A Crónica de Vitória escrita por OlgAusten


Capítulo 5
Cap 5. Além de Telmar




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A Crônica de Vitória

Capítulo 5: Além de Telmar

Outra grande fogueira foi montada pelos Narnianos que, à sua volta, repousaram durante a noite. Enquanto o grupo reunido ao redor das chamas cálidas debatia sobre o que havia de se fazer no dia seguinte – e neste eles certamente voltariam a Telmar – Vitória encontrava-se afastada, recusando a comida que lhe ofereciam, aninhada entre as raízes de uma grande árvore à borda da clareira.

— Não sente fome, senhorita? — Ripchip aproximou-se dela. — Não é nada demais, apenas as sementes do fruto dessa árvore.

— Não, obrigada — ela respondeu, vendo-o se afastar. Por alguns instantes a garota se deteve a observar as sombras dos demais, refletidas no chão batido, acabando por se prender a apenas uma delas e, em seguida, ao dono desta.

Caspian mirava a chama viva da fogueira como quem avistava o horizonte. Ao notá-lo disperso, Vitória encolheu-se, confusa pelo o que acontecera poucos instantes atrás. Se ele estava embaralhado, pensativo e se, talvez, encontrava-se arrependido, por que então não levantava dali e a encarava como todos os outros estavam fazendo? Vitória, apesar de sentir-se parte daquele lugar, ainda encontrava-se em meio ao choque que sofrera: entre o ataque do coiote e o queimar dos próprios lábios com a lembrança do rei. Qualquer olhar pregado em si a fazia sentir como uma verdadeira aberração.

Com a cabeça enfiada entre os próprios joelhos, Vitória via-se como a mais impotente das criaturas, repassando a morte do coiote em sua mente. E, por entre os flashes do acontecimento, um par de lábios macios a estava tirando do sério.

— Tem sede? — Ao ouvir tal voz lhe falar, Vi ergueu os olhos deparando-se com os dois pontos negros infinitos de Caspian sobre si. — Tome!

A jovem aceitou o cantil de couro que ele trazia em mãos, sorvendo quase metade do recipiente. — Obrigada — agradeceu, mencionando o chão a fim de que ele se sentasse ao seu lado.

— Você não vai comer mesmo? — o rei perguntou, pondo-se ao seu lado. — Rip torrou esse “negócio” com tanto zelo...

Ela não conseguiu prender um sorriso. — Zelo? — brincou. — Como se chama o fruto do qual isso saiu?

— Não faço a mínima idéia... — foi a resposta. — Aproveite a água.

Por um instante a jovem voltara a sorrir, mas, perdendo o olhar em qualquer coisa ao seu redor que não fosse o rei, perguntou: — Voltaremos ao seu reino?

— A Telmar... sim — ele disse. — A viagem não pode mais esperar, Vitória. Mas não se preocupe, pois o tempo no seu mundo não há de passar tão rápido assim.

— Minha mãe deve estar louca à minha procura. — O lamento saíra num suspiro. — E o Morton deve ter se jogado pela varanda...

— Morton? — Caspian jamais ouvira aquele nome em sua vida. — Interessante!

— Um amigo da família.

— Ele vai se matar? — As perguntas não acabavam.

— É muito apegado a mim — ela contou, antes de Caspian voltar-se a si, espantado.

— Machucou-se? — ele tomara seu braço com as mãos, mencionando um pequeno corte feito pelas garras do bicho. — Aposto que nem notou...

Vi procurou pelo machucado. — Não está doendo.

— Deixe-me cobrir com alguma coisa... — O rei mostrava-se prestativo, passando os olhos ao redor, como se os curativos brotassem do chão. — Espera um pouco.

— Caspian, não precisa... — tentou impedi-lo de rasgar a própria blusa, mas seu protesto viera tarde demais.

De mau jeito, desengonçado, Caspian arrancou mais do que uma tira do tecido, levando o sonoro rasgo até meio caminho do abdômen. Sua camisa estava arruinada. — Céus! — ele exclamou envergonhado pelo que fizera.

Vitória não conteve o riso. — É só um arranhão, não precisava...

— Pelo menos aceite — ele também sorria, cobrindo o ferimento.

— Obrigada... Mas você está aos farrapos, Vossa Majestade.

