As minhas sete ex-melhores amigas. escrita por Rodrigo Lemes


Capítulo 14
Parte III - O meu mundo está prestes a acabar.




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Dia 1

O primeiro dia de internação de Alice começou quando eu abri a porta de seu apartamento e vi uma figura completamente desfigurada no chão. A garota ruiva estava encharcada de sangue dos pés a cabeça, fazendo com que minha camisa do Duende Verde ganhasse uma tonalidade completamente avermelhada. Quando me agachei perto dela, percebi que ainda respirava, embora não estivesse em estado de consciência.

Os cabelos ruivos estavam todos jogados para frente de sua face, lhe cobrindo o rosto. Havia uma faca pousada ao chão no lado esquerdo de Alice, e quando analisei melhor o local pude perceber que daquele lado que o golpe havia sido aplicado. Não conheço muito de anatomia humana, mas pelo pouco que sei, a parte onde ela se cortou não era um órgão vital. Talvez estivesse perto dos rins, ou sei lá o que. Às vezes precisamos ser otimistas.

Consegui carregar Alice no colo escadarias abaixo, pois ela parecia mais magra e anêmica do que da última vez. Em geral eu me lembrava de que ela era magricela, mas não tanto assim. Após cruzar as escadarias do terceiro ao primeiro andar, fiz um gesto com as mãos para que JP viesse logo me buscar de carro. Botamos Alice no banco de trás do carro, pousando sua cabeça sob meu colo. Enquanto isso, retiramos sua camisa e meu pai tentou limpar os ferimentos com uma água e uma toalha que tínhamos disponíveis. Ela gemeu um pouco, embora ainda não parecesse consciente.

“Acha que ela vai morrer pai?” Perguntei, parecendo incrivelmente preocupado.

“Sinceramente filho, ela está bem debilitada. Mais alguns minutos sem assistência médica e o pior poderá acontecer”.

Sempre ouvi dizer que as palavras tem poder, pois alguns minutos depois de meu pai ter dito aquilo, acabamos por parar num congestionamento. Estávamos a uns dois quilômetros do hospital, mas se continuássemos por ali, demoraríamos muito tempo para chegar lá. Não gostaria de por a vida de Alice mais em risco do que já estava. Não pensei duas vezes, abrindo a porta do carro brutalmente e a pousando em meu colo.

“Tem certeza que quer fazer isso?” Perguntou-me papai e JP, quase ao mesmo tempo.

“Sim. Ela é a menina da minha vida” Respondi aos dois.

Não havia ninguém mais para leva-la ao hospital. Meu pai era um coroa bem atlético e fazia sucesso com as mulheres, mas mesmo assim não adiantaria muito. Ele estava debilitado demais e não conseguia carregar nem o próprio peso. Já JP era sedentário demais e possuía problemas cardíacos, logo uma corrida dessas viraria suicídio duplo. Pela primeira vez eu havia me sentindo o mais saudável de um grupo, e confesso que isso é uma sensação boa.

Corri em disparada, sem pensar em mais nada. Ao meu fundo haviam buzinadas de carro e sirenes de polícia, enquanto a trilha sonora da minha vida eram só os gemidos de Alice. Quer dizer, eu sempre pensei que quando eu passasse por um momento difícil tocariam uma música motivadora ao fundo. Só que a realidade é uma merda.

Assim que cheguei ao hospital, vários enfermeiros foram socorrê-la rapidamente. É provável que a maioria deles a conhecessem por conta dela ser irmã de Cauã, que também trabalhava por lá de vez em quando (embora ele não estivesse no hospital hoje).

Enquanto levavam Alice para o centro de cirurgia, ou sei lá o que, eu só me lembro de ter visto duas enfermeiras me dando calmante e água para me acalmar. Acho que elas tinham medo de eu virar o Hulk e sair quebrando tudo por ali, mas no fundo eu só havia tido um desmaio repentino.

Dia 2

O segundo dia de internação de Alice estava completamente deprimente. Eu havia desmaiado um pouco à noite, por conta do stress e tensão psicológica. Mas em geral, estou muito bem de saúde. A depressão sobre a internação de Alice não é referente ao seu quadro de saúde, já que ela ainda está viva, mas sim de ver as pessoas chorando pelos corredores do hospital. Aqueles parentes idiotas que abandonaram ela e seu irmão órfãos no mundo. O único que realmente parecia ser uma boa pessoa era o Tio Tom, um coroa alto e magricela como eu. Seus cabelos eram de um ruivo mais alaranjando do que o do resto da família, o que o deixava sexualmente atraente para as mulheres.

