A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 11
Descobrindo a verdade, escondendo o Segredo


Notas iniciais do capítulo

Peço desculpas pela demora. Precisei rever os capítulos que havia escrito, mas agora está tudo certo. xD
Espero que se divirtam



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Descobrindo a verdade, escondendo o Segredo

 

Talvez meu cérebro estivesse em curto. Morar em Seattle me passou a falsa idéia de ter visto de tudo. Caramba, como eu estava errado! Minha sanidade se recusava a aceitar os últimos acontecimentos e, depois daquela noite, eu consegui ver a fina e frágil linha entre a realidade e o desconhecido. Eu havia rompido esse limite e, agora, não havia um caminho de volta.

Sozinho no meu quarto, eu me dividia entre o medo, a euforia e a insanidade, todas essas sensações tentando me dominar. Eu precisei me conter para não sair correndo sem rumo, gritando e gastando o máximo de energia, até não poder pensar em mais nada.

Abi era como eu, e eu não fazia idéia do que eu era. Meus olhos, ainda vermelhos, encaravam um completo estranho no reflexo do espelho. Pela primeira vez os últimos dias me pareceram absurdos, e mais absurdo ainda a forma como eu havia lidado com essas situações. A ficha tinha demorado a cair mas, agora que caiu, uma onda de pânico abriu meus olhos. Eu estava vivendo um momento surreal.

Por mais que eu quisesse, dormir parecia ser uma coisa cada vez mais impossível. As palavras de Abi vez ou outra invadiam o espaço dos meus pensamentos. FourFace, alguma coisa sobre um conselho, célula, jurisdição. Era tudo diplomático demais. Aqueles poderes não tinham nada a ver com diplomacia. Mas a forma como Abi dizia, dava a entender que havia alguém, em algum lugar, ou muito mais do que apenas um alguém como eu. Jurisdição. Ela era alguma força-tarefa, ou o que?

Questionar demais só aumentava minhas perguntas e ansiedade, mas era involuntário. Dentre todas as coisas que ela havia dito, a que mais me chamava atenção era apenas uma: Homúnculo? Ela perguntou se eu ouvira falar sobre isso. Eu já ouvira falar em histórias, lendas, coisas de alquimia.

Inquieto, desistindo de lutar contra a insônia, levantei-me e fui até o computador. Acessei um site de busca e, ainda hesitante, digitei a palavra “homúnculo”. Não era uma palavra misteriosa, na verdade, era bastante conhecida. Por muito tempo foi usada para tentar explicar a origem da vida, quando uma criança é gerada no ventre. Os cientistas acreditavam que antes de nos tornarmos, de fato, humanos, passávamos por um estágio de pré-formação, o homúnculo. A última informação dizia que o Homúnculo era como uma quimera, metade homem, metade animal. Por último, havia a informação de que homúnculos são criações a partir de objetos inanimados, ou os clones.

O que ela queria dizer com aquilo, eu não sabia, mas havia fotos, imagens meio grotescas, desenhadas a mão, ou desenvolvidas em computador, uma pior que a outra. Embora eu pesquisasse cada vez mais, menos eu sabia. Não havia nenhuma relação com qualquer um dos acontecimentos em minha vida nos últimos dias. Até onde eu sabia, não havia cruzado com nenhum clone ou com uma quimera desde a minha mudança, mas havia algo na minha cabeça, um pensamento vago que parecia querer tomar espaço, me dizendo que era apenas o começo.

Fiquei até as três e meia da manhã tentando dormir quando, finalmente, o cansaço do dia me engolfou e caí no sono. Bem, eu preferia ter ficado acordado.

Eu estava caminhando em um campo verde no meio da tarde, completamente sozinho e, de repente, uma tinta negra descia do céu e tudo virava noite. Apenas dois pontos vermelhos eram vistos de longe. Eles se aproximaram tão rapidamente que eu nem pude me mexer e, quando percebi, Abigail estava com o seu nariz colado em meu rosto. “Somos o mesmo tipo... O mesmo tipo de monstro”, foi o que ela sussurrou. Então o chão se rachava e nos separava em extremos. Eu tentei gritar pelo nome dela, mas minha voz não saía, apenas um ruído esganiçado, sufocante. Era um pesadelo. Mas não mudava o fato de que era horrível.

