A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 13
Loja dos Horrores




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Loja dos Horrores              

Tio Brad veio ao meu quarto conversar comigo antes de ir embora. Ele fazia piadas e contava casos verídicos que normalmente seriam engraçados. Mas acho que ele percebeu que sua tentativa de um pedido indireto de desculpas não estava sendo tão bem sucedida.            

_ Olha, Matt... Eu sinto muito falar sobre sua amiga na mesa do jantar. – ele pediu, colocando a mão em meu ombro – você sabe que eu gosto de você como se fosse um irmão caçula, ou um filho. Você escolhe.            

_ Eu sei, Brad. – eu geralmente o chamava apenas pelo nome, sem usar o título “tio”, principalmente quando ele agia tão infantilmente quanto Emi – Mas eu sei que ela não é o que dizem.            

_ Tudo bem, eu não falo mais nisso. Eu só comentei porque é o que eu ouvi falar. Isso é comum, sabe... Crianças baderneiras de cidade grande que se mudam...           

  _ Não começa, tio Brad. – eu pedi. Dessa vez, eu entoei o “tio” só de pirraça, pois eu sabia que ele se sentia um pouco velho quando era chamado assim.             _ Ta bom, ta bom. Eu já vou indo. Se precisar do seu tio aqui, me liga, ok?             _ Ok.             Ele me abraçou e saiu com um sorriso meio sem graça. Minha ansiedade para que ele fosse embora, no entanto, não tinha nada a ver com a minha raiva momentânea. Eu precisava ir àquela loja hoje a noite, era uma decisão que veio de supetão, mas se aquela chave tinha algo a ver com a mansão da minha família, eu tinha o direito de saber. Talvez eu pudesse descobrir alguma coisa daquele velho.             Eu ainda ouvi as vozes perto da escada, meus pais e meu tio conversavam sobre alguma coisa, mas estava difícil ouvi-los, eu lutei contra a minha ansiedade de espionar, mas ela parecia ser bem mais forte. Eu abri a porta do meu quarto vagarosamente, que rangeu de leve. Eu encostei meu ouvido na fresta, esperando ouvir alguma coisa. As vozes saíam como zumbidos inaudíveis, então eu esperei que meus ouvidos se adaptassem à conversa. Finalmente, eu já estava ouvindo algumas palavras.             _ Vocês pretendem conversar com os Williams sobre isso? – era a voz da minha mãe.             _ Não acho necessário. – Brad falou – ela foi embora, o próprio Matt nos contou.             _ Então acho que não precisamos nos preocupar. – meu pai concordou – o melhor é deixar que ele se acostume com a idéia. De qualquer forma, eles não poderiam ser amigos, Matthew não precisa estar envolvido com esse tipo de coisa.             _ Bem, eu vou indo. – tio Brad falou.             Então a conversa estava chegando ao fim. Eu supus que não havia mais nada para ouvir, e me afundei na cama, furioso e extremamente desanimado. A rápida conversa havia deixado claro que nenhum deles tinha a intenção de me deixar envolver com uma “delinqüente drogada”. Eu ouvi a porta da sala bater, indicando que meu tio já havia saído. Mais alguns minutos, e eu estaria livre. Eu esperei, impacientemente, longos vinte minutos. A noite já tinha caído, a lua em sua fase minguante e pálida tomava conta de um espaço minúsculo na imensidão negra que se estendia a perder de vista. Me debrucei na janela, admirando os pontos prateados que cobriam o manto negro, como se fosse cristais cravejados na solidez do céu. As estrelas dividiam harmoniosamente o espaço com a lua. Há muito tempo eu não a admirava, como fazia quando me sentava na varanda com meu avô. O majestoso globo prateado tinha perdido parte de sua importância para mim, eu consegui ver apenas uma bola pálida no céu, triste e solitária, apesar dos outros pontos minúsculos e não tão iluminados, como se sua superioridade não fosse o suficiente. A lua sabia como eu me sentia, ela entendia a minha dor. Os passos no corredor silenciaram, eu podia até ouvir o canto agourento do vento farfalhando os galhos das árvores, a cortina acompanhando o caminho das correntes de ar criava um espectro sinistro no chão, com a luz bruxuleante atravessando os retalhos geométricos.             