Crônicas da Estante: A Caravana da Esperança escrita por Goldfield


Capítulo 2
Espelho, espelho meu: existe plástico mais bem feito do que o meu?




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Capítulo I

“Espelho, espelho meu: existe plástico mais bem feito do que o meu?”

Ela cruzou os braços, impaciente.

A um observador brinquedo (já que, se houvesse um humano na casa naquele momento, os bonecos sobre a cômoda jamais estariam se mexendo), a esguia action figure importada de cabelos róseos pareceria tão ansiosa quanto seus colegas. Era, por sinal, a peça da coleção melhor capaz de demonstrar o que sentia pelo corpo, já que sua detalhada estrutura de plástico possuía articulações redondas até mesmo nas mechas dos cabelos – recurso frequentemente utilizado por alguns dos brinquedos para erguer uma franja de cada lado de sua cabeça de modo a parecerem chifres; o que, na opinião deles, refletia a verdadeira personalidade da boneca.

Vermes insolentes...

Os invejosos conseguiam zombar até mesmo de sua abundância de pinos de articulação, o que na verdade apresentava-se como sua melhor qualidade. Ela era uma MoveTech Kyoto, afinal de contas, e todas as peças produzidas pela empresa eram conhecidas pela ampla capacidade de movimentos – o que as tornava bastante visadas no mercado de colecionáveis, mesmo sendo caras. A suavidade das feições, lembrando fielmente os personagens de anime e games em que eram baseadas, também constituía atrativo particular – sem contar o resto do cuidado com que cada unidade era esculpida, daí o fato de saírem em edições limitadas que elevavam seu preço ainda mais.

Todos esses atributos faziam com que, desde sua chegada àquela coleção um ano antes, fosse a rainha daquela estante. Amika Lardner Seibukan, em seu imponente uniforme branco bem colado ao corpo assim como no anime, com a justificativa de ser selado a vácuo – ressaltando o formato de seu busto e nádegas devido à conhecida perversão dos otakus japoneses. A roupa lembrava um traje de astronauta sem o capacete, com listras negras nos braços e pernas e a inscrição “04” numa protuberância às suas costas que lembrava uma mochila – compartimento com dois orifícios que, no anime, servia para ser inserido o cabo neural conectado diretamente à sua medula que estabelecia conexão entre seu sistema nervoso e o robô gigante.

Amika Lardner Seibukan, piloto do ANGEL-04. A queridinha dos fãs, a garota mais badass de toda a história da animação japonesa; razão pela qual muitos marmanjos ainda baixavam Lightning Mecha Heaven de fansubs nostálgicos na Internet, mesmo com seu final abstrato usando preceitos da filosofia hegeliana com a profundidade de uma colher.

Mas, no caso daquela estante, uma piloto sem seu robô.

Não que os japoneses não houvessem lançado uma unidade baseada em seu mecha do tamanho perfeito para que ela fosse inserida no cockpit, a peça toda tendo mais de um metro e setenta de altura – além de custar horrores e só ser encontrada em lojas obscuras de Tóquio onde só indo pessoalmente adquirir o produto para que o custo-benefício valesse a pena. Mas, mesmo sem sua arma de combate, a imponência de Amika entre os seres inferiores daquela cômoda jamais fora contestada. Ela era a mais linda, a mais versátil, a preferida para poses nas fotos da coleção postadas no Instagram, a mais manuseada pelo dono e cuja poeira ele tirava com maior cuidado e dedicação nos finais de semana, usando uma flanela especial que poderia muito bem lhe servir como manto de realeza...

Até aquela tarde. Aquela angustiante tarde em que seu sonho via-se ameaçado como jamais fora.

Era patético observar a empolgação dos demais bonecos, tornando evidente a ralé solícita que jamais deixariam de ser, aplaudindo a mudança de um soberano para outro na cômoda sem sequer questionar os méritos de cada um. Os super-heróis da Wonder Select cochichavam entre si sobre a encomenda, de certo imaginando se a conseguiriam seduzir com seus músculos e abdomens-tanquinho – algo que jamais tinham logrado com Amika. O boneco do Sub-Man era o mais assanhado, e sabia de reclamações sobre ele por parte das demais bonecas da estante; não que já houvesse tido a audácia de tentar algo com ela.

