Pure Imagination escrita por Sweet Death, SaltedCaramel


Capítulo 19
Do I really need to give a title to this shit? I'm not doing this


Notas iniciais do capítulo

Hey!!! Como estão?
Demoro, mas venho haha.
Tem algo que esqueci totalmente de falar capítulo passado, mas é sobre algo que comentaram (ah, deuses, eu ri muito) em outro capítulo. Lembram da cena em que o Kanda agarra a parte íntima do Allen? Então, Maneko Giglio Neko me mandou isso aqui e eu morro com isso até hoje, demais: http://i.4cdn.org/f/(%20͡°%20͜ʖ%20͡°).swf
—Momento felicidade do dia: Recebi mais uma (divosa, deuses, para eu usar essa palavra é porque a coisa é séria) recomendação!!!!!! Da Lady Belevole!!! Eu fiquei muitíssimo feliz, então muitíssimo obrigadíssima, várias e várias vezes!!! Milhões de vezes!!! T^T *chora*...ah...feliz...feliz...
—POV do Kanda: ou seja, só ressaltando como a Ordem é irritante o tempo inteiro. Como os o Allen vem constantemente tendo lembranças do passado, coloquei no do Kanda também! Yey! Será que representei bem o Kanda? Tentei deixar bem "foda-se a narração e foda-se o título também", como se ele falasse mais que narrasse...porque...bem, é o Kanda afinal.
—Eu sei que há aqueles que não leram o mangá, então cabe a mim avisar que, sim, Alma Karma existe e foi criado pela Katsura Hoshino. O passado do Kanda é o mesmo da história real, mas como emprestaram (leia pegaram e não devolveram) meu volume com essa parte detalhada, alguns detalhes (como aparência ou falas) não ficarão iguais. E eu recomendo de coração que leiam o mangá, não por causa da minha fic, mas porque é maravilhoso T^T
—Eu vou demorar muito para postar nas próximas semanas, por um motivo chato que se chama...vida social. Brincadeira. Escola mesmo. Eu já deixei tudo para essa semana e estou super ferrada...
—Boa leitura!! o/



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Eu previ o soco bem a tempo. Na verdade, previ sua chegada apenas pelos passos constante, reconhecíveis, que ele achava que eram surdos o bastante para não serem notados. Eram pisadas brutas que qualquer um com um ouvido funcional perceberia. Aquele que não pode sequer esconder seu próprio sentimento não pode sobreviver nesse mundo em que fomos submetidos por azar. Amador... E ainda se gabava por ter “nascido” antes de mim...

Nós éramos as únicas crianças na Divisão Asiática da Ordem, por isso ele achava que eu tinha algum tipo de “obrigação de amizade” para com ele. Tsc. Quem iria querer ficar perto de um babão grudento que te segue de um lado a outro como se o mundo fosse um grande lugar feliz?

Idiota. Ele nem conhece o mundo e muito menos eu. Mas quando somos submetidos àquelas “coisas” às vezes tenho visões. Visões de um mundo que nunca vi com estes olhos, mas conheço. Um mundo que não fica debaixo da terra onde sempre estamos.

Mesmo sabendo que ele vinha furioso, não havia motivo para atrapalhar a mim mesmo por algo tão inútil quanto a sua chegada. Apenas continuei a comer meu sobá. Não valia a pena deixar a comida esfriar apenas para dar atenção a ele, porque quando ele tinha atenção conseguia se tornar uma coisa ainda mais irritante. E olhe que isso era quase impossível em termos de “níveis de irritabilidade”.

Se havia alguém no mundo que conseguia alcançar o topo do ranking de ser irritante, era ele. Sem esforço algum, apenas existindo.

–Yuu!!!- ele gritou. Em outros momentos eu iria gritar para deixar de me chamar daquele jeito, mas,além de estar fazendo algo importante, anos de convivência sangrenta provam que não funciona de qualquer modo. Ele segue seu próprio jeito. Um jeito muito chato, que isso fique claro-Yuu!

Calma, Kanda. Calma. Concentre no sobá. Não pense no moleque que está vindo. Quem sabe se você ignora o animal desiste e ninguém precisa deixar de almoçar? Concentre no sobá. Sobá. Lembre-se do que acontece quando vocês brigam. Lembra dos castigos que você leva. Concentração. Lembra que te fizeram limpar o banheiro coletivo duas vezes. Isso tudo é um teste. Um teste de paciência. Um teste muito difícil.

–Ah, droga- ouvi um homem da Divisão de Ciências resmungar em alguma mesa próxima- ele está vindo e não parece nada contente...

–Está vindo atrás do Kanda. De novo.- outro completou, parecendo ainda mais desesperado que o primeiro. Eles sempre faziam tempestade em copo d’água para um moleque que chora toda vez que o ignoram-o que será que ele fez dessa vez?

O que eu fiz? Hm...sei lá. Só decidi que a companhia dele não valia nada e o deixei esperando perto dos poços. Não que em algum momento tivesse valido alguma coisa.

Era ele quem queria ser “amigo”. Pena que, bem, eu nunca ficaria perto dele por vontade própria. Moleque chato. “Yuu” para cá, “Yuu” para lá. Desde que eu “nasci” ele acha que eu estou aqui para fazer companhia. Se enganou, otário, nós dois já experimentamos na pele a razão pela qual “nascemos”. E para ficar abanando o rabo como cachorros inúteis é que não é.

Passos próximos, passos mais rápidos, passos mais fortes. Ah, aí vem ele.

–Yuu seu...-terminei o prato sem deixar nem uma gota ou pedaço e depositei os hashis em cima da tigela. Nada melhor que sobá depois de ficar treinando com aqueles cientistas idiotas de vozes melosas para instruções e correções. Acham que sou um cachorro para ficar me chamando daquele jeito?- Yuu seu...IDIOTA!!!

Ah, aí vem o verdadeiro cachorro.

–Não, Alma!- alguém gritou, como se isso fosse ajuda em algo. Por que ao invés de ficar gritando e cochichando inutilmente não o tiram do caminho para sempre com uma morte dolorosa? Isso sim seria de muita utilidade.

