A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 14
Aliado




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Aliado

 

            Eu só me dei conta do que estava fazendo quando senti a terra úmida entrar por debaixo das minhas unhas, minhas mãos sujas e meu corpo ensopado de suor, sangue e uma mistura de cores e texturas indescritíveis. Eu devia estar horrível. Não tanto quanto aquela coisa.

            Eu estava na clareira da floresta, na mata densa onde nem mesmo os rugidos dos ursos podiam ser ouvidos. As árvores se ajustavam em círculos ao meu redor, onde eu acabara de fazer uma cova para a coisa. Antes de enterrar, eu precisei olhar mais uma vez para o que havia me atacado naquela loja. Agora, frio e imóvel, não era tão medonho, ou talvez eu estivesse me acostumando a ver tal coisa.

            Os olhos ainda retalhados, o rosto completamente deformado, mas havia ali algo muito familiar, muito... Humano . O grito feminino, os traços tão semelhantes com uma mulher. Era evidente, aqueles traços, de fato, pertenceram a uma mulher, talvez uma pessoa comum. Me lembrei dos frascos cheios de bizarrices banhadas em líquidos fétidos. Um dia, eu agora sabia. Um dia aquela coisa foi normal. Provavelmente uma família, filhos, um marido preocupado. A coisa que havia me atacado, a coisa meio-humana, a coisa-mulher. Poderia ter sido, um dia, tão normal quanto eu, ou mais.

            Deixei as lágrimas escorrerem por um bom tempo. Me joguei debaixo de uma árvore, tentando reunir coragem para terminar a cova, mas cobrir aquele rosto seria mais difícil, agora sabendo do que se tratava. Encolhi o meu corpo em uma posição patética, enfiando minha cabeça entre as pernas. Os sentimentos e pensamentos pululavam na minha mente. O medo, a dor, a raiva, a compaixão, a tristeza, toda a sorte de emoções. E imaginar que há poucas semanas eu era um garoto normal.

            Visitava meu avô, passávamos o natal juntos, ele me fazia companhia, me dava o carinho e o amor que eu não encontraria em uma vida inteira a procura dessa sensação. Ao lado de Kylls e Camille eu era normal, humano, vivia em meu mundo solitário, mas estranhamente feliz, sabendo que, embora sozinho, esse mundo orbitava em meus amigos, minha família, minha tranqüila e desejável normalidade. Agora, atônito e confuso embrenhado numa floresta fria e escura, em me tornara um ser imaginado apenas em ficção, caçando monstros, procurando chaves e vendo pessoas que não deveria ver. Eu não conseguia voltar atrás.

            Agarrei meus cabelos, suados e ensebados, esfregando violentamente como se isso me ajudasse a afastar os acontecimentos recentes, como se eu pudesse me transportar à minha vida normal. Mas estava claro, friamente e cruelmente óbvio. Não havia volta, não havia escolhas, apenas aceitação de um futuro que eu nunca desejei. Era doloroso demais ver aquela coisa ali, antes tão violenta, agora parecia adormecer como um ser humano normal, dentro de uma caixa de terra vermelha.

            Eu me levantei, o rosto ainda banhado em lágrimas salgadas e insistentes, fui até a cova e, com raiva e compaixão comecei a enterrar a coisa. A terra caía úmida sobre a pele gelada do monstro, cobri o rosto primeiro, até, finalmente, não conseguir enxergar mais nada. Eu sabia que não era seguro enterrar aquela aberração numa cova tão rasa, mas eu não tinha cabeça para pensar, ou fazer um buraco maior. Tomaria uma decisão pela manhã.

            Terminei a cova, achatei o solo até parecer normal, coloquei pedras e troncos sobre a parte fofa do solo. Quando me convenci de que era seguro, por hora, decidi que estava na hora de voltar pra casa. Era tudo o que eu queria.