A noite acabara por ali. Vitória adormeceu ao seu lado, enquanto Caspian vigiava o acampamento. Naquela situação, a garota sentiu-se a salvo de qualquer mal que lhe pudesse atingir. Passara toda a madrugada a ser velada por um perfeito rei e cavalheiro; um homem gentil, digno de governar o reino de Nárnia.

Os andarilhos deixaram-se dormir mais um pouco, até que cada um deles se pusesse de pé, seguindo então o caminho de volta a Telmar. Para o rei e aquela que andava sempre ao seu lado, a manhã se fora num piscar de olhos entre meios risos e confidências. Incrivelmente, o caminho de volta lhes pareceu muito mais curto.

— Estava prometida a ele?

— Estava — Vitória lhe respondeu. — Ele é o sobrinho do meu padrasto.

— Morton... — Caspian deixava-se divagar quanto àquele nome tão novo para ele. — Uma boa pessoa?

— Não faço a mínima idéia. Achava que o conhecia, mas... Não o conhecia de verdade.

Homens gentis não eram feitos daquela forma, admiráveis por fora e cheios de vontades tolhidas por dentro. Homens gentis acariciavam e não colavam seus lábios secos aos de uma dama contrariada. Homens gentis não existiam em seu mundo. Não depois do que o perfeito e cobiçado Morton Douglas fizera consigo.

E, no mesmo ritmo que a conversa seguia, adentrou-se a tarde. Poucas paradas de descanso foram feitas e, ao longe, o castelo de Telmar já era avistado, invitando o rei, Vitória e seus súditos a apressar os passos – afinal, um pouco de conforto e descanso não havia de fazer mal a um grupo de esfomeados que, excetuando o rei, não sabiam o que era um bom banho há exatos três dias.

De volta ao palácio, Vitória foi guiada até o quarto onde se acomodaria pelos próximos dias. O cômodo era espaçoso, possuindo uma bela cama de madeira ao centro. Dois criados-mudos em mogno emolduravam o móvel coberto por uma bela manta cor de vinho, encabeçado por algumas almofadas encostadas no belo espelho trabalhado da cama. Vitória ergueu os olhos, mirando o teto também em madeira, maravilhada com o estilo daquele recinto. A Renascença sempre lhe agradou mais que as decorações modernas ou medievais.

Não se detendo mais a admirar o quarto que seria seu até Deus-sabia-lá-quando, a garota tratou de se banhar e preparar-se para o pequeno jantar que se faria ainda àquela noite. Quando se deparou com a vestimenta que lhe fora oferecida, posta sobre a cama, Vi não hesitou em se sobressaltar com a tamanha beleza do vestido. Em seu interior, a peça era bege com pequenos bordados dourados a ressaltar a simplicidade da saia. Por fora, uma sobre-roupa em vermelho escuro valorizava mais alguns detalhes em dourado, bordados no busto da peça.

Numa primeira vista, ao mirar-se no espelho, Vitória não se reconheceu, mas logo se sentiu tão bem naqueles trajes, em meio àquele cômodo dos seus sonhos. Seus cabelos negros, ondulados, caíam em cascata emoldurando as curvas delicadas sob o vestido, e a tez clara contrastava nitidamente com o encarnado da roupa. Tudo ali parecia ser feito exatamente para ela, tudo ali lhe agradava.

— Se me permite dizer... — Ripchip lhe fez uma reverência quando esta se aproximava da sala de jantar —... está tão bela que a fadiga não parece tê-la pego.

— As aparências enganam, bravo guerreiro — respondeu num sorriso.

— Não sei quanto ao cansaço... — a voz de Caspian se fez à porta da varanda —... mas sua beleza está intacta, Srta. Vitória.

— Deixe disso... — Vi estava vermelha como um pimentão. — - -Vossa Majestade!

— Caspian! — ele a corrigiu, antes de notá-la voltar os olhos para si, reparando as roupas limpas que agora vestia; nada de rasgões ou sujeiras, apenas suas vestes simples de sempre. Vestes essas que, nela, tornavam-se tão nobres e com um belo caimento. O rei possuía um belo porte, sem sombra de dúvidas.

— Certo, Caspian! — Vitória sorriu. — E “intactas” estão as suas roupas.

