As cinzas de um julgamento escrita por Rebeca Paixão


Capítulo 2
O dia em que a terra parou.




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Reagan Smith deu outro pontapé no rosto do garoto com dreads. E foi o último.

–Filho da puta miserável.

Ela cuspiu no rosto dele, e pegou sua mochila de volta. Ali, reunido ás pressas, havia 100 gramas de cocaína, algumas pulseiras de diamantes, 400 dólares em dinheiro e uma jaqueta jeans da Hard Rock.
Reagan achava o cúmulo ladrões se aproveitando do caos para roubar outros ladrões. Vince era apenas um subordinado; um garoto de 17 anos que revendia sua cocaína nos becos do Bronx. Apesar de não ser exatamente o cara mais honesto do mundo, Reagan nunca imaginou que Vince tentaria roubar suas coisas durante o sono. Mas ela precisava agradecê-lo. Se não fosse o garoto puxando sua mochila no armário ás quatro e onze da madrugada, talvez ela ainda estivesse lá, dormindo, enquanto os malditos garotos metidos à ladrões depenavam seu estoque. A verdade é que ela só conseguira salvar aqueles 100 gramas, mas, e daí? Reagan tinha certeza de que aquela merda não duraria muito. As autoridades logo retomariam o controle, e ela voltaria a ser a sub-chefe do tráfico do Bronx. Obviamente, ela não poderia ficar ali, enquanto os bandidinhos faziam arrastões e estupravam as garotas nas ruas.
Reagan pegou sua Smith & Wesson calibre 22, colocou na parte de trás de sua calça jeans e desceu tranquilamente as escadas de sua casa. Na rua, o que ela viu parecia mais um apartheid branco. Aparentemente 7 homens violentavam uma mulher que gritava desesperada, atrás de uma lata de lixo. Dezenas de garotos corriam pelas ruas, atirando bombinhas, jogando pessoas no chão, batendo uns nos outros. Reagan ajeitou sua mochila nas costas e saiu andando pela rua, sabendo que os trombadinhas não ousariam se meter com ela. De mais a mais, ela já havia matado alguém hoje, e não hesitaria em matar de novo, se necessário.

Andando pelo meio do caos, Reagan se permitiu sentir medo. O que diabos estava acontecendo? Há quarenta minutos, um avião monomotor havia caído a seis quarteirões dali. Pela destruição que havia na rua, aquilo deveria acontecer há no mínimo umas cinco horas. Onde estaria a polícia neste momento? Haveria algum outro lugar tão ferrado quanto o Bronx? Reagan achava difícil. Eram cinco e vinte e seis em ponto. Ela acreditava que, quando o dia amanhecesse, tudo voltaria ao normal. A polícia, talvez a SWAT, apareceria com jatos d´água de alta pressão e cães raivosos, os molequinhos vadios seriam presos e ela voltaria para a sua casa e fumaria até seus dedos sangrarem. No exato momento em que pensava nestas coisas e no que faria com os parceiros de Vince, Reagan é atingida por um carro em alta velocidade.

***

–Moça? Por favor, fale comigo... Moça, não morra...

Mais um tapa. Desta vez, Michael Stevenson teve o dedo indicador quebrado. Enquanto ele berrava de dor, apertando o dedo recém-partido, a moça de bandana se sentou, com os olhos arregalados e uma Smith & Wesson 22, carregada, apontada para o rosto do rapaz.

Seus olhos castanhos, estreitos de dor, se arregalaram também.

–Foi só... Só um acidente, moça... Eu não queria atropelar você...

O homem começou a chorar copiosamente, de dor e de desespero.

–Quem diabos é você? - Reagan lhe deu um tapa no rosto. - E pare com essa choradeira.

Eles estavam no banco de trás de um carro SUV com bancos de couro bege. O homem continuou a chorar, encarando o dedo que agora exibia um estranho ângulo em ´´v``.

–Por favor... Eu... Eu não vi você na rua... Eu... Eu...

–Vê se cala a boca, porra. Quem é você? Responda-me e talvez eu não atire no meio dos seus olhos.

Michael Stevenson olhou com terror para a moça de bandana. Uma pedra de gelo. Seu pulso esquerdo estava luxado e ela ainda não demonstrara nenhuma sensação. Ele respirou fundo.

–Meu nome é Michael Stevenson. Eu acabei de me formar em Direito em Columbia. Minha esposa sumiu enquanto dormia. Quinze garotos armados com canivetes invadiram a minha casa alguns minutos depois. Consegui fugir pelos fundos e pegar o carro do vizinho.

–Então roubou um carro, Al Gore? - Reagan deu um sorrisinho sarcástico.

–Por favor, acredite em mim, eu não vi você...

–Eu já entendi, cara, vê se cala a boca. - Ela abriu o vidro do carro e olhou em volta. - Onde estamos?

–Quando vi que você não acordava, e que iam roubar meu carro...

–Seu carro?

