A Lua escrita por Pedro_Almada


Capítulo 10
Um segredo definhado




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/46999/chapter/10

Um segredo definhado

 

            Estávamos na estrada de terra adornada por ipês, o chuvisco caindo vagarosamente em nossa pele, fazendo cócegas nas orelhas. O vento frio vazia com que os cabelos de Abi se lançassem contra minha nuca, me fazendo arrepiar, ela ria e admirava todo o território que, um dia pertenceu ao meu avô.

            _ Uau! Isso tudo é da sua família? – ela perguntou, ainda encantada com as árvores de ipê.

            _ Na verdade, meu avô conquistou tudo sozinho. – eu respondi orgulhoso – nós apenas herdamos.

            _ Ainda assim, é muito legal! Minha casa é um apartamento em Ford.

            Continuei a pedalar até avistarmos o aras. Faltava pouco agora. Passamos pela cerca, onde a placa com o nome dos Vance havia caído com o vento da noite passada. Abigail ficou super-animada em saber que eu tinha quatro cavalos de corrida na minha própria casa, claro que isso nunca fez muita diferença para mim, mas eles teriam uma utilidade para nós naquele dia. Não demorou muito e Abi soltou uma exclamação com a fonte da mulher de pedra, na frente da casa. Ela estava admirada.

            _ Nossa, Matthew Chambers! Essa é a sua casa!

            _ Ah, para com isso, Abigail! – eu pedi – não fica fazendo essa cena toda. É só uma casa.

            _ Por favor, falando assim parece até falsa modéstia! Eu, com uma casa dessas, daria uma festa todo o final de semana.

            _ Você, com os pais que eu tenho, não freqüentaria muitas festas.

            Assim que subimos a escada de mármore e alcançamos a sala de estar, eu me ofereci para guardar o colete e a mochila de Abigail. Eu os coloquei no cesto atrás da porta, perto do meu moletom, meu boné e minha mochila. Eu a conduzi até a cozinha, onde minha mãe passava a maior parte do tempo. Quando entramos, ela nos olhou com interesse, e seus olhos demoraram um pouco sobre Abigail. Finalmente ela sorriu.

            _ Olá, querido. Vejo que trouxe uma amiga.

            _ Trouxe sim. Mãe, essa é a Abigail. Abi, essa é a minha mãe, Elizabeth.

            _ Me chame de Lisa, querida. – minha mãe pediu.

            _ Como a senhora quiser. Poder me chamar de Abi.

            _ Pode ter certeza que vou. – minha mãe lavou as mãos na pia e pegou uma jarra na geladeira – aqui, bebam um pouco de suco. Abacaxi com hortelã.

            Minha mãe nos serviu em dois copos transbordantes do líquido viscoso amarelo e adocicado. Lisa sempre teve as mãos talentosas, sabia cozinhar como ninguém e, quando preparava algo, era bem feito, para ninguém por defeito.

            _ Uma delícia Sra. Chambers. Digo, Lisa.

            Minha mãe sorriu.

            _ Obrigada. As pessoas nessa casa não costumam elogiar o que eu faço.

            _ Ah, mãe. Não seja melodramática. – eu falei, enrugando o nariz – você sabe que amamos tudo o que você faz.

            _ Bem, de qualquer modo, vão se divertir, a cozinha é minha e se continuarem aqui vou deixá-los com fome – era sorriu – vão brincar, fazer o que crianças fazem. Quando Richard e seu pai chegarem, eu os chamo para o jantar.

            Nós saímos pela porta dos fundos, Abi ainda admirando o espaçoso campo aberto que se estendia como um tapete verde até as altas montanhas mais a frente. As florestas fechadas e as árvores altas davam uma aparência de ambiente intocado pelo homem e Abigail segurou uma exclamação de excitação, como se temesse profanar um lugar tão sereno.

            _ É estranho. – Abi comentou, olhando para o céu fechado, sentindo as poucas gotas de chuva que caíam em seu rosto – Esse lugar é tão calmo. Eu me sinto tão bem aqui.

            _ É, eu sei o que você quer dizer. Eu costumava me sentir assim também.

            _ Eu gosto de chuva. Principalmente durante a noite. – ela comentou.

