A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 12
A ilusionista e a chave... Um jantar amistoso




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A ilusionista e a chave... Um jantar amistoso

 

            Foi como eu esperava. O dia que se seguiu foi entediante e agonizante. Abi realmente não apareceu e, durante a noite, eu fiquei aceso, sem uma gota de sono sequer. Meu corpo estava elétrico, e eu tive que ir à floresta gastar um pouco de energia, quebrando minha promessa de não arrancar mais árvores. Depois de meia dúzia de árvores e pedras voadoras, eu corri até minha casa, ainda com um aperto no peito. Abigail não iria aparecer. “Não sei quando voltaremos a nos ver”...

            A noite arrastou no tempo, e pareceu um dia inteiro, até o sol invadir meu quarto com uma luz dourada rala e morna. O céu estava coberto por algumas nuvens repolhudas e, por um breve momento, eu imaginei ter visto uma delas num formato bizarro de trompete. A mulher misteriosa veio à minha mente, mas logo desapareceu, varrida pelo simples fato de me imaginar naquela escola sem a companhia de Abi.

            Desci as escadas depois de me trocar, eu tinha acordado bem mais cedo, então, quando cheguei na cozinha, minha mãe acabara de começar os preparos para o café da manhã. Emilliene devia estar na cama, mas meu pai e meu irmão estavam sentados na mesa, conversando algo sobre a exportadora e alguém ter “extraviado a mercadoria”, foi o que pensei ouvir. Assim que eles me viram, ficaram surpresos.

            _ Matt. – Richard me olhou – está um pouco cedo, não acha?

            _ Nem percebi – respondi vagamente – perdi o sono.

            Eu me sentei ao lado dele, jogando minha cabeça pesadamente sobre minhas mãos, apoiadas pelos cotovelos. Meu olhar estava vago, mas minha mente estava a mil com as preocupações.

            _ Bom dia, filho. – meu pai resmungou. Ele pegou o jornal da manhã – sua aparência não está mesmo uma das melhores.

            _ Cabeça cheia. – minha voz vacilou.

            Minha mãe tinha tirado a primeira fatia de panqueca e colocou em um prato, servindo Richard.

            _ Seria melhor descansar no sofá alguns minutos – ela aconselhou – você vai acabar dormindo no meio da aula.

            _ Na verdade... – eu olhei para ela, esperançoso – eu meio que queria ficar em casa hoje.

            _ Sinto muito, Matthew. - ela respondeu prontamente – vá para a escola, faça o que tem que fazer. Seu tio vai virá jantar conosco hoje, então não se atrase.

            Minha mãe estava diferente comigo desde o meu aniversário, seus olhos não eram os mesmos quando olhava para mim, e o seu sorriso reconfortante havia desaparecido, como se eu tivesse quebrado todo o encanto misterioso quando seus lábios se contraiam em um sorriso perfeito.

            _ Ok. – eu não queria discutir com ela, nunca mais – sabe, acho que vou andando, então.

            _ Mas já? – meu pai questionou – Ainda falta uma hora e meia. E você ainda nem comeu.

            Minha mãe pegou outra fatia de panqueca e colocou em um prato para o meu pai e, em seguida, voltou sua atenção para a panquequeira.

            _ Eu sei. Mas eu preciso fazer algumas coisas.

            _ Que tipo de coisas? – Richard perguntou, rindo – namorar, seria uma delas?

            _ Não seja idiota, Rich. – eu resmunguei.

            _ Cadê a Abi, han? – ele provocou.

            _ Eu não vou vê-la durante um bom tempo. Graças ao idiota do Brian. – eu joguei minha cabeça embaixo dos braços – idiota...         

            _ Concorrência? – Richard brincou, me irritando ainda mais.

            _ Aparentemente, eles selecionam as amizades.

            Meu pai me olhou, ignorando o jornal por alguns segundos.

            _ Como assim?

            _ Coisa de família.

            Eu me levantei indo até a pia pegar um copo de água. Minha boca estava seca, ou talvez fosse a sensação de que nada mais úmido conseguiria descer. Eu estava pronto para sair, mas uma voz me fez parar. Não uma foz audível, algo que pudéssemos ouvir, mas uma voz em forma de lembranças, um som brando e esquecido. Era minha mãe, se preocupando todas as vezes que eu saía sem ter comido algo reforçado. Lisa sempre foi uma mãe-coruja, fazia de tudo por nós três, cuidando das nossas roupas, nossos sapatos e se preocupando com o que comíamos e quando comíamos. Hoje, no entanto, ela não se importou, não disse nada. Pegou as outras duas panquecas que acabara de fazer e colocou-as sobre a mesa, para quem quisesse. Ela não deu a mínima, não me perguntou se estava com fome, se eu queria levar algo para comer no caminho, nada.

            Isso me incomodou, me deixou irritado e, inexplicavelmente, lágrimas se contorceram embaixo dos meus olhos para se libertarem, mas eu resisti e as mantive seguras e invisíveis, sem que ninguém percebesse o esforço que eu estava fazendo para tal feito. Eu simplesmente me virei para trás, sorrindo fracamente, e falei com minha mãe, calmo.

            _ Obrigado, mãe.

            Eu pude sentir a aspereza por trás de minha voz, e percebi que minhas palavras haviam cortado os tímpanos dela, como cortaram os meus. Ela me olhou, imóvel, inexpressiva. Eu saí pela porta da cozinha, fechando-a vagarosamente. Não ouvi mais nada atrás de mim, ninguém perto de mim, então eu permiti que as poucas lágrimas caíssem silenciosamente, nenhum soluço, apenas a dor e a raiva, e o desespero e a confusão em minha mente.

