Crônicas da Estante: A Caravana da Esperança escrita por Goldfield


Capítulo 3
Mundo, vasto mundo: A queda da estante parece sem fundo, e isso é rima – não consolo




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Capítulo II

“Mundo, vasto mundo: A queda da estante parece sem fundo, e isso é rima – não consolo”

A ele agradava muito um novo morador na cômoda, principalmente sendo mulher.

Vivera o suficiente para saber que o mundo dos gigantes humanos era perigoso demais a um brinquedo solitário, e ter parceiros – fosse na linha de montagem da fábrica, na loja ou na casa de quem o comprasse – era importantíssimo para não acabar se tornando uma pilha de peças de plástico abandonada.

Daí vinha seu maior medo: acabar sozinho. E vivera experiências traumáticas o bastante, em sua trajetória até ali, para justificá-lo.

Sua fabricação fora algo longe do isolamento. Montado, pintado e embalado com centenas de outros clones seus, uns mais simpáticos que outros, não sentira nada próximo de solidão por mais tempo do que julgara ser possível. Ele, uma autêntica réplica de “Sub-Man, O Vingador”, com seu uniforme collant preto; luvas, botas e cinto de utilidades amarelos; as inscrições “S” e M” também em dourado estampadas no peito e os óculos escuros dando o perfeito toque à cabeça de cabelos castanhos, só faltando o acessório ser removível para que a figure fosse perfeita.

Até mesmo dentro do caminhão, levado para ser distribuído, tivera a companhia de algumas de suas cópias e outros personagens da saga em que era baseado, como a bela Mulher Atômica, primeira fêmea a abalar suas articulações da cintura (e cujas curvas faziam-no questionar se era mesmo uma action figure destinada a crianças), e o vilão Doutor Toxinian, esculpido com seu jaleco apertado em torno do tronco com a intenção clara de remeter a uma camisa de força, além da aterradora máscara de gás. Na carreta do veículo, embora imersos na escuridão, possuíam a vantagem de poder conversar o quanto quisessem dentro de suas embalagens, além de realizar os poucos movimentos que as prisões de plástico permitiam.

Perdera a noção do tempo quando as portas do compartimento foram abertas – a luz do sol ofuscando seus olhos e esquentando seu leito mais do que queria – e um gigante de macacão e boné apanhou a caixa em que estava, junto com muitos outros colegas seus, levando-os para seu lar provisório. Por estar no topo de uma das pilhas de embalagens, próximo da abertura da caixa, foi agraciado com a visão da fachada do estabelecimento: uma conhecida franquia de lojas de departamento. Moldou os lábios num sorriso o máximo que o material de sua cabeça permitiu, afastando os temores fúteis que tinha até então: não ser um item original, acabar exposto na vitrine de uma loja de quinta categoria. Atualmente achava ridículas tais preocupações. Dentro em pouco ele descobriria o verdadeiro medo, o que de fato poderia ameaçar a frágil existência de um boneco como ele.

De início, no alto da prateleira da seção de brinquedos, tudo era orgulho e ostentação. Meninos de família rica, ou pelo menos de classe média alta, vinham com seus pais passear na loja e erguiam olhinhos e mãozinhas desejosos em sua direção, querendo um Sub-Man para brincar, encenar as mais eletrizantes aventuras que o personagem vivia nos quadrinhos e desenhos animados. Muitas vezes eram atendidos, e algum de seus gêmeos ia embora com o novo dono. Em outras, os pais negavam o mimo e os garotos reagiam de modo diverso, seja concordando com acenos conformados da cabeça a berreiros repletos de lágrimas e gritos de “Eu quero!”. Ele permanecia em exposição, perguntando-se quando sua hora chegaria, e como seria a criança que o compraria. Era razoável pensar que o trataria bem, por ser um item caro... mas também temia ser judiado, desmontado, largado de qualquer jeito em algum canto ou embaixo de um móvel de uma casa que nem sabia qual seria...

