O Império dos Titãs. escrita por Martinato, Monsieur Noir


Capítulo 8
Acordo no meio do nada.




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Não sei ao certo quantos dias, horas ou minutos se passaram. Quando você desmaia, acaba sendo incapaz de fracionar o tempo, e os sonhos, por inúmeros que tenha, podem apenas significar um segundo no mundo real.

A vaga lembrança do meu corpo caindo inerte no solo ficou repassando, mas desta vez eu era um telespectador. Via e revia a cena como se estivesse no modo repetição, e confesso que aquilo me atordoava. Focalizava o máximo para permitir que a cena mudasse, mas os esforços eram em vão.

Aquilo estava me torturando. O maior problema deveria ser pelo fato da cena, após tanto tempo monótona, demonstrar mais detalhes, tais como... A minha morte.

—— Está vendo? —— Uma voz sussurrou em meu ouvido, e me virei em busca de saber o dono dela. Era grossa e forte, um homem, na casa dos quarenta e que deveria ser bem musculoso, o típico homem Hollywoodiano, mas como era um mistério sua aparência, ficou difícil imaginar os detalhes, e claro, não ia perder meu tempo com isso, contudo, não deixaria de respondê-lo. —— Na verdade... Já vi isso umas quinhentas vezes... Você pode fazer parar? —— Minha pergunta foi praticamente implorada. Não aguentava mais isso. Me ver morrer era com se sentir um espírito e aos poucos aceitar que realmente fosse. —— Acalme-se. Você se lembra de que derrotou aquela mulher, não? —— A voz agora estava mais suave e calma, talvez tivesse percebido o meu medo diante aquela, como poderia dizer... Simulação? Que seja, mas sim, se estivesse noção de onde meu corpo estava, evidentemente estaria tremendo agora. Dos pés a cabeça. Uma atitude lamentável.

Senti algo tocar o meu ombro esquerdo. Parecia a palma de uma mão, embora o toque me fosse natural, o dono da mão ainda não aparecia, e isso me deixava ainda mais apavorado. —— Ótimo... Estou conversando com fantasmas agora... —— Balbuciei convicto da minha insanidade mental. —— Na verdade não está. —— Quando a voz retrucou, percebi o corpo do algoz se formando, dando nitidez a uma armadura reluzente, e ao mesmo tempo azulada. Era construída por corais, e tinha um brilho poderoso, tais como desenhos de dois Pégasus empinando um em cada lado do peitoral, e um mar abaixo, com peixes e tornados. E havia mais, pude deduzir, pelas aulas de geografia, que as partes inferiores, próximas ao umbigo do homem, seriam as placas tectônicas. Uma representação bastante maravilhosa, e um trabalho artesanal incrível, afinal, criar uma armadura assim com as mãos deveria ser muito difícil. Um talento extinto. Ou de algo, alguém, que não costumávamos ver nos nossos dias de vida pacatos.

Sempre achei a nossa realidade uma verdadeira bosta. Quem não acharia?

