A Crónica de Vitória escrita por OlgAusten


Capítulo 3
Cap. 3: Orgulho e Preconceito




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Pela floresta de pinhais, um grupo formado por três telmarinos, dois narnianos e uma garota que não se encaixava em nenhum dos dois povos andava ao fim da tarde a caminho do Ermo do Lampião.

A garota, Vitória, pensava consigo, caminhando atrás dos demais: — Eles não podem me obrigar a ficar — discorria mentalmente. Decerto, eles não podiam. Vi então descartou a enorme gentileza e humildade do monarca em lhe pedir para ficar, implorando por sua ajuda diante do reino ainda virado de ponta cabeça... Mas, sem pensar duas vezes, a garota tomara a decisão de voltar para casa.

— Rei Caspian! — ela o chamou, acelerando os passos a fim de alcançá-lo.

— Sim, senhorita? — o rei, até então calado, lhe respondeu.

— Por que eles não são como os outros? — A curiosidade era maior que a ânsia por chegar logo ao guarda-roupa encantado.

— Eles? — o rei repetiu. — Eles quem?

— Por que alguns dos animais não são como o pequeno guerreiro ali na frente? — apontou para Ripchip — Porque é preciso que eles voltem a ser o que eram? Por quê?

— Há séculos os tratamos como simples animais, e hoje é só isso que são.

— Irracionais? — ela arriscou.

— Sim.

— De onde venho todos são irracionais...

Caspian cessou a caminhada, encarando-a. — Os primeiros Telmarinos, Srta. Vitória, vieram do mesmo mundo que o seu — disse. — Talvez, por pensarem tal como você, acabaram transformando todo esse maravilhoso reino na mais perfeita desordem.

— Do mesmo lugar que eu vim? — ela repetiu, ignorando a última apunhalada dele. — Twickenham?

— Não faço a mínima idéia — a voz grave do jovem rei lhe retrucou. — Assim como meu pai, nasci aqui.

Vitória ergueu uma sobrancelha. Agora era ela que o encarava, andando em círculos ao seu redor. — Onde aprendeu a falar desse jeito? — perguntou analisando o homem clinicamente.

— Que jeito?

— Esse-e jeito-o. — imitou-o. — Me parece que saiu da velha Londres, sua majestade!

— Senhorita Vitória... — ele sorriu. — Não sou desse lugar de que fala - -

— Como previ! — a garota exclamou apontando o dedo em riste. — Tem sangue britânico! Não importa o quão escuros sejam seus olhos, ou o quão liso e... — a garota perdeu-se nos dois pontos negros que a miravam, trocados, a acompanhar seu dedo acusador —... o quão liso e igualmente negro seja o seu cabelo...

— Sério que, em tão pouco tempo, já consegue me descrever dessa forma? — Caspian riu novamente.

— Não me engana — ela voltou a ignorá-lo. — É inglês! E nem banho deve tomar com freqüência.

— Se você diz, é porque conhece bem... Vem de lá, é um deles, não?

— Não. Sinto em lhe dizer que não, Sua Majestade... Lá só fiz nascer. Meu sangue é outro, e limpo.

— É? — Caspian ergueu uma sobrancelha, curioso. — E pode me dizer qual seria o seu sangue, senhorita Vitória?

— Bem... — ela hesitou. De pronto lhe veio à mente a imagem de seu pai, D. Manuel, figura que a levou também a pensar na mãe aflita. Se fazia meio dia que estava ali, com aquelas criaturas estranhas, acompanhada do jovem (e belo?) rei, sua mãe deveria estar uma pilha de nervos procurando por ela.

Para sua própria salvação, não precisou dizer mais nada a Caspian; avistou ao longe o Ermo do Lampião. — Chegamos! — gritou sem ao menos olhá-lo nos olhos, saindo-se veloz, correndo até clareira do guarda-roupa. Nem sequer olhou pra trás. Apenas seguiu até o sumidouro de onde havia surgido, desbravando os galhos de alguns pinheiros, tropeçando nas mesmas pedras em que mais cedo deixara pra trás, procurando pelos casacos que ali deveriam estar pendurados.

— Srta. Vitória? — um deles lhe gritou.

— O guarda-roupa não está aí? — Caspian perguntou, impaciente.

