A Crónica de Vitória escrita por OlgAusten


Capítulo 6
Cap 6. Um pouco de esperança




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A Crônica de Vitória

Capítulo 6: Um pouco de esperança

Passaram-se alguns dias desde que Caspian partira. Passaram-se muitos dias na verdade. Dezenas deles. Na ausência do Rei, os dias se iam aos pares, rápidos, idênticos. Vitória não somente já conhecia todos os insetos do jardim principal, mas cada pequena folha de todos os jardins do castelo. Ela não apenas decorara o nome dos gentis empregados da cozinha, mas o nome de todos os servos da propriedade.

Num fim de tarde, numa de suas muitas idas ao escritório de Sua Majestade, a garota encontrou-se com Dr. Cornelius, antigo tutor de Caspian, um perfeito estereótipo de intelectualidade, um senhor de idade com longos cabelos e barba branca.

— Dr. Cornelius! — ela exclamou ao entrar no recinto, vendo-o remexer nas estantes próximas à janela.

— Olá, Vitória — o velho lhe respondeu um tanto hesitante com a sua presença.

Vitória pouco se encontrava com ele. Nas poucas chances que teve de lhe falar, indagou-o bastante quanto às antigas histórias do povo narniano. Deparar-se com ele tão disponível assim era algo raro de se acontecer. — Como vai? — perguntou.

— Cansado — Cornelius sorriu. — Mas esperançoso. Na verdade, estou à procura de um antigo livro que deixei aqui há um bom tempo... Um pequeno com as páginas puídas. Há muito serviu de estudo para o Rei, mas há tempos não o vejo.

— Deixe-me adivinhar... — Vi tomou a palavra. — Pequeno... Em couro, talvez? Seria “O Livro do Imperador de Além-Mar”?

Os olhos escuros e inquietos do homem que vasculhava o escritório se ergueram até ela. — Esse mesmo. — O sangue se esvaíra do rosto do tutor. Estava atônito. — Está - - Está com você?

— Sim, sim! — Vitória tentou disfarçar a confusão que lhe tomara ao notá-lo nervoso. — Aqui está.

— Anda com ele em mãos? — o tutor sorriu ao vê-la estender o livro em sua direção. — Ah! É bom saber que está em boas mãos. Fique com ele, o livro não me faz tanta falta assim.

— Algumas páginas foram rasgadas, mas esse livro deveria ser a leitura mais cara a se vender — ela disse. — Como não faz falta?

O velho sorriu: — É seu.

— Não, não é. — Ela puxou uma cadeira, sentando-se. — É do senhor e quero que me ajude a entender certas coisas que estão nele.

— São apenas histórias, e...

— Quem foi o “Pequeno Rei”? — ela empurrou a pergunta. — Ele apareceu aqui muito antes da Feiticeira Branca ser derrotada por Aslam. Fale-me dele, por favor. Preciso saber quem foi e nenhuma outra pessoa consegue me dizer.

— Nem o menino Caspian conseguiu lhe falar, não?

— Ele não faz idéia de quem seja. — Vitória passara a implorar: — Precisa me ajudar professor!

Cornelius respirou fundo e, pondo-se ao seu lado, disse-lhe com modéstia: — Pareço ser o único que pode lhe responder tal pergunta, mas não sei como farei.

— Como ele se chamava?! — Sua voz saíra esganiçada. — ”Pequeno Rei” não é nome. É só isso que preciso saber.

— Bem... Manuel era o seu nome.

Vitória tentou se colocar calma diante do que lhe fora revelado, prendendo o choro. Porém, a menina acabou levando as duas mãos ao rosto, escondendo as grossas lágrimas que vertiam dos seus olhos. — É o seu pai, não é? — a voz do intelectual lhe perguntou.

Em resposta, Vi apenas pôde acenar com a cabeça.

— Conta-se a história de que ele veio num momento muito difícil — o homem seguiu enquanto que ela o mirava com os olhos lacrimosos. — Era muito jovem quando perdeu o pai e o irmão num terrível crime. Aliás, era jovem demais para sustentar todas as responsabilidades de que lhe incumbiram... Os castores poderiam falar melhor dele, mas os coitados já estão todos extintos — disse. — Eu queria tê-lo conhecido, mas só sei de histórias. Chamava-se Manuel, tinha um sotaque engraçado e Aslam ajudou-o a enfrentar os maus momentos pelos quais passara, aconselhando-o sobre os outros pelos quais ainda passaria.

Mas aquilo não era tudo o que Vitória gostaria de saber. A herdeira de D. Manuel não saberia como fazer tal questionamento, mas em quê, enfim, havia errado ao tentar salvar o coiote à beira de Cair Paravel? — Sabe, menina... — o doutor seguiu, como se lesse seus pensamentos. — Foi a esperança que o manteve firme diante de tudo. Se não fosse a força de vontade que possuía em fazer uma nova história para si e para sua família...

— Meu pai tinha a mais firme das palavras.

— Ele abriu mão de Nárnia, senhorita. Poderia ter ficado e combatido a Feiticeira, mas... — o outro hesitou. — É preciso abrir mão de em qual mundo se quer estar. Só assim poderá entregar-se totalmente a um deles.

— O que quer dizer com isso? — ela perguntou, mas o tutor tratou de mudar o rumo da conversa.

— Tenho algo pra você — disse.

Vi arregalou os olhos, surpresa. — Para mim?