            “Noite”. Essa palavra me fez estremecer. Eu havia me esquecido completamente do que ela me causava, e eu me senti estúpido e apavorado no mesmo instante. Abigail não podia me ver com aquela aparência, olhos vermelhos, cabelos brilhantes. Todos os acontecimentos do dia, a mulher misteriosa e a minha necessidade em me desculpar com Abi haviam varrido qualquer preocupação com a minha transformação durante a noite. E agora? Como eu iria mandá-la embora. Ou eu esperava anoitecer, ou diria agora mesmo que eu tinha algum compromisso. A segunda opção pareceu bem mais honesta e justa.

            _ Er... Abi. Eu tenho que falar uma coisa. – eu disse, sorrindo timidamente – eu me lembrei que eu tenho um compromisso hoje à noite, sabe e...

            _ Não se preocupe, Matt. – ela sorriu e, em seguida, abriu os braços para receber a brisa. Ela não devia ter o costume de viver em céu aberto – Eu vou embora assim que você me pedir. Não vou me sentir ofendida e, sempre que me chamar, eu venho. Prometo.

            _ Obrigado – eu suspirei, aliviado.

            A maneira como ela lidava com as situações era notável. Sua paciência, tranqüilidade era uma de suas belas qualidades, é claro, além de seu sorriso. A chuva, aos poucos foi diminuindo, até cessar. Era o momento ideal para andarmos a cavalo.

            _ Abi, venha. Vamos até o estábulo. – eu a puxei pelo braço, apontando para a construção de madeira a uns metros de distância – eu quero te mostrar o lugar onde passo a maior parte do tempo.

            _ Nosso primeiro encontro, e você vai me mostrar o seu QG?

            _ Ora, por que não? Você vai voltar outras vezes não vai? É bom saber onde eu vou estar, caso não me encontre em minha ilustre mansão.

            Ela riu prazerosamente e acompanhou meus passos sem nenhuma dificuldade. Além de inteligente e bonita, era ágil. Encontrar um defeito nela passou a ser uma misao secreta para mim.

            Não demorou muito até chegarmos ao estábulo, onde os quatro cavalos descansavam tranquilamente. Abigail foi a primeira a entrar, fascinada com a beleza dos animais, com a estrutura, com tudo. De repente, eu percebi que ela nunca havia estado em uma fazenda, ou sequer em uma casa vitoriana, como se seu mundinho fosse o apartamento dela, ou um mundo de cidade grande onde as coisas eram puro concreto, vidros temperados e metal torcido.

            _ Matt, o cheiro daqui é tão...

            _ Tão esterco? – eu arrisquei, rindo.

            _ Pode ser, mas... Sabe, não cheira tão mal.

            _ É só grama, o que esperava?

            _ Hei, espertinho! – ela me deu um soco de leve no braço – só porque eu não conheço esse mundo de fazendeiro, não quer dizer que eu não saiba o que os cavalos comem.

            _ Ok, mas pelo menos você sabe andar em cima de um? – eu perguntei.

            _ Aprendo com facilidade. – ela brincou.

            _ Ótimo. Escolha um.

            Abigail se aproximou dos cavalos, que estavam confortáveis em meio a tanto capim ceco e tonéis de água. O primeiro era preto, com as patas brancas e uma figura diagonal na testa também branca. O segundo era branco com manchas caramelo, sua crina era maior e espessa. Os outros dois eram brancos, exceto pelo último, que tinha uma mancha marrom escuro na pata traseira esquerda.

            _ Quero o branco. – ela disse.

            _ Beleza. Abi, conheça o Eros.

            _ Alô, Eros.

            Eu o selei e amarrei-o em um pilar de madeira.

            _ Eu vou com Proteus. – eu avisei – o preto.

            Em pouco tempo, estávamos andando com os dois pelo campo, cada um segurando o arreio, ainda não havíamos montado neles. Estávamos puxando os cavalos até a cerca, onde teríamos um espaço mais reto para caminharmos. Enquanto não chegávamos, Abigail brincava com Eros e acariciava seu focinho enquanto andava, seguindo o meu conselho, para criar uma certa afinidade com o animal. Proteus era meu desde o dia em que ele era apenas um potro, então eu não tive problemas.

            Assim que alcançamos a cerca, ajudei Abi a subir em Eros, pulei sobre Proteus e, a frente dela, nos guiei até a porteira.

            _ Vamos caminhar um tempo, então talvez demore um pouco. – avisei.

            _ Por quê? Eles não sabem correr?

            Eu dei uma gargalhada.

            _ O problema é você, já que nunca correu a cavalo. Eros é sistemático, leva tempo até você conseguir controlá-lo quando se está correndo. Ele não é de parar quando sente a adrenalina.