Eu estava tomando um café e comendo biscoitinhos (que por sinal eram muito ruins) quando ele havia se aproximado de mim com seu terno e gravata. Ficou me regulando com os olhos por um bom tempo, até me cumprimentar com um aperto de mão.

“Prazer em conhece-lo, Dante.”

“O prazer é todo meu.” Retribui o aperto de mãos.

“Sabe que senão fosse por você, Alice estaria no cemitério agora né? Como é que pode ter um coração de ouro tão grande rapaz? Eu teria que viver um século para encontrar mais pessoas boas como você!” Tom me soltou um sorriso sem mostrar os dentes, já que era o máximo de felicidade que poderíamos atingir com uma pessoa que amamos internada.

“Bom, eu realmente amo muito ela. É um amor quase que incondicional, e tal, entende? Então o máximo que poderia fazer era salvar a minha pessoa favorita do mundo.”

“Fico feliz que ainda exista gente bem intencionada como você, Dante. Alice me falava muito de você quando eu ia visita-la, dizia que você era fofo e bobo. E que uns dias vocês iam se casar com camisas de super-heróis vendo as estrelas na praia, ao som de The Smiths, já que esses eram seus gostos favoritos. Realmente, ela lhe amava muito rapaz! E agora está brigando entre a vida e a morte... Mas, por favor, quando ela voltar dessa situação a faça feliz. Você é o único que tem esse poder!”

Após terminar o discurso, Tom depositou sua mão esquerda em meus ombros e saiu andando da cafeteria. Deixei pequenas lágrimas salgadas escorrerem de meus olhos, pois estou muito emocionado. Aquela não era a Alice que queria só transar com caras bem talhados, aquela era a Alice que gostaria de ver as estrelas comigo, de ver meus filmes e ouvir minhas bandas favoritas. E por um momento eu havia pensado como a vida é injusta, que não poderíamos ficar simplesmente planejando nossa alegria, mas sim sermos alegres todos os dias. Se quiser um conselho, esse é: não planeje sua felicidade para amanhã, e sim seja feliz todos os dias. Ou irá acabar como eu.

Dia 3

Já faziam três dias que Alice havia sido internada, e mesmo assim, ela não apresentou melhoras no quadro de saúde. Isso porque além do golpe a facadas ter ferido a superfície de seus rins, ela estava com uma anemia e desnutrição muito forte. Não possuía forças para respirar, por isso contava com a ajuda de aparelhos respiratórios.

Em geral, a sala da UTI sempre ficava fechada e eu só podia observá-la pelo vidro, embora hoje ela tivesse sido aberta. Reparei que não havia nenhum médico ou enfermeiro por ali, o que fez com que eu pudesse adentrar a sala tranquilamente. Demorei um pouco para encontrar a maca de Alice, já que haviam muitas pessoas adoentadas por ali, e isso era muito agoniante. Sou uma pessoa recheada de fobias, e isso sempre atrapalhou minha vida.

Apoiei-me de joelhos sob a cama de Alice, já que não haviam bancos naquele setor. Segurei suas mãos magras e pálidas, que não eram mais brancas como a neve. Ela estava pele e osso, podia ver os ossos de primeiro olhar, e senti-los ao tocar em suas mãos. Mesmo tão debilitada fisicamente, a garota ruiva permanecia bela. Uma espécie de princesa que precisaria do beijo de um príncipe para acordar.

Fiquei lá por pelo menos vinte minutos sem dizer nada. Só estava a encarando com os olhos cheios de lágrimas, torcendo para que ela não virasse uma estrela no céu. Meus pensamentos só foram interrompidos por uma voz grossa e rígida.

“Essa ala é proibida para visitas” Anunciou um homem alto e gordo de cabelos grisalhos. Li em seu crachá que ele trabalhava no centro de psiquiatria, e seu nome era Hudson.

“Hum, desculpa senhor. Já estou me retirando dela.” Respondi, caminhando de fininho até a saída.

“Não, espera. Você é o tal do Dante Collins?”