 

O despertador praticamente gritou nos meus tímpanos. Em uma reação mecânica e involuntária, eu o golpeei, fazendo o aparelho saltar da mesa-de-cabeceira para a parede, se espatifando. Meus olhos tentaram, inutilmente, se abrir para enfrentar a luz do sol que atravessava a janela, mas eu ainda estava sensível à claridade, depois de ter os olhos cerrados após uma noite estafante.

            Eu me sentei na cama, meu corpo estava mole e minhas mãos estavam doloridas, sujas de terra, assim como todo o meu corpo. Minhas roupas e meu rosto estavam sujos de um monte de coisas que, até aquele momento, meu cérebro não conseguia assimilar. As lembranças foram, aos poucos, se desenterrando da minha mente. Primeiro uma idéia louca, uma idéia completamente estúpida de invadir uma loja no meio da noite. Abigail havia aparecido no caminho, me dito alguma coisa sobre meu tio Brad, que eu não me lembrava, meu cérebro parecia estar adormecido ainda.

            Eu me lembrei de entrar em uma loja, e havia algo estranho. Uma mulher com olhos amarelos. Não, era um bicho muito feio, com pelos e com olhos amarelos. Eu estava lá por causa de um trompete, então eu matei a fera. O que eu havia feito com ela? Meu cérebro foi despertando aos poucos. Ah, claro. Eu havia enterrado o monstro na floresta, o meu QG secreto, o terreno que meu avô comprara antes de morrer. Isso explicava minhas mãos sujas de terra. Eu escavei uma cova funda com minhas próprias mãos. Finalmente, todas as lembranças haviam voltado, eu saltei da cama, completamente elétrico. O Trompete estava atrás da porta do meu quarto, onde eu havia colocado. Eu sabia que deveria encontrar um esconderijo melhor mais tarde. Eu corri para o banheiro, eu estava em um estado deplorável, sujo, fedido, ainda cheirando ao hálito daquela coisa. As gotas de sangue se secaram sobre minhas sobrancelhas, meus lábios e orelhas. Minha camiseta completamente banhada em sangue seco e uma gordura estranha. Joguei minhas roupas no canto do banheiro e tomei uma ducha fria e demorada. A água gelada me despertou, eu estava aceso e tenso novamente. Assim que saí do banheiro, joguei minhas roupas, o lençol e o colchão da janela, me livrando daquele coquetel repulsivo de sangue.

            Encarei o trompete, desejando arremessá-lo também, mas então a minha noite não teria sentido. Eu não poderia deixá-lo ali. Se estava tão seguro na loja, significava uma coisa: era importante demais. Eu precisava dar um jeito.

            Eu peguei o trompete, prendendo-o pela fivela nas minhas costas. Assim que o fiz, um som oco me chamou a atenção. O bocal do instrumento estava caído no chão, com as extremidades trincaras. Eu estremeci, em pânico. O trompete estava quebrado, provavelmente ele não resistira tão bem quanto eu a luta da noite passada. Eu peguei o objeto reluzente, segurando-o na ponta dos dedos. Eu não sabia o quão prejudicial isso poderia ser, mas eu não podia me preocupar com nada disso agora. Quebrada ou não, a chave precisava estar em segurança. Antes de guardar o objeto, eu notei uma escrita no pedaço quebrado. Era uma caligrafia fina, bem feita, com um nome impresso. “Barnaby Adams – Concerto de Charlotte”. Bem, nada disso era importante. Não agora.

            Vasculhei o meu armário em busca de uma corrente de ouro velha que eu não usava há algum tempo. Assim que a encontrei, passei a extremidade pelo bocal e prendi no meu pescoço. Ali, pelo menos uma parte do trompete estaria seguro, eu não entregaria tão facilmente. Assim que transformei o bocal em um pingente, coloquei-o por debaixo da camisa, protegido de olhares curiosos. O restante do instrumento eu coloquei dentro do armário, debaixo dos cobertores e caixas de sapatos. Eu encontraria um lugar melhor para esconder assim que chegasse da escola. Ah, a escola! Estava em cima da hora! Eu tinha que ir a escola, embora minha cabeça não estivesse para essas coisas. Depois da noite anterior, seria impossível me concentrar em coisas tão triviais como escola e deveres. Eu sabia que teria pesadelos em uma noite mais tranqüila. Eu me vesti, joguei meus cadernos desordenadamente na mochila e, pendurando-a nas costas, saí apressado.