Era o momento certo. Eu abri a porta do meu quarto em um espaço suficientemente largo para que eu pudesse passar. Eu espiei os quartos, todos estavam dormindo, inclusive Emi, com seu coelhinho Bunny dentro de uma caixa de sapatos. Ele parecia dormir também. Era o momento ideal. Fui até a cozinha, tomando o cuidado para não fazer nenhum barulho, abri a geladeira e tirei duas fatias grandes do pudim. Voltei para o meu quarto, andando na ponta dos pés, dei uma última olhada para trás, para me certificar de que tudo estava realmente quieto. Pulei a janela e caí na grama como um gato, sorrateira e silenciosamente. A sobremesa estava dentro de uma vasilha, eu corri até a porta dos fundos, onde Brock estava deitado, olhando atentamente para o céu. Minha presença chamou sua atenção.             _ Hei, Brock. – eu sussurrei – venha aqui, garoto.             Ele veio até mim, abanando seu rabo descomunal, batendo nas pilastras como um cabo de aço.             _ Shhi! – eu continuei com o tom de voz quase inaudível – aqui, garoto. Como prometido. Meu tio devorou o jantar, mas ele fez a gentileza de deixar um pouco do pudim.             Eu coloquei a vasilha destampada perto das orquídeas bem escondido, de forma que ninguém pudesse ver pela manhã. Brock lambeu meu queixo e voltou sua atenção para o pudim cremoso.             _ Eu vou dar uma volta. – eu murmurei – cuida de tudo aí por mim.             Ele sequer me olhou, sua atenção havia sido roubada de mim por um pedaço de doce. Eu torci para que nenhum ladrão invadisse a casa durante a bóia do cachorro. Eu me levantei e impulsionei o corpo para frente, como de praxe.             Meu corpo vagou rápida e silenciosamente, passando pelos campos, atravessando as estradas de terra. Eu não estava tão rápido quanto de costume, mas eu chegaria em menos de quinze minutos. Quando atingi a estrada de ipês, eu pude ouvir claramente.             _ Matt!             A voz me chamou. Era uma voz feminina, muito familiar. Meu corpo travou imediatamente, ansioso e eufórico, quase contente. Mas o nervosismo se debatia, vencendo qualquer outra sensação.             _ Matt! – a voz me chamou outra vez.             Eu estava no meio da trilha dos ipês, e me virei para trás, a origem da voz. A única coisa que eu conseguia ver era uma coruja. Ela estava em um galho fino. A ave tinha a plumagem cinza e seus olhos tinham cor de âmbar, o bico muito fino e amarelo. O animal parecia me encarar com certo interesse.             _ Abigail? – eu sussurrei, olhando da coruja para o meio do pasto e, sem seguida, para os arbustos.             A coruja alçou vôo. Ela subiu uns quatro metros e mergulhou graciosamente, mas antes de tocar o chão, seus olhos ficaram azuis, suas asas cresceram e metamorfosearam em mãos e as patas com garras afiadas se transformaram em pés. A coruja se transformara, e agora eu estava olhando para Abi, incrédulo.             _ U... U... Nossa! – eu exclamei.             _ Legal, não? – ela sorriu, abrindo os braços como se estivesse exibindo um vestido novo.             Eu corri até ela e a apertei em um abraço de urso, um abraço transbordante de sentimentos, sincero e há muito necessitado. Ela retribuiu o abraço e, para minha surpresa, beijou o a minha bochecha, um beijo quente e demorado.             _ Eu estava com saudades. – ela falou.             _ Eu também, eu... Onde você esteve? – eu perguntei. Havia tantas coisas a se perguntar, tantas coisas para contar.             _ Eu estou em uma das Células. – ela murmurou – eu não sei se vou voltar a vê-lo depois de hoje, Matt.             _ Como assim, Abi? Nós não podemos apenas...             _ Cala a boca, Matt. Apenas me escute.             Abi olhou para os lados, como se temesse que alguém pudesse aparecer ali a qualquer momento.             _ Eu não tenho muito tempo. Eu fugi da Célula na minha primeira oportunidade. Eles não estão me prendendo, apenas me mantendo segura, e a você também. Antes de mais nada, eu preciso te dizer para nunca, jamais, contar sobre você ser um Homúnculo. Nunca, entendeu?             Eu balancei a cabeça, pronto para dizer alguma coisa, mas ela levou o dedo aos meus lábios, me impedindo de falar.             _ Em segundo lugar, não me procure, não me siga, e tente se manter escondido nas noites de lua cheia, tente dominar as transformações, basta se concentrar, manter a mente fixa em coisas tranqüilas, monótonas, procure não pensar em suas habilidades como algo grandioso. Essa é a chave, aceitar suas habilidades como se fosse sua natureza, como se não fosse grande coisa. Essa é a sua origem, é como ter dois braços e duas pernas. Não, não diga nada, apenas eu falo. – ela engoliu em seco – eles podem me encontrar a qualquer momento. Eu preciso ser rápida. Não culpe Brian, ele só estava zelando da nossa espécie. Ele é confiável, você precisa se aproximar dele primeiro, mostrar pra ele que você também é confiável. Ele é a única pessoa que pode guardar o seu segredo.             Eu estou tentando descobrir alguma história semelhando com a sua, algo que fale sobre homúnculos criados por humanos normais... Você tem certeza que não tem nenhuma marca? Deixe-me ver sua nuca... Hum, ótimo. Eu sou uma idiota, hoje eu vi a placa na entrada do terreno. Essa mansão é dos Vance, uma das famílias prima.             _ Famílias Prima?             _ Deixa eu falar, Matt. Existem três famílias Prima, os primeiros possuidores dos dons da lua, isso é muito complicado para explicar agora, mas eu tenho que te adiantar. Seu tio, o dono da exportadora, ele pode ser um Homúnculo. Eu não tenho certeza, na verdade, ele pode ser um simples humano. É só o que sei, eles estão evitando me passar informações depois que o conheci, eles acham que eu posso deixar extravasar alguma informação vital e blá blá bla!             _ Eles disseram que você é uma drogada.             _ Eu preciso... – ela parou abruptamente – eu sou uma o que? Drogada? Quem disse isso?             _ É o que estão dizendo por aí.             _ Como isso pode... Oh, não. Eu preciso ir.             Abi estava olhando pra cima. A lua estava mais prateada agora, um tom cintilante intenso, era quase capaz de cegar se ficasse muito tempo observando-a.             _ Para onde você vai?             _ Não posso dizer nada. Não me siga, por favor. Vou deixar outra carta para você em breve. Vou deixar o máximo de informação que puder.             Ela não esperou uma resposta, nem se despediu. Ela simplesmente tomou a forma da coruja cinzenta e alçou vôo, desaparecendo na escuridão fúnebre da noite. Meu corpo ficou imóvel, minha cabeça estava latejando, como se todos os pensamentos resolvessem explodir como um vulcão. Se eu havia entendido bem, Abi dissera que Tio Brad era um Homúnculo, mas isso não poderia ser verdade, ele era normal, como qualquer um da família. Ou não?             De repente, meus pensamentos se ajustaram, e meu objetivo tinha se materializado, nítido e evidente dentro da minha cabeça. Eu precisava ir até a loja, descobrir sobre a chave. Então, como num estalo, tudo pareceu ter ligação. Amanda Parshes mencionara o nome da minha família, Abi dissera que Vance era uma das famílias Prima. Amanda ficara nitidamente receosa com a menção do nome dos Vance. Então era exatamente isso, sem nenhuma sombra de dúvida. Eu era homúnculo, assim como todos e minha família poderiam ser.               