Olhando em retrospecto, agora também achava esse receio irrelevante. O pior ainda estava por vir.

O dia chegou. Quando restavam poucos Sub-Mans além dele na prateleira, uma mãe vestida de modo elegante conduzindo um menininho loiro pela mão deteve-se diante dos bonecos. Segundos de ansiedade transcorreram, tornando-se horas para aquelas action figures não só por proporção devido ao seu tamanho reduzido. Os olhos da criança percorreram a estante metálica, detiveram-se por alguns instantes numa Mulher Atômica... quando então passaram para ele.

O menino ergueu um dedo em sua direção; e o boneco teve vontade de corresponder, se pudesse, erguendo também um indicador para encontrar a mão do gigante, de modo similar à pintura de um tal “Michelangelo” retratada na caixa de um quebra-cabeças na prateleira em frente à que estava. Diziam que o velho barbudo na imagem era Deus. Pois bem: aquela criança tinha agora o poder de definir seu destino assim como o Deus em que os humanos acreditavam.

“Mãe, leva ele, leva ele!” – o tom do pedido manhoso do menino era mais imperativo do que interrogação.

Bufando, a senhora estendeu uma das mãos de unhas pintadas até sua caixa... e o mundo girou quando ela conduziu-o e soltou-o dentro da cestinha de compras que carregava com o outro braço. A embalagem pousou de costas, ele encarando o teto da loja conforme era levado no recipiente como um verdadeiro rei em sua liteira.

Finalmente, finalmente!

Volta e meia o menino segurava com a mão uma das bordas da cesta e estendia a outra para apanhá-lo, os olhos demonstrando nítida intenção de rasgar seu invólucro para poder pegar em seu plástico; mover seus braços, pernas e cabeça conforme a lista de setenta e duas posições diferentes que a embalagem prometia. A mãe, no entanto, o impedia irritada, chegando até mesmo a dar tapinhas em seu punho – ao que o enjoado filho replicava com uma ameaça de choro tão fugaz quanto produtos em liquidação. Nada disso, todavia, conseguia irritar Sub-Man. Ele estava indo para um novo lar, pertencer a um baú de brinquedos de uma criança com pais abastados. Teria novos colegas, novas experiências... em suma, uma nova vida.

Só que a expressão preocupada da mãe o deixava inseguro, e acreditava estar relacionada à postura irredutível de não deixar o filho abrir sua embalagem. Várias vezes ela fitou, mordendo os lábios, a etiqueta com o preço colada sobre um dos cantos do plástico transparente, invisível ao brinquedo dentro dele. Ele sabia não ser um item muito barato, mas o valor era de assustá-la assim? Pelas roupas era uma mulher rica, afinal de contas!

Mãe e filho adentraram o corredor labiríntico em que tinha início a fila até os caixas, e a terrível peça que o destino tinha guardado para ele começou a se desenhar. Passando pelas prateleiras de salgadinhos, chocolates, sucos e outras guloseimas que rodeavam o caminho para fora do estabelecimento como estratégia para que os clientes gastassem ainda mais antes de alcançarem os caixas, a mãe em certo momento parou, checando a carteira. A cesta permaneceu pendurada num de seus braços, e o ângulo de visão permitiu a Sub-Man ver a mulher balançar negativamente a cabeça, numa expressão triste.

“Sinto muito, filho, mas ele vai ter que ficar...”.

Se ele tivesse um coração que bombeasse plástico líquido, cola quente ou qualquer outra substância através dos espaços ocos de seu corpo, aquelas palavras sem dúvida teriam entrado nele para sempre. Não que ele as houvesse esquecido; sua memória de brinquedo, em qualquer ponto de sua estrutura em que estivesse localizada, houvera mesmo assim gravado tal sentença – para seu infortúnio. De dia ou à noite, quando tinha de permanecer estático na presença de seu atual dono, elas ainda ecoavam no mais profundo de sua alma. Um aviso quanto ao que realmente tinha de temer, a legítima desolação de um brinquedo naquele mundo.

