A Crónica de Vitória escrita por OlgAusten


Capítulo 4
Cap 4: Cair Paravel




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No dia seguinte o grupo se levantou cedo. Ripchip já havia desperto quando os demais despregaram os olhos, e quando, enfim, todos se puseram de pé, notaram que não mais seguiam encabeçados apenas pelo rei, mas também por Vitória. Os súditos não entenderam bem o fato dos dois estarem a se entender tão bem ou o porquê dos cordiais bons modos dela e do mau jeito de Caspian em encará-la.

— Ele está... — o centauro voltou-se para Ripchip, perguntando pelos dois confidentes andando a poucos passos de si —... envergonhado? Encabulado? Feliz? O que ela lhe fez, Rip?

— Não me faça esse tipo de pergunta — o rato respondeu. — Me parece que conversaram ontem à noite. A menina decidiu ficar e nos ajudar. O nosso rei só está bem. Deixe de coisas!

De fato, Caspian estava bem. Ainda que um tanto encabulado pelo o que acontecera na noite anterior já que havia sido flagrado por Vitória durante o banho. Porém, quem não parecia muito confortável era ela. A garota evitava alterar o próprio tom de voz e ria de tudo que ele lhe dizia sem ao menos tirar os olhos do chão.

— Para onde vamos primeiro? — Vi lhe perguntou.

— Só há um único lugar para ir, Srta. Vitória.

— E qual seria esse lugar, Rei Caspian? — ela quis saber, erguendo os olhos ao encontro dos dele.

Certo que já tinha reparado bem na figura de Caspian da primeira vez que o vira. Mas depois de colocado um fim na desconfiança que tinha dele, passara a enxergá-lo com outros olhos. Numa primeira impressão, Caspian lhe pareceu tão jovem e inexperiente para ocupar tal cargo num reino com aquelas dimensões. Agora, ele se voltara como o verdadeiro objeto de sua admiração; enfim, após Aslam ter-lhe aberto os olhos, Vitória colocou-se em seu lugar e, de pronto, lembrou-se do próprio pai, D. Manuel, que, apesar de reconhecido como rei, pouco pôde governar seu país.

Porém, quando Vitória deu por si já não pensava mais em nada. Perdera-se na profundidade daqueles olhos negros a lhe mirar. A voz confusa do rapaz soava longe, invitando-a a ouvi-lo.

— Senhorita, está me ouvindo? — ele a inquiriu.

— S-Sim! — A jovem portuguesa encabulou-se ao notar o quão idiota devia ter parecido ao desligar-se do mundo apenas ao mirar os olhos brilhantes dele.

— Disse que vamos para Cair Paravel — Caspian repetiu. Porém aquela fora a primeira vez que ela ouvia o nome daquele lugar. — As colinas ficarão pra trás em duas milhas. Logo entraremos na planície e, no final da tarde, estaremos em Cair Paravel, o lar dos antigos reis e rainhas de Nárnia.

— O lar dos antigos reis? — Vi repetiu. — O que aconteceu com eles? Eram seus parentes? Amigos?

Caspian sorriu, tratando de sanar as tais dúvidas da garota:

— Não. Não eram meus parentes e em nada tinham a ver com Telmar... — seguiu desviando da atenção dela. — Assim como você! E eram bravos também, assim como você, Vitória. — O elogio saíra sem querer.

A garota retribui o gesto, sorrindo, sem graça. — Eles vieram antes dos telmarinos?

— Sim, e chegaram aqui pelas mesmas vias que você... — Caspian ergueu um dedo em sua direção, explicando o tal fato —... pelo guarda-roupa do professor Kirke. Nessa época eu nem sequer era vivo. Conheço a histórias pelas lendas que meu tutor me contava...

O jovem rei seguiu contando a Vitória sobre a primeira vinda dos quatro reis: Susan, Peter, Edmund e Lucy. Contou-lhe também do modo como, ao lado de Aslam, eles venceram a Feiticeira Branca, levando a paz a Nárnia.