Não houve resposta. Um longo silêncio se fez e também igual apreensão por parte de quem esperava por um sinal de vida da garota, até que sua figura surgiu por entre os pinheiros, descontente, trazendo a expressão mais carregada que possuía. — Que brincadeira é essa? — bradou, indo na direção dos outros. — Rei Caspian! — Voltou-se ao mais jovem deles.

— Ainda não se foi? — ele a ironizou. — Estava com tanta pressa...

— Algum de vocês sumiu com o meu guarda-roupa! — Vitória perdera o bom senso, esbravejando contra o rapaz moreno. — EU PRECISO VOLTAR!

A expressão displicente do jovem rei mudara. — Seu guarda-roupa?! — Caspian foi de encontro a ela. — Aquele armário pertence, antes de ao Professor Kirke, a Nárnia! A Aslam, ora essa!

— Ele... — a voz da garota desnorteada, antes contundente, decaíra uma oitava. — Ele... sumiu... — Os olhos castanhos da herdeira dos Bragança encheram-se de lágrimas. — Que pesadelo horrível! — disse levando as mãos à cabeça. — Meu Deus! Estou enlouquecendo! Vocês todos são a pior alucinação que alguém pode ter!

— Olhe como fala, senhorita! — o rato se empertigou.

A jovem o ignorou, seguindo com as bobagens que lhe saíam boca a fora. — Um rato falante, centauros civilizados, castelos medievais... — deixara-se dizer, apontando para Caspian — e um rei interesseiro na mais tenra juventude! Quero ir embora!

Foi a vez do rei se sobressair, avançando contra ela, com o orgulho ferido:

— O que disse, senhorita?! — ele a inquiriu. — Se está enlouquecendo a culpa não é nossa! Mas ofender a mim...

— Sim, pois fez de tudo pra me manter aqui — disse. — Transformou-se numa outra pessoa quando tomei minha decisão de ir embora... com um ar descontente, traído... E agora, misteriosamente, o guarda-roupa some!

— Bem... — ele forçou um sorriso, afastando-se. — O dono do guarda-roupa faz o que bem quer com ele.

— Por Deus! Acabou de me dizer que aquele guarda-roupa não tinha dono! — ela seguiu a discussão. — Exijo falar com esse Aslam!

— As coisas não são tão simples assim, Vitória — Caspian falou, dando-lhe as costas, juntando-se ao grupo de espectadores. — Sinto muito, mas mesmo contra sua própria vontade, terá de ficar.

— E ajudá-los, não?! — Vitória disse, numa provocação. — Assim como Sua Majestade planejou, tanto me pediu.

— Se vai nos ajudar, eu já não sei... — ele murmurou. — Isso não está mais em minhas mãos!

A noite caíra enquanto o pequeno grupo ainda voltava a Telmar. O caminho havia se tornado longo à medida que a luz do sol se dissipava. Temendo os perigos com que podiam se deparar ao logo da trilha, os andarilhos decidiram cessar a caminhada, passando a noite por ali, decididos a voltar ao castelo ao nascer do sol.

— Dormiremos aqui... — Caspian ensaiou dizer, mas um burburinho da visitante lhe interrompeu:

— No chão? — ela choramingou.

— Dormiremos aqui, no chão — ele reafirmou. — Serei o primeiro a guardá-los. Descansem, pois amanhã Aslam nos mostrará o caminho.

— Se não se incomoda... — o pequeno Ripchip lhe falou —... renderei a guarda, Majestade.

O rei assentiu sem sorrir. Pensativo a coçar a barba, encostou-se numa pedra, vigiando o grupo que se preparava para dormir. Ripchip logo cochilava, pronto para em breve ocupar o posto vigilante do jovem rei. Os demais se reviravam, desconfortáveis com o chão batido sob eles. Vitória apenas se deitou, silenciosa, um tanto afastada daqueles que lhe acompanhavam, de costas para a distante figura do rei enfezado consigo.

Quando pensou em se levantar, impaciente, pronta pra enfrentar o caminho de volta ao Ermo (na esperança de que o velho guarda-roupa estivesse lá novamente), sentiu os olhos pesarem e seu corpo logo ceder ao profundo sono que lhe abatera.

“Onde o céu e o mar se encontram...”

Uma voz conhecida, grave e – ainda assim – suave, lhe despertou.

“Onde as ondas se adoçam...”