O jantar correu leve e divertido. Novos planos foram feitos quanto ao regresso do jovem monarca que, a bordo de seu navio, o Peregrino da Alvorada, sairia ao mar em busca de sete fidalgos antes expulsos de Telmar pelo seu tio.

Quando a sobremesa foi retirada, Ripchip se despediu. Vitória e o rei jaziam muito cansados, mas a vista da ampla varanda do castelo não foi negada pela garota. Ela e Caspian seguiram de encontro à brisa noturna, prolongando a animada conversa até aquele recinto.

— Em quanto tempo acha que tudo estará pronto para a sua partida? — ela lhe perguntou.

— Em algumas semanas... Mas não se preocupe, pois, tão logo partamos, logo voltamos.

— Voltarão em semanas? — a garota inquiriu, franzindo o cenho, incrédula.

Caspian respondeu, cabisbaixo: — Na verdade, dependendo do que encontrarmos, alguns poucos meses serão necessários... É que, como os preparativos demoraram, já que perdemos alguns dias indo até Cair Paravel, não poderemos sair em menos de - -

“Perdemos alguns dias em Cair Paravel” — tal frase foi a última coisa que a garota ouviu. — Perdemos? — ela repetiu, dando-lhe as costas, mirando a floresta em meio à noite, ao longe.

— Não quis dizer isso...

— Mas disse! — Vitória não despregava os olhos da paisagem. — Se perdemos tempo, então por que haveremos de perder mais? Enquanto Vossa Majestade estiver fora, eu mesma darei conta da minha missão.

— De modo algum! — ele rebateu, tocando-lhe os ombros. — Espere por mim. Há coisas sobre essa floresta que a senhorita não faz a mínima idéia!

— Eu já sei o que pode me acontecer! — a voz dela se erguera uma oitava, ao senti-lo tocá-la. — O caminho que fizemos nos últimos dias não foi em vão!

— É claro que não. — Às suas costas, Caspian apoiou-se na varanda, mirando-a de perfil. — Me perdoe pelo que eu disse. Nunca me senti tão bem numa missão até Cair Paravel e... Aslam nos indicou o caminho, como sempre. Nada foi em vão.

O castanho dos olhos dela ergueu-se até os negros dele. — Nem poderia ter sido — ela falou. — Acredito que as coisas que lá aconteceram farão mais sentido quando resolver me contar sobre tudo o que vocês dois têm planejado.

— Nós dois? — Caspian sorria. Aliás, os dentes brancos como papel, retos e emoldurados pelos lábios finos e rosados do rei lhe sorriam abertamente. — Tudo o que Aslam planeja já está marcado na história de Nárnia, Vitória...

— Aquele beijo também estava marcado? — A pergunta lhe escapou.

Enfim um deles tocara no assunto.

— Não faço a mínima idéia, mas... — ele hesitou quando a garota girou o corpo ao seu encontro. A figura alta de Caspian ainda se encontrava de perfil, apoiando os cotovelos na meia parede e agora Vitória estava tão perto dele. — Tratando-se de Aslam...

A jovem estava lindíssima àquela noite. De verdade, assim estivera desde que entrara pela porta do palácio, acompanhada pelo bravo Ripchip, mas, naquela noite, Vi estava especialmente bela. Sob a luz da lua minguante, sua pele clara cintilava, os cabelos negros ondulavam conforme a brisa noturna lhe tocava, e os olhos castanhos tornaram-se incrivelmente escuros devido à pouca iluminação.

— O que está fazendo? — ela perguntou numa voz fraca, quando uma das mãos do rei ergueu-se de encontro ao seu rosto.

— Me sinto bem quando a toco. — foi a resposta. — Não deveria, pois há mil coisas acontecendo, mas não dá pra evitar.

— Nunca acreditei em atrações-relâmpagos. E, pra falar a verdade... — ela seguiu —... não estou me reconhecendo. Conheço um homem dito perfeito para o mundo em que vivo há anos e, quando ele me toca os lábios, tenho vontade de devolver meu almoço em resposta, mas aqui com você eu...

— Se sentiria mal se eu repetisse o feito da noite passada? — ele tomou a palavra, não dando espaço para que ela respondesse. — Claro que sim! Céus! Não me leve a mal, eu só...

