seu corpo e mente se adaptam a qualquer situação. Você está protegido dentro de você mesmo. Não há lugar mais seguro do que esse”. Essas foram as palavras de Angeline White, o Oráculo que entrou na minha mente com um beijo. Eu estava entrando em outro devaneio.
    Um dia eu estava em Seattle com Tyler e Camille, no outro eu estava sendo carregado por uma baleia gigante para um mundo completamente novo. Eu me convenci que, de fato, não havia motivos para estar feliz.
    Olhei para onde antes estava a montanha, agora ocupada por torres construídas com rochas escuras como carvão. Dois vultos saíram de uma das torres ao leste. Eu apurei minha visão, mas eles foram rápidos demais, desaparecendo no deserto. Provavelmente era apenas algum grupo de patrulha, estavam fazendo o trabalho de homúnculo, fosse o que fosse.
     Inesperadamente um silvo agudo e estridente rasgou o silêncio. Eu voltei minha atenção para o lado oposto, onde só era possível enxergar dunas e pequenas montanhas. Ali, na areia, algo começou a se mexer. Eu hesitei, pensei em correr, mas decidi ficar imóvel, quase como se não estivesse ali. Não deu muito certo, a areia começou a se movimentar com velocidade, uma rajada de areia subiu e uma coisa emergiu da areia.
    Eu conhecia aquela figura. Uma Algueora, porém muito menor do que a última que eu havia visto, e a pele escamosa era branca, reluzente como a lua. A criatura sobrevoou alguns metros, e como uma ave de rapina, fez várias aspirais no ar, mudando a rota do vento. Ela estremeceu, mergulhou e deslizou sobre a areia. Então ela parou.
    Outro grito. Eu percebi que não era um grito humano, mas o ruído que a Algueora fazia. Era como um canto desafinado e, cada nota musical mal tocada, a areia pululava no chão e o vento mudava de direção. Então ela ficou imóvel, ronronando como um cão. Eu percebi pequenos olhos que se fechavam gradativamente, olhos alaranjados, vivos, mas pareciam cansados. A Algueora repousou seu corpo na areia e, num último canto, fechou os olhos, como se adormecesse.
    A pele esbranquiçada foi enrugando instantaneamente, as barbatanas começaram a se desmancharem, se misturando à areia. O animal estava sumindo, desaparecendo bem na minha frente. Seu corpo se tornou uma enorme montanha de areia branca, o vento passou e começou a carregar o corpo arenoso, que se desmanchava com o simples toque das correntes de ar. Logo, a única coisa visível era um monte de areia.
    _ Você acabou de presenciar – uma voz me assustou. Eu me virei e vi a quem pertencia a voz.
    _ Charlie?
    _ Oi, Matthew – ela sorriu – você encontrou.
    _ Encontrei... O que, exatamente, eu encontrei?
    _ O cemitério das Algueoras. Você acabou de presenciar a despedida de uma.
    _ Então é assim que elas morrem.
    _ O corpo delas estão espalhados por todo o lugar. Quando elas morrem, elas se misturam ao ambiente, assim nunca terão o seu sepultamento profanado. É a criatura mais nobre de todo o Submundo.
    _ Uau!
    _ Nas geleiras, as algueoras se transformam em icebergs antes de morrerem, ou se liquefazem, misturando-se à água, se esse for o lugar do sepultamento.
    _ Então nem sempre elas se desintegram em areia.
    _ Não. Esse foi o lugar que as Algueoras escolheram.
    _ É incrível. – eu disse, admirado. De fato, era uma morte digna, “o sepultamento não poderia ser profanado”.
    _ Eu gosto de vir aqui quando as janelas estão abertas. Fico assistindo a Despedida das Algueoras. É fascinante e tranqüilizador.
    _ Mas... Elas não parecem confortáveis. Elas gritam.
    Charlie deu uma risada, sentando-se em um amontoado de areia que se formou com o vento.