Peguei a bandeja com calma e levantei do banco para ir jogar os pratos no balcão de louças sujas. Ao tempo em que dei um passo para o lado, ele deu milhares para frente, com o punho fechado na direção em que antes eu estava. Não foi surpresa ou preocupação (pelo menos para mim) quando seu corpo voou pelo ar esperando encontrar e esmagar meu rosto, mas caindo com força sobre a mesa e, com sorte, quebrando alguns ossos.

A madeira rachou ao meio e veio abaixo com a força e peso da batida. Ele não se moveu, mas eu pelo menos me ocupei em observar seu corpo imóvel jogado nos destroços.

–Opa- eu disse, sem qualquer expressão-quebrou.

–Quebrou??-Edgar, o chefe assistente da Divisão de Ciências Asiática (mais conhecido como o “palerma preguiçoso” nos meus conceitos) surgiu atrás de mim, observando a cena com um olhar que variava de preocupação, à raiva e até nervosismo. Não é como se fosse coisa nova- você está falando sobre a mesa ou sobre o Alma?

Ele tinha o costume de sorrir o tempo inteiro e essa aura idiota que o rodeava estava sempre lá. Mas era diferente de Alma, outro idiota, ele tinha um jeito mole de um jeito adulto. Era do tipo que sorri como se não tivesse deveres a cumprir nesse lugar, do tipo que se deixa levar e que sempre deixa tudo para fazer depois. Isso até a sua esposa começar a ficar nervosa com ele por ser tão leviano quanto o vento. Ou seja, um nada.

Não deixava de ser irritante, porém. E se ele estava em uma posição alta na Divisão, deveria significar que às vezes o cérebro dele desperta (raramente). Ou que tinha muitos contatos.

Ele era esquisito. Todos eles eram.

Parecia que queriam algum tipo de obrigação comigo além do que tinham que fazer de verdade.

É esquisito. O modo como eles sorriem o tempo inteiro. Em que mundo eles acham que vivemos? Eles simplesmente esquecem as cenas pelas qual passamos sempre que resolvem testar innocences? Principalmente o moleque. No que ele tanto insiste?

–Com sorte, os dois estão quebrados- respondi, retomando meu caminho até o balcão. Não levei muito tempo para ouvir os destroços sendo remexidos e não precisava olhar para saber que ele estava se levantando. Vaso ruim não quebra...facilmente.

“Rápido, ou ele vai começar com aquela baboseira de sempre”, apertei o passo, tomando cuidado para não correr e alarmar outros funcionários. Eles eram um pé no saco quando eles queriam nos fazer parar de brigar.

Querem que eu pare de espancá-lo? Façam-no parar de vir atrás de mim quando eu não o quero por perto (ou seja, o tempo inteiro). Na verdade, acabem com isso de uma vez , matem-no, enfiem-no de volta em um buraco qualquer e me deixem em paz. Tudo calmo e resolvido.

–Yuu...-eu ouvi o som irritado de sua voz vibrar o refeitório, mas nem me incomodei em olhar enquanto depositava o prato no balcão. Não valia a pena dar atenção a intenções tão chatas quanto ele. Se queria me fazer seu amigo, devia tentar isso do além. Mesmo que eu não garanta nada de que vá funcionar, mas me faria um garoto feliz.

Ah, com certeza faria...

–Calma! Veja, o Yuu só estava com fome. Não sei o que ele fez, mas com certeza foi por causa disso. Vamos parar com isso, ok? Vamos para aquele lado e logo o Yuu vem junto- a voz de Edgar soava alarmante, mas não deixava de ter aquele tom velho de maciez que ele gostava de ter. Esse tom apenas piorava meu humor.

Pelo barulho de passos e madeira trombando com o chão, sabia que ele deveria estar ignorando o que diziam. Pelo menos nesses momentos ele arrancava aquele sorriso ingênuo do rosto...mas ele chorava. Ele chorava demais. Mesmo enquanto seus dentes se apertavam de raiva.

“Tenha raiva de mim”, pensei, enquanto me virava em sua direção sem colocar qualquer expressão no rosto, “e deixe de ficar me seguindo”. Pare de brincar de amigos.

Alma Karma estava descalço, com os pés fazendo barulho no chão a limpar da Divisão, suas usuais roupas eram próprias para o treino que tínhamos que enfrentar dia e noite, fáceis para se mover em uma bermuda negra aderida as pernas e movimentos e a camiseta larga e fina, os cabelos continuavam curtos, com o par de mechas maiores descendo até a altura do queixo e a marca cortando horizontalmente no nariz e abaixo dos olhos.

“E o que há de diferente?”, eu o olhei de cima a baixo sem deixar escapar o riso de escárnio que queria soltar, “ah, é. Ele está puto de novo”. Era evidente pelo modo como seus lábios esmagavam um ao outro na linha que faziam e como seu nariz escorria e o catarro se juntava com as lágrimas da cachoeira nos olhos.

“Eu avisei, não estou aqui para brincar de amigos”. Eu nem tinha certeza do que fazia ali. Não importava o que os cientistas falassem, nada parecia motivo o bastante.

–Yuu...- tenho certeza que o seu objetivo era parecer nervoso, mas sua voz engasgada de choro não deixava essa impressão- você disse que iria comigo falar com eles. Eu fiquei esperando nos poços para falar com as crianças e você não foi e me jogou na mesa agora.

–Você se jogou na mesa- respondi- e eu nunca disse que iria com você. É idiotice falar com poços.

Ele fungou.

–Idiotice? São como nós. São pessoas.

–São poços-repeti- e eu esperava que você saísse quebrado da mesa. Porque aí eu não teria que te quebrar de novo e gastar meu tempo.

Ele limpou a fileira de catarro que escorria descuidadamente do seu nariz até o queixo.

–Você não pode bater em mim! Somos amigos!

Hora do riso de escárnio.