Vitória lhe calou retribuindo o gesto que antes ele fazia, levando a mão delicada à barba áspera do rei. — Se está “escrito” em algum lugar... — um sorriso sincero surgiu —... por que não repeti-lo?

Não eram atrevidos porque simplesmente não se sentiam assim. Não estavam errados, pois tinham plena certeza de que aquele era o destino dos dois; tinham um único destino. O que poderia parecer loucura e pura paixão no mundo de Vitória, era belo, correto e envolvente no reino de Caspian.

O rei lhe tocara novamente o rosto, mas, prolongando aquela carícia, contornou-a até a nuca da jovem. Ao atraí-la para um beijo, Caspian também se sentiu puxado e logo lábios de ambos se encontraram tenramente. Vitória enchia a mão com o cabelo macio do rei, enquanto ele, curvando-se ao seu encontro, lhe tocava as têmporas com as duas mãos. Pouco depois de seus lábios se colarem, a herdeira de Bragança deixou-se entregar entreabrindo os seus próprios.

Quando o rei inclinou a cabeça para um dos lados, sua língua chegou tímida, úmida, acariciando aquela cavidade quente da garota, e, conforme seus rostos se tocavam, uma gostosa sensação era sentida: um partilhava da respiração do outro. Os pêlos da barba de Caspian não causavam nenhum incômodo em Vitória; pelo contrário, sentir o arranhar da barba dele contra o seu rosto era uma sensação extremamente gostosa. A língua cálida do jovem rei lhe tomava a boca, passeando por ela, ao passo que algo estranho parecia afagar o fundo do estômago de Vi – borboletas, talvez. Borboletas unidas a um confortável calor que transpassava suas vestes.

Quanto àquele que lhe tomava a boca, Caspian lhe parecia muito mais ágil do que nos últimos segundos passados. Porém, logo o rei teria de se conter, já que tamanha urgência também parecia aflorar em sua amada. Ansiavam por aquilo, mas estavam indo rápido demais.

Num vácuo, o beijo se desfez.

— Hm... Vitória, eu - - — o hálito do rei indeciso se fez quente ao seu rosto. — Eh...

Os lábios inchados da garota lhe sorriram à boca. — Boa noite, Caspian! — ela disse antes de soltar-se dele, acenando com a cabeça, pondo-se fora daquela varanda.

Os dias se passaram e logo se foram duas semanas em meio àquela tamanha expectativa. Os preparativos que nunca pareciam estar prontos enfim se acertavam.

Certa vez, Vitória despertara mais tarde do que o normal, vindo a tomar o café da manhã sozinha. Ao fim deste, foi até o escritório em que Sua Majestade preparava-se para o que ele dizia serem os últimos feitos para o embarque a bordo do Peregrino da Alvorada.

— Quero lhe mostrar algo — ele disse, desvencilhando-se dos imensos mapas que cobriam a mesa de estudos. — Demorei a lhe mostrar porque... Bem, a biblioteca foi posta abaixo pelo meu tio, mas o meu tutor, Dr. Cornelius, escondeu algumas das obras antigas muito bem.

— O que é? — Vi quis saber, curiosa.

— Aqui está! — O rei lhe entregou um pequeno e velho livro em couro, empoeirado, com as páginas amareladas devido ao longo tempo que passara guardado.

— “O Livro do Imperador de Além-Mar” — ela leu o gasto escrito da capa. — Imperador de Além-Mar — repetiu, erguendo os olhos até a figura do jovem monarca à sua frente. — O que isso significa?

— Leia — ele pediu, vendo-a realmente fazê-lo, ansiosa pelo que encontraria em meio às páginas antigas daquele livro de aparência tão tosca. — Era isso que eu tanto queria que você soubesse.

Vitória franziu o cenho, deitando o livro sobre a mesa, correndo os olhos pelo escrito. — Está faltando uma parte. Veja!

— É só o que se precisa saber...

— Está incompleto — Vitória falou. — Como posso entendê-lo se está...

— Não, não está. — O rei sorriu. — Façamos assim... Estou aqui há horas. Não quer lê-lo no jardim?

— Passei toda a manhã de ontem nos jardins — ela respondeu. — Conheço cada pequeno inseto que lá habita...

— Me apresente aos seus novos amigos, então... — Ele recolhia a papelada sobre a mesa, mantendo uma expressão engraçada no rosto. — Leremos juntos.