— Então eles foram embora — ele prosseguiu. — E nós, os telmarinos, nos aproveitamos de sua ausência e tomamos tudo, instaurando novamente a desgraça desse povo — disse mencionando discretamente aqueles que lhe seguia.

— Se houve uma primeira vinda, então houve uma segunda, não?

— Claro! — Caspian respondeu, passando as mãos pelo próprio rosto, pausando-as sobre a rara barba negra, hesitando por um instante em contá-la a história de como se tornara rei. — Eu os chamei. Sabe, assim como você mesma disse... — seguiu —... talvez eu seja um pouco interesseiro. Eu chamei os quatro reis apenas para salvar a minha própria pele! Eu corria perigo e eles me livraram do perigo — disse. — Ergueram a moral desse povo novamente, mais uma vez com a ajuda de Aslam. Então os reis regressaram ao mundo deles e agora eu tento consertar o pouco que falta para tudo voltar a ser como antes...

Sem graça pelas ofensas feitas a ele no dia anterior, Vitória tentou-lhe dizer algo, mas, quaisquer que fossem as palavras de conforto planejadas, estas não conseguiam lhe sair boca a fora. — Rei Caspian, não pense em si como alguém ruim...

— Eu não mereço esse trono na verdade, sabe? — o desabafo continuava. — Estou apenas revertendo o mal que meu próprio povo fez a eles. Alguns reis vêm pro bem, como Peter e os outros... Outros vêm pro mal, como o meu tio. E outros apenas ocupam espaço... Na verdade, ocupam um trono, assim como eu.

A jovem engoliu em seco, desconcertada. Toda aquela conversa sobre bons e maus monarcas conseguia deixá-la mais confusa e arrependida das besteiras que falara antes. — Então, os reis, eles eram ingleses? — decidiu dar outro rumo à conversa.

— Assim como você.

— Não! — Vi exclamou. — Lá só fiz nascer. Já lhe disse que não tenho sangue britânico.

“Que mal havia em ter sangue britânico?” — Caspian achou graça do súbito nervosismo dela.

— É verdade — ele falou. — Por um momento eu me esqueci. Pode, enfim, me dizer de onde é, senhorita?

— De certa forma sim — Vitória concordou, retardando os próprios passos, deixando Ripchip e os outros os ultrapassarem, fato que fez Caspian erguer uma sobrancelha, curioso. — É certo que nasci lá, e vivi em Fulwell Park até o presente momento. Mas meus pais não são de lá. Minha mãe é originária de um país chamado Alemanha. Sei que não conhece... — explicou. — Mas meu pai veio de um outro, e esse era o único lugar onde eu gostaria de estar.

— Não quer mais?— o rei perguntou, mas a garota não lhe respondeu. — Desistiu de ir para o tal país?

— É como eu lhe disse... Não adianta explicar, pois sua majestade não conhece minhas origens — desconversou. — Já estamos perto de... do tal lugar?

— Nos dê algumas horas, “senhorita de origens desconhecidas”.

Vitória sorriu em face do gracejo do outro. Em algum momento do dia anterior ela certamente se emburraria diante de tal brincadeira, mas Vi estava definitivamente gostando da companhia daquela gente, e, principalmente, da companhia daquele jovem rei.

Mais algumas horas de caminhada, mesmo que cansativas, bastaram para que, ao deixar as colinas para trás, adentrassem na planície, seguindo o curso do rio, a caminho de Cair Paravel. A tarde já se ia quando o pequeno Ripchip chamou Vitória num canto para lhe falar:

— Me desculpe incomodá-la, senhorita. — Durante uma das poucas paradas de descanso ele foi ter consigo.

— Olá, nobre cavaleiro! — ela o cumprimentou.