— Pai?! — Vitória se pôs de pé sobressaltada. Demorou a acreditar no que via: não havia a floresta de pinhais, obscura, à sua volta. Acima dela, somente a abóbada azulada do céu encontrando-se com as águas límpidas do mar, no horizonte... Estava sozinha, descalça a pisar na areia de uma praia desconhecida. Sim, estava numa praia.

“... Não duvide, menina Vitória...”

A voz cantante não sumira. Era o seu pai, tinha certeza disso. D. Manuel costumava lhe cantar aquela canção antes de dormir. Dizia que assim também fazia o pai dele quando encontrava tempo para velar o sono dos dois filhos meninos... A triste história dos herdeiros dos Bragança quase nunca era relembrada em sua casa. Ainda muito jovem, D. Manuel vira o pai e o irmão serem alvejados por membros da Carbonária, caindo sem vida a poucos metros de si, mas incrivelmente o conforto daquela canção conseguia fazê-lo recordar apenas os bons momentos que passara em família.

“... No Leste absoluto está tudo o que procura encontrar.”

— Quem está aí? — Vitória saiu em disparada, vagando sem rumo pela areia branca — Meu pai, é você?

— Menina Vitória... — uma outra voz firme lhe disse, mais próxima.

A garota engoliu em seco, dizendo pra si mesma que tudo aquilo devia tratar-se de um sonho. — Um sonho dentro de outro sonho, na verdade — repetia, mas ao girar os calcanhares acabou por se deparar com a última figura que esperava dar de caras: um leão, o rei dos animais, encarava-a com uma expressão doce no rosto emoldurado pela juba dourada, esvoaçando à brisa marítima.

Os sentidos lhe faltaram diante da imagem do grande animal falante.

— Sim, eu sou Aslam. — A estranha figura parecia conhecer suas dúvidas mais cativas. — E, não, você não está sonhando... Sabe por que vim pessoalmente lhe falar? — Ela não respondeu. — Porque precisamos de sua ajuda, Vi. Nasceu para servir e não se pode negar a própria natureza, menina.

— Aslam... — as palavras saíam difíceis, em face do poder e da aura límpida que circundava o guardião de Nárnia... Incrivelmente, não conseguia negar aquilo tudo a si mesma perante ele. — A missão de que o rei falou? Os animais esquecidos na floresta?

O leão ergueu uma das patas no ar, e logo ela o imitou. A mão delicada de Vitória uniu-se por entre as grandes garras retraídas de Aslam como num pacto. — Toque o coração deles, Vitória — ele disse. — Tamanho ceticismo não corria nas veias de seu pai... Não há porque correr nas suas.

— Meu pai?! — sua voz saiu abafada, contendo um choro. — Onde está o meu pai?

O leão não lhe respondeu.

— Não pode carregar uma dúvida que não existe. Teve certeza de seu destino no momento em que atravessou aquela cortina de casacos... — ele sorriu. — Não guarda mágoas do Morton, e a saudade que sente de casa é tão rara que se perde diante da paixão por tudo que enxerga aqui à sua volta.

— Me desculpe, Aslam- -!

— O nosso rei precisa de você, Vitória — Aslam seguiu, afastando-se. — Saia dessa redoma — disse-lhe, recuando os passos. — Ouça-me bem! Esse orgulho não condiz com o seu coração, menina Vitória.

“Ajude-os!” — A voz do leão ecoara em sua mente.

Num impulso, Vitória se pôs sentada no mesmo chão batido em que havia adormecido. — Foi um sonho? — ela se perguntou, mirando a própria mão. Esta queimava e, apesar de nada lhe parecer diferente, havia algo dentro de si – algo além daquela dormência – que lhe dava forças parar crer no que estava vivendo.

Na verdade, sentia-se apta para crer no jovem rapaz que havia ofendido mais cedo. O que fizera com Caspian foi, no mínimo, injusto... E, voltando-se ao grupo adormecido, procurou pela figura do rei vigilante, mas desse não havia o mínimo sinal. — Rei Caspian? — ela sussurrou, rolando os olhos ao redor. — Rei Caspian? — ela se pôs de pé, driblando os outros no chão, ainda procurando pelo monarca.

“Céus, todos dormindo e esse homem some!” — pensou, seguindo o único caminho a ser tomado por entre uns arbustos remexidos. Ao seguir por uma trilha de folhas secas, Vitória protegeu os olhos cansados da luz branca da lua, iluminando um riacho que cortava a propriedade da floresta. A água cintilava, ondulante, enchendo o ambiente com o ruído da corredeira. Ao erguer o olhar pela margem em que se encontrava, Vi se deparou com uma figura inusitada despindo o próprio tronco, a fim de banhar-se no pequeno ribeiro.