            _ Então eu acho que escolhi o cavalo certo. – ela respondeu, confiante.

            _ Você é quem sabe. – eu falei, desafiador.

            _ Uma corrida, que tal?

            Então ela estava querendo apostar comigo? Uma corrida, eu e Proteus contra Eros, o desajustado e uma amadora. Isso seria mel na chupeta e fiz questão de mostrar isso a ela.

            _ Só não venha pedir por clemência quando você estiver comendo poeira, ok? – eu caçoei.

            _ Quando eu estiver na sua frente, por favor não fique olhando o meu traseiro, garanhão. – ela falou desafiadoramente – isso se você conseguir me acompanhar com os olhos.

            Nós dois rimos, mas dispostos a sustentar o desafio. Assim que chegamos à porteira, atiçamos os cavalos e eles apertaram os cascos na estrada de chão, impulsionando o corpo contra a barreira de vento. Estávamos correndo velozmente, acompanhando as aves ágeis que cortavam o céu acima de nós. Camadas de barro de formaram no chão com a chuva, e os cascos batendo com impacto na estrada espirrava gotas de lama em nossas pernas. Sorte estarmos de calça naquele dia.

            Eros e Proteus eram os cavalos mais rápidos, não foi difícil alcançarmos uma boa velocidade. O vento gélido passava por baixo de minhas orelhas, Abi gritava e ria ao meu lado, aproveitando cada momento. Estávamos emparelhados, incapazes de decidir quem estava na frente. Surpreendi-me com a destreza de Abi sobre um cavalo, julgando sua pouca experiência. Ela se movia graciosamente, seu cabelo acompanhando as alterações do vento, desviando das poças de lama e dos animais que teimavam em cruzar nosso caminho.

            Estávamos perto do campo vazio, perto da floresta densa. Paramos perto da certa onde, dias atrás, eu havia me esborrachado. A grama estava mais alta desde a primeira vez que estive ali, as árvores continuavam imponentes e inabaláveis, claro, quando eu não estava arrancando-as do chão só por diversão.

            _ É, acho que ganhei. – Abi falou, saltando do cavalo e o conduzindo até uma árvore, onde o prendeu.

            _ Ora, por favor! Eu cheguei primeiro – retorqui, amarrando Proteus na árvore ao lado – você não poderia me vencer. Nunca.

            _ Mas eu venci.

            _ Ok, vou te dar esse gostinho. – falei, rindo. Ela tinha ganhado, de qualquer maneira.

            Nós caminhamos lado a lado até a densa aglomeração de árvores. Assim que nos aproximamos, eu fiz uma anotação mental: parar de arrancar árvores. Eu percebi claramente que ela parecia mais iluminada desde o primeiro dia ali, eu estava destruindo o telhado natural da floresta.

            _ Lindo demais! – ela exclamou - oh, mas veja... Todas aquelas árvores. Arrancadas até a raiz?

            Ela me olhou, espantada. Eu não precisava me preocupar, eu não precisava nem explicar. Ela só fingir de desentendido, como qualquer um faria.

            _ Pois é. Está assim desde o dia em que eu cheguei aqui.

            _ O que você acha que pode ser? – ela me perguntou, ainda analisando os galhos caídos.

            _ Sei lá, raios devem cair aqui em tempos de tempestade, eu acho.

            _ Bem, mas deve haver algo mais dentro dessa floresta, não?

            _ Lógico. – eu respondi, agarrando-a pelo braço – vem comigo.

            Eu a conduzi até as entranhas da floresta, onde as árvores maiores e mais grossas se concentravam, como as imperatrizes do local. Abigail olhou cada canto, observou cada animal sobre as árvores, sorrindo freneticamente, contente por estar ali.

            _ De quem é tudo isso? – ela me perguntou.

            Eu me sentei em um tronco caído coberto de musgo.

            _ O proprietário morreu, ou algo do tipo, e as terras foram a leilão. Meu pai me contou que quem o comprou nunca deu as caras. Nem pôde.

            _ Deve ser algum riquinho exibicionista.

            Eu fechei os olhos, visualizando o céu nublado acima de nossas cabeças, agora um pouco mais escuro. Abigail pareceu conseguir ler minhas expressões e se aproximou de mim, sentando-se ao meu lado.

            _ Desculpe. Foi seu avô quem comprou?

            _ Sim. – eu murmurei – dois dias antes de morrer.

            _ Sinto muito.

            _ Não é preciso. Eu já sinto por nós dois.