            Eu ouvi a grama rastejar e, limpando os olhos rapidamente, me virei para trás. Não era ninguém, era apenas o huski siberiano do meu avô, o Brock, nosso cão de guarda. Ele acompanhou meus passos, seus olhos castanhos claros fixos em mim.

            _ Ah, oi, garoto. – eu o cumprimentei.

            Me abaixei de frente à ele e acariciei suas orelhas pontudas e eretas, ele rosnou como se agradecesse a carícia e pousou seu focinho sobre meus joelhos flexionados. Ele continuou me olhando inocentemente, ele conseguia me fazer sorrir.

            _ Você está feliz, rapaz? – eu perguntei, obviamente, não esperando nenhuma resposta – que bom, pelo menos alguém está.

            Eu me levantei, alisando as curvas de seu focinho entre os olhos e saí caminhando novamente, em direção à minha bicicleta. Ele veio ao meu encalço, farejando e choramingando baixo, era como um parceiro para as horas difíceis, e eu me senti feliz em saber que Brock se preocupava comigo.

            _ Hei, rapaz. Estou indo para minha escola. – eu falava, enquanto subia em minha bicicleta – não me olha assim, eu volto logo. Prometo.

            Brock latiu, como se pedisse minha palavra em juramento. Ou ele sabia se comunicar perfeitamente, ou eu entendia bem demais os animais. Não, eu não era um doutor Do Little, Brock simplesmente era um cão esperto.

            _ Até mais, garoto.

            Eu pedalei com uma velocidade razoável, mantendo o pique. Passei pela cerca, atravessei a porteira e segui a estrada de chão. Eu estava bem perto dos ipês quando ouvi um arfar logo atrás de mim, me fazendo olhar para trás. Era Brock, acompanhando minha velocidade fielmente, a língua de fora, seus olhos castanhos brilhando sob a luz branda do sol. Mais uma vez eu olhei para o céu, ele estava se fechando por cima das nuvens que se aglomeravam aos poucos. Iria chover, eu pensei comigo.

            Assim que cheguei perto dos arbustos repolhudos, eu desmontei de minha bicicleta e a empurrei, escondendo-a embaixo deles. Brock estava sentado no meio da estrada,me olhando animadamente, como se nosso passeio fosse uma aventura só nossa. Eu fui até ele e alisei seu focinho.   

            _ Você devia estar vigiando, não devia? – eu sorri. Ele latiu.

            Me virei para frente, pronto para correr, mas, antes que eu usasse minha agilidade supersônica, me virei para o cão, que observava curiosamente minha atitude.

            _ Hei, Brock. Esse é um segredo nosso, hein. – eu dei uma risada – não conte para ninguém, você é meu confidente agora.

            Antes de ouvir o seu latido mais uma vez, impulsionei o corpo para frente, alcançando a velocidade tão desejada. Meu corpo ficou leve e pesado ao mesmo tempo, eu passei apenas por um caminhão naquela manhã, e ele nem notou o borrão voar pelo acostamento. EU vi a mesma placa escrito “Ford City”, me embrenhei no mesmo mato e, assim de me certificar de que ninguém estava observando, saltei a cerca, e pousei no passeio silenciosamente. Ninguém estava me observando, alguns poucos que caminhavam pela rua me olharam, mas sem muito interesse. Olhei no meu relógio. Caramba, eu ainda tinha uma hora! Resolvi descer a pé até minha escola. Eu ia gastar mais tempo, mas isso era o que eu tinha de sobra.

            Durante todo o meu trajeto, eu não conseguia desviar meus pensamentos de Abi, e na encrenca que ela havia se metido por minha causa. Na verdade, o maior culpado disso tudo era Brian, ele havia contado aos pais de Abigail que ela estava se relacionando com um humano normal, ou pelo menos isso era o que eles pensavam. E imaginar que nós iríamos compartilhar do meu segredo com ele. Pelo menos uma coisa estava mais que clara: o motivo pelo qual Brian era contra minha amizade com Abi não passava de uma preocupação com a conduta de um Homúnculo. Eles não tinham nenhuma ligação. Isso me agradava.

            Quando cheguei à escola, eu ainda tinha quarenta e poucos minutos. O portão ainda estava fechado e havia apenas alguns alunos esperando na porta. Eu cogitei a hipótese de pular o muro, entrar primeiro que todos, mas a imagem que vi a seguir me deixou tenso. Lembrei-me da nuvem em forma de trompete naquela manhã. Era aquela mulher, com o mesmo coque de cabelo, o mesmo terno e o mesmo trompete em mãos, um instrumento desproporcional à delicadeza de quem o segurava. Mas algo nela me deixava atordoado agora. Saber que apenas você pode ver alguém já não é boa coisa, principalmente se ela não quiser ser vista.

            Ela estava caminhando até uma loja de móveis e utensílios antigos, um lugar nada comum para uma mulher daquele naipe. Abi não estava ali, certamente ela ficaria decepcionada se visse minha expressão. Eu tinha feito uma promessa, nunca mais seguir a mulher misteriosa, mas a minha curiosidade era maior e, eu sabia, cedo ou tarde essa promessa teria que ser quebrada. Cedo, então.

            Eu caminhei a passos largos até a loja, que ficava do outro lado da rua. A mulher havia entrado, inexpressiva. Assim que a porta se fechou atrás dela, contei até dez e então entrei também. O lugar era cheio de móveis grotescos, antigos e robustos, além de pratarias, quadros, abajures e outros apetrechos desgastados. Eu deslizei silenciosamente para o lado direito do balcão, atrás de uma estante de mogno antiga. Eu coloquei minha cabeça para fora, para ver onde ela estava.