Acomodada entre os braços do rei à sombra de uma antiga figueira, Vitória relia as passagens do tal livro que tanto lhe prendia a atenção.

— “... Então, serão quatro tronos para os quatro reis, filhos de Adão e filhas de Eva” — leu, seguindo o escrito com o indicador. — “Quando a carne de Adão e quando o osso de Adão em Cair Paravel no trono sentar, então há de chegar ao fim a aflição.”

— Estes foram os nossos antigos reis...

— Edmund, Peter, Susan e... — Vi repassava os nomes —... a adorável Lucy!

Caspian admirava o interesse e a boa vontade da jovem em pôr-se a par da história de Nárnia. — Exatamente! — disse, mirando a garota deitada em seu colo.

— Como eles eram?

— Já lhe disse uma vez, eram extremamente corajosos — respondeu, recostando-se ao tronco da árvore. — Quatro pessoas fantásticas.

— Sempre imaginei as rainhas antigas como a encarnação da beleza... As garotas eram belas?

O rei deu um meio riso, passando as mãos pelo cabelo, sem jeito. — Eram sim.

Não satisfeita, Vitória se ergueu, pondo-se sentada ao seu lado. — Quão belas?

— Lucy tinha, ou tem, a beleza de uma criança.

— E Susan?

— Era bonita, só. Ande, há muito que se ler ainda, Vitória. Pegue o livro.

— Tudo bem. — A garota de cabelos negros se empertigara, ciumenta. — Não quer falar da Rainha Susan, eu respeito sua vontade. Eu lhe falei do Morton, mas se não quer me falar dela, tudo bem.

— Ah! — Caspian exclamou, retribuindo a antipatia. — Não sabia que Morton significava algo para você.

— Oh, Céus! — Vitória girou o corpo, erguendo uma sobrancelha ao encará-lo. — Eu é que não sabia que a Rainha Susan significava algo para você.

— Tivemos algo, só isso — ele enfim confessou.

Um sorriso surgiu no rosto de Vitória, feliz por ter conseguido a resposta. — Aprendeu a beijar com ela, Vossa Majestade? — ela prosseguiu.

— Foi só isso, Vi — o jovem rei respondeu, devolvendo o livro. — Ela era um belo tipo, e era só isso.

— Me fez sentir feia — Vitória murmurou, voltando à posição inicial, deitando a cabeça em seu colo e tomando o livro nas mãos.

Tamanho ciúme extraiu um sincero sorriso do seu querido rei, que a mirava de cima. — Você é linda, Vi... Mas é muito mais do que isso.

— Tá, chega — respondeu, emburrada. — Estou tentando ler, Sr. Décimo — continuou, antes de ter o livro tirado de suas mãos.

Caspian aproximou o rosto do seu, estalando um tenro e sonoro beijo sobre os lábios crispados. — Melhorou? — ele inquiriu, mas a resposta não veio. O rosto de Vitória estava perplexo. Não pelo beijo, e disso ele teve certeza logo a seguir, mas a expressão trazida por sua amada era a de uma recente descoberta.

— Caspian... — ela pediu pelo livro. — Veja isso.

— “Muito antes da vinda dos reis, um outro filho de Adão há aqui de pisar. O pequeno será chamado rei em seu mundo, mas aqui nada será.” O que isso significa? — Caspian perguntou.

— Continue lendo. — Um brilho pairava pelos olhos castanhos da garota.

— ”Seu pai e rei morrera. Seu irmão e rei morrera. Um trono num porto sem dono restou, sujo com sangue dos seus queridos. O grande leão há de ajudá-lo, pois não há imperador maior que Deus!”

— Percebe? — Vitória tomara a palavra, com a voz esganiçada. — É o meu pai. Só falta lhe dizer o nome: Manuel.

— Vitória... — Caspian jazia abismado. — Quando eu lhe entreguei esse livro não foi por isso que acabamos de ler.

— Não vê?! — A garota se entusiasmava, voltando a sentar-se. — Meu pai esteve aqui! Esteve em Nárnia!