Meu corpo parecia pesado agora, mas apenas por causa das preocupações que pareciam se amontoar em minhas costas. Minha velocidade, por outro lado, estava maior, eu queria acabar logo com isso e voltar para casa, eu queria desesperadamente respostas, qualquer que fosse. Eu só não queria ficar me escondendo de todos até que algo pior acontecesse.             O vento frio da madrugada não me ajudava em nada. Pelo contrário, apenas piorava a dor inexplicável, pulsante e crescente, como uma ferida aberta que rasgava a linha do meu pensamento, me fazendo esquecer das coisa boas. Kyle e Camille já nem entravam mais em minhas memórias com a mesma freqüência de antes. Eu chegava a me perguntar se eu realmente tinha vivido aqueles momentos, era difícil acreditar que aquela era minha vida. Seattle já não era meu lar, mas Ford estava longe disso também, eu me sentia deslocado, como se eu não fosse de lugar nenhum. Não é algo fácil de compreender. É preciso ver o que eu vi e descobrir que não somos quem sempre pensamos que fôssemos para entender essa angústia, algo que corrói, destrói as lembranças de uma vida normal, e de repente nem as pessoas que me criaram parecem ser as mesmas, como se elas escondessem de mim algo que eu escondi de mim mesmo todo esse tempo. Não é fácil compreender, mas a vida nunca foi fácil para ninguém.             Eu estava perto da loja. As poucas lembranças que haviam restado de mim já não faziam nenhum sentido e, naquele momento, a única coisa realmente valiosa pra mim era aquela chave, como se ela pudesse abrir a porta para todas as minhas respostas. Fiquei olhando a loja de antiguidades de longe, me perguntando se era seguro avançar. A vidraça era facilmente quebrável, a porta de madeira parecia tão velha quanto a própria pintura jurássica. Mas poderiam haver alarmes e eu não sabia se poderia encontrar o trompete antes que algum vigia aparecesse. Eu tinha que arriscar.             Eu saltei sobre a casa. Dessa vez eu não precisei de escadas nem de árvores, eu simplesmente pulei e atingi o telhado da loja. Quase que instantaneamente, um cheiro familiar invadiu minhas narinas. O mesmo cheiro podre, o gosto amargo na garganta, só que estavam mais fortes, intensos, embora não me incomodasse tanto, como se meu cérebro soubesse que o cheiro não passava de uma alucinação. A atmosfera parecia bem mais pesada agora. Algo não estava certo naquele lugar, mas eu não podia voltar agora que estava tão perto.             Eu caminhei sobre o telhado, buscando alguma fresta, porta ou qualquer janela aberta. Uma loja tão velha não poderia ter um sistema de segurança tão sofisticado e, além do mais, numa cidade como aquela, roubos quase nunca aconteciam. Finalmente, depois de alguns minutos vasculhando, eu avistei uma janela aberta dentro de um quartinho de despensas conjugado à loja. Era uma fresta pequena, mas eu não teria tantos problemas em passar por ela, foi o que pensei. Eu estava errado. Me aproximando mais, eu me dei conta de como ela era reduzida, com certeza meus ombros não passariam por ela. Bem, o lugar estava aos cacos e migalhas, não era uma construção nova, eu realmente poderia fingir um pequeno incidente.             Agarrei as grades da janela e puxei. Era como abrir uma garrafa de refrigerante. Coloquei a grade sobre a laje e enfiei a cabeça dentro do cômodo. Era um quarto muito pequeno, talvez um cômodo de dispensa, era difícil enxergar direito sem nenhuma luz. Meus olhos logo se acostumariam à falta de iluminação mas, o que me preocupava era a estranha sensação de estar sendo observado. O cheiro agora estava muito forte. Talvez fosse esse a minha habilidade. Sempre quando algo de ruim ou de muito marcante estava prestes a acontecer, eu conseguia sentir a mudança no ar, no aroma e no gosto, uma espécie de premonição sensitiva. Eu sabia que algo de muito ruim estava prestes a acontecer, mas eu estava tentado. Sentir o perigo significava que algo muito importante estava bem perto de ser descoberto.             