            Ela sorriu de leve, me abraçando pelos ombros e colocando sua cabeça sobre meu braço.

            _ Todos nós perdemos coisas importantes. Mas tudo tem um propósito.

            _ É, acho que sim... – eu me virei para ela, sorrindo – eu conheci você, não foi?

            Era deu uma risada e se levantou, me puxando pelo braço.

            _ Vamos continuar o passeio, Matt. Temos muita coisa para ver.

            Eu permiti que ela me levasse até os galhos retorcidos de árvores, o início de nossa caminhada aventureira. Eu havia rondado toda a floresta no final de semana, mas sem minha velocidade, demoraríamos um pouco mais. Passamos por galhos de árvores caídos, pedras rachadas, tudo feito por mim, vez ou outra nos escondendo da chuva que, ora engrossava, ora afinava.

            _ Matthew, você já morou em Ford antes? – Abi perguntou, só para quebrar o silêncio. Ela não parecia realmente interessada – Quer dizer, antes de se mudar esse ano?

            _ Não. Eu vivi em Seattle a minha vida inteira, mas Ford sempre foi minha segunda casa. Mas passar as férias e morar em Ford são coisas bem diferentes.

            _ Seu avô é daqui, certo?

            _ Meus pais também. Eu e meus irmãos somos de Seattle.

            _ Sente saudades?

            _ Todo o dia. Mas estou tentando me acostumar, e até que não é tão difícil.

            _ Eu sei, eu facilito as coisas. – ela sorriu.

            Nós dois rimos da brincadeira, embora eu não pudesse negar. Na verdade, Abigail me ajudou a esquecer minhas antigas amizades, ou melhor, ocupou o vazio deixado pela distância entre eles e eu.

            _ Mas e você? – e perguntei – o que te fez vir pra Ford?

            Abi não respondeu de imediato. Ela saltou sobre um tronco com lodo e, assim que se segurou em uma pedra, limpando as mãos, falou:

            _ Meus pais gostam daqui. Eles visitaram aqui uma vez, e gostaram. Minha mãe sempre gostou de vizinhança pequena. – ela brincou, só de praxe – Além do mais meus pais tinham, hum, serviços a se fazer aqui.

            _ Onde eles trabalham? – eu perguntei.

            Ela não me respondeu, apenas apontou para um lago límpido logo depois de algumas árvores, que deixavam espaço para uma fenda no meio da floresta densa. Era como um pequeno campo no coração da floresta.

            _ Ah, estou com sede. – ela disse, enfim – vamos beber ali.

            Abigail correu até a margem e ajoelhou-se na grama úmida, unindo as mãos em forma de concha e levando água ao rosto.

            _ Hum, está boa. Gelada. – ela murmurou.

            _ E nada limpa, eu acho. – eu falei – é melhor não beber.

            _ Não se preocupe, só quero me refrescar.

            _ Com esse tempo frio? – falei, confuso.

            _ Nem tanto. – ela levou mais água à face.

            Eu sentei-me ao lado dela e repousei minhas costas na grama, fechando os olhos, cruzando minhas mãos acima da cabeça, como um travesseiro. Uma brisa leve e fresca passou pelas minhas narinas, fazendo cócegas.

            _ Aqui é bom. – Abi disse, deitando-se ao meu lado – tão fresco, e calmo, e silencioso... Eu poderia ficar aqui o tempo todo.

            Eu abri os olhos e me virei para ela, sem perceber mais nada a minha volta. Ela estava deitada ao meu lado, seus olhos fixos em mim. Ela sorriu e eu retribuí o gesto com gosto.

            _ Que bom que você veio, sabe... – eu falei, ainda sorrindo – há muito tempo não encontro alguém para dividir as mesmas coisas.

            _ Eu sei como é.

            Ela se aproximou um pouco mais, levando suas mãos até o meu braço. Eu ergui minha cabeça e, descruzando as mãos, segurei as dela. Seu toque estava morno, tranqüilizante. Nós não sabíamos o que, exatamente, estávamos fazendo, mas eu não me incomodava em continuar. Ela levou uma de suas mãos até o meu rosto, alisando minha face com ternura. Meu coração disparou, com frenesi. Uma onda de sentimentos me engolfou. Nossos rostos se aproximaram e as pontas de nossos narizes se tocaram. Eu a segurei pela cintura, sentindo o hálito quente dela em meu rosto. Então aconteceu.

