A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 20
Vivendo Com Estranhos




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Vivendo Com Estranhos

 

            A montanha havia desabado e, no lugar dela, uma massa cinzenta se erguia como uma cadeia de torres deformadas, feitas de rocha negra, ou algo assim. Por um breve momento eu havia me esquecido dos problemas, fascinado com a mais bela paisagem, era como morar dentro da montanha. Na verdade, era exatamente isso.

            Era admirável saber como o meu mundo, o mundo a que eu fui destinado, escondia os segredos de forma tão extraordinária. O nervosismo, o medo e a apreensão haviam desaparecido. Ao invés disso, aquela sensação familiar que eu sentia quando chegava em casa depois de uma longa viagem se instalou, acalmando meus ânimos.

            _ Incrível, não? – Brian sorriu.

            _ Muito. Isso é mesmo... O submundo?

            _ É apenas uma fração dele – Abi interrompeu, empolgada – você precisa ver como é por dentro. Existe todo o tipo de coisa para se ver. Nada convencional, eu diria.

            _ Não vejo a hora.

            _ Infelizmente – a voz da minha mãe era fria o suficiente para cortar o transe de tranqüilidade – não estamos aqui a passeio. Matthew, não pense que vai ser mais fácil. As coisas não vão ser melhores, não hoje.

            _ Obrigado, mãe. – eu falei com rispidez – é a primeira vez que você falar comigo olhando nos olhos o dia todo, e foi para me lembrar de como eu fracassei outra vez.

            _ Ora, Matthew. Não seja dramático – ela cruzou os braços – você não é um fracasso.

            _ Quer saber? Eu nem conheço mais você! – eu passei por ela sem enfrentar o seu olhar estranho, irreconhecível – Você não é a mesma pessoa! E mais: eu odeio essa sua versão!

            Tentei me concentrar na enorme construção onde, antes estivera uma montanha. Não foi tão difícil ignorar minha mãe, principalmente com Abi ao meu lado. Ela passou seu braço ao redor do meu e, com um sorriso radiante, me guiou.

            _ Vamos. A entrada é logo ali.

            Caminhamos um pouco mais até chegarmos a uma rocha perfeitamente quadrada, tingida de um tom grafite com fios dourados servindo de adorno, como uma porta bastante sólida. Meu tio se adiantou novamente, se aproximando da porta e, assim que o fez, repetiu as palavras que dissera antes. A rocha estremeceu. Rachaduras na parte inferior se tornaram fissuras e uma extensão de rochas saiu das duas extremidades, duas pernas de pedra. A pedra saiu do caminho com um movimento rápido.

            _ Conselheiros – Abi explicou – alguns podem manipular elementos da natureza. A lua é fortemente conectada com a natureza, por isso é possível habitarmos dentro das montanhas.

            _ E aquelas palavras? O que significam?

            _ “Actesus Examen Lucate Moe Tzai”. Significa “Examine a alma, grande lua branca”. É uma espécie de código.

            _ Que língua é essa?

            _ Uma vertente do latim. Se chama Homineius.

            _ Legal, eu acho.

            _ Vamos, você ainda não viu nada.

            Todos passamos pela grande porta e, assim que entramos numa câmara escura, a pedra estremeceu logo atrás de nós e, velozmente, tomou sua posição original. O chão começou a estremecer, a poeira no chão subiu até as narinas. Sons de pedras se chocando e paredes trincando ecoou na câmara escura.

            _ A montanha está reerguendo – Abi explicou.

            Assim que os barulhos cessaram, um enorme lustre se acendeu no ar. Eram cerca de duzentas velas vermelhas com chamas douradas que emanavam um perfume tranqüilizador. A sala era quadrada com uma única porta logo a frente, preta, de madeira.

            _ A partir daqui – Brian falou ansioso – você vai saber a que lugar pertence.

            A porta se abriu e uma luz prateada tomou a câmara, apagando todas as velas. Quando a luz cessou, pude ver com nitidez.

            Havia um pátio gigantesco, o chão ladrilhado com tijolos cor de piche, bancos de praça adornados com eras que cresciam e se emaranhavam no encosto artisticamente e, bem no centro do pátio, uma enorme fonte. Uma mulher de pedra, triste, com as mãos sobre o coração. Era idêntica a sereia que tínhamos na entrada da mansão Vance. Haviam várias janelas, torres disformes, da mesma forma como se via do lado de fora. No topo do que deveria ser a montanha havia um feixe de luz prateado que descia e engolfava todo o cenário com sua presença alva e pura. Era a luz da lua, a fonte misteriosa de toda a beleza no Submundo.

