Paper Women escrita por MrsHepburn, loliveira


Capítulo 28
Vivian & Vincent


Notas iniciais do capítulo

não revisei muito esse cap então se acharem algum erro me perdoem



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A história é contada pelo lado dos vencedores. No caso da vida, é contada pelos que ficam. Mas se formos contar a quantidade de pessoas que ficam enquanto uma entre elas se vai, a história seria repleta de perspectivas diferentes e nunca chegaríamos a verdade. Essa não é a história de Vivian Winter. Essa é a história de Vincent Winter, sobre Vivian Winter. A verdade dele.

Vincent não se lembra de Vivian e ele crianças, exceto por memórias do avô-terrorista e da mãe. Ele lembra do cheiro de comida e o cabelo encaracolado e loiro de Vivian, sempre desbotado. Para ele, suas vidas começaram com Harry Sallinger, e terminaram com Harry Sallinger, onde todas as boas lembranças estavam, junto com o segredo que eles guardavam. Tudo na vida deles em Chicago era um sonho —a casa com quintal, um pai amoroso e uma mãe feliz. Até Victoria. Vincent se encantou com aquele bebezinho, como se ele fosse uma prova de que ficariam ali para sempre, com o pai e a mãe, para ver Victoria crescer e o mundo girar. Ele gostava da escola. Ele gostava da família. Amava Vivian e Victoria. Só odiava a ele mesmo.

Ele não sabe dizer quando descobriu que era gay, mas foi Vivian que percebeu primeiro, quando tinha quinze anos e ele treze. Ela estava passando batom para sair com seus amigos e olhou para ele, que estava encarando. Ela tinha o visto passando aquele mesmo batom —"só para testar, ver como é" —algumas vezes, mas só contou isso à ele mais tarde. Então naquele banheiro, olhando pelo espelho, ela perguntou se queria que ela passasse nele, só para ver como era. É coisa de menina, ele respondeu, e recebeu um olhar vazio de Vivian, que não engolia as mentiras dele. Se aproximou, ela segurou seu rosto com força e contornou seus lábios com a cor roxa, que era moda naquela época. Se virou para o espelho e tentou esconder sua animação ao se ver daquele jeito novamente, mas palavras não eram necessárias entre eles —Vivian sabia. Eu não vou contar para ninguém, não se preocupe, disse. Menino não usa batom, Vincent disse. Então, ela sussurrou você pode fazer o que quiser da vida, antes de lavar a boca dele e abrir a porta, onde Victoria estava esperando para ir no banheiro. Depois disso, Vincent nunca mais foi o mesmo. Não que sua vida mudasse completamente com o conhecimento que a irmã tinha dele, mas uma pequena parte de si mesmo se modificou, de forma que acabou modelando cada escolha que tomou a partir daí. Ele era gay. Agora podia dizer isso a si mesmo. Agora podia olhar os meninos de canto de olho, porque isso era normal. Não o tornava esquisito. Ele não gostava de futebol, filmes de terror ou videogames. Ele gostava de ouvir Madonna no rádio da mãe, dançar com ela enquanto fazia comida, ler as revistas de moda que Sallinger trazia para Vivian. E estava tudo bem. Porque agora sua irmã mais velha sabia e isso trazia normalidade a sua personalidade. É estranho como só conseguimos acreditar em alguma coisa quando outra pessoa nos fala. Foi o que aconteceu com Vincent. Ele passava bastante tempo com Vivian e os amigos dela. Nenhum que se destacasse realmente, apenas dois. Helen e Richard. Nada em Helen ou Richard atraía Vincent —não daquele jeito —mas ele invejava a amizade que Vivian tinha com os dois. Era como a conexão que tinha com as irmãs, mas Vincent nunca sentiu nada daquilo, exceto com Vivian. Helen Gluck tinha cabelos negros, pele clara, e um namorado. Suas unhas estavam sempre pintadas, mas nunca completamente. Repletas de falhas, como se ela deixasse o esmalte sair naturalmente. Vinha de uma família boa, e ia para a mesma escola que Vivian. Richard era o namorado de Helen. Os dois tinham quinze anos e namoravam desde os treze. Eles costumavam comprar sucos com Vivian, para depois colocar álcool que Richard conseguia do pai dele e ficavam lendo livros em voz alta. Helen nunca gostou muito disso, mas Richard e Vivian se deliciavam. Começaram a chamar Vincent também, sabendo que ele era meio excluído. Houve um certo ponto que Vincent realmente achou que gostava de Richard —Daquele Jeito —mas passou tão rápido como veio. Ele apenas gostava que eles o tratassem normalmente, sem forçá-lo a ser alguém que não era como as pessoas da escola. Era automático.