 

Acordei com o sol morno esquentando meu rosto, os feixes de luz dourada atravessando as frestas da veneziana. Mais uma vez, eu estava suando frio, minhas mãos tremiam e meu corpo estava dolorido. Apesar disso, meus olhos eram azuis outra vez e meu cabelo era preto como sempre. Embora fosse apenas um sonho, eu sabia que ele iria me assombrar por muito tempo.

Tomei o habitual banho gelado, fiquei quase meia hora com a cabeça debaixo da água.apenas quando saí do chuveiro olhei para o relógio. Faltavam doze minutos para as seis, eu devia ter dormido pouco mais de uma hora, ou quem sabe menos. Mas eu preferi assim, sonhar novamente não poderia ser bom para os meus nervos, eu queria esquecer os últimos acontecimentos, mas era a única coisa que eu conseguia pensar agora, além de tentar aceitar todas aquelas mudanças de uma só vez na minha cabeça. Eu era o perfeito estereótipo de um garoto conturbado da cidade grande.

Desci as escadas silenciosamente, me perguntando onde todos estariam. A julgar pelos murmúrios, apenas meus pais estavam na cozinha, conversando qualquer coisa suspeita. Eu sabia que era errado ouvir conversas particulares, mas eu não estava agindo voluntariamente. Todo o meu corpo se mexia, ansioso para conhecer o segredo dos meus pais. Eu me aproximei, ficando a poucos metros de distância da porta, ouvindo os murmúrios discretos e suspeitos.

_ Você não pode fazer isso, Elisabeth – era a voz do meu pai.

_ Não venha me dizer o que posso ou não. Esperamos muito tempo por isso, entende? – minha mãe falou, seu tom de voz demonstrava toda a sua irritação – durante muito tempo acreditamos que fosse mais especial do que qualquer outra coisa. Depositei minha confiança nele. Agora, simplesmente descubro que ele não é nada especial.

_ Devemos agir naturalmente. Ele vai ter um lar como merece, vai trabalhar, vai ser alguém na vida. Envolvê-lo nisso pode ser perigoso e arriscado. Você sabe como a monitoração é rígida.

_ É só que... Bem, isso fere meu ego.

_ Eu sei, querida. E eu sinto muito, mas você sabe que isso poderia acontecer.

_ Você acha que... O fato de ser mestiço pode atrapalhar em alguma coisa.

_ Acho que é justamente isso que faz toda a diferença.

_ De qualquer forma, querida – meu pai continuou, carinhosamente – precisamos nos concentrar nos nossos filhos. A perda foi grande, eles ainda sentem falta do grande Vincent. Vamos tentar facilitar as coisas...

            _ Você acha que com ela será a mesma coisa? – minha mãe perguntou, preocupada.

            _ Eu não sei. Desde que Emi seja feliz, eu não me importo.

_ Voltamos a estaca zero...

_ É, Lisa. Voltamos sim, e não podemos fazer nada para mudar isso. 

            Eu estava prestes a ouvir mais, mas passos apressados ecoaram da escada, fazendo um barulho muito chamativo. Era Emilliene, aparentemente irritada com alguma coisa.

            Antes que ela pudesse se aproximar, eu já estava bem escondido. Ser rápido tinha muitas vantagens.

            _ Eu não acredito! – a voz de Emi era sempre muito meiga, fosse feliz, brava ou triste.

            _ O que foi querida?- ouvi a voz da minha mãe responder.

            _ Vocês deixaram Brock entrar. Ele destruiu o Grupe.

            _ Ah, querida. Outra vez?- meu pai riu – não acha que Grupo está cansado de ser costurado?