O menino esperneou, chorou, berrou – a mãe precisando novamente dar-lhe uns tapas, agora na bunda. Acabou que a teimosia da criança não deu frutos, Sub-Man confirmando uma das coisas que primeiro aprendera ao sair da fábrica: o dinheiro define quem e o que um brinquedo encontrará em sua jornada. A mão da mulher tornou a pegar a embalagem, tirando-a do cesto ao qual o boneco já começara a se apegar... e depositou-a, de pé, no alto de uma das prateleiras junto à fila do caixa.

Sim, aquilo era permitido, e até corriqueiro, em lojas de departamento. Caso o freguês quisesse deixar uma mercadoria para trás por falta de dinheiro ou mudança de ideia, poderia colocá-la nas estantes do caminho até o caixa para que mais tarde um funcionário a retornasse à sua devida seção. E lá ficou Sub-Man, entre embalagens de salgadinho e bolinhos com recheio, não muito distante de uma chapinha para cabelo também abandonada ali... mas a metros e mais metros da área de brinquedos – o que, para o tamanho de uma action figure, correspondia a alguns quilômetros...

...que não poderia percorrer.

De início tentou manter-se calmo. Logo alguém viria apanhá-lo e levá-lo de volta à prateleira com os outros Sub-Mans e bonecos da saga. Não era uma bagatela para ficar exposto ali, num lugar tão indigno quanto a fila dos caixas! Pessoas e mais pessoas, das mais variadas idades e aspectos, atravessaram o corredor, trazendo cestas abarrotadas ou vazias, em alguns casos com apenas um ou dois produtos carregados nas mãos. Entre elas houve frequentes crianças, que lançavam sobre ele olhares esperançosos, alguns até de sonho realizado – para sempre receberem uma negativa verbal ou gestual por parte dos pais. Passaram-se minutos, horas...

E Sub-Man lá ficou, tendo somente guloseimas como companhia. Não falavam, não se expressavam de qualquer modo. Um mundo mudo. Um mundo em que estava sozinho.

O tempo correu, parecendo uma eternidade mesmo a alguém que, feito de plástico, levava mais de cem anos para se decompor na natureza. A loja se esvaziou, as luzes foram apagadas... e Sub-Man permaneceu na prateleira em que se sentia um alienígena – solitário, esquecido. Imerso nas trevas e preso ao pouco espaço da embalagem plástica, foi atormentado pelos piores pensamentos, submetido a uma primeira sessão de “mas ele vai ter que ficar...” reverberando em sua cabeça a ponto de julgar que ela derreteria. Achava-se um lixo, algo a ser descartado. De brinquedo de ricos, o orgulho lhe fora esmigalhado para agora se enxergar como um pedaço inútil de PVC, tão importante quanto um inseto que os humanos não pensam duas vezes antes de esmagar quando encontram no chão.

Veio o dia seguinte, e nem a arrumação rotineira feita pelos funcionários antes de a loja abrir lhe deu alento. Ninguém veio colocá-lo no lugar; na verdade ninguém pareceu sequer perceber que estava na prateleira errada. O estabelecimento abriu e o fluxo de compradores recomeçou, a primeira fila até os caixas se formando... e a peregrinação de pessoas que simplesmente o ignoravam também se repetiu. Até o número de crianças se interessando para depois serem desencantadas pelos pais diminuiu – o sentimento de impotência, de inércia, aumentou de maneira considerável. As diversas estantes separando aquele corredor da seção de brinquedos o impediam de ter sequer um vislumbre dos antigos colegas, contribuindo para aumentar a sensação de ter se tornado o único no mundo.

Já no final daquela tarde ele sentiu os primeiros sintomas, as articulações raspando quando tentava realizar limitados movimentos no interior da embalagem. Veio mais uma noite de desespero, e na manhã seguinte a tendência se intensificou, os braços e pernas agora travando, não obedecendo sempre aos seus comandos...