As colegas, por sinal, também se encontravam eufóricas, sem dar conta de que nenhuma delas se igualaria à nova moradora depois que ela fosse desempacotada – o que a Amika era imbecilidade ou simples falta de amor próprio. Nem mesmo Mei Feng, a única que em algumas poucas ocasiões chegara perto de ameaçar seu reinado devido aos trajes bonitinhos e às muitas articulações para montar suas poses de lutadora de kung-fu, seria párea para o que viria.

Agitada, Amika passou uma das mãos dobráveis sobre a cabeleira rosa, tentando a todo custo mudar a pose para algo mais natural, digno de sua classe. A verdade, todavia, era que pela primeira vez desde sua chegada àquela estante, via-se tomada por um sentimento presente em bonecos que nunca a afligira: medo.

Sendo essa por sinal uma impressão que não provocavam, os mortos-vivos da pequena coleção Zombie Frenzy! balançavam seus braços esqueléticos como crianças levadas – e um dos membros, pertencente a um zumbi com roupa de policial, acabou se desencaixando do ombro do boneco, restando a ele contar com a ajuda dos amigos para reinseri-lo ou aguardar a volta do dono para resolver o problema – já que o calor vinha dilatando as peças e elas se desprenderem por acidente não constituía algo raro. Amika já aprendera que o verão no Brasil era uma época tranquila para os brinquedos, que podiam se movimentar com mais liberdade e encenar quedas ou desmontes quando necessário sem causar muita suspeita nos humanos... embora ficar com as peças molengas não fosse lá algo que gostasse.

– Eu ouvi falar que ela vem com duas espadas... – a voz aguda e irritante devia vir de algum dos gashapons à beira da cômoda, os nanicos que constituíam seus menores moradores; e não faltava a Amika vontade de empurrá-los da beirada para que se desfizessem em pedaços lá embaixo.

– A fidelidade ao game é incrível, parece que os polígonos viraram plástico e saíram pela tela da TV... – um tom masculino emendou, aparentando pertencer a Jack Red Kid, cow-boy mutante parceiro do Sub-Man.

Traíras. Bonecos vendidos... – mesmo com os pensamentos nefastos, Amika conservava as articulações retesadas enquanto encenava uma das poses demonstradas na caixa em que viera, visível do alto do guarda-roupa no lado oposto do quarto. Seria bom se o dono houvesse trocado seu rosto antes de sair, encaixando nela a face sorridente, o que tornaria mais fácil seu disfarce. – Não valem mais que bugigangas de 1,99...

Súbito, veio o som da porta da casa se abrindo, ali audível graças à janela aberta – um recurso de que o dono deles aparentava fazer uso de propósito para que soubessem quando deveriam se manter estáticos, visto que a porta do quarto quase sempre estava fechada e abafava boa parte do barulho externo. Numa comparação com humanos, o indício sonoro foi mais efetivo do que uma ordem de “sentido!” dada por um sargento numa escola militar, todos os ansiosos bonecos congelando-se nas posições que ocupavam quando o dono saiu, com as mínimas diferenças rotineiras – coisa de milímetros – que sempre passavam despercebidas aos olhos humanos – excetuando-se o braço caído do zumbi, o qual seria devidamente arrumado quando fosse percebido.

Dois minutos transcorreram até que a porta do quarto se abrisse por fora, raspando no batente apertado como era de costume... e o gigante dono daquela rica coleção de action figures, conhecido como Victor, adentrasse o cômodo trazendo um embrulho retangular embaixo do braço, envolvido em papel caqui contendo vários selos enfileirados e uma etiqueta plástica dos Correios.

Meu reinado destruído... por uma maldita encomenda que nem de fora do país é.