            A mulher colocou o trompete sobre o balcão no fundo da loja, levando a mão ao interior do terno e tirando um saquinho cor de piche. Ela tocou a sineta da loja sobre o balcão impacientemente. Tocou mais uma vez, e depois de novo. Finalmente, o dono da loja apareceu.

            _ Hei, hei. Será que você... – ele parou abruptamente ao se deparar com a mulher – ah, e você, Srta. Parshes.

            _ Você não conseguiu fugir de mim esse tempo todo, ahn... – ela disse em tom zombeteiro. Ninguém havia notado minha presença pelo tom de voz deles – achou que eu desistiria depois de tanto tempo a sua procura?

            _ Ora, por que eu fugiria da senhorita? – ele sorriu, sua voz falhou – eu estive viajando... er, falando com colecionadores de outras regiões. A trabalho, entende?

            Ela deu uma gargalhada medonha, desproporcional à sua beleza e delicadeza.

            _ Não seja tolo, Augustus – ela rosnou – você estava tentando fugir de mim. Tem medo do que pode lhe acontecer se me ajudar?

            _ Eu... Eu prefiro me manter neutro. – ele gaguejou.

            _ Neutro – ela repetiu, cética – em tempos como esse, você precisa escolher um partido, seu velho tolo. Se continuar “neutro”, os dois lados serão seus inimigos, você sabe.

            _ Eu só não quero me prejudicar, madame... – ele estremeceu.

            Eu pude ver os olhos do homem brilharem de pavor, um medo que eu nunca havia visto estampado no rosto de alguém.

            _ Se prejudicar? – ela rosnou, e ele abaixou a cabeça, trêmulo – Seu velho covarde! Por essas e outras você é descartado tão facilmente. Nunca foi bom o suficiente para nenhum dos lados.

            Ele tossiu, suas mãos se envolveram em volta de seus braços, como se um frio intenso estivesse o cobrindo, seu rosto se contorceu de agonia. Era como se algo muito ruim estivesse acontecendo. Mas eu estava ali, olhando para o dono da loja, não havia nada de errado. Talvez fosse apenas medo.

            _ Por favor, não faça isso, madame...

            _ Não fazer... – ela deu uma gargalhada que fez os cabelos da minha nuca arrepiarem – Isso é só uma amostra pequena do que nós somos capazes, velhote.

            Eu não entendi bem o que estava acontecendo entre eles. Parshes, a mulher sinistra, estava a uma distância considerável do velho, eu não conseguia entender por que ele se contorcia, e parecia sentir uma agonia tão dolorosa, era quase cruel. Eu não sei se continuaria a ver aquela cena, um homem velho sofrendo e aquela mulher, tão bela, rindo à custa do sofrimento dele.

            _ Você não gosta do que vê, não é Augustus... – ela murmurou, mas eu pude ouvir seu sussurro quase letal – mas, acredite, isso será bem verdadeiro se você não cooperar.

            _ Por favor, Srta. Parshes, me deixe... Pare com isso... Eu não quero ver...

            _ Veja! – ela gritou, as prateleiras estremeceram quando era esmurrou o balcão – Eu quero que veja! Olhe bem para o que está prestes a acontecer! Então, a quem você é leal, Augustus...

            Ele se encostou em uma estante de metal, as lágrimas corriam em seus olhos apertados, ele puxava ferozmente os poucos cabelos grisalhos que tinha, suas mãos velhas e cansadas se debatiam em suas têmporas.

            _ Na mansão... Dos Vance... Ouvi dizer... – ele murmurou.

            A menção do nome da minha família me assustou, e eu quase me entreguei quando meu cotovelo acertou um vaso que, por pouco não se espatifa no chão, eu fui rápido o suficiente. Meus ouvidos ainda continuaram atentos à conversa.

            _ Os Vance... – a expressão maliciosa da mulher, de repente, ficou mais cautelosa – você tem certeza, Augustus?

            _ São apenas boatos, madame... Eu não posso garantir.

            _ Eu preciso de garantias, Augustus! – ela ficou irritada de repente – Você sabe que é... arriscado demais...

            Augustus a olhou, cauteloso, procurando as palavras certas para usar, ele tinha o medo pregado em seus olhos.

            _ A madame... A madame está com medo? – ele gaguejou – dos Vance?

            Parshes estreitou os olhos furiosamente, apertou os punhos e agarrou o velho pelo colarinho, como se fosse uma briga de rua.

            _ Está tentando zombar de mim, Augustus? – ela rosnou, o velho empalideceu – Você sabe que eu posso matá-lo agora mesmo, não sabe?

            _ Mas a senhorita não pode, madame... – ele falou e, quando ela apertou seus olhos de fúria, ele se pôs a dizer – Eu quero dizer, vocês precisam de alguém que possa descobrir o segredo da chave, não precisam?

            De repente, a mulher parecia analisar as chances, e a considerar as palavras do velho. Eu senti, pelo cheiro forte e podre, que ela poderia acabar com ele se quisesse, mas ela não podia. Eles, eu não sabia quem, precisavam do velho Augustus para descobrir alguma coisa sobre uma chave. Parshes soltou o velho agressivamente, ele cambaleou até a estante e deixou cair um vidro com algumas pedras multicoloridas.

            _ Augustus, eu espero que eles me deixem cuidar de você assim que terminarmos com essa guerra. – ela riu maliciosamente, dando tapas de leve em cima do trompete – então, não vai tentar descobrir como abrir a chave? É a sua única garantia de vida.

            _ Eu... Eu vou ver isso agora mesmo. – ele murmurou, pegando o trompete e analisando com as suas mãos velhas e trêmulas.