–Quem disse? Você e sua imaginação fértil? Eu nunca seria amigo de um chorão que nem você.

–Mas...Edgar...

–E você ainda escuta aquele idiota? Você só pode ser otário... Fica agindo como se tudo fosse flores e arco-íris... Você é cego ou burro? Esquece, não vale a pena te escutar.

Ele fungou mais uma vez. Chorão. Ele que chora e eu que tenho que levar sermão mais tarde.

–Yuu...- sua voz rouca me irritava quando chamava meu nome- seu...seu... IDIOTAAA!

Seu punho voou mais uma vez em minha direção e fiz mais uma vez o favor de desviar. Quebrou mais uma mesa com os dedos rígidos como aço. Pratos, copos e comida voaram para o ar, manchando o chão, as paredes e as pessoas.

Se ele que começou, então que seja.

–Você vai ver só- rosnei, enquanto ele se levantava com o litro de catarro escorrendo pelo rosto ainda choroso.

“Ele sempre é feio, mas essa cara de choro é de matar”, pensei, enquanto partia para cima com os punhos duros e fechados. Sem esperar que ele me visse, afundei o golpe em seu rosto e esperei que aparecessem os danos. Seu corpo voou metros e metros e estourou a parede com o impacto.

Eu ri.

–É assim que se dá um soco, idiota- gritei com um sorriso.

Virei-me para ir embora antes que algum cientista me abordasse para um sermão longo e sem resultado. Eu não gostava deles, eles viviam sorrindo para mim mesmo antes de me levarem para aquelas salas.

O soco foi despreparado, por isso meu ombro doía um pouco em seus ossos. Mexi-o, querendo acostumá-lo ao movimento.

E foi nesse momento que senti uma dor profunda bater em minhas costas. As coisas giraram e giraram e apenas senti o impacto e vi o escuro. Meu corpo descolou da parede e bateu no chão, o muro estava rasgado pela cratera que meu corpo fez depois de receber o golpe. “Vaso ruim não quebra, será que ele nunca morre?”, pensei enquanto me levantava com uma raiva fulminante. O refeitório estava em pânico querendo saber como iriam interromper antes de uma destruição sem proporções que certamente seríamos capazes de fazer. “Foda-se o lugar inteiro, eu vou matar esse filho da puta hoje”. O filho da puta estava em pé perto de onde me socou, seu choro não tinha parado, mas pelo menos a meleca nojenta que inundava seu rosto tinha saído.

Ele fungou, mas sorriu.

–É assim que se soca, Yuu- disse.

Eu franzi o cenho para o moleque. Eu vou destruí-lo nem que tenha que esmagá-lo e despedaçá-lo.

“Vou jogá-lo de volta em algum poço, já que ele gosta tanto de ficar por lá”.

Chutei os destroços de uma mesa próxima, nem ligando quando ela bateu em alguma parte e voltou a se despedaçar. Meu ombro ainda doía entre os ossos, mas estava se acostumando.

Alma veio correndo até mim com os olhos fechados. Inútil. Alguém que não gosta de ver uma batalha não serve para esse mundo.

Ele segurou na mão um pedaço de uma mesa qualquer, mas eu não tomei a liberdade de pegar algo que pudesse servir de arma. Iria batê-lo com os punhos até que o braço dele se desprendesse do corpo, até que seu rosto virasse uma coisa inchada e roxa irreconhecível. Aí, quem sabe, ele cria inteligência para ficar longe de mim.

No fim, saímos os dois roxos e inchados. Meus lábios tinham gosto de sangue e meu olho esquerdo não abria. Meu braço quebrado dava voltas em seu eixo...mas Alma estava mais quebrado, mais roxo e mais inchado. Pelo menos eu esperava.

Ele chorou mais ainda enquanto levávamos o sermão.

Pelo menos, havia conseguido escapar de seu pedido para acompanhá-lo até os poços. Eu não queria ficar conversando com os buracos (apenas alguém tão retardado como o Alma seria capaz de pensar em algo assim). Mas eu não queria ir para aqueles lados de modo algum.

“Eu vi algo estranho lá da última vez que passeava entre eles. Eu tenho certeza que vi. Alguém. Ou algo”.

OoO

–X-

OoO

Minha vida sempre foi uma grande merda.

Meu passado, meu futuro e meu presente de merda.

Depois de crescer sendo um pedaço de merda, eu olho para o lado e vejo que só há merda. Todos são merdas. Tanta merda que uma hora a palavra perde o sentido e vira não mais que um eco do que acontece a minha volta.

Merda. Merda.Merda.Merda.Merda.Merda.Merda.Merda.Merda. Ih, olhe lá: mais merda.

Você também. Você é uma grande pilha de merda.

Viver na Ordem nunca foi exatamente algo bom. Foi uma obrigação. A única que já tive e é por essa obrigação que eu vivo (em seu sentido mais banal). Não porque eu quero, mas porque...bem, não tem muitas opções por aí. Se é para viver na merda, então que seja direito. E aqui estamos, na Ordem Negra. Que outro lugar do mundo tem mais merda ambulante?

Minha vida é matar e vencer. E se não há sentido nisso mais...que se foda. Não estou aqui para fazer sentido, muito menos buscá-lo. Eu busco outra coisa e até lá não posso me dar ao luxo de morrer.

–Kanda- quando a porta fechou ao moyashi sair da sala, Komui fechou ainda mais o rosto- sente-se de novo.

–Prefiro ficar de pé- não seria agora nem nunca que eu deixaria as ordens dele me deixar em desvantagem. Nem seria hoje que ele conseguiria fazer o que bem entende.

Não me entenda mal (ou entenda, que seja. Não estou aqui para ficar bancando o certinho também). A Ordem é o meu propósito, mas nem chega perto de ser um passatempo. E nunca seria a coisa que eu mais gosto na vida. Na verdade, que coisa nessa vida de merda há para gostar?