            _ Uau! – foi a única forma que conseguiu expressar minha admiração.

            _ É, concordo – meu irmão sorriu – é o paraíso.

            _ Não vão muito longe – minha mãe falou – fiquem por perto. Eu e seu tio vamos procurar Aloysius. Ele deve estar em algum lugar.

            Eles sumiram num piscar de olhos, como fantasmas. Naquele lugar eu sentia uma força tão intensa, se tornando maciça dentro de mim. Era como se meu corpo se alimentasse do próprio ar banhado de luz.

            _ É restaurador – comentei.

            _ Aqui nossas habilidades são maiores – explicou Abi – É por causa dos picos das montanhas. Simboliza os braços da terra tentando abraçá-la, é o que dizem.

            _ Parece um romance barato – comentei.

            _ Que seja. Vamos ver o lugar – interveio Brian.

            _ Angeline, você...

            Olhei para traz. Por um segundo meus olhos perderam era de vista, agora ela não estava mais ali.

            _ Ora, onde ela está?

            _ Em seus aposentos, provavelmente – falou Richard – ela não pode ficar aqui muito tempo. Ela é clarividente, os poderes ampliados dela podem incomodar. As pessoas pensam muito aqui, ela pode ouvi-los como se gritassem.

            _ Deve ser difícil lidar com isso quando se é cego. – eu refleti, lembrando dos olhos cinza mas tão cheios de vida.

            _ Aí você se engana. Ela não pode ver o presente, mas vê o futuro, ou o provável futuro. – Brian cruzou os braços, ainda se permitindo “devorar” um pouco mais dos feixes de luz – ela tem um senso de direção melhor o de uma águia.

            _ Vamos. – Richard apontou para um lance de escadas no fim do pátio – vamos ficar nos aposentos naquela ala.

            _ O que? Com os estranhos? – perguntou Brian, cético – Fora de cogitação.

            _ Estranhos? – eu ainda tinha muito o que aprender – Quem são esses?

            _ A Plebe – respondeu Richard – aqueles meio Homúnculos, meio humanos.

            _ Qual é? – Brian cruzou os braços – temos que ficar LÁ?

            _ Para o bem de Matthew, sim. - interveio Abi em seu tom quase diplomático – a plebe com seus poderes recém-desenvolvidos vão para AQUELE lugar. Os superiores nunca vão até lá,  estaremos seguros.

            _ São boas pessoas – comentou Richard – mesmo sendo inferiores.

            _ Não importa aonde vamos, algumas coisas não mudam. O bom e velho preconceito – falei com sarcasmo.

            _ As escadas vão nos levar até a torre mais alta. É onde vivem os Estranhos – comentou Brian.

            _ Torres altas? Estranho, achei que eles vivessem em um porão, numa fossa, sei lá.

            _ Não aqui – Abi adiantou o passo e todos fomos atrás dela – As altas torres são de fácil acesso. Difícil é acessar as câmaras inferiores. É onde está o Conselho e todos os renomados Nobres da FourFace.

            _ Ta bom, isso muda todo o meu conceito de “pirâmide social”.

            _ Isso não é um feudo, Matthew – retorquiu Brian – não mais.

            Além de nós, muitas outras pessoas caminhavam no pátio, alguns pareciam misteriosos, sombrios, outros bastante calmos e pacíficos. Os olhares estranhos nos fitavam com, no mínimo, curiosidade. Todos ali trajavam túnicas de pano negro, ou sobre-tudo de couro preto, botas, cintos de ouro, adornos como anéis e colares extravagantes, correntes e coleiras amarradas na cintura e no pescoço. Nós, por outro lado, estávamos vestidos como verdadeiros humanos.

            _ Precisamos ser rápidos – Avisou Richard – estamos chamando muita atenção.

            Corremos para a escada, escura e fria. Assim que pisamos no primeiro degrau, candelabros e velas suspensas na parede se acenderam como mágica, iluminando a gigantesca escada em espiral que envolvia um enorme pilar de rochas escuras.

            _ Não podemos correr? – perguntei.

            _ Nas escadas, pátios e pontos de freqüência coletiva o uso dos poderes são notificados À FourFace, motivos de segurança. Não queremos usar nossa habilidade aqui e sermos descobertos, queremos?

            _ É, acho que não.