Fiz uma ginástica absurda para passar pela janela sem derrubar as paredes. Meus ombros passaram, mas acabei rasgando as mangas da camisa, até finalmente conseguir entrar de corpo inteiro. Assim que meus pés tocaram o chão, senti a atmosfera mudar. Estava muito abafado ali dentro, um calo que me fez suar quase instantaneamente. Era como estar em uma sauna. Ainda escuro, continuei trabalhando minha visão no escuro, tentando decifrar as silhuetas indecifráveis ao meu redor, tentando compreender o que havia ali, onde poderia estar a chave que o homem da loja dissera. Eu sabia que estava quebrando uma promessa. Abi havia me feito prometer não procurar encrencas, ficar seguro em casa, apenas treinando minhas habilidades. Mas eu não podia simplesmente ficar quieto quando eu sabia tanta coisa. queria ter dividido tudo aquilo com Abi, mas ela tinha chegado tão de repente e ido embora tão rápido que mal podemos nos falar.             Meus olhos estavam formigando. Quanto mais eu tentava enxergar através da escuridão, mais eles queimavam, como se estivessem em chamas. Então eu consegui enxergar. Era tudo parte da minha natureza, meus olhos estavam aptos a enxergar no breu que, há pouco, me deixava completamente desorientado. Então eu também percebi que já não sentia calor, embora conseguisse ver o mormaço subindo do chão e impregnando o teto. Depois de admirar minha nova habilidade, parei para observar o que estava a minha volta.             Na primeira impressão, posso dizer que era simplesmente a pior coisa que os olhos poderiam enxergar estando em um quarto escuro e abafado. O suor já não escorria mais, mas isso não mudava o fato de eu estar sentindo uma fisgada de medo, que parecia crescer a cada segundo. Haviam potes, muitos potes. Prateleiras cheias deles. O pior não eram os potes, mas o que havia dentro. Cabeças e membros de animais, órgãos boiando em um líquido amarelo, a cena mais pavorosa que eu já tinha visto. Em um tos potes, logo mais acima, eu vi perfeitamente. Olhos humanos boiavam em meio a veias secas e dedos destruídos por gangrena. Na prateleira do canto, perto da pequena janela, potes cheios de sangue, talvez humano, coloriam de vermelho os frascos que eram do tamanho de um polegar. Preso a parede havia cabides que sustentavam lâminas de todos os formatos, muitos dos instrumentos eu nunca havia visto. Com certeza não eram aparatos clínicos.             Naquele lugar, a luz prateada da noite não conseguia entrar, o vento não era capaz de penetrar pelo buraco onde, antes, havia uma janela. Era mortiço. Um lugar morto, um pedaço esquecido pelo resto do mundo, onde os pesadelos poderiam ser reais e até agradáveis se comparados com os corpos decepados e os órgãos dentro dos frascos. As paredes estavam mofadas e, em alguns lugares, manchas de sangue seco complementavam a decoração cavernosa.             Mas eu não estava ali para avaliar a decoração dos horrores, eu estava ali porque precisava da chave. Eu não entendia o que havia de tão especial naquele trompete mas, eu sabia que era essencial em alguma coisa. Não sabia por que estava fazendo aquilo, mas algo muito mais forte que eu insistia em continuar. Se Abi estivesse ali eu teria algum apoio.             Um ruído dentro do quarto escuro espantou por completo meu devaneio. Ainda estava escuro e algumas coisas estavam semi-cobertas pela penumbra e não pude ver o que estava atrás de mim, mas pude sentir. Fosse o que fosse, me atingiu. Senti um volume maciço e rígido me atingir nas costas me lançando contra os milhares de frascos a frente. Eu não pude nem ao menos encarar o meu inimigo, apenas sentir o seu golpe doloroso e cruciante me acertar e me lançar como se eu fosse um boneco de trapos.             