Pure Imagination escrita por Sweet Death, SaltedCaramel


Capítulo 18
Kill first, die last...though I'm dead already..?


Notas iniciais do capítulo

Hey!!! Como vocês estão?? :)
—Má notícia: as minhas aulas recomeçam semana que vem e eu mal consegui manter os prazos...argh, eu tenho que fazer um seminário gigantesco, então nada prometido para essa semana.
—Boa notícia (acho): próximo cap tem narração do Kanda ;)
—Melhor notícia do mundo!: bem, eu não ia postar esse cap agora, eu ia adiantar o próximo e depois postar, mas...bem...eu me lembrei que... *enche os pulmões* GANHAMOS MAIS UMA RECOMENDAÇÃO!! *pula, pula*, e como eu poderia atrasar as coisas desse jeito? T^T Muitísimo obrigadíssima Ágata Luz haha uma leitora nova (quer dizer, nem tanto haha só alguns capítulos atrás) , mas troquei muitas palavras com você nos reviews, né? hahaha a recomendação me motivou de verdade! T^T
—Não revisado :P again, sorry...
—Nesse cap: Bem, temos um novo...hã...recomeço? É. Acho que seria uma boa definição haha meio que a finalização da conversa entre os três e a aproximação entre Kanda e Allen, acho...hm... como acho que é uma nova etapa e tals, é bem longo hahaha
—Ah, alguém foi no Anime Friends?? Eu não pude ir... T^T faz tempo que não vou nesse tipo de evento...será que tem essa semana? Hm...tomara que tenha... (assunto aleatório que me veio agora...)
—Boa leitura! o/



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Tudo dói. Ou melhor, doía. Chegou a um ponto em que nem dor mais eu conseguia sentir de tanta dor que eu sentia. Por mais que isso não faça sentido, era a verdade. Meu corpo caiu em uma dormência dos sentidos que eu não sabia se gostava ou odiava, ao ponto que eu mancava até o banco próximo sem resmungar mais que gemer de dificuldade.

Minha doença tinha períodos. Ela costumava ser súbita quando se tratava de piorar ou melhorar. Mas os garotos da escola...eles costumam fazer rotina de espancamento. Então mesmo que meu corpo estivesse em seu mais perfeito estado possível após tratamentos (o que não era muita coisa, vamos ser sinceros), isso só queria dizer que os garotos podiam usar como quisessem. E por mais que houvesse a opção de usar-me como amigo (podem rir agora, foi uma piada), parece que saco de pancadas era muito menos estressante para eles.

“Se pelo menos minhas pernas funcionassem bem nessas horas”, pensei, querendo desistir, deitar e mofar até ser encontrado épocas depois quando a ciência estivesse avançada o suficiente para me transformar em um ciborgue. Pelo menos estes conseguem andar e são feitos de metal. METAL.

Metais são mais resistentes que pele. E ultimamente eu tenho precisado bastante de resistência.

“E força”, praguejei em minha mente, “muita força”. Minha boca sangrava e a pele do canto deveria estar ferida, pois lembrava da ardência que sentia quando a movia.

Meu olho deveria estar inchado, pois não conseguia abri-lo. Roxo com certeza estava, assim como a minha bochecha e outros hematomas espalhados que deviam escurecer mais tarde.

“Podiam ter poupado meu rosto”, pensei, finalmente alcançando o banco no pátio de minha (atual) escola, “já não tenho beleza e ainda querem me cobrir de machucados?”.

Aos catorze anos, eu continuava a não ter sorte alguma com questões sociais. As pessoas me odeiam e se pessoas te odeiam, elas te machucam. Ponto final. Quer prova? Observe meu rosto. E se não te satisfizer, posso mostrar o resto do meu corpo, roxo, inchado e cheio de cortes. Se ainda não te convencer, desculpe-me, mas você é um iludido.

Tudo bem, eu já fui assim um dia. Iludido. Mas quando a realidade bate a sua porta...é melhor você fugir porque podem ser adolescentes maldosos com punhos duros apenas esperando para esmagar seu rosto.

“Não fui rápido o bastante”, pensei, passando cautelosamente as costas da mão pelo inchaço no rosto, tirei assim que senti incomodar, “deveria correr mais rápido”. Mas o que eu deveria fazer? Embolei-me com o faxineiro enquanto corria e fui pego.

Que tipo de faxineiro limpa o canto do colégio nessas horas? Algum com um péssimo timing, com certeza. A escola inteira praticamente vazia, o lugar livre para que eu corresse e pudesse despistá-los na porta de entrada e na pior hora eu encontro um funcionário? Só podia ser brincadeira.

Uma brincadeira do destino, porque já estava acostumado com essas. E, tenho que dizer, brincadeiras comigo de mau gosto e do destino são sinônimos.

Sentado no banco depois de encarar o vento carregar folhas escuras pelo lugar inteiro, senti finalmente ânimo para pegar o celular e discar o número enquanto tentava ignorar o remorso profundo por estar ligando enquanto ele ainda estava no trabalho. Sr. Baleia poderia ficar furioso.

–Alô- eu disse, tentando movimentar a boca o máximo que podia- Mana?

Allen, filho?–dois segundos de conversa e sua voz já estava preocupada. É. Mana nunca deixa passar uma mentira. Às vezes isso é bom, mas quando você leva uma advertência do colégio e precisa esconder não é algo que vá te ajudar.

–Ei, pai- tentei soar animado, mas, como sempre, parecia uma ameba tentando falar. Não que em qualquer outro momento eu parecesse animado. Na verdade, quando aparentava animação geralmente era quando meu pai suspeitava.

O que foi? O que aconteceu?- note que ele nem precisou perguntar se eu estava bem–Sua voz está-

–Horrível, eu sei- suspirei- olha, desculpa eu sei que está no trabalho, mas eu estou na escola agora, será que você pode me pegar?

Hã? Sim– ouvi o barulho de sua cadeira raspando no chão, os gritos do chefe e o tilintar de seu molho de chaves. Senti o remorso querendo subir por atrapalhá-lo– Já estou indo. Fique aí, ok?

–Ok, ficarei-“não é como se eu pudesse sair, mesmo”- Tchau.

Tchau, cuide-se, filho.

“Eu tentei me cuidar, Mana”, pensei enquanto guardava o celular no bolso, “ mas...o maldito faxineiro!!”.