Mas voltando ao homem, ele era alto, cerca de um e noventa, na sua mão solta, empunhava um tridente enorme, com aproximadamente dois metros e vinte de extensão. Era pontiagudo, e reluzia na mesma intensidade que a armadura. Já o homem tinha feições sérias. Barba até o pescoço, parecida com o papai noel, tirando o fato de serem negras e um pouco onduladas. Seus cabelos se estendiam até os ombros da mesma forma graciosa. —— Quem é você? —— Indaguei, boquiaberto. Era difícil digerir tudo isso, mas no fundo, sabia que já conhecia aquele homem. —— Bom, você pode começar me chamando de pai. —— Estremeci. —— Pai? —— Sussurrei, incrédulo. —— Mas... Mas eu já tenho um pai. —— Ele sorriu, demonstrando sua fileira de dentes perfeitamente bem alinhados e todos num branco magnífico. —— Eu sei que é confuso. Mas você e seus amigos, digamos que são um caso especial. Sim, você tem um pai. E ele não deixou de ser seu pai momento algum, o sangue dele também está no seu, sua paternidade jamais sairá de você, porém... Eu também sou seu pai. Assim como o seu caso, todos os seus amigos podem ter duas mães ou dois pais também. —— A conversa me deixava confuso e desnorteado. Como poderia ter dois pais? —— Você me aparenta estar sem entender ainda, estou certo? —— Simplesmente assenti, e o senhor ao meu lado, achou graça. Fiquei bastante invocado pelo fato de diverti-lo pela minha desgraça. —— Certo, vou deixar um pouco mais claro. Digamos que nós não costumamos sair muito do país que estamos agora. Mas conforme nossos filhos, legítimos, não que vocês não sejam! —— Ele enfatizou bastante a parte final,, o que me deixou um pouco feliz, por não ser de uma "raça" inferior. —— Mas para evitar que o cheiro do sangue de vocês se espalhassem, pensamos num modo de fazermos mais filhos, só que, mais seguro. Protegendo-os. —— Aos poucos formulava algumas hipóteses, mas não cheguei a acompanhar o raciocínio completo dele. —— Como assim? Ter mais filhos e de modo mais seguro? E por favor, me explica a parte do cheiro do nosso sangue... —— Ele ergueu seu pescoço e coçou a barba. —— Sabe... Eu sempre me atrapalho com isso. Talvez Atena explicasse bem melhor do que eu, mas tenho um péssimo relacionamento com ela. Bom, vou me esforçar: Entenda, no dia do seu nascimento, eu visitei sua casa. Sua mãe. Seu pai. —— Tudo girou. —— Ah, por favor, não me diga que rolou uma suruba! —— Não estava querendo fazer piada, mas sinceramente, aquilo passou pela minha cabeça, e cara, foi estranho, nojento. Mas ao contrário da minha reação, ele riu. Ou melhor, gargalhou. —— Não foi isso, garoto. Vamos recomeçar. Primeiramente, deixe-me apresentar. Meu nome é Poseidon. —— Arqueei os olhos. —— Nossa, eu já conheci um Thor e um Aquiles, mas nunca alguém que se chamasse Poseidon. Seu pai era fã de mitologia? —— Novamente ele começou a coçar a barba, e sua face ficou pensativa. —— Bom, na verdade meu pai gostava de devorar seus filhos. Inclusive me engoliu. Ainda bem que não mastigou, pensando bem agora. —— Meu rosto ficou inexpressivo. —— Você está querendo me dizer que é o verdadeiro Poseidon? Tipo, o Deus dos mares, das tempestades, dos terremotos e maremotos, furacões e senhor dos cavalos? Cara, eu acredito em tudo, mas por favor, não me diz que é uma piadinha de mal gosto... —— Poseidon ficou surpreso quando recitei suas principais funções como deus e até gesticulou um sorriso no canto dos lábios. —— Fico contente em saber que meu filho teve tempo para saber do seu pai. Sim, eu sou Poseidon, e não, não vou recitar tudo como você fez, tenho conhecimento das coisas que faço e controlo. Agora, se você não acredita, como acha que me materializei em seu sonho? —— BADAS! Xeque-mate. Touché. —— Faz sentido. Aliás, não faz NEM um pouco de sentido, mas você tem razão. —— Ele aparentou estar satisfeito em seu semblante convencido. —— Mas... Voltando a história, será que poderia me explicar melhor agora? Já sei que posso absorver coisas muito mais sobrenaturais agora. —— Seu Tridente repousou no solo, com a cavidade inferior cravada no gramado verde, e quando olhei ao redor, percebi que estávamos sozinhos na área do bosque do Ibirapuera. —— Melhorou, não? —— Tive a leve impressão de que ele falava das cenas de antes. —— Com certeza, muito melhor. —— Ele se sentou em um trono que como ele, se materializou do nada, se não fosse pelos últimos acontecimentos, obviamente teria me assustado, mas, simplesmente me repousei para trás, quando sua mão se ergueu, convidando-me a sentar também. Quando o movimento terminou, tive uma leve sensação que iria cair com a bunda no gramado, mas não, uma poltrona bastante confortável surgiu detrás de mim, dando sustentabilidade e conforto. —— Bom, Vinicius, você tem que entender que nós deuses, somos capazes de fazer coisas além da compreensão humano, certo? —— A pergunta foi dirigida a mim, e a perspectiva de não responder, notoriamente viria a ser falta de educação. —— Claro, senhor. —— Respeitosamente o respondia. —— Sem formalidades, pode me chamar apenas de pai. —— Abismado e ao mesmo tempo feliz, reformulei