            Parshes escorou no balcão com o os cotovelos, olhando para a porta da frente. Eu tive que me abaixar e me esconder embaixo da estante para que ela não pudesse me ver, agora eu só podia contar com os meus ouvidos. Mas uma coisa eu não tinha dúvidas: o trompete era uma peça para a chave.

            Quando Parshes falou, sua voz saiu macia, quase monótona, como se fosse uma conversa casual.

            _ Por onde você andou, Augustus? Eu estive aqui tantas vezes... Não me diga que estava realmente me evitando...

            _ De forma alguma, madame... – ele falou apavorado – eu não evito ninguém, a senhorita sabe. Eu só estava descansado esse corpo velho e cansado.

            _ Você sabe o que dizem, Augustus... – ela riu – Aliás, você está quase no fim. Não se espante, homem. Eu digo isso porque está velho e nem pode se defender. É a lei da natureza, você sabe.

            Ele tossiu, evitando outro comentário. As palavras dela, embora casuais, era uma ameaça, eu podia sentir em cada palavra que ela dizia, como se o som da sua voz entrasse em meus ouvidos, que separava as reais intenções naquela conversa.

            _ Eu preciso de tempo... – o velho falou – eu não posso aqui, não com o que tenho em mãos agora.

            _ Meu forte não é a paciência, Augustus... – ela rosnou – Bem, de quanto tempo precisa?

            _ Eu não sei, madame... É uma chave muito complexa.

            _ Augustos... – eu ouvi um barulho sobre o balcão e levantei minha cabeça para espiar, ela estava olhando para ele novamente, era seguro espiar com os olhos agora – Espero que isso não seja uma desculpa para garantir uma velhice mais longa...

            _ Não é, madame... – a voz dele falhou – Eu preciso mesmo de tempo.

            Ela estava inexpressiva, mas pensativa. O velho não iria morrer enquanto a chave não fosse desvendada. Eu queria me levantar, defender aquele velho, pegar a chave e afugentar aquela mulher dali para sempre. Mas eu sabia que havia uma possibilidade de ela ser bem mais forte que eu, sua confiança era grande e, pela forma como o velho se contorceu, eu não sabia que outras habilidades ela poderia ter.

            _ Você terá esse tempo... E uma visitinha de nossos amigos, todos os dias. – ela sorriu um sorriso letalmente meigo, quase tão hipócrita que se quebrava com um suspiro – para ter certeza de que você está fazendo isso por nós.

            _ Tudo bem, Srta. Parshes... Mas, por favor, deixe minha família...

            _ Em paz, eu sei, imbecil... – ela interrompeu – não me diga como agir. Mas, aí vem a pergunta que não se cala.

            Ela se aproximou mais uma vez dele, seus olhos a menos de trinta centímetros do velho.

            _ Onde – está – sua – lealdade? – ela perguntou enfatizando cada palavra, mas destacando a última delas.

            O velho engoliu em seco, olhou para o trompete em suas mãos, para a mulher e, rendido, respondeu.

            _ A vocês, madame...

            Ela sorriu.

            _ Perfeito.

            Ela simplesmente virou as costas e caminhou graciosamente até a porta, eu tive que me esconder atrás do balcão da frente para que ela não me visse. Os olhos dela pousaram mais uma vez no velho. Sua voz, agora, era afiada e quase assassina.

            _ Pela sua família... Se cometer um deslize, Augustus...

            Ela ergueu a mão direita e, pela expressão do velho, isso não o agradava. Ele fechou os olhos, fugindo de alguma coisa que eu não podia ver. Ele estremeceu, balançando a cabeça freneticamente em sinal positivo.

            _ Eu já entendi, Amanda... Agora, vá, eu imploro... Não faça isso!

            Ela se virou, gargalhando, e passou pela porta, desaparecendo do meu campo de visão. 

            Então era isso. Aquela cidade escondia mais mistérios do que se podia imaginar. Pior, eu fazia parte desse mistério, além de toda a família Vance. Então existia algo em minha casa que despertava o interesse daquela mulher, eu agora sabia seu nome, Amanda Parshes. Ela queria uma chave para alguma coisa, ela tinha alguma influência sobre o velho Augustus, que parecia ser capaz de desvendar um mistério que Amanda não conseguia. E havia mais, ela não estava sozinha, havia mais pessoas ao lado dela, trabalhando para descobrir sobre a chave, ou algo do tipo. Eu não consegui ver o que ela estava fazendo para prejudicar aquele homem, mas a minha intuição parecia me mostrar. Lembrei-me do dia em que Brian chamara Amanda de ilusionista, e mencionado ainda que eu conseguia vê-la quando isso não deveria acontecer. Foi como um relâmpago claro e obvio atingindo minha cabeça. Ela criava ilusões, e as usava para torturar o velho Augustus, mostrar coisas que ele não queria ver. Essa era a resposta mais óbvia e, algo dentro de mim, me dizia que eu estava certo. E, a julgar pelo fato de apenas eu e Brian conseguirmos enxergar aquela mulher, algo nos poderes dela não surtia efeito em nenhum de nós dois. Eu tinha muitas perguntas, e cada vez menos respostas. Mas Abi não estava ali, então eu estava sozinho.

 

            Nem havia percebido o tempo passar. Levei mais ou menos meia hora para sair da loja sem que o dono percebesse. Quando dei por mim, o portão da escola já estava fechado. Eu tinha certeza que meu dia na escola tinha chegado ao fim, e eu precisava falar com Abi, dizer a ela o que eu havia descoberto, embora eu não estivesse certo se ela viera à escola. Eu decidi. Saltei sobre o muro, a mochila firme nas costas, corri até o banheiro, passando por um aluno e um funcionário do colégio, eles nem puderam acompanhar meus movimentos com seus olhos humanos, o que levantou meu ego um pouquinho num dia tão agitado e desanimador. Dentro do banheiro, decidi o que fazer. Esperei até ter certeza de que alguém estava perto o suficiente para me ver. então eu saí do banheiro, fingindo náuseas e tonteira. Perfeito, era o diretor em sua ronda!