            Estranho. Eles dissimularam bem, disfarçaram a situação tão convincente que, por um momento, havia me esquecido da conversa anterior. De qualquer forma, eu não poderia ficar ali por muito tempo. Eu não queria tomar café em casa, nem ao menos conversar com alguém. Ficar ali iria despertar muitas dúvidas: Por que Abi não ficara para jantar? Por que EU não fui jantar? Eu não tinha nenhuma desculpa em mente, e não estava com cabeça para criar uma naquele momento.

             Não queria ficar para conversar e ter que explicar a noite passada, além do mais, Richard provavelmente sabia que eu havia levado uma amiga para casa e, depois que ele me visse, me provocaria o resto da semana.

            Voltei para o meu quarto, abri a janela e saltei. Caí com tanta suavidade no chão, como se eu tivesse peso-pena, que seria impossível alguém em ouvir fugindo pela janela. Minhas pernas não sofreram nada com o impacto, como se fosse um salto de cordas. Eu sabia que, a cada noite, meu corpo ficava mais forte, minhas habilidades mais acentuadas e, se isso continuasse, eu corria o risco de não ser mais eu dentro de mais algumas noites. Me imaginar não sendo eu mesmo me assustava. Fui até a garagem e peguei minha bicicleta.

            Montado na bicicleta, pedalei rapidamente até a trilha de ipês. As árvores eram altas e robustas, eu poderia esconder uma girafa ali que ninguém ia perceber. Coloquei a bicicleta atrás de dois arbustos repolhudos, que ficavam atrás de dois ipês amarelos e, antes que alguém pudesse me ver, impulsionei meu corpo, atingindo minha velocidade incomum. O vento da manhã fazia cócegas nas minhas orelhas, eu estava mais rápido que qualquer carro na rodovia, embora eu tenha cruzado apenas com uma van e um carro velho que e, certamente, não poderiam me ver com aquela velocidade.

            Quando eu vi a placa escrito “Ford City”, eu me embrenhei no mato velozmente. Caminhei até uma cerca velha e saltei sobre ela, como se eu tivesse caminhado a rodovia inteira. Era isso ou deixar que vissem um borrão rápido como o raio riscando o asfalto cidade adentro. Como eu havia planejado, havia um sobrado ali perto, eu corri até lá e, com um pouco de habilidade sobre-humana, saltei sobre ele. Eu estava no telhado. Engraçado, eu parecia conhecer muito mais minhas habilidades agora e, embora eu sempre tivesse um receio em alturas, essa aversão havia sumido completamente.

            Num impulso agressivo, eu saltei sobre outra casa, e sobre outra, e sobre outra, e mais uma. Minha velocidade era incrível, eu certamente estava rápido demais para que pudessem me ver, isso somado à altura, ninguém iria desconfiar. A sorte estava do meu lado, as ruas estavam silenciosas pela manhã, era muito cedo e meu corpo estava a mil, pronto para cortar a barreira do som a qualquer momento.

            Eu estava em cima do prédio da escola quando eu olhei para o meu relógio. Eu havia gastado exatos um minuto e quarenta e dois segundos, um passeio que, de carro, eu levaria cerca de meia hora ou mais. Eu estava me acostumando com esse meio de locomoção. A escola estava praticamente vazia, eu tinha chegado muito cedo. Saltei entre dois edifícios da escola, numa altura de oito metros ou mais. Nem senti o impacto quando caí no chão, como os gatos fazem quando saltam de muros: silenciosos, sorrateiros. Achei a idéia engraçada e ri da minha piada pessoal.

            Eu saí da fresta entre os dois edifícios. Alguns alunos me olharam curiosos e, provavelmente, se perguntando o que eu estaria fazendo ali. Segredo, pessoal. Caminhei como se nada tivesse acontecido e, de longe, eu avistei a pessoa que eu mais queria ver: Abigail. Ela estava linda naquele traje despojado, uma calça jeans preta, as unhas pintadas de negro, os cabelos amarrados em um pequeno rabo de cavalo, os cílios e as pálpebras rebocados delicadamente e discretamente com maquiagem e os lábios rosados acentuados com batom marrom. Ela parecia mudar o conceito de modas na mesma velocidade com que trocava de roupas.