Impaciente, Vitória se pôs a observar um dos mapas descartados pelo rei às vésperas de sua partida. A garota correu os dedos pelo papel amarelado, lembrando-se de quão compenetrado seu amado parecia ao estudá-lo. Tudo no jovem monarca lhe agradava, dos trejeitos sérios aos pequenos defeitos. Ele era orgulhoso, mas ainda assim adorável. E estar ali em seu aposento preferido do castelo era como estar com ele. Ler seus livros, folheando página por página, era como lhe tocar os cabelos ou sentir o seu cheiro. Se se esforçasse um pouco, poderia até dizer sentir a presença dele ali consigo.

Por quanto tempo mais seu querido ficaria ausente? Alguns meses já haviam se passado, enquanto que a promessa foi apenas de passar pouco tempo fora.

— Srta. Vitória? — a voz do tutor interrompeu seus devaneios.

— Oh! — ela se sobressaltou. — Dr. Cornelius...

“A senhorita está bastante ansiosa” — ele supôs. — Bem... Aqui está o que lhe falei...

Atrás de si, o homem trazia uma caixa de madeira, comprida, retangular. Ao colocá-la sobre os mapas à mesa, Vitória aproximou-se a fim de enxergar mais de perto. Duas tiras de couro já ressecadas eram o certificado de que há muito tempo a caixa não era aberta. Na superfície clara do artefato havia alguns desenhos talhados em meio a uns detalhes em dourado.

— Sabe que não se pode levar nada de Nárnia, não sabe? — ele perguntou e Vitória seguiu atenta. — Todo Grande Rei, mesmo que pequeno, merece um presente de Aslam, e ele pessoalmente agradou Manuel com esse presente. — Cornelius destravou as trancas, revelando o contido na caixa. Ali jazia uma bela espada reluzente, com os mesmo desenhos em alto relevo, cravados na extremidade oposta à lâmina, no cabo de madeira.

— Pertenceu ao meu pai?

— E agora pertence a você — ele lhe falou. — Está vendo esses símbolos?

Vi aproximou-se da peça, estreitando os olhos em direção aos desenhos bucólicos cravados ali. — São como folhas, galhos de...

— Das dríades. Nossas árvores.

— Está me dizendo que, com essa espada, eu farei justiça aos narnianos esquecidos?

— Se você achar que sim.

Vitória se pôs de pé num salto, com um ar confuso no rosto. — Onde posso encontrar Aslam?

— Aslam não é do tipo que se encontra, senhorita...

— Céus! — a menina perdia a paciência. — Como ele poderá me ajudar a chegar até as dríades, então? Sei que elas estão extintas, assim como os castores, mas... — ela passava as mãos pelo cabelo num ato desesperado. — Só há um meio de curar a moléstia que ataca o povo narniano e - - Você não pode me ajudar, certo?

— Eu sinto muito.

— Obrigada de qualquer jeito — foi o que ela lhe disse antes de retirar a espada de sua caixa, tomando-a nas mãos, mirando o reflexo de si mesma na lâmina afiada. Sua pele formigava em contado com a madeira do cabo da arma. — Algo precisa ser feito, Doutor Cornelius. Morrerei lutando se for preciso. — E, sem olhar pra trás ou dar atenção aos avisos que o velho tentava lhe dizer, Vitória subiu até seu quarto, com o intuito de juntar o mínimo necessário para uma viagem de volta a Cair Paravel.

Com uma bolsa de couro a tiracolo onde apenas cabia um pequeno mapa dobrado e um cantil que lhe mataria a sede mais tarde, Vitória preparou um pequeno bote que a levaria até a foz de Cair Paravel. De lá, ela seguiria até as ruínas do palácio.

— O que eles fariam? — Vi se perguntava empurrando o barco por alguns metros à margem do rio. A água lhe batia até o meio das pernas, molhando grande parte da saia de seu vestido. — Droga de roupa!

Por que diabos os vestidos em voga haviam de ser tão compridos? As extensões das mangas do tecido verde estavam ensopadas e, se Vitória estivesse em terra, mal poderia caminhar de tão pesada que sentia estar as barras deste. A garota não se dera realmente conta do momento em que havia tomado forças e partido sozinha rumo às ruínas antigas de Nárnia, mas acabara por tomar uma decisão: aquele era o seu lugar e não a Inglaterra ou a Alemanha. Nárnia era onde gostaria de estar pelo resto de sua vida, e era preciso dar um fim ao que tanto atormentava os antigos povos da floresta.

Vitória enfim se pôs sentada no barco, remando rio abaixo. Certamente levaria algum tempo até que chegasse ao seu destino, isso ela sabia, e, provavelmente, a noite chegaria antes que a querida do Rei atracasse em Cair Paravel.

Alguns poucos quilômetros navegados e a manhã já se tinha ido. Por diversas vezes seus braços doeram, fazendo-a pensar que desistir de remar seria mais fácil, mas Vi sabia bem que facilidade não era o que lhe esperava. Às vezes se deixava praguejar, desafiando o Grande Aslam a ajudá-la, mas não obtinha resposta alguma... Pra tristeza que lhe assolava, alguns trechos do curso do rio eram bastante sombrios e pouco podia se ver do céu, devido às copas das grandes árvores que o margeavam. — Vocês... — ela voltou-se às figueiras, ofegante. — Vocês bem que... podiam me... ajudar!

O suor minava de sua testa conforme tentava passar cuidadosamente por entre os trechos pedregosos do percurso.

“O que minha mãe diria se me visse agora, hein?” — ela falava consigo. — “Está Louca, Vitória! O que ganhará com isso?” — D. Augusta nunca deixara uma única atitude sua passar sem uma critica. — “Músculos?” — A garota deixou-se sorrir, aparando umas gotas furtivas de suor lhe escorrendo pelo rosto... Porém, logo seus pensamentos foram interrompidos por uma estranha voz cortando o ar.