O roedor falante fez uma reverência em agradecimento. — Obrigado pela cordialidade, Srta. Vitória. — No entanto, logo uma pequena alfinetada foi feita: — Fico feliz que esteja de bom humor.

Ao invés de lhe dar as costas, ela sorriu. Sim, Vitória estava muito dada a risos naquele dia. — Estou feliz pela missão que me foi dada, senhor Ripchip! — falou.

— Eu tenho plena consciência do que possa ter acontecido... — ele dizia —... mas meus amigos aqui... — apontou pros outros —... estão confusos. Pra onde você e o nosso senhor estão nos levando? O que havemos de fazer quando “lá” chegar? Sei que a senhorita descobriu-se apaixonada, e - -!

Ripchip tentou terminar de falar, mas a voz de Vitória tornara-se aguda, interrompendo-o.

— Por quem?! — a nervosa perguntou. — Ora essa!

— Por Nárnia, senhorita! Apaixonada pelo nosso reino! — ele seguiu. — Por que mais haveria de ser?

— Por ninguém... Digo, por nada! — corrigiu-se. — Eu... Eu estive com o grande felino, sabe?

— O grande Aslam, a senhorita quer dizer.

— Sim... Sim! — ela sorriu. — Não conte a ninguém, mas ele me abriu os olhos, eu o vi e... de alguma forma eu não tive dúvidas quando ele me tocou a mão e... Havia uma canção... — De repente a musica que ouvira durante o sonho da noite passada lhe voltara ao ouvidos. — “Onde o céu e o mar se encontram...” — Vitória cantarolava pro pequeno guerreiro. — “Onde as ondas se- -“

—“... adoçam. Não duvide, Ripchip. No leste absoluto está tudo o que procura encontrar.”

— Essa mesma! — ela exclamou, feliz da vida. — Como conhece? Meu pai a cantava pra mim e...

— É uma antiga música narniana, senhorita — o rato explicou, confuso.

— Acho que não, pois meu pai não era narniano!

— As dríades, nossas árvores, cantavam essa canção. Se me permite perguntar... — ele seguiu. — Como se chamava o seu pai?

Por um instante a garota hesitou, mas não havia por que não contá-lo algo tão simples: — Manuel.

— Esse nome não me é conhecido... Nunca ouvimos falar de nenhum Manuel.

— Manuel de Bragança. Ele não era dado a fantasias! Tinha os pés no chão, assim como o meu avô e o avô dele. Chamavam-se Carlos e Luis! Homens antigos e religiosos... — ela tomara a palavra, recordando o que ouvira falar dos dois. — Diziam sempre: “Não há imperador maior que Deus!” — sorriu. — Às vezes chego a duvidar de toda essa fé e...

— Imperador? — Rip repetiu, assustado. — Disse imperador? Definitivamente a senhorita não disse “imperador.” — O animal parecia confuso ao se afastar dela.

“Sim eu disse e...”

Ele já havia se desvencilhado de sua atenção, acelerando os passos. A voz do roedor ficara pelo resto da tarde a lhe martelar o juízo. Teria o seu pai ou mais alguém que lhe cantava aquela música passado por Nárnia?

Aslam, talvez, soubesse a resposta para tamanha confusão, mas quando teria outra chance de lhe falar? Quando o tocaria novamente? Quando aquela bela praia se faria a sua volta, afinal? Quando saberia em qual momento deveria agir? Talvez quando sua mão voltasse a arder, mas ela já queimava desde antes do incidente à beira do riacho, na noite passada. Vi não gostava de relembrar aquele momento, ou de pensar no Rei Caspian daquela forma, mas naquele instante ele lhe pareceu um belo homem. Um tipo misterioso, mas ainda assim belo.