Os estilhaços, o líquido viscoso, os órgãos e toda a sorte de monstruosidades trancadas nos potes se espalharam pelo chão. Eu estava jogado, ainda sentindo o ar faltando em meus pulmões. Eu estava banhado em sangue, em visco amarelo, eu estava coberto de toda aquela porcaria horrenda. Então meus olhos conseguiram enxergar o que havia me acertado. Era, de longe, a imagem mais apavorante.             Os olhos eram miúdos, amarelos, do tamanho de bolas de tênis, costurados em um rosto humano. Os dentes eram finos e pontiagudos, e os lábios se contorciam em um sorriso na minha direção. O corpo, magro e cinzento, era coberto por pêlos ralos e viscosos. As mãos eram maiores que a cabeça e, se eu estivesse raciocinando bem, eu teria me perguntado como braços tão magricelas conseguiram erguer mãos tão monstruosas. As pernas finas como pernas de mulher e os pés tão miúdos que mal conseguia enxergá-los. Devia ter pouco menos de três metros de altura. Acima de sua cabeça uma protuberância saliente se erguia apontada em minha direção, um terceiro braço com unhas grandes e sujas.             Eu tinha duas escolhas: deixava o medo me imobilizar, ou lutar par me salvar. Estava claro que a coisa não iria me deixar sair dali vivo, os olhos dela transbordavam malícia e brilhavam em minha direção como se eu fosse uma lebre em temporada de caça. Então eu percebi, assim que consegui visualizá-la por completo, uma corrente amarrada em volta do seu peito. O trompete estava preso à sua extremidade, tremeluzindo um dourado bruxuleante, como se qualquer luz fosse devorada pelo escuro da loja dos horrores.             A criatura urrou, um berro agourento, um grito de agonia, eu não saberia dizer se ela estava sentindo dor ou se estava furioso com o intruso, no caso, eu. Eu não percebi quando uma das protuberâncias em sua cabeça avançara contra mim. Eu saltei para o lado, e a mão bateu como uma pedra no assoalho de madeira. Eu me esquivei de um segundo ataque, os olhos amarelos me acompanhavam o tempo todo, me encarando enfurecidos. Outro urro de dor, aquela boca humana repleta de dentes monstruosos se escancarou, gritando agonizantemente, e outra mão veio em minha direção. Eu não consegui esquivar. Ela me agarrou pelo calcanhar com uma força descomunal, e foi a minha vez de gritar de dor. A coisa me arremessou na parede com fúria, eu a atravessei como se fosse um muro de isopor.             Caí no chão, desnorteado, sentindo a minha força sobre-humana perder para o meu medo. Ver uma coisa como aquela era apavorante. Meus olhos se encheram de lágrimas, que insistiam em revelar o meu pavor, mas engoli o choro, decidido, desesperadamente, lutar para sobreviver. Se aquela coisa conseguia me ferir com tanta facilidade, não seria fácil vencê-la, ou mesmo fugir. Entoa eu vi os feixes prateados banharem a minha pele e, pela primeira vez desde o momento em que entrara na loja, senti segurança. Olhei em direção à luz. Eu estava no salão da loja, sobre o que restara do balcão e prateleiras com quinquilharias, onde as vidraças deixavam a lua penetrar sutilmente, enchendo meu corpo de uma força inexplicável, cobrindo minha pele como um cobertor quente em um dia de chuva.             Outro som estridente e agourento ecoou do buraco da parede e, logo a criatura emergiu do quarto negro, exibindo seus olhos fora de órbita, amarelos e cheios de carnificina. Ele estava farejando e, eu sabia, estava sentindo o meu cheiro, o cheiro do meu sangue e os vestígios do meu pavor. A criatura sabia que tinha parte da batalha a seu favor.             A criatura arremessou seu braço suspenso à cabeça sobre mim, mas consegui me esquivar por um triz. O golpe atingiu duas prateleiras, que foram arremessadas sobre a vidraça.             Vários fragmentos de luz se espalharam pela loja. Por um breve momento, o tempo parecia ter parado. Cacos cintilantes de vidro flutuavam a minha frente, refletindo os raios prateados da lua por todos os lados. Porcelanas e estilhaços de jarros cobriam o espaço com seus reflexos multicoloridos, projetando luzes e formas desconexas na parede. Naquele momento eu senti a beleza da lua, sua atração e influência sobre o meu corpo, que agora queimava, determinado.             