— Vitória! — seu nome soara forte, assustando-a em meio à penumbra pela qual passava.

— Quem está ai? — ela gritou em resposta, largando os remos dentro do barco. — Aslam, é você?

— Volte para casa... — ouviu dizer. — Volte.

A herdeira de Bragança olhou a floresta obscura à sua volta em busca de quem lhe falava, mas a procura foi em vão. Ela se pôs de pé sobre o bote, com a espada em punho, gritando para o alto: — Estou pronta, Aslam! Você me deu o poder de curá-los e me presenteou com a espada herdada de meu pai. Sinto que estou pronta.

— Nunca estará pronta.

Como se tivesse levado um balde de água fria, Vitória ficou atônita diante da resposta que recebera. Aslam lhe incitara àquilo, movera Caspian e todo o reino à sua espera e agora não mais acreditava nela. Engolindo um possível choro, ela manteve-se de pé, erguendo o queixo. — Irei salvá-los, com ou sem o seu consentimento.

Como num pesadelo, a escuridão do ambiente se intensificara e a noite parecera cair. Os parcos raios de sol que irradiavam naquele trecho pantanoso do rio se esvaíram. — Volte! — o suposto Aslam repetiu secamente. — Sofrerá as conseqüências caso continue nesse caminho.

— Que tipo de senhor é você? — ela perguntou por entre os dentes. — Não apareceu para mim com esse rosto. Será que eu estava apenas sonhando? Onde está você, Grande Aslam? — Mas não mais houve resposta. — Apareça! — gritou, por fim.

Vi não esperava por tal confronto, acabando por abismar-se com a velocidade com que o curso do rio agora guiava o seu barco. As águas antes calmas tornaram-se corredias, arrastando o pequeno bote sem o mínimo esforço. A filha de D. Manuel não se lembrava de nenhuma queda d’água que teria de enfrentar pelo percurso. O próprio rei tomara aquele caminho ao partir, e nada do tipo fora notíciado, porém, só havia uma resposta àquela repentina correnteza: estava indo de encontro a uma cachoeira e não tinha dúvidas.

Em algum lugar, ela pensava, às margens do rio, Aslam deveria estar a observá-la, testando sua obediência ou algo do tipo. Ele a deixaria morrer, caso decidisse seguir em frente? — NÃO! — ela gritou novamente, tentando manter-se segura enquanto ouvia o chocar da madeira do bote com algumas rochas ao fundo do aqüífero. — O Aslam de que me falaram seria incapaz! Você não é o mesmo que devolveu a alegria ao Pequeno Rei ou aquele que me deu a força das dríades! — Até quando o barco agüentaria antes de romper-se em dois? — Quer me matar? Que dar um fim à única esperança daquele povo? — Vitória seguia firme, mirando o sumidouro da cachoeira a alguns metros de si — NÃO VAI CONSEGUIR ME MATAR! — bradou, por fim, segurando a espada com as duas mãos, elevando-a acima da cabeça.

Num único movimento, Vitória fincou a ponta da lâmina no fundo do bote. Com igual velocidade, o barco se rachou. A água que o inundava mal teve tempo de concluir a submersão, pois, antes que a garota vacilasse de encontro à cachoeira, ouviu o enorme estalo provocado pelo choque de uma grande rocha contra a embarcação. A pancada fora tamanha que Vi já não sabia se havia sido também atingida ou arrebatada em meio àquele pequeno inferno.

Um pouco de consciência enfim se fizera. Sua cabeça latejava enquanto uma série de sons chegava aos seus tímpanos. Esforçando-se para abrir os olhos, Vitória se viu rodeada por uma intensa luz amarelada, contundente em suas retinas. Quando enfim se pôs desperta, notou-se febril, deitada sobre um chão estranhamente aquecido e firme. Ao tentar se mover, a herdeira de Bragança se descobriu imobilizada nos pulsos e tornozelos.

— Deixe-me vê-la! — uma voz imperiosa, masculina, se fez clara em meio aos outros sons que ela ouvia. — A filha do covarde enfim veio até nós.

— Ouviu Aslam dizer que o sangue dele voltaria, não ouviu?

— “Não sabia que ingenuidade e desventura eram admirados por aquele felino?” — o primeiro zombou. — Onde está a espada? Trouxe contigo, não trouxe?

— Aqui está - -

Quando entendeu do que se tratava, Vi bradou, remexendo-se no chão: — EU SABIA! SABIA QUE ASLAM JAMAIS DESISTIRIA DE MIM!

— Ei, filha do covarde... — À sua frente um velho coiote cinzento a encarava, fato que não intimidou a jovem.

— Lave bem a boca antes de falar de meu pai, seus...!

— Tudo de que precisávamos era de sua espada — o bicho rosnou para ela. — Você e os súditos do rei mataram meu filho, não foi? Na verdade, dizimaram toda a minha família sedenta pelo sangue de Adão! Malditos telmarinos!

— Seu filho? — ela se pôs pensativa.

— Na praia, alguns meses atrás!

— Se ele morreu é porque foi merecido... Quem tem sede de sangue não merece viver! Vocês fazem os narnianos parecerem todos iguais, mas não é verdade! — Vi procurava um melhor meio de mirá-lo. Em resposta, o coiote sorria, debochado. — É possível se viver bem com os telmarinos.

— Cale-se, menina! — o dono da primeira voz lhe disse — Suas palavras são qualquer coisa para nós! — Era um homem pequenino, não como os demais filhos de Adão, mas um anão como aqueles que conviviam com ela em Telmar. — A nossa rainha há de voltar hoje, esta noite, graças à espada do Pequeno Rei.