— Eis Cair Paravel... — A voz de Caspian chegara quase num sussurro aos seus ouvidos. Vitória desvencilhou-se das últimas árvores, seguindo pelo chão que mudava de aparência sob seus pés: o que era pedregoso agora dava lugar a uma areia branca, fina. Ao longe, o rio seguia pela foz mar adentro. Apesar do dia já ter-se ido, a água do litoral lhe parecia cristalina, quebrando em ondas de encontro à costa, a espuma branca tingindo a areia de marrom escuro.

Era uma bela paisagem, sem sombra de dúvidas.

— Veja! — o rei apontara para uma falésia ao longe. Os olhos da garota se perderam pela formação rochosa, vindo a fixar-se no topo desta onde jazia o que mais se parecia com as ruínas de um antigo castelo.

— Eles viviam lá? — ela quis saber e a resposta para sua pergunta veio silenciosa, num aceno positivo. — Mas são...

— Ruínas, eu sei — ele concordou. — Já faz muito tempo desde que eles moraram aqui.

Mesmo antes já estando ali, Caspian parecia maravilhado pelo contato com a mais pura história de Nárnia, e idem à Vitória, boquiaberta a mirar o antigo palácio.

— Vossa Majestade — ela lhe falou. — Eu estive aqui ontem... com Aslam.

— Eu sei — foi a resposta dele, mas por essa Vitória não esperava.

— Sabe? Eu não lhe contei de todo o meu sonho... Como sabe? — Vi era a confusão em pessoa. — Como você sabe disso, e como eu pude sonhar com um lugar que nunca vi na vida? — perguntou. — Há algo que não me querem contar? O senhor Rip estava estranho hoje à tarde e...

— E...? — Caspian jazia sereno, mirando-a.

— Quando cheguei aqui vocês mais pareciam estar à minha espera — a menina deduziu. — Fui bem tratada até quando os maltratei e- -

De súbito, Vitória engasgou-se com as próprias palavras. O ardor antes sentido na palma da mão voltara.

— O que houve, senhorita? — ele a indagou, assustado ao notá-la desviar a atenção do que dizia para a própria mão. — Por Aslam! O que está sentindo?

— Sim! — ela respondeu, sorridente, quando a brisa marítima lhe esvoaçou o vestido. — Por Aslam, mesmo!

O rei retribuiu o sorriso, tomando num impulso a mão dela por entre as suas. Não sabia o porquê de estar tão feliz por tê-la tão perto de si, partilhando aquele momento tão especial.

— Um dom lhe foi dado, e não há outro lugar melhor para ele se revelar, Vitória — disse muito próximo a ela, entorpecido por tamanha felicidade, nem sequer notando a voz de Ripchip que o chamava.

— Vossa Majestade! — o rato chamou pela terceira vez. — Há algo acontecendo lá em cima — disse, apontando em direção às ruínas de Cair Paravel. Por entre as poucas colunas que restaram da antiga varanda via-se uma estranha movimentação, como sombras ao redor de uma grande fogueira.

— Temos que subir até lá! — Caspian disse, afastando-se de Vitória. — Você fica aqui, senhorita — apontou-lhe. — Rip, fique com ela.

— Sim, senhor! — o pequeno o atendeu, ficando em guarda.

Vitória demorou alguns poucos segundos até entender o que se passava. Sua mão ainda ardia, e tamanho desconforto parecia aumentar conforme o rei e seus súditos se afastavam da foz do rio a caminho das ruínas sobre a falésia rochosa.

— Temos que ir, Sr. Rip! — ela voltou-se ao guerreiro. — Temos que ir com eles! — Num impulso a jovem lhe puxou pelo braço, fazendo-o se sobressaltar. Por um instante, o roedor perdeu-se nos próprios pensamentos, e, unicamente ao seu redor, uma música encheu o ar. Uma música já por ele bastante conhecida.

“... No Leste absoluto está tudo o que procura encontrar.”

— Menina Vitória! — O narniano estava atônito, perdido no conforto que aquele toque tão simples lhe fazia.