O humano sentou-se na cama com a caixa em mãos, encarando-a com olhos brilhantes enquanto usava uma tesoura para cortar as fitas que a envolviam. Amika conhecia bem aquele semblante – era o mesmo que o dono tivera quando a retirara da embalagem. A exata expressão de fascínio, de conquista alcançada... como se ele houvesse acabado de seduzir uma mulher de verdade, encontrado a cara-metade buscada durante toda a vida. Até então, apenas a piloto de mecha tivera tal privilégio, se elevar a tal nível. Como tanto temera, uma usurpadora surgira para tomar tudo que lhe fora e era querido.

A cada fita rompida pela tesoura, o som do corte fazia todo o corpo de PVC de Amika estremecer; e seu coração já teria derretido como em contato com cola quente – se possuísse um. Tudo, tudo perdido. Pensou em aproveitar que o dono não olhava em sua direção para fechar os olhos sem que ele percebesse, porém continuou firme. Se ia mesmo perder o posto, iria forçar-se a fitar nos olhos a rival, do início ao fim.

Removido o papel em torno do pacote, a embalagem revelou-se em toda sua imponência, como se fosse um leito de luxo no qual a boneca viajara até ali. Num azul chamativo, a parte da frente anunciava o nome do game a que a peça pertencia em caracteres katakana japoneses, a tradução em inglês vindo logo abaixo: Powerful Warrior Mistress – Mythic Hype.

O plástico transparente lembrando uma vitrine deixava à mostra a action figure no interior da caixa: traços de anime, cabelo ruivo cacheado colado à cabeça tendo mais articulações que o de Amika, conseguindo gerar efeito de ondulação; rosto pintado com duas listras azuis, envolvendo os olhos verdes penetrantes... corpo trajado com um kilt feminino escocês, sob peças de armadura no tronco, manoplas e quijotes, as pernas expostas do joelho para baixo terminando num par de botas. Ao seu lado, inseridas assim como ela no suporte de plástico transparente que mais parecia um molde, suas duas espadas: uma longa de cabo dourado e outra menor, semelhante a um gládio romano, em tons prata. Em outros orifícios na embalagem via-se uma infinidade de mãos para serem trocadas dependendo da pose, além de três opções de face – uma a mais que Amika.

Empolgado, Victor virou a embalagem para começar a abri-la sem rasga-la, visto que guardava todas no alto de seu guarda-roupa tanto para comprovar a originalidade dos itens da coleção quanto para transportar as figures quando necessário. Ficando as costas da caixa voltadas à estante, Amika observou a propaganda no verso contendo os outros itens daquela linha de bonecas e um obtuso “Collect them all!” gravado no centro.

PWM – era mais fácil se referir àquilo por sigla, já que o nome era tão extenso que mais parecia um dialeto criado pelos fãs inúteis daquela franquia – era uma saga que nascera nos games e fora adaptada para anime, retratando guerreiras da História invocadas no presente que batalhavam com afinco por seus mestres magos – um bando de virgens tímidos, em sua maioria, daí vindo a maior graça, e identificação, no enredo para seu público-alvo. O anúncio destacava as guerreiras Artemísia, Zenóbia, Joana D’Arc, Mulan... excluindo a unidade presente naquela caixa: Boudica, a famosa rainha-guerreira celta, que vencera os romanos numa batalhazinha aqui e outra ali na época em que brinquedos ainda eram esculpidos em madeira e cerâmica – ou melhor, achava-se mais graça em presentar um recém-nascido com ouro, incenso e mirra do que com a última unidade da “Trirreme Guerreira Radical”.

Vencida, trocada por uma personagem sem sal porcamente baseada na figura histórica... Ah, se eu tivesse meu robô, meu estimado ANGEL-04... Eu poderia cair com o mecha em cima dela e tudo pareceria acidente. Esmagar essas articulaçõezinhas que tentam imitar as minhas...

