Charlie acordou deitada em sua cama, mas como se simplesmente estivesse dormindo o tempo todo. Até tapada ela estava. Ela se livrou dos cobertores com um chute irritado, sentindo que se libertava de uma espécie de grade que a prendia, quando ouviu o barulho de algo pesado caindo no chão. Com o coração batendo forte por não querer que fosse o que achava que era, ela se curvou para ver em baixo da cama. Lá estava ele, com a superfície polida e prateada. O espelho.

“Merda” pensou.

Ela o pegou rapidamente e foi até o banheiro, colocando-o embaixo da banheira, o mais fundo que conseguisse. Não queria nem ao menos esboçar algum sentimento de que sabia onde estava o espelho. Ela voltou a olhar para a janelinha de cima da banheira, vendo as folhas de uma árvore que havia ali perto. Ela se sentiu presa e melancólica. Ninguém sabia onde ela estava, seus amigos poderiam estar longe e, sabe-se lá quanto tempo demoraria até eles descobrirem que o espelho estava com ela, outra vez. O espelho a fez lembrar de sua mãe, e do sentimento de que ela traíra Afrodite só aumentou o peso no coração. Por que tudo tinha que ser tão complicado? Por que ela, simplesmente,não poderia ter ido até Hollywood, entregado o artefato e, então, estaria livre para viver em paz no acampamento? – ou tão em paz quanto um semideus consegue ficar.

Ela voltou para o quarto e sentou-se na cama, abraçando o próprio corpo. Ela estava ferrada, muito ferrada. Além de ter traído horrivelmente sua mãe, estava sozinha. Com Hera odiando ela pressionando-a a devolver o espelho.

“Preciso da sua ajuda, mãe.” Pensou. “Me tire daqui, por favor.”

Naquele instante a porta se abrira. Charlie sentira um arrepio pelo corpo todo, era um dos capangas de Morfeu. O mais forte. Ele estava diferente da última vez que o vira. Mas agora, não era algo muito aparente.

–Então a Bela Adormecida acordou?

–O que quer? – rebateu, irritada.

–Oh, você sabe o que quero.

–Na verdade eu...

–Sim, você sabe tudo agora, não se faça de besta. Me de o espelho.

–Não o tenho.

–Sim, você o tem. Ele só segue quem se apresentar forte o bastante para empunhá-lo.

–E?

–E, sua espertinha, em palavras mais fáceis pra essa sua cabecinha, o espelho volta para você.

–Eu não o tenho. – ela disse, simplesmente.

Sem que Charlie pudesse processar o que aconteceu, o homem se moveu rapidamente e a puxou pelos ombros, prensando-a na parede.

–O que está fazendo? Me solte! – ofegou ela.

Por um instante ele a soltou, mas apenas para mudar, rapidamente, a posição dos braços. Um deles estava em seu pescoço e o outro se apoiando na parede.

–Onde está o espelho, lindinha?

E então Charlie percebeu o que estava diferente nele, estava lucido, não no estupor de sonhos que Morfeu os deixara. Mas então, porque eles ainda trabalhavam para eles?

–Já disse que não está comigo! Ficou no acampamento do qual vocês me levaram!

–Revistamos o acampamento, querida, nós o achamos. Mas ele sumiu... – ele sorriu maliciosamente e Charlie sentiu um forte cheiro de cigarro. – Todos sabem que ele volta para você. Não adianta nos enganar, aposto a minha vida de que ele já está nesse quarto.

–Então você já está morto. – disse Charlie, sem pestanejar, seu ódio aumentando.

–Não me provoque. – grunhiu ele.

–Como pode estar acordado? – perguntou ela, sem conseguir segurar a curiosidade.

–Oh, - ele gargalhou. – Rainha Hera me acordou, não achou certo fazermos algo contra nossa vontade. Ela me convenceu... Nada que uns dólares não ajude, você sabe.

–Você me enoja.

–Mas você não – disse ele, mansamente. O estômago dela revirou. – Até que você é bem bonita... Hera disse que qualquer coisa para arrancar-lhe o espelho era válida. Isso ajudaria, não acha?