O abandono – única coisa capaz de dizimar a alma de um brinquedo, torná-lo uma estrutura morta – começava a se abater sobre ele.

Não sabia o que fazer, a quem recorrer. Mesmo se as amarradas de arame no interior da embalagem o possibilitassem, rasgar o plástico que o lacrava e tentar andar de volta à prateleira original só chamaria a atenção dos humanos de uma maneira a comprometer todos os brinquedos – e ele aprendera bem as regras fundamentais. A amarga opção disponível era esperar, confiar que alguma criança o desejaria e teria um pai ou mãe compreensível o bastante – tanto para com o filho quanto para com ele – para levá-lo e libertá-lo das garras do esquecimento. Não queria ter seu fim ali, em meio a salgadinhos gordurosos que eram o pesadelo de tantas figures quando crianças as pegavam tendo as mãos sujas deles. Se ao menos pudesse ter uma existência longa e tranquila sob os cuidados de um garoto sereno, que cuidasse bem dele; e depois de seu filho com a mesma personalidade, em seguida o neto...

Perdeu a conta de quantos dias haviam se passado, as luzes se alternando entre acesas e apagadas sem que pudesse determinar a duração de cada estado – perdendo a consciência numa espécie de sono com frequência e prolongamento cada vez maiores. Mal podia mais se mexer, os membros e cabeça estagnados, destinados à imobilidade eterna devido à falta de afeto para consigo...

...e ele surgiu.

Sub-Man nunca vira um humano como ele, cujo aspecto misturava uma criança com um adulto – a primeira no caráter e o segundo na aparência. Vestia camiseta com estampa de um personagem de games, um colar metálico com o emblema de uma conhecida saga de fantasia espacial no pescoço. Era jovem, mas não tanto quanto achava que uma pessoa com gosto para quadrinhos e super-heróis deveria ser. O boneco viu-se confuso diante de sua figura – ainda mais quando o gigante, olhar fixo na embalagem, apanhou-a com ambas as mãos, extremamente decidido. Viera ali só por ele, e o levaria consigo sem pensar duas vezes. Nos primeiros minutos a ser carregado por aquele indivíduo, a figure já sentiu seus movimentos voltarem, e todo o letárgico sono a abandonar.

Como o boneco descobriu pouco mais tarde, aquele ser era um “nerd”, a espécie de adultos que colecionavam brinquedos por prazer, principalmente os de seu tipo. Um nerd chamado Victor, a quem estaria eternamente agradecido. O verdadeiro “Deus”, remetendo mais uma vez à pintura de Michelangelo no quebra-cabeças, que lhe devolvera o sopro da vida.

A vida na casa do novo dono, nos últimos meses, fora tudo que poderia um dia ter desejado. O rapaz era um ávido colecionador de action figures e gastava quase todas as suas economias com o hobby, não faltando companhia a Sub-Man. Encontrou até um boneco de Jack Red Kid, um dos aliados do super-herói em seu cânone, e sem demora criaram amizade tal qual nos quadrinhos. Além de outras réplicas de heróis, havia uma diversidade de bonecas japonesas representando personagens de animes e games, e o boneco antes abandonado também começou a trabalhar a possibilidade de um dia ter seu próprio harém, estimulado pelos mesmos calores que antes sentia na presença da Mulher Atômica. Era quase sempre rejeitado, principalmente por Mei Feng, a lutadora de kung-fu que frequentemente lhe distribuía sopapos quando Victor não estava em casa – e tinha de obedecer às ordens de Amika, a piloto de mecha que ganhara o papel de líder na cômoda por ser a “queridinha” do humano.

Mesmo com esses revezes, Sub-Man vivia tranquilo, manuseado com todo cuidado por Victor e sendo limpo do pó uma vez por semana, certo de que jamais tornaria a experimentar a mesma sensação de abandono e morte encarada na prateleira do corredor dos caixas. Agora tinha parceiros, estava imerso em verdadeira comunidade, na qual todos cuidavam de todos...