— Uma vez vocês falharam, e sempre haverão de falhar! — Vi cuspiu as palavras.

— Vejo que a menina conhece muito de nossa história... — o animal ao lado do anão zombou antes de se afastar.

— Augrim, com a ausência do Rei e, com o sempre ausente Aslam, nada poderá nos impedir agora que encontramos a espada — o outro disse. — Vem cá, garota. — ele seguiu com o artefato em mãos, aproximando-se dela. Por um instante Vitória pensou que ele fosse machucá-la, mas ao invés disso, num único movimento o tal rompeu as amarras, deixando-a livre.

A verdade era que, apesar de livre, Vitória sentiu-se extremamente indefesa em meio a rostos e focinhos tão maldosos ao seu redor. Havia coiotes, anões, alguns minotauros, todos lhe encarando, “pedindo pelo seu sangue”, como eles próprios gostavam de dizer. Vitória olhou à sua volta e então entendeu onde estava. Fora levada às ruínas de Cair Paravel. Uma enorme fogueira fora montada, iluminando as dezenas de faces vingativas a lhe mirar. Ao longe, por entre as antigas colunas do palácio, podia-se ver a praia em meio à escuridão. A floresta havia tomado a propriedade, e dentre as inúmeras árvores que ali cresceram, uma de grande porte era cultuada por eles.

— Sua Majestade Imperial, Jadis, há de ressuscitar esta noite.

Outro dos presentes tomou a palavra: — Vitória de Bragança... — o tal voltou-se para ela. — Veja com seus próprios olhos a ascensão da nossa verdadeira rainha.

— Do que estão falando? — ela se pusera de pé, afastando-se dos presentes. — Como sabem...?

— Acha que deixaremos que você e seu sangue sujo se juntem ao décimo estrangeiro, levando-nos à ruína?— O anão aproximou-se novamente dela. — Quando o Príncipe Caspian, hoje Rei, recusou-se a nos salvar de Miraz, trucidando a megera da floresta, a bruxa que traria nossa rainha de volta, ele se pôs contra nós. No momento em que o espírito de Jadis foi interceptado por Peter e Caspian, este passara a habitar em outro ser da floresta, em nossa última dríade! — ele apontou pra a árvore. — É onde ela jaz. Segundo o “Imperador”, só havia um meio de se salvar a vida em Nárnia: ”Eis o domínio em que as páginas rasgadas do livro foram mantidas, na mãos dos seguidores da Feiticeira Branca”. Quando precisávamos de Aslam, ele deixou o homem, de quem essa garota descende, sumir. Quando a Feiticeira nos acolheu fomos os verdadeiros reis desse lugar... Porém, quando ela se foi, Miraz tomou o poder e novamente estávamos sozinhos!

— Um golpe em sua raiz mais espessa bastará para que a vida volte ao nosso povo! — ouviu-se dizer. — Libertaremos Jadis!

— Em quem devemos confiar? — o anão ergueu a voz. — Em um bando de covardes tiranos ou naquela que nos mantinha vivos?

— Ela era tudo o que tínhamos! — uma voz soou em meio àqueles que lhe ouviam.

— Exatamente — o coiote Augrim falou. — Jadis nos mantinha vivos. E, se a nossa Senhora está presa nessa dríade, temos que salvá-la.

Iriam matar a última dríade. Estavam loucos por serem salvos e nada parecia poder impedi-los. Eram os últimos de suas espécies, e, entre si, a sobrevivência parecia ser sempre a ordem do dia. Não havia mais recuperação para eles. Tal qual o coiote às margens da praia que os súditos de Caspian mataram, um fim precisava ser posto à aqueles animais.

— NÃO! — Vitória bradou. — Não façam isso! Isso seria estupidez, não vai salvá-los. Vai acabar por matá-los! É uma dríade, esqueceram? Elas costumavam estar vivas. Se matarem a única que resta, como ficarão...?

— CALE-SE, GAROTA! — o coiote disse, ordenando que ela fosse contornada. — Segurem-na.

— Como conseguem clamar pela tirana que foi a Feiticeira Branca? — A esperança de impedi-los de cometer aquela loucura se seguia. — Aprendam a conviver com os telmarinos! Têm um bom rei agora. Aslam está com ele! Tenham um pouco de esperança!

Como se fizesse a um bicho indefeso, um dos minotauros tratou de segurá-la por um dos braços. A cada passo que o anão dava de encontro à árvore o desespero crescia dentro da garota. Todo um ritual fora feito, línguas desconhecidas e estranhos símbolos foram clamados, alguns se moviam em volta da imensa fogueira, enquanto que o pequeno homem empunhava a espada na direção da dríade. No momento em que ele erguera a lâmina sobre a cabeça, Vi cerrou os olhos desejando com todas as forças que Aslam estivesse ali consigo. — Eu sinto muito — sua voz sara sibilante em desespero. A amada de Caspian pedia perdão pela desconfiança que tivera do Grande Leão.

— “Fale comigo, por favor!“ — Vitória sentia-se tremer. — “Fale comigo, Aslam! Traga a alvorada. Perdoe-me. Não há outro lugar onde mais eu queira estar!”

No momento em que a garota voltou a abrir os olhos, induzida a encarar o que acontecia, sentiu a mão antes tocada por Aslam queimar. Não apenas arder, queimar como se alguém o fizesse em brasa. Um grito de dor escapara por entre seus lábios, atraindo a atenção do mestre da cerimônia. De pronto, Vi agarrara-se ao minotauro agarrado a ela. A canção das dríades que deveria encher o ambiente dera lugar à mesma dor lacerante que a queimara. Tamanho susto fez com que o narniano se afastasse dela, arisco.