    _ Isso não é um grito de dor. É o canto da despedida. Os familiares, vamos dizer assim, podem ouvir a despedida mesmo estando em lugares distantes. Alguns homúnculos acabaram criando intimidade de verdadeira amizade com algumas Algueoras. Quando elas morreram, esses homúnculos são capazes de ouvi-las a quilômetros de distância. Como eu disse, é a criatura mais nobre.
    Eu a fitei, contente. Charlie, definitivamente, não era mais aquela garota tímida e submissa às três famílias. Era uma boa amiga, que conhecia o mundo onde eu pertencia.
    _ Matthew... Eu sinto muito o que aconteceu lá no salão. Ninguém está bravo com você. Estão apenas receosos. Você é um Vance, eles acham que você pode... Criar problemas.
    _ Eu não sou assim – eu me defendi – eu nem tinha idéia que podia segurar Rich e Ethan daquela forma.
    _ Mas você o fez. Precisa mostrar a eles que você é confiável.
    _ Eu estou tentando.
    _ Não se preocupe – ela exibiu um belo sorriso – eu confio em você.
    Ficamos em silêncio por alguns minutos, deixando o vento da noite bagunças nossos cabelos criando uma atmosfera descontraída. Então Charlie parou de rir, me olhando com muita expressão em seus olhos.
    _ Você é uma boa pessoa, Matthew – ela disse.
    _ Valeu, você tamb...
    Ela me calou. Seus lábios estavam fortemente ligados aos meus, um beijo doce e tão intenso, que eu não senti vontade de sair dali. Senti as mãos dela me segurarem pelo pescoço, como se tentasse me segurar mais perto. Eu retribui o beijo, nossa boca se envolveu e nossas línguas se encontraram em uma relação íntima e inusitada, um beijo quente e inesquecível.
    Acho que ficamos assim por quase cinco minutos, quando me lembrei. Abi estava dormindo naquele momento, sem imaginar o que eu estava fazendo. Afinal, O QUE EU ESTAVA FAZENDO? Charlie era uma garota incrível, mas Abigail Williams se tornara o meu mundo desde o dia em que o meu velho mundo desabou.
    Eu segurei Charlie pelos ombros e afastei, quebrando o clima tão intimo. Era um beijo cativante, mas não havia amor algum. Apenas consideração, uma forte relação que poderia ser muita coisa, menos amor.
    _ Eu sinto muito, Charlie – eu disse, constrangido – eu não posso...
    _ Céus, me desculpe, Matthew – ela levou a mão a boca – eu sinto muito mesmo... Eu não queria.
    _ Tudo bem – eu me sentia muito mal pelo que fizera. Abi e eu não tínhamos nada concreto, mas apenas a sombra desse sentimento era capaz de afastar qualquer outra possibilidade de relacionamento – eu só não quero confundir as coisas.
    _ Tudo bem, eu vou consertar erra besteira.
    _ Como é...
    Charlie estendeu suas mãos e me segurou pelas têmporas e, me olhando diretamente nos olhos, começou a sussurrar palavras rápidas e indistinguíveis. Quando ela parou, eu a encarei, confuso.
    _ O que você fez?
    _ O que... Eu fiz? – ela me olhou surpresa.
    _ Achei que ia me beijar de novo.
    Ela abriu a boca, perplexa, como se eu tivesse dito a pior coisa que poderia ter dito a uma garota.
    _ Você... Não se esqueceu...– ela gaguejou.
    _ Me esquecer? O que eu deveria?
    Charlie ficou rubra, em uma expressão desconcertada e, levantando-se, me deu as costas e começou a correr.
    _ Hei, Charlie! O que foi?
    _ Eu não sei! – ela gritou com a voz embargada – eu não sei!
    Ela desapareceu de vista, me deixando sozinho no meio do nada, onde a Algueora fora sepultada.