            Foi uma longa caminhada. Visualizei a torre gigantesca na minha mente, pelo menos um cem metros, talvez mais. Seria uma caminhada longa e, apesar do desgaste, era o tempo que me incomodava. Cada minuto fora de um lugar seguro era motivo para aumentar a ansiedade.

            A medida em que subíamos as escadas, meus pés pareciam ganhar cada vez mais peso. A atmosfera ali era pesada, fria e bastante sombria. Talvez fosse mais um estereótipo de lugares escondidos do resto do mundo, ou talvez fosse uma forma de proteção. Richard me observou, como se pudesse analisar os meus pensamentos.

            _ Aqui a lua não tem efeito sobre nós – ele explicou – nossas habilidades ficam reduzidas a medida em que subimos.

            _ Isso ajuda a explicar o fato de Plebes viverem acima dessas escadas – eu refleti – esse lugar é meio injusto, ao meu ver.

            _ Mas você gosta, certo? – perguntou Brian, sorridente.

            _ Claro, por que não?

            _ Você é um Vance. Esse lugar pertence à sua natureza.

            _ Mas eu sou um Gran...

            _ Shhh! – fez Abi com urgência – Não seja idiota, Matthew. Esse lugar está cheio de gente que adoraria colocar as mãos em um Grant.

            _ Ah, foi mal.

            Continuamos a longa caminhada até, finamente, atingirmos o patamar superior. Levamos mais ou menos dez minutos para conseguir. A torre mais alta era um enorme corredor com diversas portas talhadas em madeira, aparentemente podre, as janelas estavam cobertas uma muralha maciça de rochas e terra. Do lado de fora, a montanha para o resto do mundo. 

            _ Por que tantas janelas se a montanha cobre toda a visão?

            _ Durante a noite eles abrem – explicou Abi – mas hoje é dia de patrulha. Muitos Homúnculos da Nobreza, os mais fortes, saem para patrulhar, então a Célula precisa estar bem protegida.

            _ Por que não fomos para a Célula em Charlotte?

            _ As Células mais antigas estão no deserto. Aqui a sua mãe tem mais influência.

            A cada passo as perguntas surgiam na minha mente, era como nascer outra vez e aprender a andar, comer, chorar na hora certa.

            A partir dali Richard nos guiou até o fim do corredor. Sem sombra de dúvida, era a porta mais estreita e mais podre dentre todas as outras. Não que eu me importasse, mas senti falta da minha cama acolchoada e quente na mansão Vance. Claro, aquele não era eu, nunca foi.

            Richard bateu na porta três vezes em ritmos compassados, como uma espécie de sinal. Uma voz rouca veio por detrás da porta.

            _ Quem é?

            _ Vocês foram avisados que viríamos – respondeu Richard.

            _ Quem é? – insistiu a voz. Só então eu notei que era uma voz feminina.

            _ Richard Vance. Agora abre essa porta.

            Um barulho de trinco estremeceu a porta e ela se abriu num rangido incômodo.

            A jovem que acabara de nos receber tinha uma expressão cautelosa. Olhos castanhos, cabelos negros e a pele bem rosada, devia ter a minha idade, uma linda garota. Comecei a me perguntar se Homúnculos sempre tinham que ser tão perfeitos. Todas as garotas Homúnculo que eu conheci até aquele momento eram atraentes e encantadoras. Ela sorriu, ainda cautelosa, e deu espaço para entrarmos.

            _ Sou Charlie – ela disse.

            _ Ah... Charlie... – repetiu Abi, entrando primeiro.

            _ Na verdade meu nome é Charlotte Jones, mas todos me chamam de Charlie. – ela sorriu timidamente.

            _ Sou Abigail. Abigail Blair.

            _ Blair? Por que as famílias principais precisam ficar aqui? – uma voz masculina veio do fundo do enorme salão.

            Era uma espécie de câmara que me lembrava um castelo medieval. Enormes janelas encobertas pela camada da montanha, um lustre de madeira velho suspenso por correntes iluminava o gigantesco salão. Haviam camas dispostas num canto da parede, uma mesa de madeira com canecas de metal, talheres e pratos empilhados. Não era um lugar horrível. Era até bastante limpo e organizado, mas bastante modesto. Era um estereótipo.

            Voltei minha atenção para um vulto no meio das sombras, de onde viera a voz.

            _ Quem é você? – Richard perguntou.