Uma ventania se fizera vinda das colinas ao longe, varrendo a planície. As folhas das árvores dançaram com a forte brisa, deixando os seguidores de Jadis boquiabertos.

— Detenham-na! — o descendente de Nikabrik não perdeu mais tempo, enterrando a lâmina da espada na raiz da árvore...

.. Ou pelo menos foi isso que ele acreditou ter feito. Na verdade, o artefato mantivera-se suspenso no ar, como que por magia, sobre sua cabeça. De fato, sentira-se muito idiota, mas nada se comparava ao medo que sentiu ao ver a espada rodopiar no ar, flutuando direto na direção das mãos de Vitória.

— Por Nárnia e por Aslam! — a garota urrou, contra-atacando os coiotes que partiam para cima de si. Suas mãos ardiam, mas ainda assim manteve-se atenta, salvando-se dos animais.

Verdade seja dita, parte deles fugiu dali quando o anão caíra, medroso, estatelado no chão, e outra parte fora ferida pela arma do Pequeno Rei. Por algumas vezes a menina achou que vacilaria, travando um duelo com um dos grandes minotauros, mas, apesar de não ter aprendido nada antes sobre lutas daquela espécie, a própria espada parecia atuar sozinha como se apenas precisasse da pessoa certa a empunhá-la.

Em meio àquela batalha de um único cavaleiro, uma presença se fez: — Vão embora! — uma voz grave soara, intensificando a ventania, revolvendo as folhas secas ao chão, esvoaçando o longo vestido de Vitória.

Ali estava o dono da voz que deveria ter falado com ela mais cedo. Se ao menos soubesse distinguir o timbre do verdadeiro Aslam e a imitação de um bando de narnianos ignorantes, não teria se deixado enganar. — Se soubessem o quanto que a descendência de Manuel é importante pra vocês... — Em meio à penumbra da floresta, a figura de Aslam surgiu, um grande leão dourado emergira por entre os troncos das árvores, o mesmo que lhe acolhera em seu sonho.

— Aslam! — Vitória correu ao seu encontro.

Em respeito, os poucos narnianos que restaram ali se curvaram diante do grande felino, envergonhados. — Vitória... — Os olhos claros do animal desceram até a figura que também curvara-se à sua frente. — Fique de pé — ele pediu, mas em vão. Vi permanecia ajoelhada, de cabeça baixa, erguendo a espada ensangüentada nas mãos, como se o artefato não fosse digno dela.

— Não posso! — a voz dela saíra chorosa. — Viu quantos tive que ceifar a vida?

— Levante-se, por favor — ele pediu de novo. Lentamente, a filha de D. Manuel se pôs de pé. — Obrigado pelo o que fez, Princesa Vitória.

— Mas minhas mãos estão sujas com o sangue daqueles pobres seguidores de Jadis...

— Foi preciso, assim como eu a derrotei muitos anos atrás — disse. — Você é forte, menina Vi. — Ele a viu sorrir. — Poucos teriam coragem de se arriscar dessa forma. Poucos seguiriam adiante depois do que estas criaturas fizeram contigo no rio. Poucos tomariam um reino desconhecido como lar do modo como você tomou...

— Eu pertenço a Nárnia.

Aslam assentiu, caminhando até a árvore cultuada. — É claro que pertence...

— E o que acontecerá à dríade? — ela interpôs ao vê-lo mirar o suposto lar de “Jadis”.

— Seu pai teve de partir... — ele falou. — Há tempos espero pelo sangue dele. Apenas o sangue do Pequeno Rei dará um fim à esperança que a imagem dela ainda invoca. Terá de terminar o que o anão, o filho de Nikabrik, começou, Vitória.

— Matar a dríade?

— Não... Ele a mataria certamente, mataria a última das nossas dríades, mas você não. Você é a pessoa certa para fazê-lo. Não há de matá-la.

— Aslam, eu não sei, eu... — ela hesitava. — É demais para mim, é...

Fingindo desânimo, o grande felino a provocou: — Então, talvez, os filhos seus e de Caspian consigam.

— Filhos?! — ela exclamou. — Teremos... filhos? — Era a única coisa que lhe vinha à boca.

— Os mais corajosos, eu acredito — Aslam seguiu.

Vitória conteve um largo sorriso, dizendo-lhe: — Não deixarei que vivam num reino triste... Onde as dríades cantam não há tristeza!

— É bom vê-la feliz — ele tomara a palavra, calmamente. — Mas saiba que será tentada ao atingir esse corpo que Jadis habita hoje...

— Tentada? — a menina repetiu, mirando a espada que descansava pendente ao chão.

—... Naquilo que mais lhe dói...

Maldita seja a Feiticeira Branca! — ela podia ter esbravejado, mas ao invés disso tomou a posição em que o anão antes estava, segurando o artefato acima da cabeça, exatamente como o filho de Nikabrik fizera. Como se pedisse por permissão, Vitória ergueu os olhos até a figura de Aslam, mas este nada lhe disse. Atrás dos olhos cristalinos do Grande Leão estava a resposta. Em momento algum a herdeira de Bragança pensou em desistir de sua missão. E, seguindo com o prometido, num único golpe, fincou a espada na maior das raízes da planta.

Um vácuo rompera em meio à clareira circundada pelas árvores, enquanto um feche de luz brotara da raiz atingida, tomando todo o local, espalhando-se num raio imensurável por toda a floresta tal qual uma explosão. Um grito feminino, agudo, enchera o ar no exato momento em que Vitória cerrou os olhos, sentindo o chão lhe faltar.