Respirei fundo, deitando no banco com as costas da mão cobrindo os olhos para proteger de qualquer claridade. Olhos claros temem a luz, isso é um fato. O único que fazia barulho era o vento, levando qualquer sujeira que estivesse no chão e coçando meus ouvidos com aquele zumbido irritante. Os machucados começavam a esfriar e a doer mais, mas eu não podia ligar menos. O que eu diria para Mana quando ele me visse? Eu já havia passado por isso várias e várias vezes, mas eu nunca deixaria de passar pelo mesmo conflito.

Não importa a experiência nisso, ver o rosto do seu pai depois que você é machucado nunca deixa de ser ruim.

–Allen?!- um grito me acordou dos pensamentos depois do que pareceram grandes minutos que não vi passar. Sentei no banco para procurar a fonte.

Mana estava vindo em passos rápidos até mim. O segurança que o acompanhava desde o portão pareceu chocado com meu rosto roxo, mas minha verdadeira preocupação estava com meu pai. Ele tinha aqueles fios longos presos e usava a roupa de trabalho, com sua maleta na mão, seu sobretudo bege cobrindo o terno limpo e o tecido chicoteava o ar enquanto seus passos se apressavam ao ver meu estado.

Sorri de canto, sabendo pelo rosto preocupado que ele me devolveu que o gesto não funcionava de qualquer forma.

–Hey...

–Hey nada!-ele exclamou, ajoelhando em minha frente e passando as mãos pelo meu rosto desesperadamente- O que fizeram com você, Allen?

–Hã...- ele agarrou meu queixo e virou meu rosto para verificar todos os ângulos- eu não tenho certeza Mana, mas acho que devem ter batido em mim um pouquinho.

–Sem tempo para sua ironia, Allen- respondeu, deixando de verificar meus braços para apertar minha orelha- Vou chamar o Dr. Lee mais tarde, quero ter certeza de que nenhuma parte está fora do lugar-suspirou- eu tive tempo para passar em casa e pegar os primeiros socorros.

“Sempre preparado”, pensei. Mana tirou uma pequena caixa de sua maleta, preenchida de diversos instrumentos. Ele passaria coisas que ardiam, faria curativos, me daria gelo para desinchar, como sempre fazíamos.

–Eu vou falar com o diretor...-ele resmungou, com o raro tom de raiva despontando da língua- Não. Vou falar com a polícia.

–Não tem jeito, Mana-suspirei- briga de criança é briga inútil.

Ele molhou os lábios, completamente nervoso e incapacitado. Era a verdade, o que mais eu podia dizer? Além do mais, bons contatos e dinheiro são as melhores saídas nesse mundo e enquanto eu os possuía em negativo, eles possuíam em abundância. Os famosos filhinhos de papai. Agora podem colocá-los no zoológico com esse rótulo e estaremos salvando o mundo.

–Eu não quero atrapalhar nem nada- eu disse, enquanto ele pegava a gaze- mas será que podemos sair da escola. Fazer isso no carro, sei lá- encarei o segurança, que tinha aquela expressão de paisagem- eu só quero sair daqui.

Mana encarou os lados antes de concordar com a cabeça.

Aliviado, apoiei meus braços no banco para levantar, tomando todo o cuidado possível para me segurar e não, sei lá, acabar estragando ainda mais minhas pernas machucadas. “Que nada esteja fora do lugar”, torcia silenciosamente.

–Quer ajuda?- Mana já colocava o braço entrelaçado ao meu.

Como reflexo, repulsei o toque, quase esquecendo da falta de equilíbrio que por pouco não me levou ao chão. Mana franziu o cenho, preocupado por causa da minha reação, então desviei o olhar fingindo me concentrar demais em mim mesmo para vê-lo.

–Não preciso- respondi- eu estou bem, só...me fale onde deixou o carro.

Passo por passo, era como se eu desmoronasse. Era mais que apenas a dor física, porque dessa eu já estava cansado. Minha mente já estava farta de tudo. Pela milionésima vez, estava farta.

–Certeza?-Mana perguntou, tentando acompanhar meus passos rasteiros.

–Certeza- eu não convencia com a voz rachada- pode deixar.

Por sorte, o carro estava no estacionamento da escola então estava crente de que conseguiria chegar até lá sem perder nenhum membro no caminho. Mas minha visão embaçava, o estresse subia à cabeça e o silêncio que meu pai deixava pairar só piorava tudo. Quando consegui chegar ao asfalto cheio de carros, deixei que um suspiro de alívio subisse e me apoiei no portão, me preparando (mental e fisicamente) para andar até o carro.

–Está bem, filho?

–Ótimo- não esperei mais para desandar a caminhar como um zumbi.

Meu corpo doía, eu sabia que Mana me olhava com os reflexos prontos para agir em um piso em falso. Mas eu não podia deixar de me esforçar, desse jeito eu iria me tornar não mais que um parasita, sempre apoiado nas pessoas. Eu não podia continuar fugindo da escola por causa das ameaças ou evitar sair em público por causa da vergonha ou ainda acordar todo dia torcendo para que voltasse para casa sem dar de cara com aqueles moleques inconvenientes. Se Mana visse que o buraco era mais fundo e que por questão de milímetros meus pés ainda não alcançavam, eu não saberia o que fazer. Não posso ser uma decepção pior para ele do que já sou.

Mas tudo doía. Tudo estava ruim. Nada encaixava. Estava tudo espalhado.

–Allen?-Mana perguntou, enquanto eu tentava desviar o olhar- Allen??

Mas já era difícil evitar. Eu estava chorando. Ele não podia me ver assim.

–Allen...- sua voz estava macia.

Colocou os braços em mim para me ajudar. Expulsei-o de perto.

–Não. Não precisa.

–Allen.

–Não precisa!- assustei-o com o grito. Mana se afastou.

Eu tinha lágrimas demais para esconder e se há algo que eu odeio, é quando as pessoas veem que não passo disso. Uma porcelana rachada. Frágil, tão frágil que não aguenta as noites.

E quando te vem chorar, é impossível parar.

Minhas pernas falharam quando tropecei em um desnível pequeno. Por sorte, Mana agarrou meu braço antes que eu caísse, pois eu estava chorando tanto que nem iria me esforçar para parar a queda.

Eu não queria ser fraco. Eu estava farto daquilo tudo. Doía tanto que eu não conseguia ficar em pé.

Mana se ajoelhou ao meu lado no chão, trazendo-me para entre seus braços. Comecei a soluçar descontroladamente. A proteção que a pele do meu pai me dava causava esse tipo de efeito em mim toda vez que estava à beira de um colapso. E eu não pude fazer nada senão chorar, como o pequeno garotinho que eu algum dia fui.

Ele não disse nada, só ficou ali, acariciando meus cabelos.