— Vitória, me escute... Quando ler as últimas páginas há de entender... É como uma profecia, uma... Deixe-me ver – ele disse, folheando o livro. — “A filha do pequeno Rei virá, e seu nome clamará pela vitória do povo... Vitória se chamará, pois para isso veio a nascer” — ele fez uma pausa voltando-se para ela — “.... e, ao lado do décimo estrangeiro, há de trazer paz ao reino de expiações, sentando-se ao trono de Cair Paravel.” — concluiu. — Não é incrível? — Os olhos negros do rapaz cintilavam, mirando os lacrimosos dela.

— É medonho de tão incrível.

— Nos conhecemos há tão pouco tempo e... sinto-me como se te esperasse por séculos.

Como se despertasse de tudo que acabara de saber, Vitória pôs-se de pé. — Tenho que ajudar o povo da floresta — falou, limpando um pouco de terra do vestido azul-claro cintado. — Tenho que ir imediatamente — continuou, afagando a própria mão que sempre acabava por queimar nesses momentos de epifania.

Sobressaltado, o rei também se levantou. — Escute... — Caspian lhe segurou os braços, mirando-a de frente. — Terá que me esperar. Prometa que me esperará.

— Não posso prometer.

O rapaz insistia: — Por favor.

— O que há de ser, será, Caspian.

Na manhã seguinte, Vitória levantara cedo, pronta para acompanhar o rei e seus súditos até o rio Telmar, onde, em botes, desceriam até Cair Paravel. À tarde, já estariam a bordo do Peregrino. Se, há algumas semanas, o caminho não fosse “chegar à floresta”, ela e os narnianos certamente teriam tomado tal meio para chegar à costa.

— Tome cuidado. — Vi agarrava-se na gola da sobre-roupa de couro do rei. — Por favor. — Ela estava preocupada com as rotas traçadas nos mapas. — Cuidado principalmente com a rota da Ilha Negra!

O vento estava a favor das embarcações. O céu sobre suas cabeças abria-se azul com pouquíssimas nuvens a lhe manchar. — Não fique tão contente — ela seguiu ao notá-lo sorridente, mirando o céu. — O tempo pode mudar.

— Acredite, eu estarei mais preocupado com você — ele disse, tentando pôr ordem nos próprios cabelos que se assanhavam com a brisa. — Se algo lhe acontecer... Se tentar resolver tudo sozinha...

— Shh... — Vitória pediu silêncio, levando um dedo os lábios deles. — Sente-se aqui — indicou uma rocha ao chão. — Deixe-me lhe ajudar.

— O que está fazendo?

Vitória se pusera atrás dele, voltando-se à própria roupa, desfazendo um laço que lhe prendia a manga direita do vestido lilás. — Agora... — a voz dela saía difícil ao prender o laço entre os dentes —... poderá enxergar cada onda que se fizer à sua frente.

A garota tomara algumas mechas do cabelo rebelde do rei, prendendo-as com a fita sobre o restante, que estava solto à nuca.

— Obrigado... — ele sorriu, já de pé, passando as mãos pela própria cabeça. — Lavanda combina comigo?

— Não...

— Sabe que vou tirá-lo, não sabe? — ele a puxara pela cintura, sem sequer se importar com os súditos apressados às margens do rio.

— Ouse. — Vitória passara os braços por seu pescoço. — Acabei de destruir um belo vestido somente por você, e - -

Caspian interrompeu suas palavras com um beijo de despedida. O cheiro de Vitória lhe invadiu as narinas, e o fato de poder sentir o seu calor segundos antes de partir certamente faria a viagem parecer muito mais fácil. — Estamos quites — ele lhe disse à boca. — Cuide-se.

— Cuide-se também — ela respondeu, soltando-se do rei, vendo-o subir num dos pequenos barcos. Ao seu lado, o pequeno Ripchip já o esperava. — Tenha uma boa viagem, bravo Rip!

— Obrigado, senhorita! — ele respondera com uma reverência. — Até breve!

— Espero que regresse logo, meu amigo.

À medida que os barcos se distanciavam, Vi sentia o coração apertar. Observava Caspian e conseguia ver o seu regresso. Até sentia o gosto do beijo que viria a ganhar quando este pusesse os pés em terra novamente, mas o mesmo não acontecia ao focar-se na pequena silhueta do seu amigo roedor, o cavaleiro Ripchip, distanciando-se em meio ao rio corrediço.

”No Leste absoluto está, tudo o que precisa encontrar.”

C o n t i n u a


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Notas finais do capítulo

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