    Aquele evento foi o suficiente para me deixar ainda pior. Confuso, vi Charlie fugindo de mim e desaparecendo na poeira, fiquei horas sozinho, criando coragem para entrar no salão. Por fim, decidi não ficar por lá. Desci as escadas, tomando o cuidado para não acordar ninguém, até chegar ao pátio. Vez ou outra algumas pessoas passavam, sonolentas e despreocupadas, me fitavam com certa curiosidade mas não se detinham a perguntar qualquer coisa. O pátio era o lugar mais iluminado e a luz prateada me banhava por completo, me trazendo a velha sensação de bem-estar, tão cobiçada num momento como aquele. A grande sereia fora transportada de volta ao seu lugar, e sua expressão triste se enchia de luz com o reflexo da lua.
    Eu estava ali sozinho, não havia muito o que fazer. Nada melhor como um passeio noturno para descansar a mente. Eu já sabia que a torre onde estávamos apenas Mestiços Plebeus moravam, coisas mais interessantes estavam nas outras torres. Decidido, fui até a torre norte, onde uma pequena escada estava visível. Passei por ela, e, assim que passei por um corredor escuro, entrei em um salão. Muitas mesas, cadeiras, candelabros e lustres iluminados, um piano velho e tapeçarias decorando as paredes. Parecia um palácio particular, mas não havia ninguém. Atravessei o salão, onde havia uma porta de madeira. Decidi caminhar apenas pelo primeiro andar.
    Atravessei algumas portas, saí em salões e em becos, e fiquei surpreso como o lugar era gigantesco. Eu estava perdido na altura do campeonato, mas eu não estava interessado em voltar, de qualquer jeito. Uma porta me chamou a atenção. Era de ferro com parafusos enormes e uma cabeça de dragão feita em ouro. Nas extremidades dois enormes cães de pedra permaneciam imóveis. Deviam ter quase três metros, com patas graúdas e uma expressão lupina assustadora, os olhos eram representados por rubis vermelhos como o sangue. O pescoço de cada um era adornado por uma coleira presa a uma corrente. Cada uma das extremidades da corrente estava presa às narinas do dragão.
    _ bizarro... – murmurei.
    Aproximei-me vagarosamente, sentindo uma sensação estranha, como se exigisse de mim cautela. Eu logo entendi por que.
    As esculturas de pedra se moveram, enormes rachaduras se formaram nas juntas das patas e da bocarra, que abriu exibindo enormes dentes de metal. As feras criaram vida, e rosnaram em minha direção, como dois cães indomáveis. Eles forçaram as correntes para me alcançar, mas não conseguiram romper as correntes. Estava muito claro que não queriam ninguém do outro lado daquela porta.
    Os lobos de pedra continuaram me fitando com fúria, o hálito quente deles esquentava o ambiente de uma forma sobrenatural. Decidi sair daquele corredor ou os animais de pedra poderiam acordar alguém e me colocar em uma situação complicada. Saí de fininho, ignorando o rosnado maligno dos lobos grotescos de pedra. Precipitei-me por outra porta, onde havia uma luz amarela, provavelmente de uma vela, iluminando.
    Fui rápido o suficiente para frear antes de passar pela porta. Eu consegui ouvir duas vozes, num sussurro tão baixo que, por um momento, pareciam apenas respirações pesadas. Apurei meus ouvidos. Estava começando a aprender e, aos poucos, as vozes se tornaram nítidas entrando em minha mente com perfeição.
    _ Não podemos continuar com isso – uma voz feminina familiar falou com urgência. Eu não me lembrava quem era.
    _ Você precisa encontrar. Eles vasculharam a maldita floresta, mas só encontraram um pedaço. Estava dentro da quimera. – ela uma voz masculina grave e grosseira.
    _ Vocês recuperaram a chave, então. – a voz feminina pareceu esperançosa.
    _ Não seja idiota. Se estivéssemos com ela, nós já teríamos a máscara em mãos.
    Eu prendi a respiração. A mascara de Agammêmnon, era disso que eles estavam falando. A voz era de Amanda Parshes, eu conseguia me lembrar. Era uma voz perversa demais para ser esquecida tão facilmente.