As lágrimas ardiam nos ferimentos, mas era impossível parar de chorar.

–Eu estou cansado, Mana- solucei- eu não sei se vou aguentar tudo isso.

–Ei, ei. Você não precisa aguentar tudo. Eu vou aguentar com você, tá?

Não. Não. Não. Mana já aguentava demais. Se ele tiver que aguentar mais um pouco...se além de suportar sua parte ele tiver que aguentar minha...

Era por isso que eu não gostava de chorar. As pessoas se preocupam e acreditam que devem fazer algo. Mas eu não quero isso, eu não quero que elas se atrapalhem em suas vidas porque um garoto fraco demais para aguentar a dele resolve partilhar a dor. Não posso causar mais problemas a Mana além de ter nascido.

É difícil.

Eu não aguento mais.

Tudo dói. Tudo arde. Tudo pesa.

Acho que rasguei alguma parte de mim mesmo. E perdi em algum lugar.

Não sei se a dor interna era pior que a física, mas que elas se igualavam era verdade.

O quão dolorido você se sente quando é rasgado? Brutamente. Sem pudores. Só algo entrando por você e descosturando tudo?

Eu não passo de um pano velho. Sujo. Decepcionante. Inanimado.

Morto.

OoO

–X-

OoO

–Mana...?

Milhões de lembranças passaram pela minha mente ao mesmo tempo e saíram em uma lágrima fina e descontrolada que correu pelo meu rosto até o queixo. Tenho que admitir, nunca na minha vida acho que veria Kanda com o rosto mais surpreso do que ele tinha. Pior do que isso, ele parecia incapacitado.

Será que em algum momento ele teve que amparar alguém que chorava? Acho que não.

–Allen, acalme-se- Komui levantou e deu a volta pela mesa- vamos, sente-se no sofá

Passou o braço pelo meu ombro enquanto me conduzia até o móvel. Não foi difícil me fazer sentar, já que minhas pernas já estavam bambas e as minhas forças gastas. Eu já estava meio sentado. Dessa vez, ele sentou ao meu lado ao invés de sentar em sua cadeira, mas Kanda se apoiou na mesa do supervisor enquanto eu me acalmava. Ou tentava, pelo menos.

–Allen- Komui se aproximou, mas eu encarava o chão- não há certeza de que é Mana que está nas mãos deles. Foram palavras soltas, Allen. E você é um segredo, como eles teriam essas informações tão rápido? Não há garantia de nada. E como Mana viria para cá? Só estávamos eu e você. Não há jeito de ele aparecer.

–Mas então o que eles queriam dizer com “importante”?- perguntei- Se como o Kanda disse a mensagem é para mim, que coisa importante eu já tive na vida? Apenas Mana! Ninguém mais!

Komui molhou os lábios. O japonês cruzou os braços.

–Talvez o conceito de “importante” que eles usaram não seja o que você está pensando. Talvez seja algo que nós necessitamos para derrotá-los.

Funguei.

–Eles, eles, eles. Quem são “eles”?- perguntei, mais por birra que por qualquer outra coisa.

Kanda franziu o cenho, descruzando os braços.

–Se foi um akuma quem disse aquilo...Conde do Milênio?- falou.

–Então- eu comecei- “eles” quer dizer, Conde do Milênio e os akumas.

–Quer dizer Conde do Milênio e seu bando- ele me corrigiu.

Tentei resgatar tudo que tinha na mente, mas quando estamos à beira de um ataque de pânico é difícil desembaraçar os pensamentos e tecer um novo. Muito menos um correto.

Conde do Milênio. Aquele que aborda as pessoas em sofrimento para que elas chamem a alma da pessoa amada de volta, dando vida a um akuma. Formam-se as máquinas mortíferas com uma alma embutida para conseguir energia.

–Máquina. Alma. Tragédia- lembrei, enquanto coçava a cabeça- assim se forma um akuma.

–Isso-ele franziu o cenho.

–Mas é só isso que consigo resgatar agora-balancei a cabeça- O que quer dizer com “bando”?

Komui se ajeitou no sofá, encostando as costas no encosto almofadado.

–É só uma suspeita- explicou, mexendo em um fio solto- não achamos que o Conde ande apenas com akumas. Temos relatórios antigos da Ordem com alguns casos que envolvem-hesitou- humanos.

–Humanos?- perguntei, aquilo não me parecia estranho. Na verdade, fazia até sentido.

–Humanos-concordou- Casos estranhos com algumas dúvidas, mas não passa de um palpite estratégico que já foi visto e revisto sem provas. Há sim humanos com o Conde, que trabalham vendendo almas para fabricação de akumas, ou seja, induzem alguém a chamar uma alma de volta, porém há aquelas teorias de que é possível que haja akumas ou criaturas em uma maior posição hierárquica também. Lembra-se de algo?

Seus olhos faiscaram, mas agora Kanda que parecia apreensivo. Ele franzia o cenho como se compreendesse algo que estivesse acontecendo. Não analisava a mim ou a Komui, analisava a situação por inteiro. Mas sendo o Kanda como ele é, não parecia ter grandes conclusões.

Eu acho que tinha em mente como as ideias dele funcionavam em todos os momentos. Provavelmente deveria abordar os pensamentos como “Ah, eu deveria pesquisar mais sobre esse suspeito para concluir o caso... ou estraçalhá-lo agora. É. Segunda opção. Tsc”. E partia para o ataque.

–Não-respondi, tendo os olhos no japonês e temendo que ele lesse mentes-não me lembro agora.

Balancei a cabeça.

–Mas não era disso que estávamos falando- lembrei- Mana. Recado.

Komui abriu a boca e a fechou várias vezes antes de tomar alguma palavra.

–Quanto a isso...Allen, ainda é cedo para dizer algo. Não temos certeza sobre nada. Mas não deve ser Mana. Não há como ser.

Tinha o olhar penalizado, por isso sabia que eu não deveria aparentar muita força. E não queria aparentar mesmo.

–Sugiro que descanse por hora, ok?- acariciou minhas costas, um gesto que apenas me fazia lembrar terrivelmente de Mana e ,antes que eu pudesse impedir, a saudade me consumia- Se quiser, tente exercitar a memória para ver se ajuda um pouco. Talvez se lembrar de coisas que você leu possam ser úteis nesse caso. Mas descanse bastante, a enfermaria está a sua espera. Não há certeza alguma de que Mana esteja aqui, ou que seja dele que falam.

“Mas só há ele de importante para mim”, pensei, sentindo os olhos novamente se encharcarem. Impedi que voltassem a marejar.

