O Misterioso Mundo de Julia escrita por Perugia


Capítulo 10
O Homem Sem Rosto




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A alvorada já vinha surgindo, eram quase cinco da madrugada e Ana fitava a paisagem pela janela. A chuva finalmente havia dado uma trégua, depois de tanta água, tudo o que restava agora era uma leve garoa que caia calmamente sobre a cidade.

Jorge havia adormecido na poltrona ao lado do leito, a essas horas seu ronco já era perceptível. Julia continuava sedada, não acordaria tão cedo, fora literalmente apagada, apenas um filete de saliva lhe escorria pelo canto da boca. Ana estava inquieta, estava cansada, destruída, mas relutava em continuar acordada, não conseguiria dormir mesmo que quisesse e como não tinha sono se pôs a fitar a paisagem, ficando ali parada em frente a janela por vários minutos, perdida em seus pensamentos.

“Sinceramente, esquizofrenia, isso só pode ser brincadeira, minha filha é uma garotinha normal, e eu vou provar isso, nem que eu tenha de procurar uma segunda opinião, ou quanta opiniões forem precisas, minha garotinha não é louca, ela só está confusa...”

(...)

Ao abrir os portões do cemitério Julia assustou-se, uma enorme luz lhe envolveu deixando-a cega por alguns segundos. Seus olhos lacrimejaram, teve dificuldades para recuperar a visão, quando finalmente conseguiu enxergar surpreendeu-se, ela não estava mais no cemitério, mas nas ruas de uma cidade.

O lugar era parecido com Boa Ventura, mas era só a aparência, a cidade tinha um aspecto velho de mofo e ferrugem, enormes prédios erguiam-se imponentes por entre as nuvens, o céu era cinza como tudo mais na cidade. Nas calçadas as pessoas andavam apressadas para lá e para cá, expressões frias, movimentos frios, não tinham tempo para parar ou para conversar, pareciam robôs programados a seguirem uma rota.

Julia tentou misturar-se a multidão, calmamente observava a expressão de cada um que ia passando, eram homens e mulheres de todas as aparências, os homens trajavam terno e as mulheres vestidos pretos. As pessoas iam e vinham pelas ruas em um fluxo quase interrupto, pareciam apressadas, não conversavam ou se olhavam, apenas se ouvia o barulho de seus passos rua acima ou rua abaixo. Tentou comunicar-se, pedir informações, mas ninguém a respondia, parava ou sequer olhava para ela. Sentiu-se insignificante e desprezada, pelos sete infernos o que está acontecendo aqui?

Desesperada e sem saber ao certo para onde ir, andou aleatoriamente pelas ruas por entre os desconhecidos. Quando já estava farta de andar e suas pernas começaram a doer, deparou-se com um banco de praça, o qual apareceu em uma boa hora. Sentou-se e se pôs a fitar os estranhos indo e vindo, estava cansada e aparentemente faminta, o que faria agora? O que aquela velha maldita quis dizer? Como ela ousou lhe dizer tais coisas e desaparecer? Essas perguntas atormentavam Julia, queria acordar e sair dali, mas não sabia como, e nem deveria se quisesse descobrir a verdade.

Triste e desamparada pôs-se a observar o céu cinzento, algumas finas gotas de chuva começaram a cair, e foi só a partir daí que percebeu que estava frio. Os estranho transeuntes como que em um passe de mágica abriram todos ao mesmo tempo guarda-chuvas negros, enquanto seguiam seus caminhos cidade afora. Nesse meio tempo, sem se dar conta um vira-lata saído de algum lugar aproximou-se dela e se enroscou em suas pernas. Feliz por ver um ser vivo diferente e alegre Julia pôs-se a conversar com o animal.

– Olá amigão, que estranho não? Você ser o único a me dar atenção nesse lugar – disse afagando a cabeça do animal, enquanto este dava leves gemidos e se enroscava com mais força em suas pernas.

– O que você quer amigão? Se está com fome eu sinto muito mas não tenho comida.

O animal então pôs-se a puxar a barra de seu vestido e apontar o focinho para uma direção enquanto latia.

– O que você quer garoto? Quer que eu te siga é isso?

Sem demora o cão começou a seguir uma direção na cidade, enquanto fungava, latia e olhava para trás, aparentemente convidando Julia para segui-lo.

– Espere amigão, eu irei te acompanhar! – gritou Julia desesperada, na esperança de o cãozinho lhe mostrar a saída daquele lugar.

Enquanto acompanhava o cãozinho cidade adentro Julia passou pelos mais diversos lugares, desde cortiços, casarões a prédios imponentes e pode realmente constatar uma coisa; a cidade era de fato cinza. Seja para qualquer lugar o qual voltasse os olhos não haviam cores, apenas concreto, não havia flores, não havia árvores, não havia vida, tudo era uma mistura de cinza, preto e branco, algo tão deprimente que dava pena de ser contemplado.

Em certo momento da caminhada, o cãozinho lhe levou a atravessar um beco, Julia teve medo, pra onde esse animal estaria lhe levando, se é que estaria lhe levando para algum lugar. Como não havia escolha continuou seguindo-o na esperança de chegar em algum lugar. Para seu espanto, o beco desembocou em um enorme jardim, tão lindo como jamais virá, e logo a frente do jardim havia um enorme casarão vermelho igualmente deslumbrante, algo jamais visto por Julia, um paraíso vivo perdido no meio do concreto morto.