–Este carro... Quando vi o que ia acontecer, peguei você no colo e dirigi até a garagem desse condomínio bacana... Aparentemente intocada. Não consigo imaginar o porquê.

–Não consegue imaginar porque não está havendo um blackout em um bairro de ricos? Tem certeza que você cursou a Universidade de Columbia?

Foi a vez de Michael Stevenson soltar uma risada sarcástica.

–Blackout? É isso que você pensa que é? - Michael virava a mão de um lado para o outro, encarando o dedo quebrado em diferentes ângulos. Mas sua mente não estava exatamente ali. - Teríamos sorte se fosse só um blackout, moça.

Reagan guardou a arma na mochila.

–Então compartilhe suas teorias, doutor Nove Dedos. E pare de me chamar de moça.

–Você não me falou seu nome.

–Você não perguntou.

–Essa é uma boa hora.

–Tudo bem. Eu sou a Reagan.

Michael a encarou.

–E você com certeza não usa essa bandana por que acha estiloso, não é?

Reagan suspirou.

–Você já sabe tudo o que precisa sobre mim, Mike. Não force a barra.

–Okay. Veja, Reagan, o que aconteceu foi o Apocalipse.

Reagan olhou para Michael procurando por vestígios de uma piada. Depois soltou uma gargalhada que provavelmente estava presa dentro dela há muito, muito tempo.

–Apocalipse? Cara, você está falando sério? Reagan olhou para ele, que permanecia impassível Michael...?

–Não é uma piada. Você... Você já leu a Bíblia alguma vez?

–Li. O livro de Salmos. Enquanto eu enrolava um cigarro de maconha, no terceiro ano.

–Sabe que vai pro inferno, não sabe?

–Eu já ia pro inferno antes disso, cara. Eu só... Você só pode estar brincando. Apocalipse... Isso é completamente impossível... Assim que amanhecer tudo vai voltar ao normal...

–Acha que minha esposa vai voltar ao amanhecer, Reagan? Olhe pela janela. O sol está nascendo. - Ele olhou o relógio. - São seis e meia. Ainda tem bandidos e gente doida pela rua. Não consegue ouvir os gritos?

Reagan se calou. Os dois ficaram no mais absoluto silêncio por mais um tempo que pareceu interminável.

–Ahn? Michael?

Ele ainda olhava pela janela.

–Sim. Ele respondeu sem desviar os olhos do foco.

–Você... Quando diz que sua esposa desapareceu... O que quer dizer?

Michael lentamente desviou o olhar em direção à Reagan, e a fitou por alguns segundos.

–Significa que, num minuto, Charlotte estava dormindo tranquilamente do meu lado. E, no segundo seguinte, tudo o que havia era a camisa do Weezer, a aliança e a calcinha de vovó que ela usava para dormir. O corpo da Charlie desapareceu, Reagan. Você tem certeza absoluta que nunca ouviu falar do Apocalipse bíblico?

–Quem nunca ouviu, cara? Eu já sei. A volta de Cristo. Um monte de mentiras, se quer saber.

–Não, Reagan, faz sentido...

–Não faz sentido nenhum, porra... Cara... O que é isso no meu pulso? - Ela o pressionou com o dedo. - Dói. Por que está ficando roxo?

–Você luxou o pulso... E ralou a cara toda Ele fez menção de se aproximar Posso ver?

–Pensei que fosse advogado. - Ela o encarou com desconfiança.

–Vamos levar você a algum hospital...

–Você... Você deve estar chapado, Michael... Depois da noite de ontem os hospitais estarão mais do que lotados. Rasga a sua camisa.

–O que? Essa camisa custou 300 dólares...

–Rasga a porra da camisa ou eu rasgo você, não queira saber em que sentido.

Michael suspirou e desabotoou a camisa, falando palavrões mentalmente.

–Você é atleta? - Reagan observava com atenção os músculos da barriga do rapaz.

–Eu nadava, se quer saber. Foi nas Estaduais que conheci Charlotte.

–Problema é seu. - Reagan tomou a camisa de brim da mão de Michael e arrancou uma tira dela. Enfaixou com força o pulso e deu um nó bem apertado. Mexeu o pulso algumas vezes e jogou o retalho da camisa em Michael.

–Como você quer que eu vista isso? - Perguntou Michael.

–Eu não pedi pra vestir. Você fica bem mais aceitável só de calça.

Michael rolou os olhos.

–Que seja... Ei, Reagan, você tem família? Quer dizer... Alguém pra ficar... Durante o caos? Poderíamos ficar juntos.

–Não. Se aparecerem zumbis, você vai retardar minha fuga.

–É sério. Temos mais chances de sobreviver juntos...

–Porra, nunca ouvi tanta merda vivendo no meio de traficantes e cafetões... Vamos mudar o aspecto da proposta: Enquanto o Exército não vem salvar a gente, que tal eu e você ficarmos juntos?

–Ótimo. - Ele a encarou. - Está com fome?

Ela apontou o volante com o queixo.

–Starbucks, motorista.


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