–Vá descansar, vamos abordando os assuntos conforme temos novas notícias e enquanto você melhora- disse, por fim, enquanto se levantava- Kanda, leve-o até a enfermaria.

–Mas-

–Leve-o-repetiu- Não quero nenhum exorcista perdido de novo nos corredores.

Kanda resmungou algo enquanto se aproximava de mim. Agarrou meu braço com força, mas eu repulsei o gesto rapidamente. O japonês fechou o rosto para mim, mas eu tentei não ligar.

–Ei, seu-

–Não. Não precisa- apoiei o braço no sofá me forçando a levantar- eu consigo sozinho.

Komui coçou o queixo preocupadamente com o dedo antes de dizer algo.

– Mas Kanda-chamou o moreno quando ele ia me seguir para fora da sala- antes preciso falar com você. Allen, você pode esperar lá fora um pouco?

Acenei afirmativamente com a cabeça quando saí da sala. Fechei a porta em um estrondo sem motivo, vendo-me no corredor silencioso e vazio como sempre era. A Ordem nunca foi o lugar mais tranquilo para se ficar sozinho, mas aos poucos a cor macabra que cobre o lugar vai deixando de ser ruim para ser comum. Olhei para um lado e para o outro, demorando em cada olhar.

Nem a pau que eu esperaria Kanda sair dali. Sozinho sempre foi o meu habitual e melhor. Escolhi um lado sem ao menos pesar o raciocínio e comecei a andar tentando ser apressado, mas impedido pela minha falta de energia e saúde momentânea. Passo por passo, segundo por segundo. Se eu dormisse, as preocupações iriam embora?

Eu duvidava. O máximo que sempre acontecia comigo era dormir e acordar com mais problemas no dia seguinte. Tão concentrado estava em pensar que não notei que estava sendo seguido até que o vulto apareceu ao meu lado.

–Kanda?- perguntei, vendo seus passos antes rápidos tornarem-se lentos para me acompanhar. Ele encarava a frente e apenas isso e se não tivesse respondido poderia dizer que me ignorava.

–Você não vai conseguir chegar até lá. Não sabe o caminho. É pelo outro lado –explicou.

E,agora que ele dizia, eu não sabia mesmo. Era melhor aceitar do que gastar forças discutindo algo já perdido. Apenas concordei ao balançar a cabeça e virei na direção contrária. Com Kanda ao lado pelo menos eu não tinha como pensar em algumas coisas, temendo que sua imprevisibilidade fosse me pegar de surpresa. Quando ele está ao seu lado, você só pode pensar nele, não há como desviar disso.

Mesmo assim, eu senti vontade de sentar e chorar pelo resto do dia. E engoli a vontade, não era hora para ficar assim.

–Então...-ele disse hesitante, ainda olhando para frente enquanto andávamos- outro universo, certo?

Kanda puxando conversa? Essa é nova.

–Por que está olhando assim?- rosnou, finalmente olhando para mim pelo canto dos olhos.

–Nada.

–Não vai responder a primeira pergunta?

Cocei os braços.

–Sim. Outro universo. Isso mesmo- como se eu pudesse ter outra resposta.

Ele molhou os lábios, foi quando eu percebi que ele vivia com os dedos na espada embainhada na cintura.

–O que ele quis dizer com “coisas que você leu”?

Suspirei. Seu tom era sempre duro, bruto e direto. Opa, igual a ele mesmo, não?

–Longa história- respondi, tossindo ao me engasgar- mas eu prometo contar todos os detalhes possíveis se nós chegarmos logo na enfermaria...por favor-respirei fundo, apoiando-me na parede para espantar a tontura.

Ele também parou de andar e se encostou com o ombro apoiado para olhar a minha frente. Bufou para o meu estado e aquilo era tão típico dele que eu quase deixei a sensação de familiaridade queimar dentro de mim.

–Tsc. Não que eu queira ter algo a ver, mas se meu trabalho está relacionado a você eu não tenho como fugir disso... Droga...Se vocês me falaram aquilo, quer dizer que agora eu estou cúmplice dessa baboseira inteira?

O que ele dizia era verdade, então concordei.

–Tsc. Ótimo- ironizou.

–Você que queria saber primeiramente.

Esfregou o rosto com as mãos. Impaciente como sempre era, devia estar a um passo de meter o punho em mim. Ou a espada.

–Eu sei disso-rosnou- mas acho que teria sido melhor se eu tivesse te rasgado ao meio primeiro.

Matar primeiro, perguntar depois. Não há coisa que melhor se encaixe em sua personalidade. Não disse?

Kanda virou de costas, voltando a andar, mas eu não consegui acompanhá-lo. Continuava encostado à parede sentindo o interior se revirar e virar e repetir.

–E os detalhes- ele disse- não vejo problema em me contar agora-suspirou, lutando contra as palavras- eu não tenho mais como te cortar e nem motivo para fazer isso. Quer dizer, eu tenho, mas se Komui está tomando cuidado com tudo isso é porque tem motivo. Eu não quero saber se você é um viajante de outro universo, um traveco ou qualquer outra coisa. Você continua sendo o moyashi. É irritante. Então se você vai me envolver nisso tudo ou se vai me fazer matá-lo, é bom que me dê um bom motivo para isso ao invés de deixar um trabalho pela metade. Então se está com frescura para me contar o que sabe, é melhor parar com isso agora.

Apesar da dureza em sua voz, era bom escutar ameaças de vez em quando. Lembrava-me de coisas passadas, que eu quero esquecer, mas ainda assim faz parte de mim. Por mais que eu não queira.

–Hã... não é que eu esteja com frescura, Kanda-puxei a gola da minha camisa- mas é que ...na verdade... eu realmente preciso ir para a enfermaria antes de qualquer coisa.

–Hã?- ele virou para mim, de rosto fechado- está sangrando?

–Não...-coloquei a mão na frente da boca-...acho que vou vomitar.

–Quê?- ele se apressou até mim, pegando-me pelo braço com uma pressa que eu nunca tinha visto- banheiro. Vamos pra o banheiro!