            Era minha chance, eu tinha que falar com ela, tentar entender um pouco do que havia acontecido conosco na noite anterior e, acima de tudo, eu precisava saber o que eu era. Então era isso, era simples e fácil. Eu caminharia até ela, me sentaria e a conversa perturbadora começaria cedo ou tarde. Eu preferia que fosse cedo.

            Minha intenção era caminhar lentamente, mas meus passos estavam descontrolados, o nervosismo me fez gastar metade do tempo que eu queria levar até chegar a ela. Abi me viu de imediato, seus olhos ficaram arregalados, mas seus dentes trincaram com as mandíbulas apertadas e seus punhos se fecharam. Assim que eu notei sua reação, diminuí meus passos. Eu precisava me acalmar, éramos amigos, ela era gentil, bem humorada e inofensiva, não havia necessidade em sentir medo.

            Nós ficamos a um metro de distância um do outro, ela me encarava sem piscar, mas minha expressão era comum, na verdade, um pouco constrangida.

            _ Você disse que teríamos que conversar, cedo ou tarde – eu argumentei, antes que qualquer palavra pudesse ser dita.

            Os olhos dela se estreitaram levemente, mas seus músculos e dedos relaxaram. Era seguro me aproximar. Vagarosamente eu me sentei ao lado dela, nossos olhos não se desviaram um minuto sequer, estávamos encarando um ao outro.

            _ Eu preciso saber a verdade. – ela disse inexpressiva – de onde você é, o que faz aqui...

            _ Eu sou o Matthew que você conhece, isso começou a acontecer comigo depois que me mudei pra cá, e eu não faço a mínima idéia do que isso significa.

            Ela me observou especulativa, mas, pelos seus olhos, Abi parecia acreditar em minhas palavras.

            _ É difícil de acreditar. – ela disse.

            _ Mas você acredita... Eu posso sentir.

            _ Como?

            _ Eu não sei, só sei que posso.

            Abi respirou fundo, reunindo a maior quantidade de ar que pôde, como se estivesse prestes a mergulhar em um mar profundo.

            _ Você não sabe nada... Sobre o que eu disse ontem?

            _ Nada.Eu juro. – eu completei.

            _ Como isso é possível? – ela parecia perguntar a si mesma.

            _ O que? Olhos vermelhos e cabelo que brilha?

            _ Não. – ela sorriu de leve – você não se conhecer. Não saber o que... O que você é. Isso vai contra as leis, vai contra as regras, contra tudo o que se conhece. Nem sei se você é um homúnculo.

            _ Primeiro me diga o que é isso. – eu pedi.

            _ Você realmente não sabe... – ela tentou esconder o choque iminente. Eu estava me sentindo levemente irritado em ser olhado como um brinquedo brilhante e caro – Mesmo tendo esses poderes... Você os domina?

            _ Não, eu... – a atmosfera era densa, mas ia se condensando a medida que conversávamos, embora eu não me sentisse muito a vontade discutindo minhas anormalidades – eu as vezes corro muito, outras vezes corro pouco. Minha força, ela oscila às vezes.

            _ O que mais... E suas outras habilidades? – ela perguntou, parecendo curiosa agora – o que você pode fazer além disso?

            _ Como assim? – eu perguntei, assustado com a reação dela – eu só faço isso... Já não é estranho demais.

            _ Realmente – ela riu – é estranho o suficiente.

            O silêncio reinou por alguns instantes. Eu estava analisando cada expressão dela, seus movimentos mínimos, e ela parecia fazer o mesmo com relação a mim. Nossas reações eram imprevisíveis. Na verdade, nada depois da minha mudança à Ford era previsível.

            _ Matt... – Abi quebrou o silêncio – Os seus pais nunca te disseram nada?