            Primeiro o espasmo de pânico. O espectro da lua se projetou nos olhos delas, os raios prateados inundaram a atmosfera. Era noite e eu nem havia me dado conta. O segundo impacto veio com o que eu vi. Os olhos dela, antes azuis, mudaram de cor. Não era o mesmo anil do céu. Era como se o bulbo de seu olho estivesse sangrando, tingindo a íris de vermelho vivo, sua pupila se fechando em uma fenda vertical, como olhos de lince. Seus cabelos castanhos mudaram, emanando uma luz bronze das pontas dos fios, iluminando seu rosto assustado. Ela parecia me olhar com o mesmo assombro que estava evidente em meus músculos contraídos do rosto. Então eu me dei conta que ela estava vendo o mesmo em mim. Os mesmo olhos vermelhos, os mesmos cabelos reluzentes.

            Nós nos afastamos com uma velocidade igualmente absurda. Em milésimos de segundos, estávamos uns cinco metros de distância, encarando um ao outro. Nossas mãos estavam enterradas no chão, nossas pernas flexionadas. Ela me fitava com olhos assustados, eu retribuía o olhar involuntariamente. Fosse o que fosse, nós éramos iguais, com os mesmos olhos assustadores, os mesmo cabelos brilhantes, a mesma velocidade sobre-humana e, provavelmente, a mesma força.

            A atmosfera amena tinha se dissipado, dando espaço à tensão entre nós. Eu estava rígido, eu via claramente os olhos arregalados de Abigail cintilando a mesma luz escarlate que eu podia sentir emanar nos meus. Uma rajada de vento invadiu o espaço que competíamos com nossa respiração pesada. Os cabelos reluzentes de bronze acompanhavam o movimento das correntes de ar, mas não era a mesma coisa como quando andávamos a cavalo. Sua imagem era agressiva, assustada.

            _ Matthew! – a voz dela quebrou o canto agourento do vento – Explique isso! Eu quero respostas!

            _ Respostas? – eu a olhei, confuso, mas sem perder baixar a guarda – eu deveria estar fazendo essa pergunta?

            _ De que Célula você pertence? Essa jurisdição é minha! De que lado você está? Comece a dizer, Matthew, ou eu...

            Minhas mãos apertaram um pouco mais. A atmosfera parecia pesar sobre nossos ombros, nos obrigando a manter uma posição agressiva durante todo o tempo. Mesmo com aquela situação inexplicável e apavorante, eu sentia que deveria me acalmar. O perfume de Abigail consumia todo o ar, o cheiro de lavanda invadia minhas narinas, como uma mensagem, como se dissesse que tudo estava bem. Embora estivesse mais tranquilo, não poderia baixara guarda. Se eu conhecia bem aqueles sintomas causados pela noite, Abigail poderia me machucar sem muito esforço.

            _ Célula? – eu repeti, confuso – jurisdição... Escuta, o que você está dizendo?

            Ela ficou calada por um minuto. Ao que parecia, ela estava analisando meus movimentos e estudando minhas expressões. Ela não parecia contente, nenhum pouco, mas ela não podia sentir a tranqüilidade que eu sentia diante da situação. Ela parecia não compreender que não havia perigo algum. Mas eu confiava nela e, mesmo sendo diferente, como eu, ela era uma boa pessoa. Eu queria acreditar que aquela era a mesma Abi que eu conheci no pátio da escola.

            _ Eu fui enviada pra cá, entendeu? – ela disse em tom de aviso – eu não estou aqui por conta própria. O próprio Conselho de FourFace...

            _ Do que é que você está falando? – eu pedi, impaciente – o que é essa coisa de Célula e jurisdição? Essa four... Four-isso-aí-que-você-disse?

            _ FourFase. – ela parecia surpresa. Ela me fitou por alguns segundos, uma mescla de choque e preocupação – Você não sabe MESMO do que eu estou falando?

            _ Eu nem sei o que é tudo isso! – eu disse, levando a mão aos cabelos, exibindo os fios brilhantes.

            _ Era muito suspeito você conseguir ver aquela mulher, agora isso... Matthew, é bom você estar do lado certo!

            _ Eu não sei de nada, Abi! Eu não sei o que está acontecendo comigo, ou com você, eu não entendo nada do que você está falando! Eu preciso ser mais claro?

            _ Desculpa, mas agora eu não entendi... Você não sabe... O que é “isso”?

            Abi apontava para os meus cabelos azuis cintilantes, mas em momento algum ela pareceu afrouxar sua posição de ataque.