Eu estava tonto demais para gravar, mas lembro-me muito bem de como corremos para o banheiro do andar. Ele me puxava pelo braço, soltando seus xingamentos (inúteis, tenho que dizer) e eu usava minhas pernas como podia. Lembro bastante dele reclamando do quanto eu era nojento enquanto vomitava. Reclamou do meu rosto ainda mais pálido e do cheiro enjoativo. Mas quando finalmente chegamos à enfermaria, estranhamente eu não havia me sentido mais limpo nas últimas semanas (é, vomitar sempre melhora enjoos). E ele deixou de jogar perguntas naquele momento. Talvez porque temesse que eu fosse...hã...regurgitar em sua roupa, ou porque temesse que a história se espalhasse pelas enfermeiras. Mas eu fiquei grato do mesmo jeito. Nas condições em que eu estava, lembrar e falar eram duas coisas impossíveis. E isso não quer dizer que ele não tentava descobrir coisas. Só fico feliz que ele não tenha usado o “jeito Kanda” e me ameaçado com uma lâmina para isso.

Mesmo quando cuidavam dos meus ferimentos e davam-me pílulas para uma coisa ou outra, Kanda estava lá no canto. Franzindo o cenho para ver através de mim.

“Pode tentar”, pensei enquanto fechava os olhos para dormir, “mas não acho que vá conseguir, Bakanda”. E o sono veio antes que pudesse pensar em qualquer outra coisa.

–X-

–Allen-kun?- uma voz feminina bateu à porta. Eu estava tentando abrir as cortinas ao lado. Tomar sol de vez em quando é uma boa ideia, ainda mais que a enfermeira (assustadora) havia me proibido de sair da enfermaria (asssutadora) por alguns dias até que a situação se estabilizasse. Faziam dois dias desde que havíamos voltado e eu apenas acordava, comia e dormia o dia inteiro. Pelo menos, eu havia conseguido a cama ao lado da janela, onde eu podia observar o sol ir e vir e os pássaros levantarem voo de hora em hora quando havia alguma agitação na floresta.

O quarto fedia a remédio e algo antigo (que eu tinha quase certeza de que era a enfermeira, mas como a Ordem tem muros remotos e sujos aposto minhas fichas nesse detalhe) e as paredes eram cinzas e manchadas. Não era a enfermaria mais limpa que eu já tinha visto na vida, mas a julgar pela dor mínima nos meus ferimentos, creio que fosse bem eficiente.

–Hã...pode entrar- avisei à pessoa do outro lado da porta.

Lenalee entrou carregando uma bandeja cheia de comida. Deve ter percebido que meus olhos brilhavam e minha boca salivava, porque riu enquanto se sentava ao pé da minha cama e me entregava.

Esperei nem dois segundos para atacar os pratos.

–Fome, não é, Allen-kun?- riu.

–Sempre- respondi, entre mordidas e mastigações.

Ela cruzou as pernas em cima da cama.

–Eu pedi para o Jeryy preparar porções pequenas para caber na bandeja. Lavi disse que iria trazer mais.

–Sim, muitíssimo obrigado, Lena. Eu tenho morrido de fome aqui.

–É...- ela riu- o meu irmão me contou sobre a bronca que você levou da enfermeira-chefe quando tentou escapar para a cozinha.

–Bronca?-indignei-me apenas por lembrar- Aquela velha me trouxe arrastado pela orelha!-reclamei, mordendo uma coxa de frango muito bem temperada.

Ela cobriu a boca com a mão quando riu. Era um gesto fofo de se observar, mas às vezes soava falso. Até eu lembrar que, bem, garotas de mangás geralmente são esteriotipadas de um jeito falso por mais que não fossem na realidade.

Engoli o que tinha na boca.

–Eu sei como é. Há anos que a vejo arrastar fugitivos pelas orelhas.

Precisava escolher entre falar e comer, então me concentrei apenas em devorar o que tinha em frente antes de continuar a conversar. Eu tinha fome desde horas atrás, meu estômago reclamou a noite inteira para me acordar e agora parecia insaciável.

–Eu não sei por que ela não me deixa sair- abri e fechei os dedos da mão esquerda- os ferimentos já estão bem melhores.

–É o trabalho dela. Ela se irrita porque exorcistas são durões e nunca acham que estão machucados o bastante.

“Ah...eu com certeza achei que estava machucado o bastante. No primeiro golpe eu já queria pedir descanso...”, pensei, mas não falei nada. Soaria estranho. E uma pessoa suspeitando já era ultrapassar a cota de suspeitas que podiam ser suspeitadas...

–É... creio que seja difícil trabalhar para a Ordem, mesmo...

Lenalee fez o favor de colocar a bandeja vazia em cima do pequeno cômodo ao lado. Ela era uma garota gentil, conheci poucas dessas na minha vida. Conhecia algumas que se importavam demais com a aparência para falar comigo, ou que tinham medo de mim sem um grande motivo aparente, mas nenhuma que sentaria ao pé da minha cama e traria comida para que eu não tivesse que levantar. Só havia novas experiências para mim dentro da Ordem Negra.

–Como foi a missão?- ela perguntou- você ficou bem machucado.

–Ah...-procurava medir cada uma das palavras- estava cansado. A innocence causava ilusões nas pessoas por isso foi um pouco confuso. Kanda foi procurá-la na floresta e eu tive que proteger a vila de uns akumas.

“Akumas que eu achei que eram amigos”, lembrei, afundando o peito.

Lenalee abriu mais um pouco as cortinas. A luz do sol pintava linhas na cama e aqueciam minhas pernas.

–Eu sei que vocês dois vivem brigando por causa disso- ela disse- mas você e Kanda faze uma boa equipe-não quis perguntar de onde ela tirou esse assunto- Vocês fariam uma dupla melhor se conseguissem se entender um pouco mais, porém às vezes eu acredito que o fato de vocês seguirem tão bem nas missões juntos é por causa das brigas- riu- é algo estranho de pensar, mas quem sabe não esteja certa.

“Boa dupla? Você quer dizer, o modo como eu estava mentindo para ele e como ele me ameaçou o tempo inteiro? É. Somos uma ótima dupla. O idiota e o mais idiota. O samurai e o viajante de universos ”.

–Difícil dizer...-foi a única resposta que consegui tirar- muito improvável...

Fui me espreguiçar, mas meus ombros e cintura doíam quando esticados. Os curativos puxavam pele inocente e os ferimentos espichavam.

–Ai!- resmunguei, assim que lembrei que machucavam.

–Cuidado, Allen-kun-Lenalee passou a mão sobre o curativo na minha cintura. Meu rosto ficava fervido sempre que alguém tocava em minha pele. Até agora, estava me saindo bem em ignorar o fato de eu estar apenas vestido em minhas pernas na presença de uma garota, mas enquanto ela forçava a gaze improvisada a colar na pele de volta, era difícil. Era mais que vergonhoso, eu achava desrespeitoso estar assim diante de uma garota-a enfermeira vai ficar furiosa se recomeçar a sangrar.