Eu só assenti com a cabeça. Confesso que estou um pouco confuso pelo fato dele saber meu nome.

“Sou o terapeuta da Alice! Ela me falou muito de você em nossas consultas, até lhe escreveu uma carta. A menina só disse pra eu entregar ela a você caso estivesse prestes a morrer, ou já morta, pois queria que você soubesse a verdade. Nem eu mesmo abusei de verificar o conteúdo da carta”.

Hudson depositou a carta em minha mão, e já indo andando pelo corredor quando o chamei novamente. Tinha muitas perguntas para fazer a ele, que era uma espécie de luz no final do túnel.

“Tem como a gente conversar sobre a Alice algum dia desses? Por favor, preciso de respostas.”

“Amanhã de noite no meu escritório. E não cheguei depois das oito, odeio que se atrasem” Foi tudo o que o velho homem disse, virando-se de costas e seguindo seu caminho por aquele hospital.

Quer dizer, eu realmente estou muito confuso. Eu não sabia que Alice tinha um terapeuta, ou que havia planejado se matar, ou que escreveu uma carta fúnebre para mim. Tudo aquilo era tão repulsivo.

Não aguardei nem mais um minuto. Fui para o estacionamento do hospital, sentei no chão gelado e acendi um cigarro. Depois de fumar pelo menos três tabacos, resolvi tomar coragem para abrir a carta, lendo em voz baixa.

“Querido Dante Collins,

Se você estiver lendo essa carta enquanto eu estou sendo enterrada num cemitério, sinta-se um fracassado. Se eu morri e você já transou comigo, sinta-se honrado. Agora se eu estiver prestes a morrer, ou algo do tipo, vá se foder e leia tudo isso até o final.

Desde a primeira vez em que eu te vi, quando lhe atropelei com minha bicicleta, percebi como você era parecido com Charlie (meu primeiro namorado). Nós tínhamos só treze anos e tudo aconteceu num verão da Suécia, quando eu viajei para as casas de meus avós. Ele realmente era uma pessoa maravilhosa, o tipo que invés de dividir o último copo de água do deserto com você, lhe daria por completo. O grande problema é que Charlie possuía câncer nos ossos, e morreu três meses após nosso namoro. Lembro-me de suas últimas palavras, de seu último cigarro, de seu último beijo. Da última vez que pude beijar sua testa branca e sardenta, não mais cobertas por cabelos lisos escuros por conta da quimioterapia.

A realidade é que eu o amava. Eu sou uma bomba que irá explodir e matar a todos ao meu redor, e ele era a única válvula de escape que conseguia segurar minha explosão. Ele sabia quem eu realmente era, e me amou mesmo assim. Ele me amou muito mais do que você irá me amar, pequeno Dante, e não entenda isso como um insulto. Comparar você a Charlie chega a ser uma espécie de elogio.

Talvez o grande problema de tudo seja que ele era uma bomba maior que a minha. Digo isso porque o câncer não é como um suicídio, em que se escolhe matar ou morrer. Você só fica parado numa cama esperando seus órgãos serem corroídos. Não é uma morte justa, como morrer na guerra ou algo do tipo. É uma coisa bem ruim, de certo modo.

Mas o pior de tudo é que ele morreu virgem. Digo isso porque nunca transamos, só passávamos o dia inteiro bebendo e fumando cigarros. Ele tinha quinze, eu tinha treze. Ele era espetacular, eu era uma menina problemática e magrela que não sabia sorrir. E fico me perguntando por que Deus o tirou de mim todos os dias.

Também me pergunto porque Deus tirou meus pais de mim. Mas papai e mamãe não eram igual Charlie, era uma espécie de amor diferente. Ambos eram infinitos e prazerosos, um mais tranquilo, outro mais intenso. Tudo era tão frio e monótono até ele aparecer.

Desde então eu virei viciado em sexo. Porque eu sabia que nunca poderia transar com a pessoa que eu mais gostaria de transar, que nunca haveria amor naquilo, somente prazer. Será que entende isso Dante Collins? Espero que não! Mas digo que espero Charlie no sentido mais inocente da palavra: eu realmente amava ele. E se um dia pudéssemos ficar juntos novamente, não seria para fumar, beber ou transar. Seria só para desfrutar de seus lábios novamente, enquanto tomaríamos café e planejaríamos nosso casamento.