Ah, sim. A mugen. Com ela eu posso cortar os outros merdas em pedaços de merdas ridículos e imóveis. Continuam sendo merda, mas menores e mortos não podem tagarelar inutilmente no meu ouvido. Ah, como é terapêutico cortar carne de merda. Se há algo nesse mundo que pode me fazer feliz, é me jogar em uma missão para me livrar dessas pessoas e desse lugar fedorento para que eu possa estraçalhar alguma alma ao invés de suportá-las.

Se eu soubesse que seria uma complicação sem fim, eu teria ignorado o fato do moyashi não ser, de fato, o moyashi. Mas um moyashi pior ainda.

–Ok, então- Komui aceitou meus modos e deu de ombros.

E lá vem a conversa.

–Kanda, creio que você tenha percebido a extrema importância do que você acabou de saber.

Importância, blá-blá-blá, saber, blá-blá-blá. Posso ir treinar agora ou tem mais papo desnecessário?

–Kanda- sua voz estava dura, como se só com isso fosse capaz de me afetar- me escute agora- revirei os olhos, mas mesmo assim entreguei um pouco da minha atenção para acabar com aquilo- você não pode falar disso com ninguém, entende? O que eu realmente acho impressionante é você ter descoberto isso tão rápido.

O quê? Descobrir que você tirou uma menina exorcista e colocou um moleque albino no lugar? Ah, claro. Nunca descobriria.

–Você é idiota?-resmunguei-Ficou tão óbvio que cego eu ainda perceberia.

–Tão óbvio que ninguém mais descobriu, Kanda- ele rebateu.

“Porque todos são idiotas”, pensei, mas pelo bem de uma conversa rápida não disse nada. Anos vivendo em meio a esses animais, eu descobri que na maior parte das vezes é melhor não falar nada do que aguentar a tagarelice sem fim. E eles SEMPRE tagarelam.

–É... É verdade que seu sexto sentido sempre foi um radar para coisas estranhas-ele suspirou pesadamente- eu devia ter me lembrado disso quando mandei vocês dois em uma missão juntos. Foi uma total falha minha também. Eu pensei que vocês mal iriam se falar, quer dizer, Allen não é de falar e muito menos você. Eu achei que seria melhor que o Lavi ou a Lenalee que são bem perceptivos e falantes, mas esqueci que você também consegue sentir coisas desse tipo.

Ou seja, ele está mais surpreso pelo Kanda (não falante e sim ignorante) ter dado atenção ao moleque por ser suspeito? Entendi.

O melhor seria não ter deixado ele ir em uma missão em dupla. Espera. Não ir em uma missão. Não. Quer saber? Que deixasse ele no outro mundo dele. Iria ter muito menos problema.

–Que seja- resmunguei, trocando o peso da perna-posso ir, então?

–Hã? Ah, não. Só…acho que você deveria saber direito o que está acontecendo e porque Allen está aqui- ele suspirou- Ele sofreu bastante na outra vida como a pessoa que ele é, tenho certeza que você reconhece algo assim.Ele lia bastante, apesar disso. Sabe, a vida antiga do Allen não era...

–Para- interrompi antes que pudesse evitar- não quero saber da vida dele.

Se eu vou saber, então tem que ser da boca dele. Uma hora ele vai ter que usá-la para alguma coisa, porque até agora tudo que sai dele são gaguejos e palavras vazias para esconder algo. Uma pessoa que não sabem esconder seu próprio sentimento não tem chance nesse mundo. Se tem algo que eu percebi naquele garoto, é que ele tem uma leve habilidade nesse quesito.

Eu não confio nele. E não confio muito mais no Komui.

–Ah, ok...- ele estranhou- acho que prefere ouvir por ele, não é?

Eu nem sei mais se quero ouvir. A coisa só vai ficando pior e pior e se tem algo que você aprende vivendo na Ordem entre todas essas pessoas estranhas é que se algo parece ruim, vai ficar pior. São um bando de malucos inconsequentes.

E eu sou só inconsequente inserido nessa loucura.

Suspirei.

–Que seja- me afastei- eu vou indo.

É meio óbvio que o pirralho já devia ter desaparecido de trás da porta e devia estar cambaleando igual um moyashi tonto pelo corredor. Se ele é idiota, que seja um idiota completo. Um trabalho a menos.

–Ei, Kanda-Komui me chamou quando toquei a maçaneta da grande porta- cuide dele para mim?

Cuidar? Está me confundindo com quem?

Engoli em seco.

–Como se eu fosse capaz de fazer uma coisa dessas-resmunguei.

Se tem algo que nós dois sabemos é que cuidar não é comigo. Agora fale de destroçar algumas pessoas...aí está a minha especialidade. Destruir.

Está comprovado. Se chegou ao ponto em que ele acha que pode se apoiar em mim para isso, é porque ele chegou ao nível máximo de loucura. Eu só estou aqui para cumprir meu trabalho e só estou “obedientemente” cumprindo porque eu preciso encontrar aquela pessoa.

Quando abri a porta, não havia nenhuma coisa branca parada por perto. Por um momento, achei que ele pudesse estar sentado ao lado da porta, mas o chão estava frio e intocado. Pensei que pudesse ter tropeçado no tampinha (afinal, que vê aquele troço minúsculo?), mas não havia nenhum sinal dele.

Foi quando ouvi um barulho cansado vindo de um lado do corredor. Ergui as sobrancelhas para a mancha albina que se movia como um peru tonto pelo espaço apertado.

–Estorvo...-resmunguei, enquanto seguia em sua direção. O corredor estreito e vazio fazia os barulhos muito mais altos. Eu me surpreendi pela sua total incompetência em não me ver chegar com a mugen tilintando contra a minha cintura. Não me surpreende que esteja todo arrebentado com uma só luta.

Inúteis. Estão por toda parte.

–Kanda?-ele perguntou, quando me ouviu chegar. Sua voz derramava as palavras e não as falava.

Olhei para ele. De olhos cansados, pernas-palito bambas, sangue na roupa e na pele, respiração pesada. Fechando os olhos, ele estaria morto.

Pena que não estava.

Tentei olhar apenas para frente.