            _ Sobre o que? – eu arqueei minhas sobrancelhas.

            _ É uma regra... Escuta, pelo menos seus pais são como você?

            _ Ta, como eu? Você quer dizer...

            _ Eles possuem esse dom... O que você tem?

            _ Não! – eu respondi prontamente – somos a família mais normal que existe... Bem, pelo menos éramos.

            _ Nós não somos anormais! – ela retorquiu – somos muito importantes, se quer saber!

            _ Ta, e o que nós somos? – eu enfatizei a palavra “nós” com deboche.

            _ Droga, Matt. Eu realmente não sirvo para explicar esse tipo de coisa. – levou a mão a cabeça, apertando-a com raiva – mas.... Eu sei quem pode. Exceto... Eu não sei como ele vai reagir.

            _ Ele quem? – minhas perguntas estavam sem resposta até agora.

            _ Veja bem, vou explicar da maneira que puder.

            _ Estou te ouvindo. – eu falei.

_ Ótimo. Seguinte, nós somos homúnculos. – ela baixou o tom de voz, observando se não havia ninguém nos escutando – somos humanos, como qualquer outro, mas nascemos com habilidades diferentes, entende? Força, agilidade e outros benefícios adicionais. Nós somos como, hum, guardiões, mais ou menos isso.

            _ Guardiões? – eu a fitei, incrédulo – guardiões do que?

            _ Do resto do mundo, oras. Nós protegemos os humanos de... Ameaças. Não me pergunte sobre isso agora, eu não saberia explicar sem te assustar. Veja bem, isso é um dom que passa de geração em geração. Quando o filho se torna apto e seus poderes florescem, os pais lhe informam sobre o mundo ao qual pertencem.

            _ E que mundo é esse?

            _ Céus, isso vai ser tão difícil! Entende, e como explicar a sua vida pra você!

            Ela respirou novamente, ensaiando para mergulhar, depois me olhou e, pacientemente, voltou a falar.

            _ Você conhece os mistérios da lua? Foi o que pensei – ela disse em seguida quando leu minha expressão – tudo o que nós somos, tudo o que somos capazes de fazer, provém da lua. Ela nos torna capazes de realizar o que humanos comuns não podem fazer. Veja bem, cada fase da lua nos afeta de uma forma, mas a lua cheia é a mais efetiva. É quando somos mais fortes, mais ágeis, por isso nossa aparência muda, mas isso é facilmente controlado depois de um tempo, você consegue controlar as transformações, desde que não use seus poderes com carga máxima. Ah, e não é aconselhável ficar nervoso em noite de lua cheia, isso pode expor os sintomas. 

            _ Então, apenas em período de lua cheia nós mudamos? – eu fiquei refletindo nas palavras dela – eu sabia que eu mudava durante a noite mas, agora que você disse, realmente as mudanças começaram a ocorrer no primeiro dia da fase cheia da lua.

            _ Exato. – ela continuou – ótimo, isso já ajuda um bocado. Bem, nós protegemos o mundo de feras do submundo, de onde viemos.

            _ Nós... – eu falei, devagar – quando você diz, nós, você quer dizer os homúnculos... Eles vêm do submundo.

            _ Se assim fica mais fácil para você entender, tudo bem. O fato é que nós somos diferentes e, segundo meus conhecimentos sobre nossa espécie, você já deveria saber sobre tudo isso.

            _ Acredite, meus pais não são como eu. – eu falei – eles nunca fazem nada de interessante.

            _ Obviamente. – ela continuou – isso é respondido com uma resposta simples. Homúnculos Desertores.

            _ O que é isso?

            _ São homúnculos que nascem sem as habilidades, quando esse dom pula uma geração. Os pais só são permitidos de contar a família quando os filhos recebem o dom.

            _ Se não receberem...

            _ Os pais não podem contar, e quando o filho se torna apto para se sustentar como os humanos, ele passa a viver como um, sem nunca conhecer sua descendência.