            _ Não. – eu disse, ainda nitidamente confuso – um dia eu me olhei no espelho e estava com olhos vermelhos, cabelos brilhando...

            _ Não tente me confundir. Matthew – os olhos de Abi se estreitaram por um segundo – se você está com o outro bando, é melhor dizer. O conselho não vai gostar de saber...

            _ Abi, para! Para de falar esse monte de coisa sem sentido!

            Conseguir assimilar a situação era algo difícil, quase impossível. Eu era diferente do resto do mundo e, depois de uma mancada, me esqueci que já estava anoitecendo e revelei meu segredo para a pessoa que eu mais temia se afastar de mim. Esse medo aumentou quando me dei conta que ela era como eu.

            _ Eu não estou tentando te deixar confusa... O que é você? O que EU sou?

            _ É impossível! É impossível – a boa e velha Abi não era a mesma. Ficava repetindo a mesma frase para si mesma, chacoalhando a cabeça, como se fosse difícil demais compreender que aquela situação era real.

            _ Eu teria dito isso há alguma semanas. Mas, agora, eu não sei o que é impossível... – minha voz falhou.

            _ Isso é impossível! – ela exclamou – a menos que...

            Os olhos vermelhos de Abi me estudaram de cima a baixo, quase como se pudessem ler a minha alma. Ela estava confusa, aflita, e, pela minha reação, eu agia da mesma forma.

_Você tem alguma marca?

            Abigail parecia interessada em alguma coisa em mim, agora. Aquela atmosfera densa estava me deixando nervoso.

            _ O que?

            _ Matt, eu preciso saber se você tem alguma marca?

            _ QUE MARCA! – eu berrei, nervoso.

            _ A MARCA DA LUA, DROGA!

            _ EU NÃO SEI O QUE É ISSO!

            _ ISSO É IMPOSSIVEL! – a voz dela soava muito diferente agora. Soava agressiva.

            _ DROGA, ABI! VOCÊ TA ME DEIXANDO NERVOSO!

            Nós nos calamos, encarando um ao outro. De alguma forma, ela sabia exatamente o que significava todos aqueles sintomas, coisas das quais eu desconhecia. De alguma forma, ela tinha respostas que poderiam esclarecer muita coisa, mas eu não achava uma boa idéia questionar agora.

            _ Escuta, Matt... – ela respirou – Somos amigos e fazemos parte do mesmo grupo. Eu preciso que você me diga, de onde você é.

            _ Sou de Seattle, nasci lá e vivi por lá a minha vida inteira! Me mudei quando meu avô morreu de infarto... Droga, Abi! O que ta acontecendo?

            _ Você já ouviu falar em Homúnculo? – ela perguntou, cautelosa.

            _ Homu-o-que?

            _ Inacreditável... – ela levou a mão ao queixo, me fitando com olhos duvidosos.

            A lua cheia desapareceu do céu. Ela não estava mais iluminando o lago, uma grande nuvem negra a cobriu, e gotas pesadas de chuva começaram a cair, caindo sobre nossos cabelos, que reluziam como diamantes. Eu ouvi o latido de Brock e o relinche dos cavalos, que pareciam atiçados com alguma coisa. Eu estava confuso demais para compreender qualquer coisa, ou ouvir qualquer coisa que Abigail tivesse para me dizer.

            _ Por favor, vá embora, Abigail... – eu pedi, minhas mãos tremiam tanto quanto minhas pernas – vá embora!

            _ Matt!

            _ Eu pedi pra ir embora!

            _ Mas, eu tenho que...

            _ Você tem que ir! – eu a olhei – eu não sei o que isso significa, e minha cabeça não vai parar de rodar enquanto eu não tentar entender isso, então... Vá embora. Por favor!

            _ Matt... Ok, eu estou indo. Mas você sabe que nós vamos nos cruzar uma hora e teremos que conversar sobre isso, não sabe?

            _ Eu sei... Por isso eu to pedindo pra você ir... Eu não vou conseguir conversar sobre isso agora. Vá, por favor... Pelo respeito que tem pela nossa amizade. Volta pra sua casa.

            Ela fechou os olhos, eu percebi porque as duas esferas vermelhas brilhantes se apagaram. Então eu ouvi o barulho do vento praticamente correr e a grama levantar à altura da minha cabeça. Ela havia sumido, tão rápido quanto eu faria. Ela desapareceu, e eu não vi mais um sinal da presença dela.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Lua" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.