–Você não vai conseguir chegar até lá. Não sabe o caminho. É pelo outro lado.

Ele parou de andar. Além de baixinho e fraco ainda tinha um péssima senso de direção? Tinha vontade de rir daquilo. Komui deve ter comido o próprio cérebro por ter pensado em algum momento que trazer esse moleque para a Ordem era uma boa ideia.

Não vai sobreviver um mês dentro dessa tortura. Façam suas apostas.

De esguelha, o observei caminhar. Ele sempre me parecia inseguro e fechado, que precisava de um lugar para enfiar o rosto, mas agora parecia que a única coisa que precisava era um banho e alguns curativos.

Tomara que enfiem uma agulha nele. Vamos ver se ele não desiste logo depois de entrar na quarentena da enfermeira-velha-monstra.

Esquadrinhei-o de novo com os olhos. Já parecia que queria chorar, o pirralho. E por mais que fosse uma merda ter que entrar nessa, não é nada bom conviver com um alienígena que consegue bagunçar sua memória. Tudo nele gritava, esperneava, cuspia, piscava perigo. Era como ver uma grande placa sinalizando um caminho como “Morte certa” bem à sua frente. E alguém estivesse te empurrando para lá.

Mas eu não sou Komui. Nem Lenalee. Nem Lavi. Eu sei ligar o foda-se. E sei ligar muito bem.

–Então...outro universo, certo?

–X-

No outro dia, acordei como se nunca tivesse dormido. As cenas de um pesadelo ainda escorriam pela minha mente, por mais que tentasse bloquear as imagens. O quarto sempre era escuro, mas a janela trincada e sem mais uma cortina deixava a maldita luz entrar. Meus olhos estavam pesados e meu rosto tinha o tamanho de uma melancia. Não que eu ligue, mas a Ordem é cheia de enxeridos que não sabem cuidar da própria vida e acham que estão nesse lugar para se preocupar com coisas tão triviais e alheias que simplesmente me deixam enojados. É o que mais tem aqui: malucos,psicopatas, inúteis e enxeridos.

Ok, eu fiz aquele acordo com o moyashi para descobrir coisas sobre ele, mas é diferente. Eles me envolveram em uma coisa que envolve o universo inteiro e algo naquele moleque não cheira bem. E não é o cheiro de hospital e fritura que eu senti ontem na enfermaria com ele. É algo grande e fedorento.

Fede a lembrança. Fede a estranheza. Mas fede a uma semelhança nojenta.

Ignorei a pequena fisgada na minha cabeça. Komui e trilhões de outros velhos me instruíram a esquecer de coisas passadas e focar no simples trabalho de receber ordens. Pena que seguir ordens à risca nunca foi bem o meu estilo de trabalhar. Por isso era como se minha mente ignorasse o conselho.

Se você achava que a Ordem era um grande lugar cheio de guerreiros genuínos, você também é um idiota. Que tipo de pessoa em sã consciência iria se juntar a uma organização como essa? Nenhuma. É por isso que eu estou aqui.

Vestindo o uniforme mais por costume que por querer, me preparei para mais um dia complicado. Dei uma olhada no meu quarto antes de sair, ao lado da cama a lótus dentro da ampulheta continuava viva, apesar das pétalas rosadas caídas.

Não irei morrer até encontrar aquela pessoa. É a minha vida.

Abandonei o quarto e segui para minha “missão” sem mais olhar para trás. Suspirei, já me sentindo cansado enquanto caminhava na direção da enfermaria. Só de pensar naquele moleque, a vontade de socar invadia meu corpo e apertava meus punhos. Só de pensar que vou ter que aguentá-lo (porque agora me colocaram dentro dessa enrascada), sinto vontade de esganar alguém.

Ah, aí vem o Lavi. Ótimo timing.

O “idiota número 1” virou o corredor e me encontrou. Se tinha algo pior que encontrar o cabeça de fósforo logo pela manhã era ter que aguentá-lo falar com você. E não tinha momento algum em que o otário se tocasse que ninguém liga para o que ele fala.

–Yuu!- me amaldiçoei mentalmente por não ter logo sacado a espada e desmembrado o usagi quando tive a chance- já está acordado?-estava se aproximando-que cara é essa de quem vai me matar?

Se sabe o que vai acontecer, não provoque.

–Onde está indo?-ele continuou, apesar de eu verificar se meus olhos não tinham habilidade de derreter pessoas. Bem, eu me curo logo após ser ferido, então quem sabe não tem algum poder mais útil também- Indo ver o Allen?

Será que tem alguém nesse lugar que saiba cuidar da própria vida?

–Ah, Kanda, Lavi!-a voz de Lenalee interrompeu o usagi- O que estão fazendo parados no corredor?

Ah, esquece. Não tem.

Às vezes eu me esqueço de onde eu estou. Em uma prisão de imprestáveis que possuem um pouco de habilidade...

...em ser irritantes.

–Yuu está indo visitar o Allen.

–Não responda pelos outros, usagi- rosnei, transbordando a raiva acumulada de uma vez.

–Ah, não está?-ele ergueu uma sobrancelha-onde está indo, então? É cedo, o refeitório ainda não está funcionando.

Opa. Erro meu.

Engoli em seco, hesitando em responder. Olhei dele para a Lenalee pelo menos quatro vezes. E da Lenalee para ele pelo menos umas sete vezes. Esperava que eles fossem desistir com a minha demora em falar, porém se haviam pessoas no lugar inteiro que gostava de se “preocupar com os amiguinhos” e “saber de toda porra que acontece” esses eram, respectivamente, Lenalee-boa-amiga e Lavi-rabo-curioso. Uau. Como eu adoro esse lugar.

Dei de ombros para os olhos grandes e curiosos que apenas aumentavam nos rostos dos dois.

–Vou para a enfermaria- resmunguei.

–...para ver o Allen-usagi completou ansiosamente.

Fechei o rosto para ele, tomando cuidado para afiar meu olhar, e o cenoura falante sorriu de orelha a orelha em resposta.