A única grande aproximação comigo nesse lugar foi (incrível e vergonhosamente) com Kanda. Quando ele...é...você sabe...

Eu vou ficar nervoso se recomeçar a sangrar...-resmunguei.

–Mas você nunca foi de dar atenção aos ferimentos, não é, Allen-kun?

Ri. Era para parecer normal, mas saiu esganiçado e baixo porque eu estava nervoso com todas essas perguntas. Parecia um interrogatótio.

Cadê o Kanda? Cadê o Lavi? Komui? Reever? Qualquer um! Ajudem-me com essa garota antes que ela suspeite de qualquer coisa.

Komui havia me dito, não havia duas horas quando ele me visitou com o pretexto de verificar alguns detalhes da missão. Examinando os ferimentos, conseguiu espantar a enfermeira para conversarmos sozinhos. Entre os paralelos, disse-me claramente:

–Lenalee é a que você tem que tomar mais cuidado. Tem bons olhos e preza todos os amigos.

E nem duas horas depois, estava enfrentando o desafio em pessoa.

“Se ele não tivesse me dito”, pensei, ainda tentando não rir nervosamente, “talvez eu não ficasse tão apreensivo com tudo que falo agora! Maldito seja!”.

–Você está bem, Allen-kun?-ela tombou a cabeça com os olhos preocupados- Você não parece bem...

Droga. Calma. Fique bem. Esteja bem. Seja o bem!

–Eu estou sim- ainda que eu tentasse, o tom não estava menos esganiçado- só com sono. Quando eu como muito, sabe...fico com sono.

Ela estreitou os olhos. Komui havia me dito que tentaria sempre prendê-la a ele com o pretexto de ser um “irmão-coruja”, mas havia momentos que ele não podia alcançar. Eu tinha que desviá-la sozinho. O grande problema? Que problema? Ah, sim. O FATO DE QUE EUNUNCA FALO COM PESSOAS!

–Hã...er...-foi o melhor que saiu-hoje vai chover?

É. Idiota. Um sol brilhante lá fora. Um céu sem qualquer borrão de nuvens. Uma temperatura amena. Claro que vai chover. É tão óbvio que podemos cantar lá fora e fazer um musical sobre chuva. Quer saber? Vamos mais longe. Acho que vai gear e depois nevar e chover batata. Idiota!

–Hã...creio que não- ela me respondeu. Deve estar acostumada a idiotice, pois não viu nenhum problema na minha pergunta- está com febre, Allen-kun?

Toquei meu rosto. Estava quente, mas tinha certeza que não estava febril, apenas nervoso demais.

–Hã? Não- pensei melhor. Se fosse para me livrar desse peso...- quer dizer, acho que sim!

Ela arregalou os olhos.

–Vou chamar a enfermeira!- levantou.

NÃO. A MONSTRA NÃO!

–Não!- disse, puxando-a de volta- não é febre. Me confundi. É sono. E sol. Preciso de sol e por isso fico grande parte do tempo tomando sol na janela- mentira- a enfermeira me mandou- mentira-tanto sol esquenta meu rosto-mentira.

–Ah, claro- ela sorriu- ainda bem... Só não fique no sol por tempo demais. Não quero você com insolação ou todo queimado.

–Ah, claro- ri-pode deixar.

E, como todas as minhas conversas sempre acabam, o silêncio chegou. Sem assunto. Sem ideia. Sem experiência. Sem coragem.

Meninos falam com garotas. Mas eu não falo com elas.

Rápido! Pense em coisas de garota! Coisas de garota! De garotas como a Lena!

–Então...- eu disse- para que se usa um rímel?

Ótimo! Não, espera. Quê?

Vamos, Allen. Ela é uma amiga, compartilhe algo legal!

–Ah...-meu rosto esquentou-quer dizer, você sabia que uma pessoa produz 2 litros de saliva por dia?

...Isso só fica pior. Fica quieto, Allen. Só fique quieto e deixe o tempo morrer.

–Hã...nunca precisei saber disso...

–Ah, é, né?...

É óbvio! Que tipo de informação é essa.

Conversar com garotas é difícil...não porque elas são diferentes, mas porque eu sou idiota. Homens são criados para crescer e encontrar uma garota para casar e reproduzir, talvez seja essa a pressão que colocam sobre mim. Eu nunca pensei que chegaria a falar com uma garota. Para todos os homens, somos criados como se garotas tivessem interesses totalmente diferentes e restritos, por isso eu fico confuso!

Mas eu não sinto vontade de estar com ela. Eu sinto familiaridade. E isso também é bom.

A porta rangeu e quebrou o segundo silêncio. Nunca fiquei tão feliz quando vi Kanda, ainda que ele estivesse sendo arrastado por Lavi contra a sua vontade.

–Olhem quem eu encontrei na porta!- o ruivo claramente falava do japonês. Lavi tinha um pacote grande de salgadinho em uma das mãos e na outra tinha Kanda. Puxava o tecido de seu uniforme para arrastá-lo para dentro.

–Oe! Usagi! Tsc-como Lavi sobreviveu até esse ponto e como ele ainda tem seu braço ligado ao corpo eu não sei.

–Ah, Yuu, não seja chato, ok? Já que já entramos pelo menos fique aqui. Olhe lá seu companheiro de missão.

Os olhos dele rolaram até mim. Por um belo momento, me envergonhei muito mais por estar sem camisa. Esfreguei as mãos até cruzar os braços no peito, querendo disfarçadamente esconder meu corpo franzino.

Kanda não estreitou os olhos, mas me encarava com olhos vivos quando respondeu Lavi.

–Como se o moyashi me importasse.

–Ah, que cruel, Yuu!

O moreno empurrou Lavi para expulsar seu toque.

–Cala a boca, e não me chame pelo nome se não quiser perder seu outro olho.

Eu não percebi quando Lenalee havia levantado, mas eu a vi quando bateu na cabeça dos dois para chamar atenção.

–Parem os dois- ela avisou- ou os dois vão perder um olho. Nosso amigo está na enfermaria e vocês ainda discutem?

–É o Yuu, ele discute com todo mundo.

–Tsc. E o moyashi já ficou várias vezes na enfermaria, não é nada novo.

–Só se aquietem em algum lugar!

Kanda resmungou, revirou os olhos, mas ainda assim encostou o ombro na parede e ficou ali, fazendo companhia aos remédios, acho.

Lavi foi diferente, correu para sentar do outro lado da minha cama e não demorou a abrir o pacote que tinha nas mãos. O cheiro de queijo invadiu o quarto em pouco tempo, chamando a atenção do meu estômago guloso.