Mas o Charlie é um passado, e você uma realidade, meu pequeno. O que eu quero dizer é que agora amo você muito mais do que amei a ele. Mas eu não quero ser pra você o que o Charlie foi pra mim, Dante, por isso tenho medo. Tenho medo de machuca-lo, de quebrar as regras, de ser só um morto em sua lembrança. Você sabr que não viverei muito pelas coisas que eu faço, né? Não consigo imaginar a única pessoa que amo chorando em meu túmulo, é deprimente. No fundo, somos um amor proibido: não podemos ficar juntos pelo simples limite da vida.

Você deve estar se perguntando o porque de eu ser assim. A realidade é que, mesmo que as pessoas que mais amo no mundo sejam estrelas no céu, há outro motivo para eu ser assim, um motivo de fracasso. Não sei como lhe escrever sobre isso, pois é torturante. Então, irei direto e reto ao assunto: o meu tio abusava de mim quando eu era pequena. Quer dizer, agora o alcoólatra maldito está botando o fígado pra fora lá na Suécia. Um destino completamente justo para ele! A questão é que o abuso não era sexual, senão eu teria nojo de sexo e homens, podendo provavelmente virar lésbica. Era um abuso físico, ele me torturava, batendo cruelmente em mim. Ainda possuo algumas cicatrizes referentes a isso, e a maioria delas está em meu coração. A realidade é que eu não poderia contar para o papai, nem para a mamãe, senão ele me daria um tiro na cabeça.

O mais engraçado de tudo é que aquele verme não havia tido uma vida ruim. Ele só era do tipo cruel que sentia prazer em ver a desgraça dos outros, que em minha opinião é o pior tipo de pessoa. Quando meus pais morreram ele só ficou rindo no velório, até meu irmão se estressar e dar esfolar a cara dele todinha no chão. Desde então nunca mais nós vemos, e ele foi preso por um tempo curto na Suécia. Era um real psicopata, e se o demônio existir, eles certamente são charas.

Desde então eu nunca mais o vi. Ainda posso sentir a guimba de seus cigarros queimando em meu pescoço, os cortes de gilete que ele praticava em meus pulsos e bochechas. Eu ficava parecendo uma mendiga desnutrida quando meus pais o deixavam passar o final de semana comigo.

A questão agora é que você é o X da minha equação, meu pequeno. Sabe disso, sabe que eu lhe amo, e sei que você não será um Charlie. Quando eu o vi todo magricela e tímido, o tipo de cara que nunca tinha transado com ninguém, só pude senti amor. Não senti uma espécie de pena, porque meu antigo namorado era completamente diferente e só queria saber de meu foder.

O pior de tudo é que nunca senti algo tão puro quanto sinto por você. É uma pena que você seja idiota o suficiente para não perceber isso e prefira correr atrás daquelas idiotas de suas amigas. Você é tão burro, seu mongoloide infame! De certo modo, confesso que tudo aquilo que eu fiz era só para te ter o meu lado. O lance de transar com os caras e dar uma de problemática, não foi uma mentira, mas também não foi uma realidade. Senão podíamos nos amar diretamente, indiretamente era a melhor forma, com suas preocupações e tal. E você havia cuidado de mim todo esse tempo, por mais que eu tentasse te privar de amar. Acho que você passou no teste, Dante!

O fato é que eu lhe tentei privar do amor. Mas o amor não pode ser privado, ou esquecido, é intenso, o maior de todos os sentimentos. Se você perguntar para a pessoa se ela prefere morrer de fome na África ou amar alguém, ela ficará em dúvida, pois amar pode ser um céu e um inferno ao mesmo tempo.

Então se eu morrer hoje, ou agora Dante Collins, fique ciente de que eu lhe amo. E estou lhe escrevendo essa carta para que mostre aos seus filhos quando eles lhe perguntarem o que é amor. Pois sei que nunca poderemos ter nossos próprios filhos, pois não iremos nos casar com camisas de super-heróis e olhar as estrelas. Eu estarei no cemitério antes disso, e tudo será somente um sonho que você deverá realizar por mim.

De qualquer forma, a vida é entediante Dante Collins.

Com amor,

Alice."


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Notas finais do capítulo

Uma perguntinha: vocês choraram com a carta da Alice? rs



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