Eu desci as escadas, inexpressivo. Não que eu quisesse ocultar nada, eu simplesmente não sabia o que sentir. Quando eu achava que era medo, uma onde de determinação me atingia e, quando eu estava quase convicto, uma ansiedade me envolvia por completo, o ciclo se fechava com a satisfação em derrubar algo tão forte como aquela criatura, terminando no remorso e culpa por não ter percebido antes que a coisa era um humano que, de alguma forma, deixara de ser como tal. E começava tudo outra vez, a batida de sensações indescritíveis.

Quando entrei na cozinha, todos estavam ali, inclusive Bunny, que dormia dentro da caixa de sapato. Eu recebi um “bom dia” sonoro e em coral, e eu percebi que eles falavam em tom de desculpas, especialmente meus pais. Richard também parecia se sentir culpado, encorajando a discussão não noite passada. Era típico dele, atiçar, jogar lenha na fogueira, ver o circo pegar fogo. Mas eu não conseguia sentir raiva de ninguém, eles eram as pessoas mais importantes, embora eu estivesse me agonizando por dentro, curioso para saber se eles eram ou não homúnculos. Isso não ajudaria muito, mas explicaria um bocado de coisa.

            _ Dormiu bem, filho? – minha mãe perguntou. Seu tom de voz era ameno, mas era longe perto do que eu ouvia antes de nos mudarmos.

_ Acho que sim. – mentira mais cabeluda que o monstro enterrado na floresta – Mas eu ainda estou meio cansado.

            _ Posso ver, seus olhos estão fundos. – meu pai observou – você está péssimo.

            _ Valeu, pai. Isso com certeza ajuda.

            _ Desculpa – ele disse rindo.

            _ Será que hoje eu posso faltar? – eu supliquei para quem pudesse me ouvir.

            _ Matt, que vontade é essa de faltar? – minha mãe me chamou de Matt e me serviu torradas, era um começo – Desde a semana passada você me pede para faltar.

            _ A escola meio que... Perdeu a graça.

            _ Ah, a namorada foi embora, né? – Richard caçoou.

            Eu o olhei repreensivamente, meus pais fizeram o mesmo.

            ­_ Hum, cedo demais? – ele ficou sem graça – foi mal.

            _ Posso, mãe? – eu pedi, ignorando meu irmão estúpido mais velho.

            _ Não. – ela disse, como que encerra uma discussão.

Eu sabia que não adiantava discutir com ela. Impressionante como a vida poderia ser cômica o suficiente para nos fazer rir de nós mesmos. Eu era capaz de enfrentar um monstro que poderia dizimar uma cidade inteira, mas eu não conseguia bater de frente com a minha mãe. Essa é uma daquelas forças maiores que chamam de “maternidade”, o tipo raro de força que não possui um tendão de Aquiles ou qualquer ponto fraco. Para elas, “não” é “não” e acabou-se.

            _ Do que está rindo, Matt? – Emi perguntou.

            _ Não é nada, baixinha. – Então eu me virei para o meu pai – Ah, pai, sobre aquele terreno que o vovô arrematou no leilão...

            _ A floresta? – meu pai completou.

            _ Sim. – eu continuei – Você já sabe o que vai fazer com aquele terreno?

            _ Bem, eu estive pensando em vender – meu pai apoiou o rosto sobre as mãos, cruzadas no ar – Talvez repassá-lo para o Bradley. Ele deve saber usar aquele lugar melhor do que eu.

            _ Mas você pode aproveitá-lo, pai. – eu falei. Eu estava arriscando.

            _ Aproveitá-lo? – ele questionou – como?

            _ Bem... A verdade é que eu gosto daquele lugar, um pouco. É bom espairecer a cabeça e, sabe, tem um lago bem legal dentro da floresta.

            _ Você andou entrando na floresta, filho? – minha mãe perguntou exasperada – Não sabe que pode ser perigoso?