            Então ele me viu, e veio em minha direção, como eu queria que fosse.

            _ Sr. Chambers. – ele falou, me observando – algum problema? O que faz fora de sala?

            Eu tentei relaxar os músculos do rosto e soltar minhas pálpebras. Minha encenação tinha funcionado, ele pareceu acreditar.

            _ Eu não estou muito bem, diretor...

            _ Venha, eu o levo para a enfermaria. – ele fez menção de me segurar pelo braço – você não bebeu ou usou nenhum... Droga, usou?

            _ Claro que não! – minha exclamação foi viva demais, saudável o suficiente para levá-lo a desconfiar. Então eu voltei a falar lentamente – sinceramente, diretor, acho que foi... O café da manhã, o café da manhã que eu não tomei, é isso. Se eu puder me sentar na minha carteira, na sala de aula mesmo, eu vou ficar bem.

            Ele pareceu considerar as possibilidades. Eu sabia o que ele estava pensando. Alunos geralmente fingem estar doentes para se safarem de aulas, não para assisti-las. Eu consegui conquistar a confiança dele.

            _ Acha que consegue ir sozinho? – ele perguntou.

            _ Sim senhor... Não se preocupe.

            _ Ótimo... Então, boa aula, Sr. Chambers.

            Eu caminhei lentamente até as escadas, olhando para trás para me certificar de que o homem havia sumido de vista. Finalmente, não havia ninguém me observando. Eu corri até minha sala, sem me importar com a garota que eu derrubei no corredor, deixando espalhar dezenas de folhas em todo o canto. Eu rezei para que fossem as provas de amanhã. Eu não teria tempo para estudos.

            Cheguei em minha sala, mas o esperado... Bem, era esperado. Abigail não estava ali e uma sensação de vazio me inundou completamente. Levou dois minutos para eu perceber que o Prof. Devon estava falando comigo.

            _ Sr. Chambers? – ele praticamente gritou e sorriu quando teve minha atenção – Não sei se devo me sentir honrado por sua presença em minha modesta sala... Ou se devo expulsá-lo e pedir que venha me procurar na detenção?

            _ Er... Eu posso ajudá-lo a se decidir? – eu sorri de leve.

            Ele retribuiu o sorriso, que saiu um pouco mais sincero e apontou para minha carteira.

            _ Vamos, sente-se...

            E eu o fiz. Mas, depois disso nada entrou ou saiu da minha cabeça. Eu estava avoado, as palavras dos professores pareciam parar em uma barreira que me envolvia, meus olhos estavam fixos em um ponto negro sobre o quadro-negro, meus pensamentos estavam bem longe dali. Meu caderno permaneceu dentro da mochila todo o tempo.

            No recreio eu encontrei Brian na mesma mesa de sempre, mas eu não o procurei. Eu estava furioso com o que ele tinha feito, eu também não podia procurá-lo e tentar esclarecer as coisas, ele não era mais confiável. Eu não sabia a quem recorrer.

            Finalmente, o fim da aula. Eu passei correndo pela aglomeração de alunos, desvencilhando de todos, subi a rua e encontrei uma árvore bem comprida. Era o suficiente. Eu a subi, facilmente é claro, pulei do topo para o telhado de uma casa e, cautelosamente, me embrenhei nas construções mais altas. Saltei de telhado em telhado, com a minha velocidade estranhamente menor, mas eu sabia que isso se devia à minhas oscilações e eu torci para que acabassem um dia. Eu tentei parar mas, inesperadamente, minha velocidade aumentou, me jogando uns quatro metros a frente dos arbustos onde eu queria pousar. Levantei-me, bati o pó da roupa e retomei minha velocidade, correndo monstruosamente pela rodovia, agora um pouco mais movimentada. Quando eu cheguei à estrada de ipês, me deparei com a cena menos esperada do dia. Brock estava me esperando, na mesma posição, no mesmo lugar perto dos arbustos, me esperando, como um cão leal. Ele me olhou, abanando o rabo e correu em minha direção, sem se importar se eu era ou não super-veloz, provavelmente Brock não levava isso muito a sério. Ele bateu as patas em meu peito, lambendo meu queixo. Ele era impressionantemente grande, como um cavalo levemente reduzido, mas com os músculos exuberantes e a pelagem lustrosa.

            _ Brock, você é um cãozinho esperto – eu cocei o topo de sua cabeça – Sempre tão fiel. Vovô te criou bem.

            Ele latiu e saiu correndo na minha frente. De praxe, eu olhei o meu relógio para conferir. Eu havia gasto menos de cinco minutos até ali. Peguei minha bicicleta, orgulhoso e saí pedalando, alcançando Brock facilmente, mas eu suspeitei que ele estivesse correndo rápido o suficiente para poder me esperar.

            Eu estava um pouco mais contente agora. Não, não era bem isso, na verdade eu estava um tanto quanto inseguro, mas esse sentimento se misturava a muitos outros, me dando uma sensação, de certa forma, reconfortante. Cheguei em casa, deixei minha bicicleta na varanda, Brock ainda ao meu lado.

            _ Fica aí, garoto. – eu pedi, e ele se sentou obedientemente – mais tarde eu te trago as sobras do jantar... Meu tio vem aí, então eu não sei se vai sobrar.