minha frase. —— Certo... Pai. —— Ambos contentes, Poseidon voltou a contar sua história, ou melhor, a história do meu nascimento e o nascimento de todos iguais a mim. —— Entendido isso, voltarei da parte que parei: Na noite da ligação entre seu pai e sua mãe, eu e seu pai entramos numa espécie de fusão. Sua mãe já conversou muito comigo em disfarce, mas seu pai conseguiu me vencer nos fletes. Não achei digno pulverizá-lo. Ele não trapaceou... —— Sorri, pensando como o grande Deus Poseidon teria se sentido ao perder uma paquera, e pior, como minha mãe conseguiu dar um fora nele. —— E eu o agradeço por isso. —— Ele me olhou. —— Não há de que. Bom, voltando... Eu acabei entrando no corpo de seu pai, viramos um só. Não o possuí, para que nem ele nem ela percebesse, mas tinha que saciar minha vontade, parece egoísmo e impróprio, eu sei, porém, não me arrependo, e acredite, não fui só eu quem fez isso... No Brasil, as criaturas são em números muito menores do que nos Estados Unidos, lá o Olimpo se ergue, portanto, há semideuses puros, como Zeus gosta de chamar, mas ele mesmo tem filhos aqui da mesma forma como tive você. —— Absorvia tudo cuidadosamente, mas as dúvidas pairavam como urubus numa carniça sendo devorada por um leão, só aguardando os restos. —— Por favor, só me explique uma coisa: Se você se fundiu com o meu pai, mas não controlou, como eu poderia ser filho de ambos? —— A pergunta o deixou animado, seu rosto expressava isso, ele não tinha como conter, sua leitura facial não era tão sigilosa. Talvez e claramente não tivesse motivos para agir com sigilo. —— Digamos que, conforme eu me fundi ao seu pai, seu corpo absorveu características do meu, logo, a ligação entre ele e sua mãe levou partes de mim junto consigo, e nessa transformação, surgiu uma nova espécie de semideuses. Os filhos dos Deuses, mas ao mesmo tempo, filhos de mortais. Não há diferenças de poderes para um dos outros. Digamos que essa solução seja a melhor causa atribuída no ultimo solstício. Assim, a criança poderia nascer com dons, nunca despertá-los e ao mesmo tempo, não ter que enfrentas os perigos que os aguardam, e principalmente, teriam a companhia de um pai ou uma mãe, dependendo dos casos. —— Quando terminou, pude imaginar mais ou menos, achei estranho, claro, me deixou com raiva também, mas cara, ele era um Deus, e eu era seu filho, devia respeito igual ao mesmo. —— E você veio até aqui só para me contar isso? —— Me senti especial, para falar a verdade. —— Eu e todos os Deuses. Infelizmente nossos planos não ocorreram da maneira que esperávamos. Conseguiu durar no máximo dezenove ou vinte anos, mas as criaturas sentiram a diferença... —— Não soube decifrar se estava arrependido ou emputecido por elas terem descoberto. Afinal, o que significaria para ele? Tudo bem que era seu filho, mas... Qual o valor de um filho para um Deus? —— Bom, obrigado mesmo assim, pai. —— Sua expressão suavizou. —— Não me agradeça, é o mínimo que posso fazer por você. Claro, já libertei você, assim como os demais foram libertados. Tudo que vocês andavam fazendo, seria uma espécie de treinamento, um treinamento inofensivo. Mas mesmo assim, um treinamento. E quando chegou a hora, nós liberamos suas verdadeiras armas e seus verdadeiros dons. Todos seus problemas de proles mortais foram curados, agora o sangue divino corre em suas veias, e é pulsado em seu coração. Agora, Vinicius Martinato, você é um semideus! Assim como seus amigos. Lute e sobreviva, e mais importante... Se valor logo será revelado, muito ainda lhe aguarda, tenha consciência disso, portanto, não haja sem pensar em nenhuma das vezes, e eu sei como você, é temperamental mas ao mesmo tempo carinhoso. Você, dentre muitos, tem um dom que poucos carregam, e logo, logo irá descobrir. —— Todas as suas palavras me assustavam, por que tamanho mistério? E quantos perigos mais me aguardavam? —— Pai, você não pode me dizer com clareza as coisas? —— Tentei instigá-lo a falar mais, embora fosse em vão. —— Não posso e não devo. Mas uma coisa é certa, o Deus sol ficou feliz em saber que você gostaria de por o nome do seu filho em homenagem a ele. —— Com um ultimo sorriso de afeto, ele passou a mão em meus cabelos e ergueu-se, caminhando lentamente para as águas do rio. —— Mais uma coisa. Todos vocês estão num lugar protegido. Tivemos a bondade de criar um lugar como os nossos outros filhos tem. Ele é protegido e vocês devem se aperfeiçoar. E por ultimo mas não tão importante, quando acordar, espero que goste do presente. Até qualquer dia, ou ano, filho. —— Ele acenou e simplesmente sumiu, tomando forma de bolhas e líquido. De repente, um breu invadiu meus olhos, até que a luz do sol invadiu meus olhos, a visão ficou turva, e tinha perdido as contas de quantas vezes isso já tinha me ocorrido hoje. Quando as imagens se formaram lentamente, dando-me a noção do novo ambiente em que me encontrava, arregalei os olhos e lembrei do sonho. —— Então.. Tudo era verdade? —— Disse abraçando os joelhos momentaneamente até perceber a situação embaraçosa que me encontrava.