Sério. Onde eu errei? Eu tenho certeza de que deixava claro para todo mundo que odiava a companhia de...bem, todo mundo! E adivinha quem vinha querer me encher. Começa com “T” de, adivinha, todo maldito mundo.

–Qual é, Kanda?-qual é? Como assim qual é? Qual é o problema? Por onde eu começo? Pelo fato de você ter nascido ou por ter aparecido na minha vida?- Pode falar que vai ver o Allen, ninguém está aqui para ficar em cima de você o tempo todo.

Hã...é exatamente isso que você está fazendo, hipócrita.

–Tsc-respondi, já dando a volta por ele para seguir o meu caminho- não fique no meu caminho.

Por total sorte, nenhum dos dois me seguiu. Pensei que talvez tenham percebido que havia melhores coisas para gastar o tempo, mas me corrigi no segundo em que a esperança tinha surgido. Se em algum dia o mundo inteiro criar consciência de que há coisas mais importantes para fazer que ficar bisbilhotando a vida alheia, este será o dia em que vão me encontrar vestido de padeiro dançarino em um programa de TV, fazendo propaganda de perfume enquanto ensino física quântica para uns moleques. Ou seja, nunca.

–Eu acabei de visitar o Allen-o cenoura gritou enquanto eu me afastava sem olhar-ele está acordado!

Fiz um gesto obsceno com a mão em resposta.

Os corredores ficavam vazios de manhã, porque nenhum dos funcionários da organização era prestável o bastante para querer acordar cedo e, ainda por cima, antes do café da manhã ser servido às oito horas. Então, o que eu estava fazendo aquela hora? Meu estômago doía de fome e meus olhos pesavam, mas eu sabia que se eu voltasse para a minha cama com aqueles pensamentos e preocupações na cabeça, não dormiria. E se por um acaso o sono me aceitasse, seria um torpor sem o mínimo descanso e cheio de imagens ruins. Como o que eu acabei de ter.

O usagi estava certo. Eu estou indo para a enfermaria para ver o moyashi. Eu preciso vê-lo. É o único jeito.

“Eu tenho uma péssima sensação sobre ele. Ele me é semelhante...”. Seria muito mais fácil se eu apenas cortasse sua garganta com a mugen e o desse como morto por um akuma. Mas é mais complicado que isso, ele é diferente. E ser “diferente”, em um primeiro conhecimento, não dá para classificar em bom ou ruim.

De qualquer modo, sendo um ou outro, no fim será ruim. Só há esse caminho para uma pessoa como eu.

Só preciso me livrar disso. O garoto não vive mais que dois meses aqui dentro, só preciso suportá-lo até esse tempo. Não importa o que aconteça, se ele for um empecilho no meu caminho para encontrar aquela pessoa, Komui que chore, mas vou jogá-lo no forno ou no caixão. Deixo que ele escolha. Mas agora preciso aturá-lo como se deve. Ou não vou conseguir dormir com os fantasmas me visitando de hora em hora na minha cabeça.

“É isso que sou. Um condenado.Que surpresa”.

O corredor da enfermaria sempre foi o mais vazio. Seja por medo da enfermeira-chefe ou por simples medo da temida morte que exala do lugar, ninguém gostava de passar muito tempo por perto. Muito menos lá dentro.

“O inferno que aquilo é uma enfermaria, é uma prisão do submundo”.

O bom de ter sido mais criado que nascido, é que com a habilidade de me curar rapidamente, poucas são as vezes em que preciso ficar preso a uma cama sem poder fazer nada além de respirar.

“Mesmo assim, está diminuindo...a habilidade”. Meus olhos desceram inconscientemente para minha mão. Flexionei os dedos várias e várias vezes, mas o ferimento que cortava desde o pulso até a base do dedo estava lá, demorando a fechar. Faziam três dias que o akuma havia perfurado a carne e roído os ossos, mas não havia sarado por completo ainda. Não é como se a falta de pele doesse, entretanto o fato de demorar a completar é um pouco preocupante.

...Tsc. Não é minha área. Esse tipo de coisa é com a Divisão de Ciências.

Minha tarefa é me machucar menos e matar mais. Aí está a solução.

Fui encontrar a enfermaria praticamente vazia. A Ordem vivia um período tranquilo, o que podia ser preocupante ou não dependendo da pessoa a quem você perguntasse. Eu não me importava, desde que não viessem me incomodar com perguntas sobre. Parecia bom o bastante para mim.

A última cama, embaixo da janela, era a única ocupada. O sol timidamente riscava-a através do vidro.

Via apenas as pernas do moyashi, contornadas pelo lençol grosso e branco que o cobria para espantar o frio da manhã que bate com força na torre. Lavi disse que ele estava acordado, teria ele acabado por cair no sono nesse meio tempo? Não duvido, ele é um moyashi afinal.

Mas não foi. Quando me aproximei, fui surpreendido por um movimento pequeno enquanto ele se rearranjava em outra posição na cama. O barulho de uma folheada calma seguiu o rangido da cama.

Estava lendo.

–Oe- tentei anunciar minha chegada, já que ele parecia do tipo que se assustava facilmente. Seus olhos deram um salto do livro até mim.

É. Ele parecia no mínimo assustado com a minha presença.

–K-Kanda?-não. O Coelho da Páscoa-hm...é...você...o que você...?

Enquanto ele tentava aprender a falar sozinho, me irritei.

–Será que dá para falar alguma frase inteira ou é difícil demais?

Olha, se encolheu todinho na cama. Não é irritante?

–Desculpa-sussurrou, com a voz entre o lençol e seu rosto- O que você está fazendo aqui?

É. O que eu estava fazendo ali? Era uma boa pergunta.

Em um gesto de pura desencanação, apontei para o livro que ele tinha nas mãos. Eu reconhecia a capa que Johnny tinha me recomendado, ainda que ele seja uma pessoa de ciências exatas e não literatura. Mesmo assim, o moyashi não me parecia alguém muito exigente.

–O trato- resmunguei.