No segundo seguinte Vitória soltou-se dele, cessando com a bela música ouvida pelo pequenino. Porém, um outro som se fez. Este inclusive pudera ser ouvido pelos outros colegas já caminhando pelo litoral, ao longe. Era um uivo agudo de um coiote. Um uivo que, de tão próximo, atraiu instantaneamente a atenção da garota para a silhueta quadrúpede que se revelava de dentro da floresta.

— O-Olá! — ela tentou cumprimentá-lo, mas em resposta o animal apenas tornou a uivar, aproximando-se dela de forma arredia, arisca. — Podemos ajudá-lo, amigo?

— Senhorita Vitória... — Ripchip tomou a palavra, olhando de esguelha para o grupo que já subia pelas escadarias do palácio. — Ele não é um dos nossos, menina! Fique aqui - -

— Mas eu vou tocá-lo, Rip... Você vai ver!

De repente, o coiote revelou-se por completo. — É claro que não sou um de vocês — disse. — Sou um deles — mencionou as ruínas. — E já os avisei sobre a chegada de vocês.

— Viemos em paz... — ela seguiu, mirando agora a movimentação, que antes se fazia em meio às longínquas ruínas, sumir. — O que houve? Eles se foram?

— VÃO EMBORA! — o grito do bicho saíra num rosnado — Cair Paravel nos pertence. Pertence à nossa senhora, Jadis. Todos os narnianos que aqui vivem nos pertencem, e...

— Ora! — A jovem andava em sua direção, certa de que não corria nenhum perigo. — Venha até aqui!

Ripchip se adiantava para o pior.

— Não se aproxime dele, senhorita! — gritou, mas o lupino soube ser ágil como sua raça sempre lhe proporcionou ser. Agachou-se, preparando para atacá-la, e, quando a mão de Vitória tentou lhe tocar o rosto coberto de pêlos, este pulou sobre ela, trincando os dentes numa ameaça. Por pouco não fora atingida, mas tamanho medo a fez despencar no chão.

A situação logo se desfez. Vitória se pôs de pé, vendo agora Ripchip duelar com o bicho.

— Ripchip, pare! — ela gritava, implorando pela vida do animal desarmado. — Pare! Ele é como você, consegue se comunicar, por favor, pare!

Mas o rato não parou, seguindo em círculos ao redor do animal feroz que lhe mostrava os dentes.

— Vai morrer, sua ratazana — o desconhecido lhe ameaçava.

— Se eu quisesse, você já estaria morto! — o guerreiro retrucou. — Estou levando isso adiante apenas pela menina.

— Pois não leve! — foram as últimas palavras do algoz ao saltar na direção do súdito do rei. Um grito agudo de Vitória se fez, abafando o disparo de uma arma ao longe. A espada de Ripchip nem sequer chegara a ferir aquele que lhe atacara. Antes disso, Asterius, o minotauro, disparou sua besta contra o coiote, tirando-lhe a vida.

O grupo regressava das ruínas, de onde nada haviam encontrado além da brasa morta de uma fogueira recém apagada.

— Você o matou! — ela gritou, ajoelhando-se ao chão, ao lado do animal — O matou!

— Ele iria me matar, senhorita! — o rato tomou a palavra. — Meu amigo Asterius apenas me salvou e - -

— Ele era um de vocês — ela apontava para cada um deles. — Como puderam? Falam dos homens... dos telmarinos daquela aldeia, mas... mas matam aqueles que pensam de forma diferente? Matam seus próprios semelhantes?

Caspian deu ordem para que os súditos seguissem pela floresta. — Na praia seremos alvo fácil para eles — falou. — Passaremos a noite na floresta... Procurem o que comer.

— Rei Caspian! — Vitória choramingou, ainda ao chão. Caspian agachou-se ao seu lado, levantando-a em seguida e abraçando-a pelos ombros. — Podemos enterrá-lo? Podemos?