            _ Não. Quem são vocês? Esse é o nosso lugar, nossa casa. Não precisamos nos rebaixar, Charlie. Não seja uma garota estúpida. Eles estão aqui de favor, não nós.

            _ Um Estranho devia medir as palavras – falou Brian entre dentes.

            _ Hei, tudo bem – eu interrompi tomando frente do grupo e me virei para a garota – Charlie, é o seu nome, certo? Obrigado, estamos agradecidos. Não vamos atrapalhar.

            _ Quem é você? – murmurou a voz na sombra. Eu ainda não conseguia ver o seu rosto.

            _ Sou Matthew. Matthew Vance.

            _ E por que estão aqui? – ele insistiu.

            _ É temporário. Não vamos atrapalhar, certo pessoal?

            Abi acenou a cabeça, sorrindo solidariamente. Meu irmão e Brian, no entanto pareciam irredutíveis.

            _ As suas roupas estão nos banheiros – Charlie murmurou. Eu precisei me aproximar para ouvir a sua voz com clareza – acima das escadas de madeira.

            _ Obrigado.

            Então eu percebi que o salão não era o único cômodo. Haviam escadas baixas, outras altas, que davam em pequenos buracos, alguns iluminados por velas, onde havia alguma movimentação de pessoas.

            _ Aqueles são os quartos – Charlie apontou para os buracos – mas, se não se importam, vocês vão ficar nessas camas, aqui no salão. As escadas à direita levam aos banheiros.

            _ Tudo bem, obrigado.

            Fui ao banheiro indicado por Charlie. Subi as escadas que estremeciam a cada passo, passei pela pequena porta de madeira oca e entrei. Não era tão ruim. Uma banheira branca, uma pia e uma ducha. Não havia janelas, mas no teto haviam velas cujas luzes eram refletidas em pedaços de cacos de vidro suspensos no teto por arames. Uma arquitetura exótica, mas bastante aconchegante.

            Havia um armário com portas de vidro, onde muitas roupas eram guardadas. Vasculhei-as em busca de alguma coisa. Achei uma calça de couro, mas era muito apertada. Procurei mais um pouco, encontrei a mais larga e vesti. Não era a forma certa de usar, mas era melhor do que deixar o couro pregando nas pernas. Vesti uma camiseta preta com costuras nas mangas e, por cima, uma jaqueta de couro. Tinha cheiro de mofo, mas era bonita.

            Voltei para o salão, Abi subiu e se trocou. Ela vestiu uma calça de couro marrou e uma jaqueta vermelha por cima de uma camiseta branca. Richard vestiu como eu, mas dispensou a jaqueta. Brian foi o mais exigente. Uma calça de couro grafite com costuras vermelhas e rasgos simétricos nos joelhos, uma corrente presa ao pescoço, um anel prateado, uma camiseta branca e uma jaqueta preta com as mangas dobradas. Estávamos familiarizados com a vestimenta deles, precisávamos nos enturmar e passarmos despercebidos.

            _ Vocês ficaram ótimos – Charlie falou.

            _ Não bajule, Charlie – a voz no meio das sombras falou outra vez.

            _ Não seja irritante, Dominique – retorquiu Charlie, mas sua voz continuava doce e sutil – seja mais simpático.

            _ Que seja.

            O vulto escondido nas sombras se movimentou com uma velocidade incrível, se enfiando em um dos buracos chamados de “quartos”.

            _ Quem é aquele esquentadinho? – perguntou meu irmão.

            _ Dominique Chadwick – murmurou Charlie – é uma boa pessoa, mas não gosta muito de... Pessoas como vocês. Primeira linhagem.

            _ E por que não? – ele riu ironicamente.

            _ Bem, tenham uma boa noite. O café é servido às seis. – dizendo isso, Charlie se virou e caminhou até uma das escadas, entrou em um dos quartos-buracos e desapareceu de vista.

            _ Vai ser um dia excitante amanhã – Brian retorquiu com sarcasmo – não vejo a hora de acordar aqui. Bem aqui.

            _ Cala a boca e vai dormir, Brian – eu o empurrei e fui até uma das camas – eu estou quebrado.

           

            Eu não conseguia dormir. Fiquei observando os buracos feitos nas paredes, imaginando que jovens como eu estavam vivendo em lugares como aquele. Era como o mundo normal, com a divisão social, mas aquilo parecia ainda pior. Eles viviam escondidos do mundo conhecido pelos humanos, e eram ignorados pelo mundo a que pertenciam. Era como ser descartado duas vezes. Eu estava absorto em meus pensamentos de justiça quando a voz de Abi me despertou.