            Ele latiu, quase como se entendesse a minha piada patética. Eu sentia que ele podia me entender, ou eu o entendia, não sei. Mas nós tínhamos uma ligação entre homem e cão que não se encontrava tão fácil. Eu passei pela porta dos fundos da cozinha, deixando Brock na mesma posição, fiel à minha ordem.

            Mamãe estava preparando o jantar, absorta em pensamentos rotineiros, quando eu entrei. Ela me olhou e, imediatamente, a atmosfera ficou tensa. Eu me lembrei do episódio anterior, quando um simples “obrigado” frio e seco fizera causara uma certa tensão. Ela demorou a sorrir, e eu retribuí, meu sorriso saiu demente.

            _ Olá, filho. – o tom de voz dela era quase como um pedido de desculpas.

            _ Olá, mãe – minha resposta era uma aceitação pelas desculpas.

            Eu a beijei no rosto superficialmente, embora meu gesto fosse significativo, pelo menos pra mim. Ela sorriu, e concentrou-se nas cebolas que estava picando. Eu me servi de uma maça que estava dentro do cesto sobre a mesa, fui até a sala. Ninguém estava ali.

            _ Mãe, quando é que o tio Brad chega? – eu perguntei.

            _ Ele está a caminho. – minha mãe respondeu, parecendo satisfeita pelo início de um diálogo entre nós – ele, seu pai e Richard estão vindo juntos.

            Ao que parecia, Rich tinha varrido a idéia de faculdade por algum tempo de sua mente. Embora ele estivesse sempre sorrindo e brincando, ele parecia tenso e preocupado a todo instante, como se nunca tivesse de guarda baixa. Eu subi as escadas, fui ao meu quarto e joguei a mochila sobre a cama. No meu íntimo, uma voz clamava por uma outra carta de Abi, mas a voz da minha intuição dizia que eu não precisava me sentir tão esperançoso. Ela não iria aparecer tão cedo.

            Tomei um banho demorado. A água quente me lavava até os pés, passando a boa e velha tranqüilidade de uma ducha esfumaçada, daquelas que embaçam o espelho e fazem os azulejos “suarem”. Olhos vermelhos! Foi a primeira coisa que passou pela minha cabeça. Mas, com a mesma velocidade em que meu coração bateu aceleradamente, ele se estabilizou. Já não era mais lua cheia, eu me lembrei do que Abi havia dito. Eu suspirei, aliviado. Olhos vermelhos e cabelos cintilantes seriam uma péssima forma de aparecer para o jantar. Eu me vesti decentemente, desistindo de fazer qualquer dever de casa. Minha cabeça estava rodando de preocupação.

            Eu desci as escadas, ás pressas, esperando que eles tivessem chegado. Não ainda. Emilliene veio até mim, sorrindo com aqueles seus dentinhos brancos cor de gelo e seus cabelos negros em uma trança impecável. Ela me deu um abraço e pediu que eu me abaixasse para beijar meu rosto. Eu o fiz de bom grado, beijando sua testa em seguida.

            _ Como foi seu dia de aula, mocinha? – eu perguntei.

            _ Ótimo! – ela exclamou – Bunny fugiu, mas eu o encontrei. Ele estava no banheiro dos meninos.

            _ Bunny? O coelho da sua classe?

            _ Essa mesma.

            _ E, me diga. Você entrou mesmo no banheiro dos homens.

            _ Hum-hum!

            Eu a joguei no sofá, fazendo cócegas em sua barriga, ela ria docemente. Nós paramos com a algazarra quando a porta da sala se abriu. Três pessoas entraram: papai, Richard e tio Bred.

            Meu tio Bred havia seguido respeitosamente a linha genética dos Vance. Os cabelos eram muito negros, os olhos eram azuis vívidos e brilhantes, tinha uma aparência jovial e divertida, seu maxilar era meio retangular e pelo porte, parecia passar horas na academia. Era um jovem de apenas vinte e três anos, bem sucedido e dirigente de uma exportadora. De repente eu me lembrei porque o admirava. Ele era muito mais parecido com meu avô em suas fotos da juventude.

            _ Alô, Matt! – ele abriu os braços como um pai faz após horas sem ver o filho – Grande garoto!

            Eu o abracei alegremente percebendo, pela primeira vez, que a saudade que ele havia deixado era quase palpável. Ele tinha participado da minha infância assiduamente, vivia me presenteado com coisas caras e me contando as mesmas histórias que meu avô me contava. Ele passou sua mão pelos meus cabelos, bagunçando o penteado que havia me custado dez minutos.

            Em seguida, eu abracei meu pai e meu irmão. Eles penduraram os casacos no cabide atrás da porta. Emi pulou nos braços do meu tio, eufórica, contando a história do coelho Bunny e seu salvamento digno de medalha.

            _ Onde está a namorada, tio Brad? – perguntei.

            _ Ah, minha namorada... Bem, acho que terminamos.

            _ Sério?

            _ Pois é. No aeroporto. Eu disse que estava cansado do namoro, estava muito desgastante. Ela compreendeu e pegou um avião pra casa...

            _ Você ta brincando.

            _ To sim. Ela está em Providence cuidando da herança. 

            Minha mãe apareceu logo em seguida, exibindo um sorriso do qual eu sentia falta. O mesmo sorriso ameno e sereno. Ela ainda estava de avental, suas mãos cheiravam a tempero mas não fez nenhum cerimônia ao abraçar o irmão mais novo. Em seguida, beijou meu pai e abraçou meu irmão, um abraço que eu não sentia a tempo. Eu tinha certeza, havia algo entre nós dois que eu não conseguia enxergar.