    _ Onde está a chave então, Claus? – ela perguntou, sua voz tremia.
    _ Não sabemos. A parte fundamental do instrumento desapareceu.
    Senti o bocal do trompete no pescoço e apertei-o firme entre os dedos, por debaixo da camisa. Então aquilo era o que eles queriam.
    _ Como vamos encontrar algo tão pequeno? Seria impossível.
    _ Você sabe que os Alucates estão atrás dela. Precisamos encontrá-la primeiro.
    _ Mas, Claus...
    _ Não seja estúpida, Parshes. Não podemos deixar algo assim cair nas mãos deles. Isso poderia arruinar os interesses de Sammael Vance.
    _ Ele deve estar muito bravo comigo – ela murmurou – foi difícil roubar aquela quimera idiota. Agora, depois de perder a chave, ele vai querer acabar comigo.
    _ Na verdade... É sobre isso que eu gostaria de falar.
    Um cheiro forte invadiu minhas narinas. Havia gosto de cobre na minha boca. Era morte, o cheiro, o sabor, a sensação. Como da última vez, na minha luta com os Alucates, havia a sensação desagradável, lacerante, a presença da morte.
    Olhei pela fresta da porta. Era um outro corredor com chão de ladrilhos, um beco entre duas torres menores. Lamparinas e candelabros suspensos na parede iluminavam fracamente, mas eu conseguia enxergar com nitidez. Lá estava Parshes encostada na parede, trêmula e amedrontada. A frente dela estava um homem negro alto, com o cabelo rastafari até os ombros, um sobre-tudo vermelho sem mangas, deixando expostos dois enormes braços musculosos com uma tatuagem de um crucifixo. Seus olhos eram vermelhos, cor de sangue, de morte.
    _ Claus... não, você não pode...
    _ Acalme-se Parshes. É melhor que eu o faça. Sammael não teria piedade, e você sabe muito bem disso. 
    Claus ergueu a enorme mão cheia de anéis contra a mulher, mas ela conseguiu se esquivar. Ela correu em direção à porta onde eu estava. Uma onda de pânico me engolfou, se me descobrissem ali, eu estaria morto. Ela correu com uma velocidade sobre-humana, o que me restou foi retroceder, distanciar da porta o máximo possível. Então Parshes precipitou pela porta. Eu estava a uns dois metros de distância dela, sua expressão estava petrificada, assustada.
    Por um segundo nossos olhares se cruzaram. Ela me viu ali, encurvado na sombra do corredor tentando me esconder do homem misterioso. Ela parecia em choque, correndo amedrontada. Ela ia conseguir fugir... Não, não ia.
    Uma enorme lâmina negra surgiu das sombras onde estava Claus, investindo contra Parshes. Ela parou de correr.
    A lâmina atravessou a sua nuca e transpassou-a, saindo pela boca. O sangue espirrou pelas paredes e os olhos dela saíram de foco, deixaram me encarar para cair nas mãos da morte. Um movimento rápido com a lâmina para cima, e a sua cabeça foi dividida ao meio, rasgando seus lábios, nariz e atravessando o seu crânio como se fosse isopor. Parshes caiu, imóvel, sem grito, sem nenhum sofrimento demorado. Uma poça se sangue se formou no chão, onde o cadáver da ilusionista jazia sem vida, um recipiente estragado, sem conteúdo. Apenas sangue.
    Claus veio em minha direção, mesmo não conseguindo me ver na escuridão.
    _ Preciso limpar a bagunça – a voz dele era sarcástica – pobre Parshes.
    Ele estava se aproximando. Eu não podia ficar ali nem mais um segundo. Eu precisava correr a todo o custo. Minha mente trabalhou rápido demais, mais rápido do que normalmente fazia. Eu tinha planejado exatamente o que fazer. Posicionei as pernas e, antes que ele pudesse notar algum movimento nas sombras, impulsionei meu corpo para frente, na direção da enorme porta de ferro onde havia os lobos de pedra.