            _ Hei, Matthew. Está dormindo?

            _ Não consigo.

            _ Nem eu.

            O silencio reinou por um longo minuto.

            _ Isso tudo não é meio injusto? – eu sussurrei, garantindo que ninguém nos ouviria – quer dizer, o que importa quem os pais deles eram? Estão aqui, não estão?

            _ Eu queria que fosse fácil assim – Abi suspirou – Mas não é simples. Essa coisa de linhagem manda mais do que a capacidade de cada um. Acredite, existem Plebeus tão fortes quanto um Filho de qualquer uma das três famílias.

            _ Acho que eu estou com saudades de casa.

            _ Sério? Achei que você quisesse isso.

            _ Não é do jeito que eu pensava. Imagine quando souberem... Sobre mim. Pra onde serei mandado?

            _ Nada de ruim vai te acontecer, Matthew. Eu prometo. Seu irmão está aqui, Brian e eu também estamos. Vai dar tudo certo.

            _ Eu espero que esteja certa.

            _ Diz aí, como você achou que seria o lugar?

            _ Er... Sei lá. Tipo Hogwarts?

            _ Ah ah, você é mesmo um mané.

            _ Sabe? Eu perco noites de sono me perguntando “por que somos amigos mesmo?”.

            _ Você me ama, se esqueceu – ela abafou o riso.

            Ah, ela devia ler mentes. Se ela soubesse que não havia nenhuma piada no que acabara de dizer, talvez as coisas fossem diferentes.

            _ Abi... Você já parou pra pensar na profecia? – eu perguntei, pensativo.

            _ Ah, não muito. Por quê?

            _ E... E se ela for sobre mim...

            _ Para com isso, Matthew! Você não é um cara mau, não é o inimigo da profecia. Você é um mestiço que quer conhecer a sua história. Qualquer um iria querer isso.

            _ É que eu penso, as vezes...

            _ Você tem que parar com isso. Se você não confiar em si mesmo, como nós confiaremos?

            _ Ta ok, vou pensar nisso da próxima vez.

            _ Ótimo. Agora vá dormir, pacana.

            _ É bom ouvir uma palavra amiga de vez enquanto.

            _ Que seja.

            Eu me virei, ainda pensativo, com a mente vidrada na profecia. Adormeci pensando nisso.

 

            Amanheci com o cheiro de ovos cozidos invadindo minhas narinas. Havia uma luz morna e amarelada atravessando minhas pálpebras e, por um breve segundo, eu acreditei estar em casa, onde o sol atravessava a persiana e me acordava nos finais de semana. Eu estava enganado.

            Ainda estava na Célula no Deserto de Sonora, várias velas estavam sobrepostas nas mesas, em escrivaninhas, iluminando cacos de vidro suspensos no teto, além do velho lustre de madeira. Dava a falsa impressão de um sol particular, dentro do próprio salão. Talvez por isso eles não sentissem falta de uma janela aberta.

            _ Bom dia – a voz de Abi me acordou.

            _ Ahn... Bom dia – eu murmurei, esfregando os olhos com violência, tentando me acostumar com a iluminação excessiva.

            _ O cheiro está ótimo, hein? – comentou Abi.

            _ Está... Hei, onde está o Rich e o Brian?

            _ Eles saíram cedo. Não gostam muito daqui.

            _ Isso é ótimo – eu murmurei, irônico.

            Meus olhos seguiram a trilha do aroma de café da manhã, e posaram sobre a mesa de madeira no centro do salão, onde Charlie arrumava os pratos. Ela notou o meu olhar e, com um sorriso amigável, acenou.

            _ Bom dia – ela cumprimentou.

            _ Bom dia – eu retribui a gentileza, levantando-me da cama.

            Estendi o lençol encardido, cobri o travesseiro e fui até onde Charlie estava.

            _ Olha, gostaria que desculpassem meu irmão e meu amigo ontem a noite...

            _ Tudo bem – Charlie falou, enquanto sorria para Abi, que se sentou ao lado dela – estamos acostumados.

            _ Não deviam – respondeu Abi – vocês são tão bons quanto qualquer um.

            _ Nós sabemos disso – era a voz masculina que nos recebera pouco amistosamente na noite anterior.