Em dois segundos, perdera a consciência. — “Não estamos aqui por muito tempo.” — Em meio a escuridão, Vi avistou um rosto desconhecido de uma mulher pálida a lhe falar. — “E o nosso tempo é apenas um fôlego.”

Da imensa tontura que sentira não havia nem mais vestígios. Vitória moveu-se em sua cama, entreabrindo os olhos castanhos, desconfortáveis com a claridade que rompia à janela. Quando girou o corpo debaixo dos lençóis alvos, sentiu-se esbarrar em algo – na verdade em alguém – e de pronto se pôs sentada, assustada. Ao seu lado jazia deitado o último homem com que já havia pensado estar.

Ali estava o sobrinho do seu tio.

Vi havia recém se casado com ele e, talvez por isso, ainda se surpreendia ao vê-lo dormindo ao seu lado. Sempre se assustava com aquela figura carinhosa que tão fielmente lhe mirava: suas bochechas coradas sempre contraídas num sorriso, os cabelos loiros, finos e então bagunçados, acompanhados da barba espessa de mesma cor. Para outras mulheres ele soaria tão belo e atraente... O melhor dos maridos, mas não para Vi.

— Há quanto tempo está aí? — ela perguntou, mas nem um “bom dia” lhe foi dado.

Morton aproximou-se dela, estalando um beijo em sua testa, voltando a se afastar, pondo-se fora do colchão.

— Durma mais um pouco — a voz de seu esposo lhe disse. — Vejo-a no café.

Mas, à cama, ela não conseguiu mais ficar. Foi até a varanda contemplar o jardim florido a alguns pés de onde estava. Não havia muito que se ver na mansão herdada por Morton, mas se houvesse algo certamente seriam as variedades de violetas a perfumar a brisa gélida que adentrava por entre as cortinas naquela manhã em Estocolmo.

— Dona Augusta disse que chegaria logo mais à tarde — ele lhe disse à mesa do café. — A Alemanha terá de se ver sem ela por algum tempo.

Vitória fingiu um meio riso, sentando-se na outra cabeceira da mesa. — Mamãe está sempre inventando desculpas para matar a saudade...

— Por mim ela viveria aqui, Vitória. A casa é grande, há espaço para nós quatro: eu, você sua mãe e Robert, mas você é a primeira a se opor...

Sua esposa respirou fundo, servindo-se de alguma torrada com geléia. — Não me sinto bem na presença do Robert. Só isso.

— Tudo bem, minha princesa. — A voz do sueco decaíra, não a contrariando. — Fico feliz em saber que se sente bem comigo. — O olhar verde de Morton desvencilhara-se dela, caindo sobre a meia banda de mamão que comia. — Está tudo bem, não está? — ele perguntou como se falasse com a colher que tinha em mãos.

— Sim, está. — Outro falso sorriso brotou dos lábios cheios dela. — E contigo?

— Sou o homem mais feliz do mundo.

Durante algum tempo, Morton esperou pelas mesmas palavras de Vitória — “Sou a mulher mais feliz do mundo” — mas estas nunca vieram. Ele fingia não saber, mas “feliz” era algo que Vitória jamais seria ao seu lado. Sua pequena não nascera para aquilo, nunca quis casar-se com ele e custou a aceitar o pedido de casamento. Tudo pela família.

A verdade era que, desde que deixara a Inglaterra, Vi não era mais a mesma. Nunca fora de fácil convivência, mas, ultimamente, as horas à frente da varanda se estendiam por todo um dia e dirigia-lhe a palavra apenas quando algo lhe era perguntado. Só.

— Morton me disse que está doente, minha filha.

Augusta e Vitória caminhavam pelo gramado verdejante da mansão dos Douglas, mansão esta que agora também era sua... As duas conversavam sobre os assuntos pendentes, pois há um bom tempo não se viam.

— Não estou doente, mãe.

O vento lhes assanhava os vestidos e os cabelos. As madeixas negras e onduladas da herdeira de Bragança não pareciam se conter de modo algum. Andava abatida e, não eram somente os cabelos ao vento que lhe davam a impressão de ser alguém frágil, prestes a tombar ao chão ou pôr-se a voar com o vento; seu semblante mudara, seu olhar antes tão vivo sumira de vez.

— Seria um neto, então? — a mais velha arriscou entre risos.

— Não diga isso nem por brincadeira, por favor! — O sangue lhe sumira da face. — Não estou esperando o primeiro da dezena de filhos que vocês esperam que eu tenha.

— Não? — Augusta estreitou os olhos, indicando um banco de madeira para que pudessem sentar-se e conversar — Se não está grávida, então, como são as noites aqui?

— Frias.

— Vi... Não é disso que estou falando.

— Mamãe, não devia perguntar coisas do tipo — a garota de cabelos negros emendou. — Ele é um cavalheiro.

— Sim, mas cavalheiros também...

— Vamos entrar, por favor! — sua filha bradou. — Estou congelando. Não há um lugar nesse país que não faça frio.

De volta ao interior da casa, Vitória desvencilhou-se das perguntas maldosas de D. Augusta, correndo à cozinha. Sentia-se melhor na presença dos empregados. Ao passar pela porta do cômodo, uma empregada trajando o mais impecável dos uniformes veio ter consigo: — Sra. Douglas, precisa de algo? — o sotaque sueco da mulher de tez vermelha e cabelos cor de ocre lhe perguntou.

— Não, Sonja. Obrigada.

Os olhos azuis da senhora sorriram ao vê-la se sentar à mesa dos empregados. — Certeza? — preferiu confirmar.