[...]

Me acostumar com o lugar não foi fácil. Primeiro de tudo: Os enfermeiros, em sua maioria, eram homens bodes! Sim, cara, eles tinham pernas de bodes, peludas, com cascos, e da cintura para cima, eram como homens normais, mas, na cabeça era ainda pior... Tinham chifres ondulados e gigantes, outros até menores, e o cavanhaque não caia bem em nenhum. Até as crianças daquela mesma espécie já tinha mais barba do que eu. Humilhante aquilo.

Por sorte, percebi alguns enfermeiros iguais a mim. Pessoas com pernas normais e sem cascos, cabeças só com cabelos e alguns com barbas ralas e por debaixo no queixo e em envolta dos beiços superiores. —— Vejo que já recobrou a consciência. —— Outra vez uma voz surgia atrás de mim, mas soube deduzir que também tratava-se de um homem forte e possivelmente intimidador. —— Sim, obrigado pela preoc... —— Travei quando me virei e percebi um híbrido de cavalo e homem. Quanto o dia ainda ficaria mais louco? —— Vocês... São todos iguais, nunca viram um Centauro antes? Ou um Sátiro? —— Neguei com a cabeça, boquiaberto ainda. —— Típico! Por favor, pare de me olhar assim, sou tão real quanto você. —— Suspirei, pressionando as pálpebras umas nas outras. —— Cara... Isso está complicado. Me desculpe se desapontei-o. —— O homem cavalo sorriu e me ajudou a levantar. —— Você é o primeiro que se desculpa e não me ataca um travesseiro na cara. Gostei de você, garoto. Prazer, me chamo Adalberon. —— Ele estendeu a mão e eu o cumprimentei. —— Essa saudação é estranha, mas me acostumei com os tempos de hoje nas ultimas semanas. Vivia livre pelas florestas, antes de ser recrutado pelos Deuses. Os milênios passam tão rápido... —— Mais uma pontada de curiosidade invadiu meu peito. —— Quantos anos o senhor tem? —— Ele me encarou nervoso. —— Senhor? Tá me zuando? Cara, zuando... Qual a finalidade disso? Não sei o por quê dizerem isso. Enfim, tenho apenas seis mil anos. Juventude é o que há! Saudades de me reunir com os pôneis da festa. —— Se tivesse tomando água, teria dado um banho nele, pois a teria cuspido tudo. —— S-seis mil? —— Gaguejei. —— Eu me esqueço de que para vocês uma centena de vida é uma raridade. Ser imortal tem suas vantagens. Você tem o que? Uns... 30? —— Ri. —— Você realmente não tem noção da idade humana, né? Não, não... Tenho apenas 19. Ou já tenho 19. Sei lá. Nem sei mais quantos anos vou ter de vida. —— Enquanto falava ele roía as unhas, que por sinal estavam bem volumosas. —— Bom, ainda não vim dizer o verdadeiro motivo de estar aqui. Certo. Seus amigos estão na fogueira. Lá todos costumam se reunir para privilegiar os Deuses... Assim, cada novato será proclamado. Como hoje é uma ocasião especial, a noite vai ser longa, por que? PORQUE TODOS VOCÊS, sem exceção, ainda não foram proclamados. Ainda bem que Quíron é inteligente... Admiro muito esse cara. —— Me levantei e ao lado da cama achei meus tênis e roupas novas. —— Desculpe interromper sua história, mas... Aonde posso tomar um banho? —— Ele apontou para o vestiário masculino. —— Aproveite agora, que não é horário de pico. —— Concordei assentindo, ação rotineira. —— E obrigado, sei lá pelo que. Espero conversar mais com você, Ada... Adalberto? —— Ele estreitou as sobrancelhas, deveria ter percebido meu sarcasmo. —— Adalberon, senhor Martinato. —— Ri, e quando ele se virou com dificuldades em andar naquele recinto, me voltei, precisava de uma resposta. —— Ei! —— O centauro se virou e me encarou, entediado. —— Sim? —— Disse vagamente, comendo suas unhas monotonamente. —— E se eu já souber quem é meu pai? Ele ainda vai ter que se dar o trabalho de me proclamar? —— Minha pergunta despertou divertimento em seu rosto. —— Ai depende de quanto ele gosta de você. —— E através de risos, ele galopou para longe de mim. Se não fosse tão esportista no ramo de brincadeiras sem graças (devo toda a minha experiência ao meu amigo Alex), teria me atingido e me magoado com isso.