            _ Pode?

            _ Pode. Existem lobos por aqui. E ursos.

            _ Brock sempre bem comigo. – eu menti – é um bom vigia.

            _ Matt. – dessa vez foi meu pai quem falou – Brock não faz mal nem as próprias pulgas.

            _ Você vai vender? – eu insisti – mesmo sabendo que eu gosto daquele lugar. Mesmo sabendo ser o único lugar onde eu me sinto melhor.

            Eu estava jogando baixo, mas com eles, era difícil. O jeito era apelar para a chantagem emocional.

            _ Ah, sem melodrama, Matt! – Rich retorquiu.

            _ Eu gosto daquele lugar – eu continuei tentando – é bem grande e, quando eu formar, eu posso até construir uma casa lá, morar ali mesmo. Seria legal, não seria?

            Meu pai deu uma risada paternal, quase protetora. Eu sentia falta desse tipo de tratamento.

            _ Eu vou pensar sobre isso. – meu pai disse, sorrindo – até que poderia ter algum proveito naquele terreno. Quem sabe algum dia eu não dou a você de presente?

            _ Jura? – minha excitação era sincera.

            _ Quem sabe... Quando você se casar. – ele riu de novo.

            _ Ah... – minha excitação diminuiu – er... Acho que posso esperar.

            _ Ta – minha mãe interrompeu – Agora é hora de ir para a escola. Não se atrase.

            _ OK, ok... eu já vou. Mas, pai, pensa nisso. O lugar é legal, não vende não.

            _ Eu vou pensar.

            Eu peguei minha mochila e, estava prestes a sair. Mas então eu percebi que eu não estava a fim de correr, nem de andar de bicicleta. Eu queria um assento confortável, um tempo para pensar e relaxar os músculos, desanuviar a mente e me ocupar com coisas comuns.

            _ Er... pai.

            _ Sim?

            _ Se importaria de me levar de carro hoje?

            Ele me olhou, surpreso, abandonando sua torrada no prato. Ele parecia contente.

            _ No Mercedes?

            _ Por mim, tudo bem.

            De repente, me preocupar com o que as pessoas diriam se me vissem em um carro de luxo parecia besteira. Depois de tudo o que passei, tudo o que ouvi, nada parecia tão importante quanto se manter vivo, respirar o mesmo ar puro a cada manhã, levantar e lutar pelo que se gosta. Um carro? O que era isso, afinal? Apenas um objeto sem nenhum valor que não fosse projetado em dinheiro.

            O trajeto foi sossegado, silencioso e, nesse meio tempo, eu aproveitei para recarregar minhas baterias, depois da noite passada. Eu apertei o bocal do trompete no meu peito, como se isso me ajudasse a encontrar forças para continuar. Mas eu estava sozinho nessa. Abigail me prometera uma nova carta com outras informações, mas eu não sabia em quanto tempo isso iria acontecer, ou se pelo menos iria acontecer. Meu pai notou minha expressão desanimada, mas ele sabia que, em horas como essa, o silêncio era meu grande aliado, então o trajeto continuou silencioso. A rodovia estava deserta, o céu estava nublado e o vento estava frio e seco. Eu apertei com mais força o bocal no peito, por baixo da camisa, minhas mãos se fecharam no objeto.

            Meu pai dirigiu devagar, entendendo que era justamente o que eu queria. Papai geralmente era o que mais me compreendia, e sorria todas às vezes para mim, como se me perguntasse se estava agindo corretamente. Eu sorria de volta, um sim estampado silencioso em meus lábios. O carro saiu da rodovia e entrou na cidade, o movimento estava ligeiramente maior pela manhã. Papai acelerou um pouco mais, percebendo que eu estava encima da hora. À medida que íamos chegando perto da escola, um volume concentrado de pessoas parecia se aglomerar no meio da rua, dificultando a passagem, como se houvesse algo de muito interessante para se observar. Estávamos praticamente de frente à escola.

_ O que está havendo aqui? – meu pai perguntou para si mesmo.