            Não havia sombra alguma no salão, então não foi difícil ver a fisionomia do péssimo anfitrião. Era Dominique Chadwick. Com certeza era o Homúnculo mais exótico que eu havia encontrado. Ele não tinha nada de normal em sua aparência. A pele era muito pálida, os olhos eram amarelos intensos, os cabelos prateados, emaranhados em um penteado meio punk. Mas isso era o de menos. O mais chamativo eram as asas. Enormes, brancas, as asas reluziam a luz dourada das velas aberta como as asas de uma pomba branca. Dominique usava luvas que iam até os ombros, feitas de couro de búfalo, ou algo do tipo.

            Abi fitou o rapaz com bastante curiosa. Ao que parecia, ela também não o conhecia. Mas o olhar dela não me agradava muito. Ela estava encantada e isso não era um bom sinal.

            _ Ou vocês nos tratam como lixo ou têm pena de nós – resmungou Dominique, sentando-se na outra ponta da mesa, longe de nós – Não precisamos disso.

            _ Não somos como os outros – eu me defendi – acabei de chegar, não sei nada sobre Homúnculos. Não estou em posição de julgar ninguém.

            _ Vocês nunca estão, mas fazem assim mesmo.

            _ Ok. Vamos comer os ovos antes que esfriem – Charlie interrompeu.

            Nós nos servimos. Ao que parecia, os outros nos quartos-buracos não queriam se juntar a nós. Provavelmente também nos odiavam.

            _ Por que estão aqui? – Charlie perguntou – não que não queiramos... É que Nobres não se misturam com Plebes.

            _ Como eu disse, isso não importa – respondi – eu sou... Como vocês. Não sou puro. Não sou nobre.

            _ Sério? – ela ficou boquiaberta – Um Vance se relacionando com um humano? Puxa, as coisas mudam.

            _ É um pouco mais complicado – respondi me servindo de ovos e bacon frio – o cheiro está ótimo.

            _ Charlie é boa cozinheira – Dominique falou, mas ainda era pouco amigável – para uma Plebéia.

            _ Que coisa rude de se dizer – Abi fechou a cara.

            _ Nós não ganhamos nada sendo humildes. Como você pode ver, as decisões dos nossos pais nos afetam e nem sabemos por quê!

            _ Isso não é nossa culpa – retorqui – você, mais do que qualquer um, deveria saber que não é certo julgar alguém pela sua família.

            _ Você é um Vance.

            _ Mestiço – interrompi – não sou Nobre.

            _ Mas continua sendo um Vance. Acho que é o primeiro Vance mestiço por aqui. Uma pena para você.

            Desisti de discutir. Mas Abi parecia curiosa.

            _ Essas asas... Quais as suas habilidades?

            _ Isso nunca fez diferença para gente como você.

            _ As asas possuem a consistência de metal – interveio Charlie – não se preocupem, Dominique é arrogante na maior parte do tempo.

            _ Hum... Legal – Abi murmurou – é mais resistente que o corpo de um Homúnculo.

            _ Na verdade... Essa habilidade não é tão incrível quanto... A outra... – Chrlie começou a falar mas, vendo olhar inexpressivo de Dominique, se calou.

            _ Outro dom? – Abi fitou o garoto – você tem mais de uma habilidade?

            _ Não importa.

            _ Ah, importa sim – ela insistiu – olha, você pode nos odiar o tempo que quiser, mas vamos ficar aqui por um bom tempo. Não precisa gostar de nós. Mas vai ter que nos aceitar.

            O silêncio tomou conta do salão outra vez. Todos voltaram suas atenções ao café da manhã, que já não estava tão delicioso agora com o clima pesado. Dominique suspirou, fazendo suas asas tremeluzirem de leve, e soltou o garfo.

            _ Não é um dom que eu me orgulhe – mencionou ele.

            _ Você não é obrigado a dizer – eu disse – mas nós não mudaremos o conceito que temos de você por causa do que você é capaz de fazer. Acredite, já é ruim o suficiente.

            Ele tentou sorrir, embora não fosse essa a sua vontade.

            _ Quando eu toco em alguém... Posso ver como ela irá morrer. Mas tem um problema. Quando toco na pessoa... Ela sente as dores da morte. Não é uma coisa legal.

            _ Ele não pode ter contato físico. Isso incomoda – comentou Charlie.

            _ Chega, Charlie. Arrume a mesa.

            Abi observou o rapaz de asas alvas, como se pudesse compreender a dor dele. Ela se levantou e, pegando os pratos, falou.

            _ Vamos, Charlie. Eu te ajudo.


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