A embalagem foi aberta por completo e o molde de plástico retirado com cuidado. Em seguida, Victor passou a cortar os fios de arame que atavam, feito cordas, a boneca e seus acessórios ao suporte. Cada estalo causado pela tesoura foi sentido por Amika como se lhe cortassem fora os braços e as pernas. Ela podia imaginar a figure ansiosa por poder se mexer, após dias transitando lacrada na escuridão entre pacotes e mais pacotes, atirados dentro de aviões, vans e carros. Já estivera naquela situação, mas achava incrível como não conseguia se compadecer. A si, era o próprio Frankenstein sendo desperto a base de choques, um monstro erguido da tumba para devorá-la. Findava-se a Era Seibukan no topo da estante, para surgir um período de trevas e incerteza representado por aquela infeliz Boudica, personificação tola de fetiches adolescentes por personagens armaduradas.

Liberta, a boneca celta teve sua espada maior inserida em sua mão direita em formato de punho, que já viera encaixada de fábrica. Pega cuidadosamente pelos ombros, o humano levou-a com os dedos até a cômoda... inserindo-a devagar num espaço preparado para ela, entre as figures de anime, a poucos centímetros de onde Amika se encontrava. Não necessariamente ao seu lado, mas bem mais perto do que podia suportar.

Victor estava tão fascinado pela peça, que sequer notou o braço caído do zumbi não muito longe. Dali em diante as coisas seriam daquela maneira, Amika bem sabia, ao menos por certo tempo. A situação se repetia a cada brinquedo novo. Quando fora sua vez, não se incomodara – muito pelo contrário. Mas agora...

O dono da coleção fechou a caixa, nela deixando as peças sobressalentes de sua nova aquisição, e atirou-a para cima do guarda-roupa. Em seguida dirigiu-se à porta, pegando a maçaneta enquanto lançava um último olhar a Boudica, abrindo sorriso jovial – daqueles que se mostra a uma nova namorada.

Logo depois deixou o local, fechando a porta atrás de si.

E os brinquedos, para amargura de Amika, puderam verdadeiramente afirmar estarem sozinhos com sua mais nova colega... e liderança.

CONTINUA...


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Notas finais do capítulo

Notas do capítulo:



— Por motivos de desejar publicar esta história em livro futuramente, devo atentar para direitos autorais, então não usarei brinquedos existentes na realidade no enredo, mas personagens similares a eles. Eis os que apareceram neste capítulo, com suas devidas contrapartes verdadeiras:

Amika Lardner Seibukan – Asuka Langley Sohryu, do anime/mangá “Neon Genesis Evangelion”. Este primeiro capítulo foi centrado em seu ponto de vista. Mantive a mesma personalidade orgulhosa da personagem, mas alterei sua aparência e nome. Sua boneca é uma Revoltech Yamaguchi da linha Fräulein, aqui parodiada como “MoveTech Kyoto”.

Wonder Select – Referência à linha “Marvel Select”, da Diamond Toys, uma das principais coleções de miniaturas dos heróis da Marvel Comics. No universo desta história, a maioria das figures de super-heróis pertencerão a ela. De quebra, usei “Sub-Man” e “Jack Red Kid” como personagens, antigos super-heróis meus de histórias escritas na adolescência, que aqui serão “resgatados” como brinquedos.

Mei Feng – Uma versão da “Chun Li” da série de games “Street Fighter”. Aqui, será baseada mais precisamente em sua figure da SOTA Toys, extremamente articulada. Nos próximos capítulos, haverá mais referências ao jogo fictício, paródia de Street Fighter, ao qual Mei Feng pertence.

Zombie Frenzy! – Baseada em qualquer linha genérica de zumbis, porém pensei mais na coleção de “The Walking Dead” da McFarlane Toys ao escrever, já que haverá alguns personagens humanos nessa coleção também.

Powerful Warrior Mistress – Mythic Hype – Seria algo como a franquia japonesa “Fate/Stay Night”, com heróis históricos e mitológicos invocados para lutar, mas neste caso só há personagens femininas. A Boudica seria uma versão da personagem “Saber”, e sua figure foi inspirada na versão da Revoltech, assim como a Asuka/Amika.



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