[...]

Depois do banho, meu corpo se relaxou tanto, que as dores musculares que sentia quando levantei e os hematomas de colorações diferentes, haviam todos sumido. Foi o melhor banho que já tomei na vida. Rejuvenescedor.

Saindo do chuveiro, me vesti o mais rápido possível, e pude perceber um aperto na barriga. —— Eu nem me lembro quando foi a ultima vez que eu comi... —— Lembrei que sai de casa sem tomar café da manhã e no bolso da minha calça suja, que ia mandar para lavanderia, ainda tinha a nota de vinte reais que meu pai me deu. Chamar meu pai que viveu a vida toda comigo de pai, era normal, agora Poseidon? Isso era confuso.

O ronco apertou.

—— Preciso comer urgentemente! —— Berrei terminando de me vestir e sai correndo do estabelecimento, com os cadarços desamarrados.

[...]

A multidão se apertava. Tinham cerca de uns duzentos ali, sem contar os centauros e sátiros e as mulheres verdes. Pelo menos não tinham caldas como as outras, e seus rostos eram dóceis, embora elas atacassem todos aqueles que acidentalmente pisassem numa rosa ou num broto qualquer. Cada passo deveria ser cuidadosamente medido. Caminhar nos gramados? Nem pensar.

No centro do refeitório, podíamos ver a fogueira arder e nela, um recipiente, até então misterioso. Todos ficavam envolta das chamas ardentes que se mexiam sem rumo conforme o vento soprava.

Atrás de nós, haviam mesas, muitas mesas e cada uma cabia cerca de umas cinquenta pessoas. —— O que vai acontecer? —— Perguntei para o primeiro, e um garoto que vi poucas vezes nos eventos, respondeu. —— Me disseram que começariam a cerimônia de proclamação. Não sei mais nada a respeito. —— Ele se virou e permaneceu inquieto. Sequer lembrei seu nome. Mas entendi seu nervosismo, pois ele transmitiu para mim também.

Quando o silêncio pairou, só pudemos ouvir as trotadas de um corcel branco, e onde normalmente veríamos sua cabeça, vimos uma malha, com duas alças presas e facas volumosas presas em bainhas. Seus cabelos cacheados e castanhos caiam conforme a barba um pouco curta jazia em seu queixo. Ele tinha um arco envolta do seu corpo, como normalmente deixava o meu. Sua aljava estava envolta dos flancos, presas perfeitamente ao lado direito. Supus que ele era destro. A camisa branca em sua camisa tinha algo escrito, mas a malha de couro nos impediam de ler o que tinha escrito, e mesmo que tentássemos, as palavras pareciam estar em inglês, não que não pudesse desvendar uma frase, mas só ver um A ou um B não ajudaria muito.