            Eu não precisava responder, então, embora soubesse perfeitamente a resposta. A confusão na loja havia repercutido em grandes estragos, tanto na loja quando no asfalto e, pra ajudar um pouco, o muro da escola. Talvez isso levasse à um recesso escolar. Minha esperança aumentou quando vi o portão da escola, fechado, muitos alunos estavam encostados no portão, observando, curiosos, o movimento na rua.

            _ Pode me deixar aqui, pai. – eu pedi – se você for mais pra frente, não vai poder dar ré.

            Ele me olhou, como se me questionasse.

            _ Se você quer me deixar na porta, pai, tudo bem – eu revirei os olhos, cruzando os braços sobre o peito – mas o problema vai ser seu.

            Ele deu uma risada de leve e, destravando a trava elétrica, me deu um beijo na testa. Antes isso poderia até me incomodar, já que eu não gostava muito desse tipo de afeto em publico. Mas saber que alguém se importava comigo e estava do meu lado todo o tempo era reconfortante. Eu saí do carro e caminhei até a grande concentração de pessoas.

            _ Hei, filho! – meu pai gritou, sua cabeça pra fora da janela do carro – Consegue ver o que está acontecendo?

            Eu não havia visto nada, mas sabia o que havia lá.

            _ Um buraco. – eu gritei de volta – O muro da escola caiu.

            Meu pai acenou pra mim e, dando a ré, desapareceu de vista. Eu estava caminhando e observando o grande buraco no chão, agora bem visível, embora o círculo de pessoas se aglomerasse cada vez mais. Eu estava absorto em pensamentos, lembrando-me da briga, como eu havia derrubado aquela criatura medonha, como a força dela era grotesca. Foi uma voz familiarmente desconfortante que me acordou de meus pensamentos.

            _ Chuva de meteoro? – Brian falou por trás de mim.

            Ele acompanhou meus movimentos, ficando ao meu lado.

            _ Tanto faz – eu resmunguei – Escuta, por que você ta aqui?

            _ Eu estudo aqui. – ele revirou os olhos.

            _ Eu quero saber por que você está falando comigo. – eu retorqui rispidamente – Achei que eu não fosse uma boa amizade.

            _ E não é. – ele deu de ombros, mas sua expressão ainda era cínica – Eu não disse que somos amigos.

            _ Iss não é mais novidade. – eu estava ansioso para arrancar aquela expressão de confiança dele – somos humanos demais pra você, não?

            Eu continuei caminhando, sorrindo maliciosamente. Eu senti os passos dele parar atrás de mim, eu pude sentir sua respiração parar e o choque esvair a cor de seu rosto.

            _ O que quer dizer? – ele perguntou, sua voz não tão convencida quanto antes.

            _ Dizer com o que? – eu me virei, zombeteiro.

            _ Essa coisa de... De humano demais? – ele me fitou, e pela forma como sua mandíbula se apertava, ele estava tenso.

            _ Força de expressão, Brown.

            _ É Brian. – ele retorquiu.

            _ Que seja.

Eu me virei e o deixei de lado. Ele ainda estava imóvel no mesmo lugar e, pela sua expressão, ele parecia tentar se convencer que nada de mais havia acontecido. Eu me misturei às pessoas em volta do buraco, tentando encontrar qualquer outra coisa que eu pudesse ter deixado passar batido. Bem, estava tudo muito bem batido, literalmente. A expressão das pessoas era de curiosidade. Quando olhei para a loja, ela estava quase vazia, exceto por dois policiais que caminhavam em meio aos estilhaços “tateando” o chão com os olhos, procurando qualquer coisa mais que suspeita. Nesse momento, meus olhos cruzaram dois olhos muito frios. Era o mesmo par de olhos que estivera na loja anteriormente, ameaçando Augustus. Eles eram negros como a noite, e refletiam uma frieza cruel. Eu a encarei e, então, as sobrancelhas dela arquearam, e ela me olhou confusa. Então uma onda de nervosismo me envolveu. Ela me reconheceu e percebeu que eu estava encarando-a. Parshes me olhou ameaçadoramente, como se eu representasse algum perigo a ela. Ela ergueu a cabeça, sem tirar os olhos dos meus, e caminhou para trás, até sumir no meio da multidão. A ilusionista desaparecera.