Antes que Vitória novamente lhe respondesse, uma terceira figura se fez à cozinha. Um velho senhor também em uniforme entrara pela porta dos fundos. — Boa tarde, senhora — ele disse, tirando o quepe em sinal de respeito.

— Boa tarde, Sr. Enckell — ela respondeu, acenando para o velho motorista da família. — Quais as últimas notícias? — seguiu ao vê-lo com o jornal enrolado embaixo do braço.

— Sinceramente, senhora... — ele respirou fundo, pousando o jornal sobre a mesa. — Como D. Augusta consegue viver num país daqueles?

— Hitler död — Vitória leu o escrito da manchete. — Está morto?!

— As notícias são de ontem — o homem seguiu. — Se já era um inferno viver naquele país, imagine agora, então!

Sonja corria os olhos do seu colega, o senhor Enckell, para Vitória, e de sua patroa para o jornal. Nunca se sentira tão aliviada em vida. Nem quando foi posto um fim à “Guerra de Inverno”, que levara consigo a vida de seu primogênito. Tal conflito ocorrera bem no inicio da maldita Segunda Grande Guerra, mas agora tudo parecia ter acabado. — Tack Gud! — ela agradecia a Deus desde quando as notícias de calmaria foram ouvidas pelo mundo. Faltava muito pouco.

— Céus! — a patroa deixou-se exclamar. — Minha mãe não pode voltar pra lá, e - -

— Vitória? — a voz de Morton soara às suas costas. Lá estava ele à porta, chamando por ela — Vejo que já soube das notícias... — Quando Vitória girou o corpo em sua direção percebeu o enorme sorriso estampado no rosto do homem loiro atrás de si. A Suécia podia ser indiferente à guerra, mas Morton jamais escondeu o tamanho desgosto que sentia pela posição e atitudes tomadas pelos alemães.

Tamanha notícia não passaria em branco. Não para Morton. Parte de sua família era germânica, mas, para ele, a mentalidade de seus governantes (e dos influenciados por eles) nunca fez o mínimo sentido. O marido de Vitória insistiu muito por uma comemoração – a mínima que fosse – mas sua sogra não arredou um único pé do quarto onde havia se instalado.

Nem D. Augusta nem seu esposo, Conde Robert Douglas, desceram para o jantar naquele dia 2 de maio de 1945. Não apoiavam as forças do “Füher”, mas imaginar o que seria de seu país dali para frente não era uma situação nada confortante. A comemoração ficara a dois, então, igual ao café-da-manhã; Vitória e Morton cearam a sós.

— Vou pedi-la pra ficar. — a voz dela lhe disse por entre o tintilar de talheres. — É a minha mãe, e ele meu padrasto.

— Ótima escolha, Vitória! — Seu esposo admirou-a como se não fosse ele a lhe bater naquela tecla todos os dias. — D. Augusta e Robert ficarão muito gratos e, você sabe, ter a casa vazia não me agrada tanto...

Se dependesse dela, a casa ficaria vazia por uma eternidade.

— Certo. — Vi pousou o guardanapo sobre a superfície da mesa. — Vou lá em cima — disse, pondo-se de pé. — Preciso falar com mamãe agora mesmo.

Algumas fracas batidas foram ouvidas à porta do quarto. D. Augusta estava perdida em pensamentos à varanda quando percebeu a presença de sua filha ali. Sua menina parecia querer falar com ela.

— Mãe? — Ela se pôs ao lado da outra. — Como se sente - -?

— Me pareço com você não? — Os olhos azuis da mulher, em momento algum, pareciam querer mirar a jovem ao seu lado. — Aqui estou eu encarando algum horizonte invisível, com saudades de alguma “casa”... — sua voz saía embargada, logo dando lugar a um choro contido. — Belo momento para voltar pra “casa”, não?

— Mãe, não precisa voltar — Vi disse, enfim. — Fiquem conosco. Morton e eu... — era difícil falar como um casal —... nós adoraríamos tê-los por perto.

— Lembro-me da loucura que assolou toda a Alemanha no fim da Primeira Guerra. Imagine agora! Quando esta se for, não restará mais nada.

— Fiz da Inglaterra meu lar por tantos anos, mãe. Agora faço da Suécia minha casa. — E, num abraço, a pequena conversa se encerrou. — A nossa casa.

A gelada Estocolmo não deveria mais lhe parecer tão gelada. Estava com sua mãe, e não havia muito mais o que desejar. Pelo menos era assim que as coisas deveriam ser, mas quando, ao fim daquela noite, a herdeira de Bragança seguiu aos aposentos seus e de seu marido, não conseguiu mais agüentar o choro inebriante preso no fundo de sua garganta.

Lembrou-se de quando era uma menina e de quando corria em direção ao pai nos jardins de Fulwell Park. Lembrava-se do quanto que o sol lhe parecia mais radiante naquele tempo e do quanto que a voz de D. Manuel sempre soara amiga e confidente. Um abraço do rei era o melhor remédio para um machucado ou o melhor consolo para alguma desavença na escola.

— Você sabe que não deve brigar, Vitória — ele dizia, tomando o corpo pequeno de sua filha nos braços. — Sabe que sua mãe ficará triste ao saber disso, não sabe?

— Mary disse que eu não deveria estudar na mesma escola que ela, papai — A garotinha vestida num uniforme do tipo marinheiro chorava em meio a um abraço. — Não quero mais voltar pra lá. Odeio aquela Escola! Odeio!

— É por pouco tempo, minha princesa. — D. Manuel a devolveu ao chão, dando-lhe a mão. — Logo estaremos em nossa casa, Vitória — ele seguiu, caminhando ao seu lado. — Verá como vai se sentir bem lá.