Depois de alguns passos, o quadrúpede humanoide se posicionou tão próximo da fogueira que pensei que seus pelos seriam carbonizados. Mas não, ele ficou tranquilamente bem posicionado lá. —— Meus caros... Sei que houveram muitas perdas na nos últimos dias... —— Espera aí... Quantos dias eu fiquei inconsciente? Infelizmente, meus pensamentos e minhas duvidas não o fizeram parar de falar. —— Acredito que todos aqui presentes conheciam os dezenove mortos do incidente inesperado. Eu ofereço os meus mais sinceros pêsames, a cada um de vocês, pelos amigos... —— Ele realmente demonstrava compaixão. Era possível sentir a verdade em suas palavras. —— Mas agora, não é o momento para lamentações, devo dizer. Agora, é a hora de descobrirem suas novas famílias aqui. Seus parentes foram alertados e informados, muitos não souberam como agir e tivemos que usufruir da névoa para garantir que estavam seguros, mas devo dizer que nem mesmo este lugar garante cem por cento de estabilidade a mim, como para vocês. As coisas lá fora estão descontroladas e nem mesmo os deuses sabem como lidar com isso. —— Sua palestra estava assustando todos, mas era preciso nos deixar ciente. Não queria ser surpreendido assim de novo daquela maneira. —— Espera ai! Como assim névoa? O que está acontecendo? Eu sei que é loucura, mas desde que desmaiei não sei mais no que acreditar, eu exijo, assim como todos aqui, mais explicações. Não é justo isso conosco. —— Joe se exaltou e pela primeira vez o vi bravo na minha vida. Ele parecia desesperado. Pena que estava muito longe, gostaria de ajudá-lo, ela era um dos meus melhores amigos de lá. —— Eu sei que vocês estão com medo e confusos, José. Mas se me der tempo para explicar, garanto que entenderão. —— Um telão desceu no meio do nada, sendo suspenso por dois mecanismos flutuantes. Soube que no século XXI as coisas eram mais modernas, mas não a este ponto. —— Por favor, prestem atenção no vídeo. Ele explicará exatamente o que está acontecendo com cada um de vocês. Todos, ninguém aqui é um caso a parte. —— E quando o vídeo começou, pensei que haveriam muitos protestos, todavia, cada um respeitosamente o assistiu quieto e atenciosamente. Era loucura demais, mesmo achando que já tinha absorvido muito.

[...]

Os vinte minutos passaram-se como segundos. Tudo que vi, assisti e aceitei, tinha a ver com a conversa com meu novo pai, Poseidon, embora não explicasse o nosso caso, e sim os dos semideuses comuns que eles mencionaram antes. Se éramos especiais, por que cuidados iguais? Francamente isso me deixava nervoso, mas ao mesmo tempo não conseguia ter ódio dos que estavam ali, eles somente seguiam ordens. Nada mais do que ordens.

—— Muito bem. —— O centauro ergueu seus braços e o telão sumia ao céu que aos poucos sumia no horizonte. —— Agora que vocês tem uma leve noção do que as coisas se tratam, peço que prestem atenção... Os números a seguir são respectivos a cada deus no Olimpo, entretanto, o dois será descartado, pois como todos sabem, a rainha Hera não tem proles mortais, é contra seus princípios e suas funções. Mas isso não é tão importante. Outro alerta é: Se alguém for sorteado ao número oito, tudo visto não vale para vocês, ou pode até mesmo valer, mas se forem chamadas ao chalé oito, deverão abdicar completamente laços afetivos com os homens e dar adeus ao amor. Claro, a escolha é de vocês. Lady Ártemis não as obrigará a servi-la na caçada. Bom, isso é tudo que eu tenho a dizer. Agora... Os que tiverem um símbolo acima de suas cabeças, bom... Considerem-se sortudos. Provavelmente um ou dois serão chamados, pois Zeus não tem muitos filhos, como Poseidon e Hades, é muito raro nascerem deles! Enfim, chega de roubar o tempo... —— Quíron se virou e fez uma reverência as chamas e por fim, ditou sua ultima frase. —— A cerimônia foi completada, agora, conforme for sua vontade, tem toda a honra de iniciar as proclamações! —— Com a cabeça curvada, um trovão explodiu acima de nós, mesmo com o céu sem nuvem alguma, e dois brilhos surgiram envolta de duas cabeças.