            _ Eu disse para ter cuidado, idiota. – a voz atrás de mim era urgente e ansiosa, rouca em um sussurro familiar.

            _ Brian?

                        _ Caramba, você é idiota? Você devia ter desviado o olhar. Não fique encarando-a daquele jeito.

            _ Qual o problema? – eu perguntei, embora soubesse a resposta.

            _ Matthew, se eu disse que era para ter cuidado com ela, você deveria subentender que aquela mulher era perigosa.

            _ Era?

            _ Era não. É! Ela é perigosa – ele enfatizou o verbo.

            _ O que ela é? Uma psicopata?

            Brian deu uma risada nervosa. Os olhos dele corriam de pessoa pra pessoa, eu sabia que ele estava procurando por Amanda.

            _ Você estaria mais seguro se fosse. – ele retorquiu.

            Por um momento eu quis dizer tudo o que sabia, confiar nas palavras de Abi quando disse que Brian poderia me ajudar. Mas eu não confiava nele e, até onde eu sabia, ele era tinha potencial para ser um inimigo. Eu precisava acreditar que ele era, de fato, um dos mocinhos.

            Ele se calou por um minuto, olhando ansiosamente para os lados. Ele ainda não merecia minha confiança depois de ter me afastado de Abi, mas eu não tinha outra opção, não tinha ninguém para confiar. Eu me lembrava muito bem do que Abigail havia me dito. “Mostre que ele pode confiar em você também”. Talvez aquele fosse o momento certo, por mais que eu relutasse em dividir tudo o que eu sabia com ele.

            _ Aquela mulher. – eu falei com ele, em um tom mais baixo – O nome dela é Amanda Parshes.

            Brian arregalou os olhos, olhando pra mim incrédulo. Ele não esperava que eu soubesse essa informação, mas eu sabia que a reação dele seria mais ou menos como ele agiu ao ouvir o nome da mulher.

            _ Como você sabe? – ele perguntou, segurando meus ombros – não me diga que você falou com ela?

            _ Claro que não. – eu respondi, certo que minha decisão era correta – Eu a ouvi conversando com o velho daquela loja.

            Eu apontei para a loja de antiguidades completamente destruída. Brian virou-se para a construção arruinada, e voltou sua atenção para mim, parecendo ainda mais nervoso.

            _ Não me diga que você falou com...

            _ Augustus? – eu arrisquei – Não, eu também não falei com ninguém.

            _ Você é mesmo um idiota! – ele exclamou, rígido – como você sabe de tudo isso afinal?

            _ Eu segui Amanda até a loja. Ela conversou com o velho um monte coisas... Algo sobre uma chave.

            _ Chave? Como era a chave? O que ela queria com Augustus? Por que ela queria a chave?

            _ Hei, hei! Uma pergunta de cada vez. – eu resmunguei, tirando as mãos dele do meu ombro – Mas respondendo às suas perguntas, a chave era o trompete que ela carregava, eu acho. Ela queria que Augustus descobrisse como desvendar a chave e... Eu não tenho a mínima idéia.

            _ Certo, mas eu tenho uma vaga idéia do que ela possa querer com a chave... – ele disse, mais para si mesmo do que para mim.

            _ Olha, se você quiser explicar o que ta acontecendo agora, estou ouvindo.

            _ Não, não é nada importante. – ele analisou minha expressão – acho melhor ficarmos perto por enquanto.

            _ E pra que?

            _ Aquela mulher, Amanda. Ela pode... Bem, querer tirar satisfações.

            _ Acha que ela pode me matar? – eu perguntei, cauteloso.

            Ele hesitou e, então, balançou a cabeça positivamente.

            _ E ela pode te matar também? – eu continuei – bem, claro, você também a vê não é?

            _ Ela poderia se eu... baixasse a guarda.