            _ Isso é triste.

            _ É o certo. – ela falou severamente – Nosso segredo é um fardo pesado demais para ser carregado por um humano. Nós somos uma sociedade escondida, nos escondemos no que chamamos de submundo, o nosso lar por trás de nossas casas e roupas humanas. É possível que seus pais sejam como você.

            _ Então por que eles nunca me contaram sobre isso? – eu questionei.

            Abi mordeu o lábio, pensativa. Provavelmente, ela estivera se questionando a mesma coisa. Ela se virou para mim e, sorrindo constrangida, ela perguntou.

            _ Lembra-se do que eu te perguntei ontem, perto do lago?

            _ hum... – eu fiz força para lembrar – algo sobre... Uma marca?

            _ Exato. – ela parecia tensa – você... Você tem alguma marca, uma mancha em forma de lua?

            Eu a olhei, pasmo.

            _ Não! – eu respondi – o que isso tem a ver com a minha história?

            _ Olha, eu não posso continuar falando com você sobre isso, não aqui. ...

            Abi pareceu refletir, ficou naquele estado de transe, pensativo, por alguns segundos, e depois continuou:

            _ Isso é ridículo! – eu desabafei.

            _ Quase tanto quanto erguer uma tonelada e correr como o vento?

            Ela ganhou nessa. Realmente, nada estava muito normal para mim ultimamente, eu tinha a leve impressão que isso não mudaria. Nunca mais. Ela continuou falando.

            _ Nós, Homúnculos, não costumamos nos relacionar intimamente com humanos, sabe. Não é uma regra, apenas um conselho. Laços de amizade entre humanos pode comprometer o trabalho.

 Depois daquela informação, uma nova dúvida entalou minha garganta, dividindo um espaço muito pequeno com a saliva que descia diante de meu nervosismo.

            _ Er, Abi.

            _ Sim?

 _ Se você sabia o que a lua cheia fazia, por que continuou lá depois de anoitecer?

Ela fez uma pausa. Me olhou desconcertada e, percebendo que não poderia fugira da pergunta, finalmente respondeu.      

            _ Eu me esqueci do tempo completamente, nem tinha percebido a lua chegar... E, bem, de alguma forma, alguma coisa dentro de mim gritava para que eu pudesse dividir esse segredo com você... – ela fez uma pausa – mas e você? Se sabia que a noite o transformava, por que continuou lá?

            _ Não, na verdade eu perdi a noção do tempo mesmo.

            Ela corou e, pela primeira vez, eu vi uma Abi meiga e delicada, o que contradizia com sua verdadeira essência. Novamente foi ela quem quebrou o silêncio. Na verdade, o sinal do início das aulas o fez por nós dois.

            _ Ouça. O sinal. – ela disse, levantando o dedo indicador – Vamos para a sala. No recreio conversamos com alguém que saiba explicar essa situação melhor.

            _ Quem? – eu perguntei, suspeitoso.

            _ Brian Brown. 

 

            Minha consciência tentava me tranqüilizar. “Já não tem mais nada que possa te surpreender”. Embora eu soubesse que ela estivesse errada, eu decidi acreditar cegamente, pelo menos assim eu adiaria a minha ansiedade. Era perturbador saber que Brian, assim como eu e Abi, tinha algum dom. De repente aquela cidade parecia um para-raios de aberrações. No mesmo ano, três jovens (inclusive eu) completamente diferentes do resto da escola se conheceram em menos de uma semana, e agora estavam conspirando coisas que o resto do mundo não sabia. Ah, claro, tinha a mulher invisível para todos, menos para mim e Brian, o que tornava aquela cidade, no mínimo, amaldiçoada, ou coisa do tipo.

            Abi me olhava freneticamente durante a aula, seu olhar era urgente e preocupante, como se eu fosse uma bomba prestes a explodir a qualquer momento. Na minha cabeça, eu gritava para o sinal do recreio tocar logo, mas minha força de vontade não era tão eficiente quanto minha intuição. O sinal tocou depois de horas definhado na carteira, meu corpo estava formigando de tanta tensão e meus olhos seguiam os de Abi onde quer que ela olhasse.