            Eu deixei esse tipo de preocupação de lado, a noite estava sossegada e o cheiro da comida estava irresistível, então o melhor a fazer era me esforçar ao máximo para fazer daquele jantar um evento em família, sem problemas envolvidos ou mulheres misteriosas envolvidas no assunto. Eu repeti para mim mesmo, um jantar em família.

            Nós nos sentamos à mesa. Meu pai ocupou a cabeceira da mesa, minha mãe se sentou ao lado dele, com Richard de frente pra ela. Eu me sentei na outra extremidade, Emilliene se sentou de frente pra mim e o tio Brad se sentou na outra ponta.

            _ Espero que gostem. – minha mãe disse, esfregando a palma de suas mãos ansiosamente – eu usei um temperinho diferente hoje. Ervas da nossa horta.

            _ Se o gosto for tão bom quanto o cheiro, maninha... Você pode até casar, sabia? – meu tio caçoou.

            Meu pai riu divertidamente, se servindo de almeirão e estrogonofe de frango. Minha mãe pegou o meu prato, sorrindo superficialmente, e me serviu com uma porção extra de estrogonofe, o maior pedaço de bife e uma concha cheia de carne com batatas. As fatias de cenoura vieram por cima.

            _ Obrigado. – eu retribuí o sorriso.

            Em seguida, ela serviu os meus irmãos, como ela sempre fazia. Não que nós não fôssemos capazes, nós apenas dávamos aos nossos pais todas as chances de cuidarem de seus filhos, pois, como era de conhecimento de todos, um dia os filhos ganham asas e voam sem apegos. Nós víamos aquilo como um favor a eles.

            Brad foi o mais soberbo, enchendo o prato com quase o dobro da minha porção. Ele enfiou o garfo no bife em que minha mãe estava prestes a pegar.

            _ Bradley! – minha mãe ralhou.

            _ Han-han! Sou visita, querida. – ele argumentou, enfiando metade do bife na boca – Seja uma boa anfitriã e me passe o molho shoyo.

            Ela deu uma risadinha típica e pegou o frasco com o líquido negro. Era o mais perfeito e monótono jantar, sem preocupações, onde eu podia desfrutar da presença da minha família e me esquecer de chaves, homúnculos e super-força.

            _ Matt, Matt, Matt. – tio Brad começara seu diálogo bem humorado – ouvi dizer que tem trazido coleguinhas para casa... Não está levando nenhuma delas para o quarto... está?

            _ Tio Brad! – eu resmunguei.

            _ Brad! – minha mãe enfatizou – Emilliene está à mesa.

            _ Oh, está? – ele falou calorosamente – olá, Emilliene, nem havia notado você por aqui. Ainda bem que sua mãe avisou.

            Emi sorriu, exibindo suas covinhas. Tio Brad continuou.

            _ Me diga, Matt. Ela é de alguma família rica? Poderosos... – ele piscou pra mim.

            _ Não. – eu senti meu rosto corar levemente. Talvez fosse a pimenta que eu colocara em excesso – Ela veio de Charlotte, os pais estão... Hum, fazendo trabalhos por aqui.

            _ Ela tem sobrenome? – meu tio brincou, enquanto fazia o garfo dançar em seu prato – eu conheço quase todos por aqui.

            _ Williams. O nome dela é Abigail Williams.

            A reação deles não foi nada como eu esperava. Meu tio ficou meio sério de repente, minha mãe e meu pai pigarrearam, apenas Emi e Rich continuaram absortos refeição, além de entreouvir a conversa. Eles ficaram tão surpresos quanto eu com a reação dos maiores. Eu havia me dado conta que não havia mencionado o sobrenome dela para ninguém em minha casa. 

            _ Algum problema? – eu perguntei.

            _ Problema... – meu tio parou, seus lábios se contraindo em um sorriso tranqüilizador – essa cidade não conhece problema há muito tempo.

            _ O que tem de errado com o nome? – eu perguntei.

            _ Bem, Matt... – meu tio entrelaçou os dedos, os cotovelos apoiando os braços – Essa família não é... Como posso dizer, o tipo certo de amizade.

            _ Como assim?

            _ Ouvi dizer que a garota, a filha do casal Williams, deve ser essa Abi, certo? Bem, a filha deles esteve metida... Em encrencas quando moravam em Charlotte. Drogas, eu acho.

            _ Isso é impossível! – eu falei, incrédulo – Abi não faria esse tipo de coisa. Ela é inteligente, tão ágil e... Ah, deixa isso pra lá, vocês acham que sempre estão certos.

            Meu pai falou dessa vez, um tom um tanto preocupado em sua voz.

            _ Que tipo de relacionamento você tem com essa menina, Matt? Não pense que eu quero me meter em seus assuntos, mas ela simplesmente não é uma boa amizade.

            _ Sério mesmo? – eu ri com sarcasmo – Nós vamos mesmo discutir isso agora?        

            _ Vamos. – minha mãe se impôs à mesa – É importante sabermos com o tipo de pessoa que estamos lidando. E se ela for uma baderneira, e causar problemas na escola?

            As palavras dela me despertaram. A briga da semana passada. Eu havia me esquecido completamente daquele episódio e, estranhamente, a diretoria também parecia ter se esquecido.

            _ Ela é uma boa amiga. – eu avisei. Eles iriam saber cedo ou tarde e, para mim, aquele jantar estava mesmo arruinado. Mencionar Abi foi a pior escolha do meu tio – Ela me ajudou em uma briga.

            _ Briga? – minha mãe exclamou, pasma.

            _ Briga? – Richard cuspiu o almeirão e me olhou, incrédulo – tipo, uma briga mesmo?

            _ Eu estava me defendendo.

            _ E por que ninguém me avisou? – meu pai rosnou, jogando o garfo no canto do prato.