Ele pareceu infeliz com a lembrança. Mas o que eu podia fazer? Eu também não estava lá muito feliz com ter que fazer isso. Me entreguei a liberdade de sentar em uma cadeira aos pedaços que havia a frente de sua cama. Nem eu nem ele parecíamos muito fãs de contato humano...ou humanos no geral.

Enquanto ele se preocupava em fingir que estava bem, apertei o olhar para observar como se comportava. Os ferimentos já estavam mais limpos e o sangue era de menos nos curativos visíveis. Mas sua testa tinha pingos de suor frio de nervosismo e seus olhos tremiam enquanto tentavam focar em qualquer coisa lá fora. Tomando em conta sua atitude “sou demais, sei salvar o mundo” durante uma mínima parte da missão e o modo como tinha costume de sorrir quando podia, eu cheguei a uma conclusão absoluta: eu o odeio.

É por isso que eu não aguento ter que olhá-lo.

“O que eu fiz para merecer essas coisas?”, esfreguei meus olhos com força, “esquece. Melhor nem me lembrar”.

–Hã...-ele havia colocado o livro fechado ao seu lado na cama- eu sei que é meio idiota perguntar isso, então...desculpe mas...o que você quer saber?

Me aliviei com o que ele havia dito. Se ele tivesse perguntado o porquê, eu não teria resposta.

Cruzei os braços. No momento em que me mexi, ele recuou.

–Sei lá- franzi o cenho- o que você tem para contar?

Seu sorriso esbanjava incerteza. Seus olhos gritavam nervosismo. E mesmo assim ele resolveu abrir a boca.

–Depende do que você quer saber. Senão eu não tenho nada para contar.

Legal. O que eu quero saber dependia do que você tinha para contar, idiota.

–Moleque irritante-resmunguei, vendo-o fechar o rosto para mim. Ficou nervosinho agora-ok. Então por quanto tempo você está nesse mundo ou sei lá do que vocês alienígenas chamam esse negócio todo? Quer dizer, você sabia onde estava e mais ou menos o que fazer. Komui deve ter falado antes. Foi no hospital? Ou foi antes daquilo?

Os olhos dele triplicaram de tamanho. Não sabia se foi porque eu havia conseguido falar mais de uma frase com ele ou por causa da minha pergunta. De qualquer jeito, alguém tem que ensiná-lo a esconder emoções, porque isso está ridículo. Ele parecia bom em fazê-lo, agora não tenho mais tanta certeza.

–Oe-gritei- se você ficar reagindo desse jeito toda vez que alguém perguntar alguma coisa do tipo, não vai durar um mês sem levantar suspeitas.

Ele suspirou. O motivo por eu estar dando uma dica? Boa pergunta, vai cair para a minha coleção de perguntas cujas respostas não me interessam.

–Desculpa- anotação mental: ele pede desculpas muito frequentemente- é só que...desde que eu cheguei aqui eu pensei que poderia ser uma pessoa diferente- apertou o olhar- do tipo alegre e que não se esconde dentro de um capuz ou com uma falsa ignorância...mas não dá. É difícil se acostumar. Eu sempre tentei não demonstrar o que sentia, mas não é fácil fazer muito tempo.

Se acostumar...isso sempre foi um desafio. Algo naquela história me chamava atenção, querendo que eu descobrisse mais e mais daquilo que ele tinha para contar. Uma história, era isso que ele tinha. E me incomodava.

Ah, isso me lembrava uma coisa:

–Ah, quando Komui disse algo sobre coisas que você leu...-ele não aprendeu nada com o que eu havia acabado de falar, se assustando com a pergunta-o que queria dizer?

Aquele era o moleque mais ferrado que eu já havia visto na minha vida. E olhe que eu nem sabia o que ele era, eu só tinha a impressão de que era. Aquilo me irritava.

–Hã...-ele pigarreou-bem...é...uma coisa meio...sabe? Estranha...e...bem... difícil de entender...er...

Arqueei as sobrancelhas.

–Eu não sou burro, moyashi- ressaltei.

–Claro que não-ué. Eu senti uma ponta de ironia naquela língua?-é o Einstein da nossa geração, até ajuda nas pesquisas da Divisão, não é? Sempre usando a cabeça...

E o moleque sabe usar sarcasmo? Uau.

–Seu...-rosnei, e o sentimento valente que ele parecia ter momentos antes desapareceu- vai responder ou vou ter que ajudá-lo a formar frases?

–Hã...Kanda...eu realmente não quero falar sobre esse tipo de coisa...

–E eu te perguntei se queria? Se não quiser falar, eu tenho meus métodos.

Métodos bem cortantes, se quer saber.

–Ok. Não fale depois que eu não avisei- ele gaguejou, respirando fundo. Minha curiosidade estava me matando com a demora que ele tinha em falar-basicamente, no outro mundo em que eu vivia, eu gostava muito de ler o tempo inteiro-ó...grande novidade- e eu tinha um mangá preferido, D.Gray-man, em que Austin Brooke era protagonista e exorcistas matavam akumas...vocês todos estavam lá. Você também. Por isso eu sabia tudo que acontecia aqui, apesar de que eu não consigo me lembrar de algumas coisas por ser um invasor, como o fato de Austin ser uma...garota, não um garoto...e...er...é isso aí...por isso...er...

Apoiei a cabeça pelo cotovelo, nem mais prestando atenção nos gestos que ele fazia com as mãos mesmo depois de ter parado de falar.

–Então você era um nerd, é isso que quer dizer?

Não sei se ele parecia surpreso ou ofendido, mas parou de se mexer.

–O quê?-indignou-se- É isso que tem para dizer? Eu estou dizendo que vocês são personagens de um mangá que eu li. Um mangá, Kanda! Parte da imaginação de alguém, mas que existe.Eu sei de tudo que acontece e se bobear sei tudo sobre vocês.

Apertei o punho ao me ajeitar na cadeira.

–Sabe?- minha voz deve ter saído firme e dura, porque ele pareceu encolher mais- sabe sobre mim?