Nos olhos negros do jovem monarca havia a resposta. — Ele não está sozinho, Vitória — disse. — Temos que ir... Escute, posso parecer bastante frio em lhe dizer isso, mas há dois tipos de narnianos: os nossos e os deles. E não podemos confiar nos deles. Esses poucos animais que restaram conscientes querem controlar os outros e fazer deles armas de ataque contra nós, entende? Assim como um mau governante que incita um povo contra o outro, entende?

— Entendo... eu acho... — a garota concordou, acolhida entre os braços dele. Pensativo, Caspian afundou o rosto nas madeixas negras da menina, não se encontrando em tal gesto. Gostava de estar próximo dela e simpatizou consigo no instante em que a viu. Mas por quê?

— Aslam me informou da sua vinda — ele confessou, ainda agarrado a ela. — Quando soube que havia chegado, larguei os preparativos da viagem e corri até você. Senti-me muito mal ao notar a tosca imagem que havia lhe passado. Eu nunca quis que pensasse daquela forma de mim... ou do meu reino.

— Sabia de mim? — a voz de Vi ainda soava nervosa.

— Sabia — ele respondeu, afagando-lhe o cabelo. — Acalme-se, senhorita. Ainda há muito tempo para saber das devidas coisas...

— Há algo que precisa saber! — ela exclamou em meio ao choro. Ao longe, os súditos já iam floresta adentro mais parecendo ordenados a não olhar para trás. — O meu pai, ele... ele era como você.

— Como eu?

— Sou a herdeira de um trono, Caspian — foi a vez dela se confessar, afundada nos ombros dele. — Meu pai foi um rei, o último de sua linhagem.

— Isso é incrível... Se ele é rei, então...

— Sou quase uma princesa — disse, erguendo os olhos até os dele. — Ele morreu como rei, mas...

Mais uma vez, Vitória se viu perdida na escuridão dos olhos dele. Dessa vez, entretanto, tamanha confusão era recíproca. Caspian sentiu-se atordoado ao mirar os olhos castanhos da garota. Aquilo não lhe parecia errado, apenas não era o momento para uma mútua admiração. Ela chorava, tendo o rosto lavado por lágrimas e o jovem rei bem sabia que estas não vieram à tona somente por ter visto o coiote ser morto.

Vitória chorava, mas os motivos daquele desespero eram muito maiores do que aquele acontecido. — Ele passou grande parte de sua vida exilado na Inglaterra.

— Meu pai também não foi o mais livre dos reis... — ele ensaiou dizer, mas num impulso pousou as mãos na nuca de Vitória, que nem ao menos estranhou aquela súbita aproximação. Eles eram tão parecidos... Fechavam-se diante da agonia, tinham a mesma história a contar e ainda os mesmos temores a enfrentar...

Eram tão parecidos...

Tamanha confusão explodiu num contato mais intimo. Caspian a atraiu para si, invitando-a a um beijo simples. Seus lábios se tocaram pela primeira vez num contato lento, mas ainda assim fugaz. A barba do jovem monarca atritou-se contra o seu rosto, no exato momento em que os lábios dele capturaram os seus. Aos poucos a boca de Vi cedia à do rei, deixando que este a guiasse timidamente.

Pouco tempo se fez até que Vitória atinasse para o que se fazia ali, naquela praia. — “Estava se apaixonando pelo Rei Caspian?” — No segundo seguinte ela se soltou dele, mas, em vez de fugir daquele belo momento, voltou a abraçá-lo exatamente como fazia antes. A garota cerrava os olhos, implorando aos Céus para que não tivesse que acordar e descobrir que tudo aquilo não passava de um sonho.

Por um instante deixou-se perder na fragrância que emanava dele. Caspian cheirava tão bem... Não como a realeza, ou como o perfume masculino de seu antigo pretendente... Ele possuía um cheiro único e, definitivamente, não era inglês.

♦♦♦Continua♦♦♦


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Notas finais do capítulo

Olg'Austen



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