Todos se voltaram para um canto, depois para outro, respectivamente, alguns faziam o processo de modo contrário, mas não deixavam de voltar a olharem para Quíron. —— Ambos, aproximem-se. —— Um deles era Dudu, um dos outros melhores amigos que tinha, ele estava com o semblante sério e sem nem um pouco de graça nele. Nunca o vi tão sério em toda a minha vida também. Ao seu lado, estava Isadora. Tão pálida quanto Dudu. Jamais imaginei a Isa como filha do soberano do Olimpo, mesmo sabendo do seu jeito teimoso e mandão em algumas poucas vezes. —— Todos saúdam os novos filhos do grandioso Zeus! Deus dos céus! Dos raios! E senhor dos deuses! —— O centauro parabenizou cada um e finalmente os fez sentarem-se na mesa mais chique que tinha no local. —— Oh grandioso Poseidon, quando o senhor quiser, pode prosseguir! —— Quíron se curvava outra vez, e o som do mar - sim, tínhamos uma praia no meio daquele lugar misterioso, não fazia ideia de onde estávamos -, chocou-se fortemente contra as rochas.

Eu sabia que seria minha vez... Mas eu e quem mais?

Finalmente, uma luz surgiu. Percebi todos se virando e olhando para mim, curiosos e vários comentários sendo dirigidos, mas não tardou muito, pois logo outro tridente azulado pairou na cabeça de mais uma pessoa. —— Vocês, aproximem-se. —— Caminhei lentamente ao lado do meu mais novo irmão, e fiquei feliz em saber quem era. —— Todos saúdam os novos filhos do poderoso Deus Poseidon! O senhor dos mares, deus das tempestades, dos maremotos e terremotos, e obviamente, senhor dos cavalos! —— Ao meu lado, estava Joe, tão feliz e contente quanto eu, e ambos nos entreolhamos e depois vimos cada um saudando a nós. Era uma honra ser filho de um dos três grandes, uma honra que nós dois teríamos que ostentar em nosso peito.

Nos sentamos numa mesa tão chique quanto a de Zeus, embora a nossa fosse decorada com corais e conchas por toda sua vasta extensão.

As demais proclamações não tiveram tanta honra. O chalé 4, apenas de conhecido tinha sido Thalles e Nency. O chalé 5, Lorenna, Alex, Marea, Clarisse e Catherynne. No 6, Malu, Rasquel e Sarah. O 7, acolheu Lyu, Apolo, Jujubs, Biel, Daniel, e alguns outros que não consegui ver. O 8, apenas chamou uma conhecida minha, a Gabi, mas ela tinha dois sinais em sua cabeça, um arco sob uma lua, e um ramo de romãs. Ela era uma caçadora e filha de Perséfone. O 9, Petta, Léo e Tomi foram chamados. 10, Babu, Sofia, Mama, Aline, Mariana, Jhon, e mais um grupo grande de meninas. Poucos foram os homens chamados. 11, estava Lira, Kokota, e muitos outros. 12, Anna, Buzz, Let e alguns mais. Quando o 13 estava prestes a ser chamado, Quíron aplicou uma reverência tão formal quanto a primeira e segunda vez. —— Oh poderoso Hades, por favor... Mostrem-nos seus novos filhos! —— E o brilho negro chamativo de uma caveira pairou em Nico e Cody. Foram apresentados e sentaram na mesa branca e pálida, como a pele deles. Os demais, até o número 23 do Deus Jano, foram preenchidos, e assim, o evento tinha acabado.

Quíron só se pronunciou uma vez, as meses repentinamente ficaram cheias de comidas dos mais variados tipos, e tudo me parecia ótimo, ainda mais na parte dos doces. Se não tivesse me lembrado do que Poseidon disse, teria maneirado nos doces, mas como era evidente de que não era mais diabético, enchi meu prato com tudo.

Infelizmente mais tarde descobri que tinha que oferecer metade do que iria comer para a fogueira, Quíron dizia que isso deixaria os Deuses felizes e satisfeitos por receberem em troca algo saboroso, e por isso esperava que meu pai gostasse de doces e carne vermelha.

De resto, o jantar foi tranquilo, tranquilo até demais.


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