E eis que, naquela tarde ensolarada, haviam acabado de ganhar mais uma colega.

X - X - X

Tão logo a porta do quarto se fechou, os bonecos retomaram seus movimentos, como se tivessem mecanismos de corda acionados todos simultaneamente. Sub-Man, aproximando-se junto com as demais figures da Wonder Select, logo tomou parte no círculo de curiosos que se formou em torno da nova moradora. Assim como os outros, ele assistira à abertura de sua embalagem por Victor, e lera seu nome na caixa. Boudica, uma guerreira mística de algum game. Os cabelos ruivos segmentados em pequenas articulações de imediato chamaram sua atenção, assim como o rosto pintado e as partes de seu corpo de pele clara expostas. Linda, sem dúvida alguma – e uma boneca a mais na estante significava mais chances de conseguir alguém para si. Suas juntas se dilataram de esperança, questionando-se em seguida a respeito da raiz daqueles seus sentimentos. Seria também medo de acabar sozinho, assim como na prateleira da loja... ou algo mais?

A figure permaneceu estática por alguns instantes, criando expectativa em todos os brinquedos ao seu redor... para só então começar a se mexer – e a aglomeração que a circundava não pareceu fazê-la se sentir bem-vinda. A boneca se encolheu numa posição de puro pânico, ajoelhando-se e retraindo os braços num esforço das articulações que quase fez com que um pino visível num de seus cotovelos se partisse. Baixou a cabeça e escondeu a face entre as mãos, tremendo como Sub-Man jamais vira um boneco tremer.

Alguns dos habitantes da cômoda afastaram-se receosos, soltando exclamações preocupadas enquanto tentavam compreender o que se passava com Boudica, mais valiosa e bem esculpida do que qualquer outra peça daquela coleção para se sentir intimidada daquela maneira. Sub-Man também recuou, achando que a desmedida atitude podia ser fruto de um susto da boneca quando se viu cercada por toda aquela multidão... apenas Amika permanecendo próxima à guerreira, braços cruzados e olhos fixos nela com uma crescente expressão sádica no rosto.

O que essa arrogante está querendo fazer?

Boudica continuou nervosa, a ponto de quase se jogar sobre a superfície de madeira da estante na imitação mais próxima do choro humano que Sub-Man já vira num brinquedo. Amika continuava impassível; e o que ela falou em seguida, mesmo tendo um conteúdo reconfortante, veio num tom frio como cola-tudo guardado na geladeira:

– Fique calma. Está a salvo aqui, nós não iremos machucá-la. Foi comprada por aquele humano, chamado Victor, e agora faz parte desta coleção de bonecos. Não se preocupe em ficar imóvel, também: enquanto ele estiver fora, podemos nos mexer à vontade.

Ainda ajoelhada e pendendo para o lado, a guerreira ao menos se endireitou, retirando a seguir lentamente as mãos da frente do rosto, para permitir que o contemplassem. Os olhos verdes, desenhados em estilo mangá, eram bem maiores que os de bonecas normais, além de muito mais atraentes. Só havia algo de muito incômodo em seu semblante. Um ar triste, confuso. Quase enlouquecido.

Os bonecos mantinham a roda agora mais aberta em torno da personagem, estáticos como se houvesse um humano no quarto que os deixara naquela posição. Boudica ergueu a cabeça para Amika, que aparentava fazer esforço para parecer simpática, e afirmou numa voz melodiosa, um pouco arranhada por seus soluços:

– Eu fui alertada por um companheiro também preso a este tamanho, quando despertei na imensa caverna de luz e ferro frio que julguei ser Avalon, que não deveria me mover ou falar na presença desses gigantes. De início pensei serem os monstros das canções dos ébrios e de que nos falavam os druidas, como Cormoran, que construiu uma ilha inteira empilhando pedras na Cornuália, ou Finn MacCool, pavimentando sua Calçada dos Gigantes entre a Irlanda e a Escócia para desafiar outro ser colossal do lado oposto do mar. Mas, de tanto ser manuseada nas mãos desses seres, notei que eles são como mortais comuns... e que nós é que fomos reduzidos e convertidos em marionetes, estátuas assustadoras, feitas desta madeira estranha que ao mesmo tempo não se parece com madeira alguma.