Peguei um punho inteiro para comer.

Lavi pegou apenas dois de uma vez.

–Pensei que fosse pegar comida de verdade, Lavi-Lenalee disse.

–Ué? Isso é comida de verdade-ele ergueu o salgadinho- uns finders trouxeram da cidade e eu achei que fosse mais rápido e prático que ficar na fila do refeitório. Então eu subi e encontrei o Yuu parado em frente à porta.

–Kanda-Lenalee o fez revirar os olhos-se quiser entrar, pode sempre entrar.

Opa. Eu sou a pessoa que está internada no quarto. Eu digo quem pode entrar.

–Não é isso...-ele respondeu, com mais que simples tédio correndo pelo seu rosto.

Lavi soltou um riso abafado e atiçou minha curiosidade.

–Ele tem medo da enfermeira- sussurrou.

Ouvi um baque forte e Lavi tinha batido o rosto na cama quando Kanda jogou um pote de analgésico em sua cabeça. Vejamos pelo lado bom, Lavi: não foi uma espada!

–Para de falar besteira, usagi!- rosnou.

–Ai- ele massageou o lugar atingido-Yuu, não se preocupe, todo mundo tem medo daquela velha.

Eu podia jurar que o quarto esfriava. Era como uma aura negra e assassina percorrendo o espaço inteiro, mas era apenas Kanda com raiva. Muita raiva. Estava enfurecido. Mas, não sei por que, era divertido vê-lo assim. E também assustador. Mas divertido do mesmo jeito.

–Maldito-rosnava enquanto agarrou o criado-mudo, pronto para jogá-lo- usagi.

Lenalee foi mais rápida antes que o móvel saísse pela janela levando Lavi andares abaixo até o chão. A garota levantou e agarrou o outro pelo braço.

–Vamos indo nessa-disse, puxando Lavi por cima da cama sem se importar com a velocidade- até mais, Allen-kun.

Observei-os até que a porta se fechou. Resmunguei uma despedida, lenta demais para ser ouvida antes que sumissem. Não pude evitar suspirar de alívio quando vi que restava apenas Kanda no lugar. Sem problemas, sem trapalhadas. A não ser aquele criado-mudo que ele tinha nas mãos.

–Er...sabe...?-eu disse, após um grande silêncio- já pode abaixar o móvel...

–Tsc- o moreno colocou-o de volta ao lugar, contrariado por ter perdido a chance de fazer uma vítima.

Quando ele se encostou de volta a parede, percebi que era muito mais fácil e muito mais confortável estar na presença dele.

“Ele me conhece, pelo menos em parte”, lembrei, “ele não é como Lenalee ou Lavi. Ele sabe. Ele foi meu parceiro por quase uma semana”. Era muito melhor arranjar formas de conversar com ele agora, apesar de ser um tanto intimidador quando queria.

Apenas parado observando o tempo ir, Kanda não teve nenhum movimento que me desse chance de entender o que ele viera fazer ali. Seria para me observar? Para me perguntar algo? Para me matar?

Ler pessoas nunca foi exatamente minha especialidade. Pessoas, no geral, nunca foi minha especialidade.

Sem mais o que tentar, me contentei em observá-lo na esperança de que falasse alguma coisa. Qualquer coisa. Ele cruzava os braços e olhava alguma coisa dentro do lugar, os cabelos sempre presos, o olhar rígido e difícil, as roupas negras que (eu achava) se encaixavam com perfeição em sua cor. Na outra vida, uma pessoa assim seria aquela que eu teria que ficar mais longe.

“Paul Anderson e seus porquinhos, Bridget Allison, Nance White, Charles Martin e os bananas-ezquizofrênicas (apelidei-os assim porque os amigos dele eram altos, assustadores, mas quando iam me bater pareciam não saber direcionar um soco direito), Brandon Earl... Minhas experiências com essas pessoas foram as piores”.

E apesar de Kanda ter me ameaçado, me xingado e até me chutado, a sensação era diferente. Não era algo mau, apenas usual e talvez encaixante. Por mais estranho que isso possa soar, era até...legal.

Estou virando masoquista? Não, acho que apenas desesperado e solitário. Tanto que me agarrou à pessoa somente porque passei um pouco mais de tempo com ela.

Ok, quem estamos enganando? Kanda sempre foi o tipo de pessoa que eu queria ser. E exatamente o tipo de pessoa que não encaixava comigo.

–Oe- ele me tirou dos pensamentos- como vão os ferimentos?

–Hã? Ah, os ferimentos- toquei-os quase inconscientemente- vão...doloridos, acho?

Arqueou as sobrancelhas, mas desgrudou da parede, vindo até o pé da minha cama.

–A enfermeira disse que era melhor ficar em repouso por um tempo pelo menos, porque eu vomitava o tempo inteiro e não conseguia levantar-suspirei- Komui disse que viria me analisar qualquer dia desses. Você sabe...por causa da coisa.

–A doença- ele completou, sem esboçar qualquer sensação importante.

Seus olhos grudaram em mim por um longo tempo. Era demais para sustentar, então somente observei os pássaros lá fora. Havia urubus rodeando um ponto no chão, mas eu os via no céu. Acho que algo havia morrido na floresta e logo viraria nutrientes no sistema daqueles pássaros.

Esqueça Lenalee. Conversar com Kanda era pior também.Era intimidante e vergonhoso, como conversar com alguém que você admira, mas que é agressivo em olhares, palavras e corpo. Mas também era melhor. E daí surge a grande contradição da vida.

Uma delas, pelo menos.

Bem, pelo menos eu sei que ele corresponde ao meu jeito sarcástico de ser.

Kanda enfiou a mão dentro de seu sobretudo. Por segundos agonizantes, achei que ele fosse tirar uma arma e explodir meus miolos, no entanto assim que vi o que tinha em mãos, percebi que era outro tipo de arma.

–Komui disse que gosta de ler- ele disse, mostrando o livro- pediu para que eu fosse até a biblioteca, mas eu não sei que tipo de livro você lê, então peguei um famoso qualquer que achei.

Cauteloso, levei as mãos até o volume e o peguei em mãos. Tinha um pouco de poeira e páginas amareladas, mas as letras ainda estavam legíveis e a figura da capa intacta.

–A Divina Comédia- ecoei o nome da capa- um poema épico do século XIV.

Ele deu de ombros.

–Tsc. É conhecido.Já leu, então?

Eu ergui os olhos, encontrei os dele fixados em mim, mas não liguei na hora.