            _ Na verdade... – tio Brad falou em tom de culpa – Bem, o diretor me procurou. Eu conversei com ele por vocês.

            _ Como é? – minha mãe atirou as palavras contra meu tio – E quem você pensa que é? Como essa escola avisa a um tio desnaturado como você e deixa os pais responsáveis de lado?

            _ Eles me procuraram... – meu tio tentou explicar – Porque eles sabiam que Matt morava na mansão Vance e eles sabiam que eu era membro da família. Eles me procuraram e, depois de me explicarem, eu disse que não precisavam se preocupar. E não precisam. Vejam, Matt está bem e ninguém mais brigou.

            _ E o que aconteceu nessa briga, Matt? – Rich perguntou empolgado – você machucou alguém.

            _ Matt não faria isso. – meu pai se adiantou. Estava errado.

            _ Na verdade – eu não estava certo se contava ou não – eu meio que quebrei o braço de um deles.

            _ Uau!

            _ Uau? Richard Chambers, não estimule esse tipo de coisa! Sua irmã está perto!

            _ Eu salvei o Bunny.

            _ Eu sei, Emi. O coelho está bem, maravilha. Mas ninguém vai salvar Matt do castigo. – minha mãe me olhou, mortífera.

            _ Hei, não me olhe assim, eu me defendi. – eu contrapus.

            _ Partindo o braço de outra pessoa?

            _ Ele ia me dar um soco, mãe!

            _ E pra isso precisa machucar alguém?

            _ Realmente, eu devia ter deixado que me quebrasse o nariz. Bom conselho, mãe.

            _ Eu não disse isso! – ela resmungou – eu sabia que essa Abi...

            _ Abi não fez nada. Ela estava de fora e quando viu quatro caras contra mim, ela veio me ajudar.

            _ Quatro? – Richard exclamou eufórico – Cara, eu adoro a escola!

            _ Fale por você.

            _ CHEGA! – meu pai esbravejou, e todos se calaram – isso aqui é um jantar em família! Não um ringue de boxe! Não quero ver ninguém estimulando brigas debaixo desse teto! Matt, essa garota não pode ser sua amiga!

            Eu o fitei, furioso. De repente, eu não era suficientemente bom para ninguém, eu devia ser uma aberração ou algo do tipo.

            _ Você não é o primeiro que diz isso, sabia? – eu retorqui – Mas eu posso decidir isso por mim, e ela por ela!

            _ Eu salvei o Bunny.

            _ fica caladinha, Emi. Papai está tentando brigar com seu irmão.

            _ E o que eu faço com o Bunny?
            _ Como assim?
            _ O que eu faço, óh. – Emi pegou uma bolsa que estivera no chão sem ninguém notar e pegou uma bolinha branca e peluda de dentro.

            Bunny, o coelhinho da turma de Emi, estava no colo dela, balançando seu focinho freneticamente, enquanto farejava as cenouras em meu prato.

            _ Acho que ele ta com fome.

            Silêncio momentâneo. Ninguém disse nada, apenas o ruído frágil do animal era ouvido. A situação tirou por completo o ânimo de brigar. Era uma cena incrivelmente descontraída, Emi estava com o coelho o tempo todo, zanzando com o animal em todo o canto e, só ali, nós conseguimos dar a devida atenção ao animal. Foi uma ótima maneira de dar continuidade ao jantar.

            _ Querida, leve o coelhinho para cima, ok? – minha mãe, falou, enxugando algumas lágrimas de riso dos olhos – tome, leve essas cenouras.

            _ Eu posso ficar com Bunny lá em cima? Não estou mais com fome... Vocês brigam demais.

            _ Pode... – minha mãe riu – mas cuidado para ele não roer nada.

            _ Ele é educado, mãe. Onde já se viu...

            Emi levantou-se da mesa, murmurando apelidos engraçados no ouvido do animalzinho que, provavelmente, teria uma noite agitada.

            Aos poucos, a atmosfera de discussão foi retornando, minha mãe parecia incomodada com minha nova amizade e tio Brad parecia não me apoiar, o que era uma raridade. Meu pai era radicalmente contra, Richard estava adorando a discussão.

            _ Ela não é uma amizade ideal, filho. – meu pai avisou.

            _ Vocês não precisam se preocupar, ok? Ela não vai voltar tão cedo. – eu resmunguei.

            _ Posso saber por quê? – meu tio perguntou, demonstrando menos curiosidade quanto queria demonstrar.

            _ Os pais dela a levaram porque eles também não me acham uma boa amizade para Abi. Eu não sou igual a ela, é o que disseram.

            _ Igual? – meu pai se inclinou – Igual como?

            _ Querem saber? Por que não partimos para a sobremesa – eu falei, furioso – A comida já esfriou. Aí vocês aproveitam e conversam sobre a vida de vocês!

            Levou bem uns dez minutos para todos esfriarem a cabeça. Depois de uma fatia cremosa de pudim ao leite feito pela minha mãe, as distrações vieram e eu não era mais o centro da conversa. Meu pai e tio Brad conversavam sobre uma encomenda extraviada, enquanto meu irmão contava a minha mãe sobre uma garota que trabalhava na exportadora como secretária. Ele parecia interessado nela, mas eu sabia que os flertes dele não passavam de alguns amassos.

            Eu devorei minha fatia de pudim, pedi licença e saí da mesa. Eu não esperava um jantar tão desagradável quanto esse, e eu desejei que tio Brad não tivesse vindo naquele dia. Mas minha cabeça tinha outras preocupações agora. Havia uma chave. EU não sei bem, mas o instrumento que Amanda Parshes trazia consigo era uma chave para abrir alguma coisa, e eu iria descobrir aquela noite mesmo.


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