Ela fez uma pausa, encarando os demais brinquedos com um olhar duro, antes de continuar:

– Não sei como vim parar aqui, neste pesadelo onde tudo é tão grande e tão estranho. Talvez a música de Caer Ibormeith tenha chegado aos meus ouvidos e eu esteja enfeitiçada num sono terrível. Tenho de acordar, tenho de proteger meu povo! Os romanos precisam pagar pelo que fizeram às minhas filhas, pela maneira como se apropriam do espólio de meu amado esposo e soberano! Nós nos preparávamos para atacar Londinium quando adormeci... e fui afastada de minha sina por interferência dos deuses!

Por fim acrescentou, numa legítima súplica:

– Precisam me ajudar!

Os bonecos se entreolharam em profunda dúvida, mas Sub-Man compreendeu perfeitamente o que acontecia – tomado pela pena. O sentimento se converteu em raiva quando tornou a olhar para Amika, ainda de pé junto à guerreira, e viu brotar um sorriso no rosto plástico da boneca, unindo alívio e satisfação.

– Uma iludida... – a piloto de mecha acabou desabafando num suspiro, sendo fitada pela face tremendamente confusa de Boudica. – Tanto temor... e ela é do tipo iludido.

Profundo silêncio predominou em seguida no alto da cômoda, o mistério sobre a figura da nova moradora sendo desvendado e assimilado pelas pequenas cabeças daqueles bonecos... ou, talvez, apenas começando a ser revelado.

CONTINUA...


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Notas finais do capítulo

Notas do capítulo:

— Com as primeiras falas de Boudica, vêm as primeiras referências à cultura celta. Quanto a quem é essa guerreira e qual é sua história de vida, isso será explicado aos poucos na história, porém seguem alguns termos presentes neste capítulo que podem ter soado estranhos:

Avalon – A “Ilha dos Abençoados”, uma espécie de “Paraíso” na mitologia celta, muito presente na lenda do Rei Arthur – para onde ele teria sido levado moribundo e da qual voltará um dia para governar seu povo, de acordo com algumas versões.

Cormoran – Gigante que teria empilhado granito branco ao sul da Cornuália (Inglaterra) para criar a ilha onde está o Monte Saint Michael. Teria sido ajudado por sua esposa gigante, Cormelian, que carregou as pedras no avental. Aparece no conto de fadas “Jack, o Matador de Gigantes”, em que é morto pelo personagem-título.

Finn MacCool – Lendário gigante irlandês que teria empilhado pedras para criar a “Calçada dos Gigantes” (uma área de colunas intercaladas de basalto que realmente existe na Irlanda do Norte) para atravessar o mar e chegar à Escócia, onde outro gigante chamado Benandonner o havia desafiado. Mesmo construindo a ponte, Finn acha o adversário grande demais e volta correndo, pedindo que sua esposa o disfarce como bebê. Quando Benandonner atravessa a ponte e encontra a giganta com o marido disfarçado, fica assustado com o tamanho da criança e deduz que o pai deve ser muito maior, voltando pela passagem e a destruindo depois de passar para que Finn não pudesse segui-lo.

Caer Ibormeith – Divindade celta relacionada ao sono e aos sonhos. Podia se converter num cisne e seu canto, quando ouvido, fazia dormir por três dias e três noites.

Londinium – Nome do antigo assentamento romano na Bretanha, mais tarde a cidade de Londres.



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