–Não me lembro-sussurrou- é isso que quero dizer.

Se ele souber sobre mim...eu nem sei que tipo de reação eu deveria ter. Se soubesse sobre a Divisão Asiática ou sobre Alma ou sobre qualquer outra coisa do passado, talvez viesse a ser um problema.

E se ele souber sobre aquela pessoa? Eu chegarei a encontrar o que preciso? É uma ideia estranha ter alguém que sabe de tudo sobre sua vida porque a leu em algum lugar, mas, olha, eu luto contra monstros-máquinas-de-alma com uma espada feita de um material divino e conheço um garoto de outro mundo, se quer me surpreender, tem que se esforçar mais. E que motivo ele teria para mentir agora? Melhor: com que habilidade ele conseguiria mentir na minha frente?

Até que ponto da história ele sabe? Chegou ao fim da jornada? O que acontece? Sobrevivemos enfim? Qual é a jogada do Conde do Milênio? Eu encontro a pessoa? Eu satisfaço o objetivo da minha vida?

Ah, Komui. O garoto foi uma boa cartada em uma primeira olhada. Mas também pode ser uma péssima. E eu não sou muito paciente para esperar ver o que acontece.

–Se eu sou um nerd...-ele resmungava, parecendo extremamente raivoso- eu sabia que você era assim. Você é como aqueles garotos malditos...

Franzi o cenho para a fala um pouco fora do assunto.

–Que garotos?

Dessa vez, ele não me pareceu surpreso. Estava...dolorido? Algum ferimento voltou a doer? Apertou o lençol com o punho cheio de arranhões vermelho escuro.

–Nada. Divaguei demais- foi sua resposta sem vida. Eu não queria tanto assim saber, então ignorei a meia afirmação.

Meus olhos desceram o braço com o qual ele coçava a nuca.

–Seu braço esquerdo-resmunguei- ele era assim lá também?

Automaticamente, mexeu o membro enrugado e vermelho, flexionando os dedos.

–Era sim- respondeu, sem tirar os olhos ou parar os movimentos- mas não virava nenhum tipo de arma legal ou coisa do tipo- suspirou- apesar de atrair alguns problemas. Muitos problemas.

–E Komui....

–Ele era...amigo do meu pai. Por isso estava sempre por perto. Apesar de que lá ele era o Dr. Lee para mim.

–Hm...-absorvia as informações-e você lia bastante?

–Sim. Kanda, quantas perguntas você vai fazer?

–Quantas forem necessárias. E quantas meia respostas você vai dar?

–Quantas forem necessárias- rosnou- por que quer tanto saber sobre mim? Eu juro que não tem nada de interessante, minha vida era uma merda.

Que coincidência. A minha é uma merda.

Ignorei a reclamação. Eu não estava ali para bancar amiguinho e ouvir o que ele tinha para reclamar.

–Essa cicatriz, você também tinha?

Seus dedos contornaram o risco no olho esquerdo.

–Não com uma estrela na testa, era apenas uma cicatriz normal.

–Onde ganhou?

–Não importa.

–E você tinha cabelo de idoso também?

–Eu sou albino. Vem dos genes, retardado.

–Era moyashi assim lá também?

–Era pior que você. E você vai aprender a falar meu nome ou letras são difíceis de entender?

–Não aprendo coisas inúteis como seu nome. Quantos anos tem? Onde morava? Com quem?

–Dezesseis. Nessa cidade. Com meu pai. Que tipo de perguntas são essas agora? Está me investigando ou me cadastrando em algum programa suspeito?

–Estou comparando com o outro mundo.

–É inútil.

–Por que veio para cá?

Ele hesitou por um período longo demais.

–Komui me deu a chance de escapar. Eu queria sair de lá e eu gostava bastante desse mangá.

Isso ficava nervoso demais. O que havia lá para ele querer sair? Talvez uma guerra que acabasse com um mundo inteiro, uma batalha que ele não quisesse travar. Não seria um grande problema se refugiar em outro lugar assim?

–Por quê?

–Não importa.

Apoiei-me com o cotovelo no joelho, tentando pressioná-lo com mais ferocidade. Porque aquela resposta estava me dando nos nervos.

–Tem outros como você por aí?

–Não sei nada sobre isso. Acho que não.

–Por que você morreu?

Eu não me importava em ter lançado uma flecha como pergunta. Sua pele esbranquiçou de uma palidez assustadora e seu rosto de contorceu em uma careta dolorosa, de olhos arregalados que fitavam alguma coisa invisível. Não sei porque enfrentar a morte em palavras era algo tão mau para ele. Estar vivo não era lá muito melhor. Era até conflitante observá-lo estremecer sobre os pensamentos ou sei lá o que ele estava tendo ali.

Ele descolou os lábios várias vezes, mas em nenhuma adquiriu palavras ou coragem para responder.

–Eu...é...-gaguejou.

–Sr.Walker- a voz estrondosa da enfermeira-chefe me fez pular no lugar em que estava- acredito que tenha dito para limitar as visitas por hoje...

A mulher enrugada vestida de uniforme estava parada a prota com uma carranca natural. Tinha os olhos fixos em mim, mas não era exatamente isso que me assustava e sim a agulha afiada que trazia em mãos como se fosse uma espada e a maleta pesada na outra mão. Quem alguma vez já se internou na enfermaria sabe que consultas são as coisas mais assustadoras que se pode fazer com essa monstra. Ela não economizava na força nem nas broncas.

–Ele já está indo- resmungou- né, Kanda?

Sobre os olhares dos dois, levantei e me fui, tentando formular uma resposta que coincidisse com o silêncio.

Eu odiava bancar a babá. Komui vai me dever uma com essas coisas que vou ter que fazer com o moyashi daqui para frente. Ah, ele vai pagar...


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Notas finais do capítulo

Gostaram? Não? Me digam, please! :)
—Devido a minha super demora, tentarei sempre escrever mais rápido, mas...não tenham grandes esperanças hahaha
—Muitíssimo obrigadíssima por lerem!
Até! o/