    _ O que... – Claus tinha me visto.
    Meu movimento foi rápido. Eu não sei por que, mas senti que precisava me esquivar para a direita. Assim que me esquivei, uma enorme lâmina passou por mim, arranhando o meu pescoço. A lâmina negra bateu na parede e fez um estrago enorme.
    _ MISERÁVEL! – eu achava que a aparência dele era horrível. Eu estava enganado, a voz dele era ainda pior quando estava me amaldiçoando – Volte!
    Continuei correndo com toda a minha vontade, as paredes eram apenas um borrão em meu campo de visão. Mas Claus ainda estava atrás de mim. Me esquivei outra vez e a lâmina passou perto, mas não me acertou. Eu estava chegando, só precisava entrar na última porta do beco mais a frente e vira, e lá estariam os lobos.
    Mas eu não poderia me aproximar deles, ou eu seria reduzido a ração de cachorro. Eu tinha um plano e nem sabia se daria certo. Finalmente eu cheguei no beco, onde eu podia ver perfeitamente a silhueta de dois enormes cães. Claus estava logo atrás, correndo como um louco em minha direção. Ainda em alva velocidade, estendi minha mão na direção da cabeça de dragão e, com o punho aberto, me concentrei como nunca.
    Eu sabia que tinha uma habilidade Alucate e, se eu pudesse usá-la, que fosse naquele momento. Assim que me aproximei dos cães, eles se viraram em nossa direção, mas Claus parecia extremamente concentrado em mim. Então, numa tentativa desesperada, concentrei-me no movimento das mãos. Uma luz azul-prateada brotou na palma da minha mão e começou a crescer cada vez mais. Eu estava muito perto dos cães agora. Impulsionei a minha mão e a bola de luz saiu como uma rajada na direção da cabeça de dragão. Precisava dar certo, tinha que dar.
    Com um salto rápido e habilidoso, bati os pés na parede e impulsionei o corpo entre as duas cabeças de pedra dos cães ferozes. Passei por eles, sem esperar pra ver o que a minha aura de energia ira fazer. Apenas quando caí no chão tive certeza. Um barulho de pedra se espatifando ecoou no corredor. A cabeça de dragão estava destruída. Olhei para traz e a única coisa que consegui ver foi duas estátuas de pedra gigantes em forma de cachorro avançarem contra Claus, que freou subitamente. As correntes fizeram estrondo quando se chocaram no chão, os cães agarraram Claus pelo pescoço e o carregaram para longe. A única coisa que pude ouvir foram os rosnados ferozes e o grito de Claus ecoando ao longe.
    Eu não podia ficar parado. Me levantei, atordoado, apressando o passo para me afastar daquele lugar. Percebi que estava mancando e, na minha perna, um filete de sangue escorria até o chão. Um dos cães de pedra conseguiram me ferir durante minha fuga, mas era isso ou morrer como Parshes.
    Os gritos de Claus ainda eram ouvidos, eu precisava voltar ao dormitório antes que alguém me visse ali. Eu não sabia como explicar as coisas que haviam acontecido. Minha cabeça, subitamente, começou a latejar. A dor me jogou no chão, eu caí de ombros, me contorcendo, segurando violentamente a cabeça como se ela fosse explodir a qualquer minuto. Meu corpo começou a queimar, meus ossos estavam em brasa, meu nariz parecia tragar ondas de fumaça quente, como de uma fogueira. Algo em mim estava errado.
    Eu me levantei, tentando me colocar de pé. Quando me sustentei sobre as mãos, percebi que meu corpo estava envolvido por uma luz azul, quase como uma fumaça incandescente.
    _ Argh! – minha cabeça latejava e meu corpo estava dolorido.
    O próximo grito estridente não foi de Claus, mas o meu. Não consegui resistir à dor. A última coisa que me lembro antes de cair desacordado foi a onda de energia que saiu do meu corpo, arrebentando os ladrilhos e derrubando paredes. 
 
   


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