            Eu corri atrás dela, ela andava a passos largos, olhando para trás vez ou outra para se certificar de que eu estava logo atrás dela. Nós estávamos mais ligeiros do que a maioria dos alunos, obviamente, éramos mais rápidos. Ela desceu o lance de escadas quase como se flutuasse, eu a segui fielmente, passando pelos espaços estreitos entre os alunos despreocupados. Ela correu até o refeitório, me lançando um olhar de urgência, provavelmente me dizendo que eu estava lento demais, então eu apertei o passo.

            Ela sentou-se na mesma mesa de costume, mas Brian não estava lá. Eu me sentei ao lado dela e, assim como os olhos de Abi, os meus corriam por todo o refeitório, procurando algum vestígio de Brian. Nada, nem mesmo uma sombra, um rastro, um cheiro sequer.

            _ Ele devia estar aqui. – ela murmurou para si mesma.

            _ E se ele não veio? – eu arrisquei.

            _ Isso não ajuda.

            _ Como se fizesse alguma diferença... – eu bufei, jogando minha cabeça em cima dos meus braços cruzados sobre a mesa – se ele aparecer, me acorde.

            _ Não, ele não vai aparecer. – ela falou, antes que eu terminasse de dizer – ele nunca está em outro lugar.

            Eu olhei vagamente para o céu, exatamente pela mesma janela por onde Brian olhava no dia anterior, quando seus pensamentos se perdiam no céu azul e morno. Ele continuava ausente no refeitório, agora lotado.

            _ É, ele não veio à escola hoje... Maldito dia! – ela reclamou – Olha, Matt. Eu não vou continuar te falando mais nada, não quero te confundir, nem nada do tipo. Eu realmente não sou boa com histórias. Faça-me um favor. Não diga a ninguém o que você é. Nunca, jamais.

            _ Ok, mas e minha família? – eu perguntei.

            _ Céus! Você tem que me prometer. – ela falou agressivamente – Não pode contar a ninguém. É por isso que fazemos o Juramento.

            _ O que, vocês são escoteiros agora? 

            _ Larga de bobagens. O juramento é para garantir que nenhum homúnculo vai contar nada.

            _ E como se faz? – eu quis saber.

            _ É preciso ser a noite, sob o luar. Você deve ter... Ah, isso não faz diferença agora. Me dê a sua palavra de que isso não vai sair daqui.

            _ Ok, eu juro.

            _ Obrigada. Ah, eu também não vou dizer nada aos meus pais.

            _ E por que não? Eles não são confiáveis?

            _ Matt, você não sabe a repercussão que essa história iria dar. Acredite, estou fazendo isso por você. Se eu contasse, eu poderia te garantir que, antes da meia-noite, os cavaleiros da FourFace já teriam te pegado.

            _ Muito sutis, esses homúnculos. – eu queixei.

            _ O mundo precisa de nós, Matt.

            O tempo correu, rápido demais. Esperamos por Brian impacientemente, nos agarrando ao nosso último fio de esperança. Não deu em nada, ele não apareceu, o sinal tocou e tivemos que voltar para nossas carteiras.

            Assistimos a aula sem nenhuma atenção, Abi preocupada com um Homúnculo avulso no mundo normal, eu preocupado com a minha vida nas mãos de um cara que eu não me dava muito bem. O sinal, teimoso que só, bateu o que pareceu dias depois. Descemos as escadas às pressas, chegamos do lado de fora da escola, nervosos e loucos para resolver o impasse.

            _ Eu vou à sua casa hoje... Não, me encontre na floresta. – ela falou, segurando minhas mãos – Eu vou dar um jeito de te contar tudo o que precisa saber. Vou pesquisar nos antigos documentos alguma coisa similar ao seu... Sua situação. Enquanto isso, não diga a ninguém o que é você, ou o que é capaz de fazer. Às onze horas da noite, depois que todos estiverem dormindo. Ah, se esconda antes da lua cheia.