Lágrimas queimaram o fundo dos olhos dela, mas ela só sentia ódio. A mão que se apoiava na parede, agora estava no quadril dela, levantando lentamente a camiseta laranja do Acampamento Meio-Sangue. Ela sentiu que ia vomitar.

–Não, por favor – ela murmurou –, eu só... Eu só tenho 15 anos. Por favor, não.

–E eu tenho 37, é uma pena, não acha? Mas é só diversão... A não ser que queira me dar o espelho.

–Eu não tenho, por favor. Não! – uma lágrima desceu pelo seu rosto. – Me solte! – ela via que a segurança do Charme estava fraca devido ao medo enorme que sentia, mas o homem parou.

Nos olhos escuros, marcados pela idade, do homem, ela viu os próprios, assustados e em constante mudança de cores. Acontecia, agora, sem ela perceber. Ele parecia hipnotizado pelo fato. Um leve alívio passou por ela. Houve um forte estalo no quarto e o homem largou Charlie, tombando no chão inconsciente. Atrás dele, na porta, Morfeu tinha o braço levemente levantando, o dedo indicador e o polegar juntos. Olhava com o mais profundo ódio para o outro homem adormecido, aos pés de Charlie.

–Verme – murmurou com nojo – Scott, leve Lonny daqui e traga comida para a garota. – disse, sem levantar o olhar.

O outro homem – que ainda estava no estupor dos sonhos, Charlotte percebeu – entrou no quarto e levou, com dificuldade Lonny, ainda desmaiado. Ele era umas três vezes maior que Scott. Em seguida, voltou com uma bandeja carregando um prato com uma pizza fria e saiu com Morfeu, trancando a porta. Em nenhum momento Charlie se mexera de onde estava ou eles sequer perceberam sua presença. Charlie deixou suas lágrimas correrem livremente, agora que estava sozinha. Sentiu seu corpo exalar o forte cheiro de cigarro e o toque repulsivo de Lonny. Seu corpo começou a tremer em espasmos.

Mas, além de tudo, naquele momento, olhando para aquele pedaço duro de pizza, ela já tinha seu plano para fugir.

***

–Você o atacou enquanto Lonny tentava arrancar o espelho da garota? – explodiu a deusa Hera.

–Ele não estava tentando interroga-la, estava agarrando ela!

–E o que me interessa? Deixei regras claras de que qualquer coisa era válida para pegar esse espelho. Ela pode morrer, por mim, mas eu tenho que tê-lo.

–Não ia conseguir nada dela deste jeito, Rainha Hera. – argumentou Morfeu.

–Se apegou a garota, Morfeu? Terei de revogar seu perdão por ter ficado ao lado de Gaia na guerra?

–Eu já lhe disse que eu tinha a tola esperança de ela me deixar sobreviver caso ficasse ao seu lado. Não me apeguei a criança, mas aquilo seria crueldade.

–Não me interessa! Quero aquele espelho e vou tê-lo com ou sem a garota! – disse Hera, e saiu.

–Eu sei que, se algo acontecesse a ela, que não me perdoaria seria Afrodite. E isso não seria o perdão do Olimpo todo. – sussurrou ele, em seus próprios pensamentos. E se há alguma deusa a qual ele não queria desapontar era Afrodite.

“Oh não, ninguém sabia disto. Não constava nas histórias nem nas lendas. Nem mesmo representado por gravuras. Afrodite era sua musa e decepcionava-o o fato de, na verdade, Afrodite ser a musa de todos os homens. Uma mulher linda, a deusa da beleza, a sua personificação. Sempre a amara, incondicionalmente. Mesmo sendo casada com Hefesto e amante de Ares. Sempre a amara. Os outros Oneiros, Ítalo e Fântaso sempre riam do pobre Morfeu. Cego em seus próprios sonhos pela deusa que nunca corresponderia seu amor.”

E agora, ele não poderia ser tão hipócrita e cruel a ponto de machucar a filha mais amada e poderosa de seu amor. Seria burrice. Seria idiotice.