— Mamãe também vai com a gente? — Vi esfregava os olhos, mirando a figura alta do pai ao seu lado.

— Vamos os três! — O homem pareceu ter convencido a filha, pois o choro cessara dando lugar à esperança sempre contida no olhar castanho da pequena Vitória. — Não acha que estamos falando da antiga casa do papai, acha?

— Portugal?

— Não, Vi! — ele lhe sorriu. — Portugal é belo, mas não é pra lá que iremos... Vamos para onde o vovô e o seu tio estão...

— Quando vamos? — em sua inocência, ela perguntou. — Nas férias?

Seu pai jamais lhe respondeu, apenas abafou um riso ajoelhando-se à sua frente. — Você não gosta de ir à escola, certo? — A resposta foi positiva. — Não gosta das coleguinhas da escola, pois não? Nem dessa casa e nem dos amigos do papai, pois?

— Vai ficar bravo?

Manuel acenou cabeça negativamente, levando um dedo à ponta do nariz delicado da menina, fazendo festa. — Também não gosto dessas meninas que se acham donas da Inglaterra — e seguiu num tom jocoso. — Não gosto dessa casa e tampouco daquela gente que me afasta de vocês na hora da sobremesa — os seus amigos. — Não somos daqui, filha.

— Por que não somos, papai?

— Porque não somos.

Silenciosamente, de uma maneira quase felina, Vitória entrou no quarto em que Morton já dormia, prezando para não acordá-lo. Ela seguiu até o banheiro a fim de lavar o rosto banhado por lágrimas, e em momento algum se dispôs a mirar a silhueta coberta pelo lençol da cama. Enquanto trocava de roupa às escuras, adiando o máximo possível o momento em que teria de deitar-se ao lado de Morton, ouviu a voz do homem desperto a lhe chamar.

— Vitória? — seu marido acendera o abajur sobre o criado-mudo.

— Falei com mamãe. — Foi a resposta.

Ele se pôs sentado, livrando-se dos lençóis, mirando-a. — Ela fica conosco?

— Certamente. Só precisará mandar buscar o que deixou em Berlim...

Vi sentou-se na cama ao seu lado, preparando-se para dormir.

— Ótimo! — ele disse, perdendo o olhar, focando-se no semblante apressado dela. — Querida...

De repente, Vi sentia falta das vezes em que ele lhe chamava de “Srta. Vitória”. Não era tão irritante afinal... Na verdade, era muito mais tragável que “querida” ou “amor”.

— Sim...? — ela não soube ao certo quando, mas enquanto tentava tornar o travesseiro mais confortável para si, Morton tomou uma de suas mãos entre as dele.

— Há algo lhe incomodando? — perguntou. — Sabe... — seus olhos verdes cintilavam. —... Quando, hoje mais cedo, eu disse ser o homem mais feliz do mundo, eu não estava mentindo. Vitória, eu a amo. Quando aceitou meu pedido de casamento achei que fosse apenas por impulso. Achei que se sentia obrigada, mas... Céus! Depois daquele beijo que lhe roubei pensei que jamais voltaria a falar comigo.

Sua mulher não sorria, apenas se detinha a mirar as mãos que lhe seguravam tão fielmente. — Morton, você... — Ela pretendia continuar a falar, mas foi interrompida pelas palavras dele, seguidas de alguns beijos cavalheiros em sua mão.

— Sou realmente feliz... — A barba áspera roçava em sua pele sensível. —... Mas não posso ser egoísta ao ponto de não dar um fim ao que lhe atormenta.

Os beijos se seguiam, sonoros contra as costas da mão dela. A vontade da herdeira de Bragança era de pular fora daquela cama e a de Morton era de amá-la por toda a vida, admirá-la, colocá-la numa estante, se possível.

Pobres Conde e Condessa Douglas!

— Não há nada. — Engolindo o maldito choro que sempre lhe voltava à garganta, e escondendo o tamanho desapontamento que sentia ao ter que cumprir com o papel de esposa, Vitória levou a mão que tinha livre ao rosto de seu marido, acariciando-lhe a barba. — Está... tudo bem.

Nunca fora tão falsa em toda sua vida.

Morton cerrou os olhos, esquecendo-se do que antes fazia, e, diante do carinho feito ao seu rosto, voltou-se ao pulso e antebraço oferecidos por ela, descendo os lábios por toda a extensão de sua pele, seguindo com o atritar dos pêlos de sua face por ali. Vitória deixou-se amolecer, sendo logo tomada entre os braços de seu marido, tombando lentamente à cama.

Morton seguia com aqueles beijos pelo pescoço de Vi, forçando o peso de seu corpo contra o dela, contornando as curvas de sua esposa sobre a seda da camisola, acariciando-a. Uma alça delicada da roupa já se ia ombro abaixo quando a língua quente dele lhe invadiu a boca, tomando-lhe os lábios com urgência. Quando a mão, que antes o homem pousara ao redor de seu pescoço, descera até seus quadris e coxas, perpassando suas vestes, Vitória se deu conta de que, comparada a ele, estava inanimada, estática à cama.

Não conseguiria se mover nem se tentasse. Não conseguia responder aos afagos que recebia. Não conseguia tocá-lo ou repetir as juras de amor que ele tão insistentemente sussurrava. À sua volta, o quarto parecia girar, desfazendo-se numa medonha desordem. Um único carinho ou beijo não lhe fora mais sentido.

Como lhe foi dito uma vez, ela não fora feita para aquilo. — Eu não pertenço a este lugar — ela repetia na mente. — Não pertenço.

C o n t i n u a


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Notas finais do capítulo

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