Cerrei os punhos, sentindo meu sangue esquentar e meus ossos queimarem. Em um segundo eu estava encarando a criatura. No outro, eu havia me jogado contra ela, ainda com os punhos cerrados, deixando cada dedo contraído em uma posição agressiva e decidida. Senti os nós dos meus dedos acertarem a pele dura da coisa, ela foi arremessada alguns metros a frente, seu urro agonizante ecoando nas paredes. Com a outra mão consegui agarrar a corrente e, por uma fração de segundo, eu a puxei. Mas o movimento não foi tão bem sucedido, consegui romper a corrente mas, com o impacto, o trompete foi arremessado, enfiando-se nos destroços da loja.             Senti um ardor insuportável nas mãos e, quando olhei, o pânico me atingiu em cheio. Meus dedos estavam retorcidos, um dos ossos, não sabia ao certo de qual dedo, estava exposto, deixando o sangue escorrer da minha mão sem cerimônia. No quarto escuro, a criatura se moveu. Barulhos de objetos de metal e madeira pareciam estar sendo arrastados sobre o assoalho. A criatura estava se movimentando e, pela vibração do chão, ela parecia mais furiosa, e estava decidida em me destruir. O cheio de sangue inundou as minhas narinas, um cheiro acre e perturbador, fazendo meus olhos lacrimejarem. Eu só tive tempo de me lançar para o canto da loja antes que a mão grotesca conseguisse me atingir, surgindo no meio das sombras. A coisa saiu novamente, dessa vez em uma velocidade que não combinava nada com seu peso e tamanho. Ela me agarrou pelo pescoço e, com o impulso, nos lançou para fora da loja. Meu corpo atravessou a única vidraça que estava intacta e, mais uma vez, senti um ritmo incontrolável no peito, um frenesi que vinha de toda a parte do meu corpo. Os estilhaços cintilavam e a lua banhou meu corpo por completo.             A fera caiu sobre a calçada, perfurando o concreto, eu consegui me lançar a alguns metros de distância, me dando tempo para contra-atacar. Mas ela ainda estava decidida, a coisa ainda queria me pegar e ver o meu sangue transbordar.             Eu fechei o punho ileso e, antes que a coisa pudesse me atingir primeiro, investi contra ela, um golpe certeiro e violento. Eu caí sobre a criatura. Minha mão direita, ainda ferida e retorcida, entrou na boca da criatura em um movimento impensado. Com a mão ilesa, agarrei a mandíbula da coisa. Ela começou a guinchar e gemer, um som apavorante e medonho. Eu precisava me controlar, eu não podia deixar aquilo me matar. Não ali. Não sem respostas.             Num movimento único puxei a mandíbula. O sangue jorrou em todo o lugar, colorindo o chão de um vermelho vivo e viscoso, as gotas flutuantes refletindo no ar as luzes do luar. A coisa gritou, um grito feminino. Eu tinha certeza, era uma voz de mulher, uma humana que gritava dolorosamente. Ela se debateu e, antes que pudesse tentar outro movimento, enfiei o osso da mandíbula dentro dos seus olhos, e os dois globos amarelos estouraram.             Eu estava coberto de todo tipo de sangue e, naquela altura do campeonato, nem sabia se eu ainda estava sangrando. Olhei para a minha mão ferida que ainda ardia. Não havia nada errado. Os dedos estavam no lugar, o osso já estava dentro da pele, apenas uma úlcera deixava filetes de sangue escorrerem discretamente. Eu estava restaurado.             Ainda atônito e perplexo, entrei na loja, peguei trompete enfiado nos destroços, amarrei-o na minha cintura e voltei para o cadáver da mulher-coisa. Ela era pesada, mas meu corpo estava muito mais forte aquela noite. Levantei o corpo imóvel, debrucei-o sobre o meu ombro e, antes que eu mesmo me desse conta, já estava correndo pela auto-estrada, fugindo dos faróis curiosos.  


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