            Embora a conversa estivesse indo a diante, eu ainda não considerava o momento certo para dizer “hei, talvez eu seja um homúnculo”, então precisava criar a situação, ou esperar o momento propício.

            _ Olha, isso é realmente estranho – eu comentei, tentando induzir o momento proício – você diz que eu não deveria enxergar uma mulher, quando na verdade a vejo muito bem. Depois ela entra numa loja, ameaça um velho e, logo depois, a loja dele aparece destruída. Você pode me contar o que sabe, também.

            _ Não é um bom momento. E eu não poderia se quisesse...

            _ Tente. – eu arrisquei – eu estou ouvindo. Aliás, eu não posso te ajudar se você não esclarecer.

            _ Escuta, Chambers! Isso aqui não é um conflitozinho qualquer, entendeu? – ele retorquiu – tem muito mais...

            _ Bem, eu vou pra sala de aula e, quando você decidir conversar...

            _ Hei, Chambers! 

            Eu sabia que, para um cara com o ego como o de Brian, ficar por fora dos acontecimentos era perturbador, principalmente quando eu, supostamente, era apenas um humano normal.

            _ Você precisa entender. Eu não posso, não porque eu não quero, mas porque EU NÂO POSSO.

            _ Acho que não vai ser difícil para um Vance entender a história.

            _ Ah, claro, então...

            Brian parou abruptamente, me encarando com uma expressão que eu não conhecia no rosto dele: perplexidade.

            _ Você... Você pode repetir? Eu ouvi você dizer...

            _ Vance – eu repeti – Vincent Vance era meu avô.

 

            _ Então você é um homúnculo? – foi a primeira coisa que Brian conseguiu me dizer no recreio, depois de saber o que eu poderia ser.

            Pela expressão dele, era evidente que casos como o meu não aconteciam freqüentemente. Na verdade, deu a entender que eu era o primeiro.

            O refeitório estava movimentado, os alunos corriam de um lado para o outro, tagarelando, algumas meninas olhavam para onde Brian e eu estávamos, davam “tchauzinho” e sorriam com certo interesse. Eu senti meu rosto corar, mas Brian parecia não se importar com isso. Ainda assim era estranho olhar para todas aquelas pessoas normais, imaginando porque eu nunca consegui me enquadrar naquele meio. Agora eu sabia.

            _ Talvez precisemos falar com alguém – Brian comentou – Alguém que possa nos orientar.

            _ Não! – eu sibilei – Abi poderia ter feito isso se fosse o melhor a fazer. Mas não é. Você mesmo tirou a mesma conclusão que Abi: isso é incomum e pode não ser coisa boa. Não sei o que eles podem fazer... Comigo.

            _ Então... Ok. Você disse que viu a chave, certo?

            _ Exato.

            _ Então onde está agora?

            _ Na verdade – eu comecei – Eu meio que peguei na loja. Está lá em casa. – apertei o bocal do trompete no peito, decidido em não contar que eu, acidentalmente, havia quebrado a chave.

            _ Precisamos tirar ela da sua casa. – Brian falou – Parshes deve estar atrás dela... Aliás, o que foi toda aquela destruição na loja?

            _ Ah, bem... Isso é uma longa história...

            _ Chambers, encurta a conversa.

            _ Ok. Eu... Eu entrei lá, bati em uma coisa grande e... – minha voz falhou por um breve segundo – Peguei a chave.

            _ Coisa grande...?

            _ É. Eu não sei explicar, você precisa ver.

            _ Ver? – Brian arqueou as sobrancelhas – você está com o corpo da “coisa grande” em casa?

            _ Não... Não verdade está enterrada na clareira da floresta.

            _ Ótimo, eu quero ver – ele respondeu decidido – Preciso saber com o que estamos lidando.

            _ Ta bom, mas... O que significa?

            _ Como assim?

            _ Somos amigos, ou o quê?

            _ Não chamaria de amizade – falou ele pensativo – vamos dizer que é uma aliança... Temporária.

            _ Ótimo. Aliados, então.


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