Não havia tempo para apreciar, o cãozinho novamente puxou sua saia em direção ao casarão, e enquanto iam atravessando o jardim florido Julia pensou que ali poderia ser um lugar onde encontraria ajuda e isso lhe deixou animada.

Ao atravessarem o belo jardim, os dois se depararam com um enorme portão de madeira vermelha que dava entrada para o casarão. O cãozinho passou a arranha-lo desesperadamente como se quisesse abri-lo. Julia viu a agonia do bichinho e impulsivamente perguntou.

– Você quer que eu entre aí amigão?

O animal respondeu com sonoros latidos, quase que afirmando. Julia fitou o enorme portão de madeira vermelha, como ele era gigante, sentia-se insignificante perto dele, parecia ser bastante pesado também, achou que não teria forças para empurra-lo, mas achar não o abriria, então forçou-o com todas as suas forças e para seu espanto ele abriu fazendo um rangido severo mostrando-lhe algo ainda mais curioso.

Atrás da porta que ela abrira estava acontecendo um baile de máscaras em um salão magnificamente decorado. Papel de parede vermelho, pinturas de várias formas, enormes luminárias penduradas no teto e um esplêndido banquete era só uma pequena parte da perfeição do salão. Casais de diversas aparências dançavam para lá e para cá pelo enorme salão, cada um com uma máscara mais excêntrica que o outro. Todos vestiam trajes de gala bem vívidos, bem diferentes das roupas das pessoas que Julia havia visto nas ruas. Ao fundo havia uma banda com músicos tocando flautas, violinos e violoncelos, igualmente trajados como as demais pessoas no salão, tocavam uma música magnifica de encher os ouvidos. Bem ao centro do salão havia um pequeno trono vermelho, ao qual sentava-se um homem de terno vermelho que usava uma extravagante máscara de bico dando-lhe um aspecto macabro. Do mesmo modo havia um imenso tapete vermelho que ia da porta ao seu trono. Aparentemente esse homem de aspecto no mínimo esquisito era o anfitrião da festa, já que estava em um lugar de honra.

O clima era realmente estranho e Julia temeu por sua segurança, ali era realmente um lugar seguro, ou o cãozinho lhe trouxe para um lugar perigoso? Infelizmente era tarde demais para descobrir. Ao perceber sua presença o anfitrião da festa levantou-se de seu trono, bateu uma palma, a música cessou, todos pararam de dançar e viraram-se para a entrada, enquanto o misterioso homem exclamava.

– Julia Monteiro Brandenburg! Filha de Romeu Fernandez Brandenburg! Venha, estávamos esperando sua chegada – exclamou o homem estendendo a mão e fazendo uma reverência em um gesto convidativo.

Julia sentiu medo, não conhecia o homem, não sabia quais eram suas intenções e nem se podia confiar nele. Aquilo era tão assustador para ela. Pensou em correr, mas o portão as suas costas se fechou de forma sobrenatural em um enorme estrondo. O cãozinho que havia lhe guiado estava ao seu lado em um silêncio mortal. O homem voltou novamente a falar.

– Vamos garotinha, não tenha medo, venha até mim eu tenho algo a lhe propor.

Sem outra alternativa Julia caminhou em direção ao misterioso homem de terno vermelho e máscara de bico, passo a passo, sem pressa de chegar, com o cãozinho lhe seguindo fielmente a cada metro. Lentamente ela observou o salão procurando um ponto de fuga, qualquer lugar lhe ajudaria, mas foi inútil, não o encontrou e mesmo que encontra-se duvidaria muito se seria capaz de escapar dali. Quando finalmente encontrou-se frente a frente com o misterioso homem, reuniu coragem e perguntou.

– Quem é você?

– Ora Julia, você não me conhece? Eu estive em sua mente por tanto tempo, você me nutriu por tantos anos, não se lembra?

– Que-m é vo-cê? – repetiu Julia mais dura e devagar.

– Bem creio que tenho de me apresentar melhor garotinha – disse o homem fazendo uma reverência e começando a retirar a máscara de bico lentamente – Eu sou o reflexo da ausência de seu pai garotinha, a distância que existia entre você e ele me criou, e você me nutriu por muitos anos, ah como nutriu, e cá estou em sua presença ga-ro-ti-nha – terminou a reverência retirando a máscara de bico.

Julia ficou aterrorizada com o que viu, não podia acreditar no que seus olhos enxergavam, a sua frente estava um homem careca e sem rosto, em sua face apenas podia-se ver um enorme sorriso amarelo. O medo apoderou-se de Julia, ela estava em uma espécie de inferno, essa era a única explicação, começou a tremer desesperadamente, alguma coisa viria a seguir, o homem sem rosto voltou a falar.

– Você é minha garotinha e nós vamos jogar um jogo que só acaba quando um dos lados perder, quer você queira ou não.

Nesse mesmo instante todas as pessoas do salão retiraram suas máscaras, e para piorar o pesadelo de Julia, ninguém naquele lugar tinha rosto.


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