Era o rei Caspian num momento de intimidade, livrando-se da camisa simples cor de vinho, jogando-a em qualquer lugar, seguindo devagar até o leito do riacho, deixando molhar as calças curtas, brancas. Anunciar a própria chegada num momento daqueles se voltaria numa tremenda indelicadeza e continuar a observá-lo naquela ocasião, uma tamanha falta de escrúpulos, mas Vitória simplesmente não conseguia mover-se um único centímetro dali. Fixara o olhar na pele clara do rapaz, também banhada pela luz da lua (submergindo naquelas águas corredias) e dali não conseguiria sair tão cedo. Vitória não se encontrava em seus próprios pensamentos...

Caspian era um belo homem, jovem, mas se fosse por isso sentiria o mesmo pelo esquecido Morton. Porém, nem se o sobrinho de seu padrasto lhe aparecesse daquela forma, seminu, banhando-se em águas tão cristalinas, ela se sentiria daquela forma: entregue. Ela estava incrivelmente atraída pelo rei. O ar lhe faltava, a boca jazia seca conforme as gotas de água molhavam o tronco do rapaz, sumindo por entre o cós da calça já encharcada. Quando ele se serviu de um rápido mergulho, emergindo logo em seguida, jogando os cabelos negros para trás, trazendo consigo a barba também molhada, Vitória sentiu-se moralmente obrigada a comunicá-lo de o quão belo era quando observado à espreita.

Porém, em vez disso, ao forçar alguns passos até a margem, a garota o interrompeu, pigarreando a garganta, a fim de seguir com o primeiro intuito que teve ao acordar. — Hum, hum! — ela pediu um pouco de atenção, sem sucesso.

Caspian girou o corpo de volta à margem, de cabeça baixa, passando as mãos pelos cabelos negros a secá-los. Conforme saía do rio, a água escorria por todo o corpo esquio, contornando cada músculo firme, desenhando um belo traçado sobre a pele clara, morrendo no umbigo acima do cós da calça transparente. Vi prometeu a si mesma que desviaria os olhos das calças do homem, mas tamanha beleza simplesmente a invitava a uma mirada.

— Sua Majestade... — ela murmurou, para desgraça dele.

De pronto, Caspian ergueu os olhos a quem lhe pedia atenção. Ao se deparar com os castanhos dela pregados em si, tratou de colher a camisa do chão, usando-a para cobrir o pouco que pôde. A vergonha estava estampada no rosto vermelho, encabulado. — O que... O que faz aqui? — Ele tentava manter qualquer compostura. — Não viu que eu estava...?

— Tomando banho! Eu sei. Desculpe-me por chamá-lo de inglês — Vitória concluiu, tentando se focar no chão sob os próprios pés. — Eu só queria... só queria pedir desculpas.

— Desculpas? — o rei perguntou. — Desculpas por quê? Você quer ir pra casa, que mal há nisso? Apenas não precisava ter sido tão...

— Grosseira — ela tornou a interrompê-lo. — Me perdoe. Vou me desculpar com os outros também, mas eu quero que saiba que... — Vi respirou fundo, finalmente mirando-o — Talvez eu não precise ir pra casa. Talvez... Talvez Aslam...

O rei ficou boquiaberto. — Aslam? — ele repetiu.

— Sim, aquele leão.

— Como sabe que ele tem a forma de um leão?

— Não sei como. Só sei — a herdeira dos Bragança discorria, focando-se numa gota d’água vã, pendente na ponta do nariz do jovem rei. —... Talvez ele tenha realmente algo especial para mim... E, talvez... — numa força maior, ela deixou-se levar, erguendo a mão até o rosto molhado do rei, agilmente estancando o furtivo pingo d’agua. — Essa também pode ser a minha casa, não?

Caspian se assustara com o gesto rápido, mas seguiu, concordando. — Acredito que sim, senhorita Vitória...

— Sim, tenho que confessar que me sinto em casa! — ela apressou-se, dando-lhe as costas — Boa noite, Sua Majestade.

♦♦♦Continua♦♦♦


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Notas finais do capítulo

Olg'Austen



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