–Pode crer que é conhecido- falei- não, não li. Mas eu estudei sobre. É do Dante. Grande obra. Não é do tipo que se lê tão facilmente, nem por vontade. Mas eu sempre quis ler, apenas para experimentar.

Rodei o livro em mãos, vendo capa e contra capa.

–Pelo menos terei como passar o tempo na enfermaria.

Folheei o volume. Kanda tinha aquele olhar penetrante, mas eu não havia notado de imediato. Até que resolvi levantar os olhos.

O moreno ergueu uma sobrancelha para a minha cena. Eu havia ficado um bom tempo sem ir à biblioteca, eu merecia um livro e merecia apreciá-lo o quanto quisesse. Foi tentando analisar sua postura que me veio à cabeça a questão mais importante: Por que ele havia feito isso?

Isso não é um gesto normal que ele faria, mas ainda assim fez. Somente porque Komui mandou? Improvável.

Kanda apontou para o livro e fui eu quem franzi o cenho por pura confusão. Se ele achava que gestos bastavam para explicação, estava completamente errado.

–Minha proposta-ele disse, cruzando os braços- um livro, um pedaço da sua vida antiga.

Encarei-o com indignação. Desde quando minha vida o interessava tanto? Ah, é, desde que ele descobriu que eu não sou desse lugar. Mas, uma troca? Totalmente fora de cálculo.

Folheei o livro. Eu não tinha vontade de contar a ele sobre quem eu era. Era como abrir feridas, mostrar fraquezas. E, se me lembro bem, estamos em uma guerra onde fraquezas não podem existir e muito menos mostradas.

O que ele pensaria de mim? Eliminaria-me ao ver o quão inútil sou? Riria? Não sei, às vezes penso que ele é a pessoa em quem eu menos posso confiar e ainda assim é a única pessoa que sabe mais sobre mim. E às vezes ele me lembra de pessoas que encontrava, pessoas que gostam de ver hematomas cobrirem meu corpo e de ver minhas lágrimas de dor.

Arriscado demais para se fazer verdade. Ou talvez não.

Se ele quer saber, tem motivo. E creio que seja porque quer saber o que faço aqui, senão ele não estaria sendo tão cuidadoso com toda essa cena. Komui deve ter falado algo para ele, deve ter instigado-o a tomar cuidado e não acabar comigo. Deve ter tentado acalmar a fera antes que ela me mordesse.

Se eu me lembrar das coisas que sei, torno-me útil. E assim não posso correr risco de ser eliminado. Se contar a ele vai exercitar minha memória, então talvez seja a coisa certa a fazer.

Mas não que eu vá deixar de aproveitar a oportunidade. Só um pouquinho.

Dei de ombros em resposta.

–Não sei-respondi e ele juntou as sobrancelhas- talvez eu fale sobre a minha vida. Pouco a pouco. Mas livros não são o suficiente- ele cruzou os braços, parecia surpreso com o meu jeito de agir, mas, olhe bem, eu nunca fui uma pessoa que deixa escapar chances e muito menos de deixar de analisar uma situação cautelosamente- vida antiga por livros e você vai me ajudar com esse mundo. Eu quero dizer, eu não estou adaptado com isso tudo e não sei como agir frente aos outros.

Ele bufou.

–Como assim não sabe como agir?

–É-dei de ombros- você vai entender quando eu contar como eu era... e sou...ou era? Eu não sei...

–Moleque atrevido...

Pensei que fosse me socar até me render, mas tentei manter a pose ereta. O importante não era estar forte, mas demonstrar estar forte.

Ele esfregou o rosto antes de pousar a mão no queixo. Estava pensativo, talvez imaginando o que eu queria dizer com me ajudar com esse mundo. Mas era simples: ajude-me com aquilo que eu tiver dificuldade quando eu pedir. Ajude-me a me livrar das perguntas irritantes.

Ajude-me a fazer parte daqui.

Ele cruzou os braços novamente.

–Tudo bem-bufou- que seja.

Ele se levantou e balançou a cabeça. Talvez se arrependesse de ter aceitado, talvez só estivesse farto de mim e quisesse se livrar do peso o mais rápido possível.

Quando ele estava para sair, não me lançou nenhuma despedida, porém no momento eu estava me sentindo tão confiante (algo difícil de acontecer) que tomei a liberdade de falar.

–Até mais-eu disse e sussurrei como complemento-...assistente.

–Vai se ferrar, alienígena-cuspiu as palavras.

Quando o estrondo da porta ecoou no quarto, por um segundo temi que o som tivesse chamado a atenção da enfermeira-monstro. Depois de um tempo consideravelmente longo sem nenhum movimento, percebi que não tinha mais problemas.

Abri o livro, engolindo mais pó que esperava. As páginas estavam inteiras, o que era um milagre, considerando que o cuidado que as pessoas da Ordem têm com objetos importantes nunca foi o melhor. O cheiro de livro usado e antigo me deixava uma sensação tão boa quanto quando podia sentir um livro novo. Passar o dia inteiro encarando o teto manchado da enfermaria não precisava mais ser uma obrigação.

Passei os olhos pelas páginas, lembrando da história que se passava nelas.

Uma passagem pelo inferno, purgatório e paraíso? Dante que se cuide, mas às vezes acho que a vida não passa de uma junção dos três lugares. Ou talvez todos passemos por eles, talvez todos sejam uma fase que vivemos sem nos lembrar. Talvez vivamos em cada um deles um momento e apenas passemos de fase quando morremos. Quem sabe? Apenas uma impressão vaga e pretensiosa que minha cabeça sonhadora e iludida gosta de ter.

“Aí uma hora passarei pelo paraíso”, pensei, “mesmo não merecendo”. Era uma ideia boba, mas quem está lá para impedir as ideias bobas? Não teríamos chegado até aqui sem ideias bobas, sejam elas boas, más ou sem o menos pingo de noção.

Nesse inferno que eu vivo desde sempre, as coisas podem sorrir de vez em quando.

Apenas de vez em quando.


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Notas finais do capítulo

E aí, gostaram?? Não? Me digam!
E...as coisas começam a se mover agora! E, por esse motivo, tenho a descência (e nonsense) de dizer: bem vindos a Pure Imagination *música de ação* as coisas começam a acontecer hahaha
—Próximo cap: narração do Kanda, porque esse cara merece uma parte.
—Mas...a próximo atualização deve ser de BB ;) vou tentar revezar um pouquinho...
—Uou, acabei de ver que tem sim anime friends essa semana :) *feliz*
—Bem, é isso, até o/