Ela largou minhas mãos no ar e saiu correndo, sem olhar para trás, me deixando com uma cara de tacho. Bem, pelo menos eu teria minhas respostas logo mais a noite. Ou pelo menos foi o que eu pensei.

 

Depois da aula, Abi e eu tivemos uma rápida conversa, uma discussão sobre contar ou não aos pais dela sobre mim e pedir alguma orientação. Estava claro para Abi que era uma questão a ser descartada. Eu não conhecia as regras, as punições ou qualquer outra coisa que circulava os homúnculos, mas eu sabia que minha existência poderia abalar com qualquer uma dessas regras. Bem, eu precisava agir como um garoto normal, como ela mesmo havia me orientado, e aguardá-la até logo mais a noite na floresta.

Voltei para casa andando dessa vez. Caminhei vagarosamente, contando os passos, sentindo o pânico dentro de mim se transformar. Era mais um tipo de frustração agora. Que tipo de vida e injusta era aquela? Eu sou quem eu sou, como a verdade sobre mim poderia ser restrita a MIM? Eu estava decidido, iria descobrir a todo preço.

No caminho pensei em tudo que Abi havia me dito. Aos pais não era permitido contar sobre a verdadeira natureza deles até que o dom do filho se manifestasse. Bem, os meus haviam se manifestado e, embora meus pais não tivessem me dito nada, eu vasculhei em minha mente todas as coisas pouco comuns que aconteciam naquela família. Havia meu avô que, com certeza, não era um ser humano comum. Nunca tinha visto tanta coragem em uma pessoa. Mas meus pais eram comuns, felizes até. Não era possível serem como eu. Mas essa questão continuou a me incomodar durante todo o trajeto.

Eu devo ter levado quase cinqüenta minutos para chegar à trilha de ipês. Peguei minha bicicleta escondida nos arbustos e pedalei até minha casa. Minha mãe estava em casa, e talvez meu irmão estivesse na empresa com o meu pai. Apurei os ouvidos, tentando localizar a minha mãe dentro da casa. Eu poderia pulara janela do quarto, mas estava trancada e a única forma de entrar que não fosse a porta da frente era a dos fundos, onde certamente estaria minha mãe. Encostei o ouvido na porta da frente. Nenhum ruído. Abri a porta silenciosamente. Me movi silenciosamente sobre a escada até chegar ao meu quarto. Joguei minha mochila sobre a cama e, sentindo o meu corpo aliviar da tensão, me permiti deitar no chão, respirando profundamente, como se o ar tivesse me faltado desde aquela manhã. Mexi na gaveta do criado-mudo, peguei o boné e o óculos, deixei de prontidão para o caso dos sintomas voltarem com a lua cheia. Oi quando eu percebi uma carta sobre a escrivaninha. Era da Abi.

 

“Caro Matthew

 

            Sinto muito, vou ter que furar nosso encontro. Brian contou sobre você para meus pais. Eles pensam que você é normal, e meus pais decidiram que não devo vê-lo mais, o estúpido do Brian disse que estamos intimamente ligados e isso pode atrapalhar o segredo. Eu não posso arriscar e dizer que você é um homúnculo. Acredite, estou tão confusa quanto você. E preocupada também. Não sei quando voltaremos a nos ver, mas não desista. Tome cuidado.  

 

                                                                                                                               Abigail”

 

            Meu corpo estremeceu. Eu estava sozinho novamente. Minha intuição bateu pesadamente na minha cabeça. As palavras “Não sei quando voltaremos a nos ver” parecia brilhar no papel amassado. Os pais de Abi não sabiam que eu era homúnculo. Para eles, eu era um humano cujo contato era prejudicial ao equilíbrio entre homúnculos e seres humanos. Era certo, inevitável. Assim como Brian, eu não veria Abi na escola.

 

 


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