Helen era uma garota estranha. Não é algo que pode ser explicado, o seu jeito de falar, as coisas que falava eram normais, mas sempre havia algo estranho por trás de tudo. Richard era inteligente e gostava de ler, a sua personalidade o oposto do de Helen. Mesmo assim eram bons amigos para Vivian, que nunca teve nenhum amigo na época do avô-terrorista e isso a ajudava a se soltar. De certa forma, foram os melhores amigos de Vincent também. A primeira vez que foi em uma boate foi com quatorze anos, a pedidos de Helen. Vai ser legal, ela disse à Vivian, que parecia indecisa. Quatorze anos? Em uma boate? Parecia improvável, mas aconteceu. Boates de 1987 não eram como as de agora, com segurança e tudo. Principalmente as do interior —eram lugares onde praticamente qualquer um conseguia entrar, e foi assim que Vincent conseguiu. Helen se vestiu como uma cigana, Vivian com suas roupas normais mas com seus sapatos engraçados e Richard usou um terno, porque os três quase se igualavam no quesito esquisitice. Foi no meio da festa que Vincent descobriu a porta dos fundos da boate, que na verdade era a porta de entrada para outra coisa.

A ala dos drag queens.

A essa altura, Vincent sabia que estava tudo bem em querer passar batom e gostar de revistas, mesmo que seus pais não soubessem. Ele aceitava como era. Mas descobrir a entrada dos drag queens para a outra parte da boate —a parte mais adulta —foi achar o paraíso. Nunca tinha visto um drag queen na vida. Nem mesmo em revistas e ninguém falava disso. Não sabia nem como chamá-los naquela época. Mas tinha certeza que queria ser um desses. O glamour, as roupas, a liberdade, sensualidade deles o encantou. Queria ficar lá para sempre, mas no momento que resolveu entrar, Richard e Vivian gritaram seu nome, chamando-o para mais perto. Isso não quer dizer que, nos dias que se passaram, ele esqueceu. Seu desejo ficou maior ainda, mas escondia isso até mesmo de Vivian. Era um passo grande demais. Tudo bem usar produtos de menina, gostar de coisas de menina, mas virar uma? Era demais. Ele sabia. E não havia como esconder isso da família se tornasse o desejo permanente. Ninguém desconfiava de nada, para a sua sorte. Algumas vezes ouvia Sallinger comentando sobre os gays da Califórnia, com palavras não muito agradáveis, e imaginava o que ele diria quando revelasse o seu segredo. Esperava que isso mudasse o seu ponto de vista. E planejava contar uma hora ou outra, talvez quando já estivesse fora de casa. Acabou se afastando um pouco de Victoria e Vivian para entrar em seu próprio mundo de fantasias, onde colocava a maquiagem de Vivian escondido no banheiro e dançava ao som daquelas músicas obscenas da boate. Era livre nessas horas escondidas.

Então um dia, Helen bateu na porta de casa e ele acabou atendendo. Ela tremia, chorava, ficava cada vez mais pálida e Vincent não conseguia arrancar as palavras dela. Até que Vivian chegou, colocou suas mãos nas bochechas de Helen, procurando algo em seus olhos e Helen sussurrou duas palavras "Quintal. Harry." trêmula e em frangalhos. Harry? Papai? O coração de Vincent acelerou, e Vivian correu para fora de casa, como se já soubesse que algo estava errado. Helen não chorava mais, e entrou em um estado de torpor, parecendo um zumbi. O que ela fez? pensou Vincent. Em seguida, viu Helen colocar as mãos na barriga e viu os braços arranhados e vermelhos, como se estivesse em uma briga. Fechou os olhos. Está doendo. Vincent. Vincent, chame o Richard para mim, tudo bem? Ele mora duas ruas abaixo. Em uma casa amarela, vá buscar ele. Sua voz era tão calma, não combinava com o estado em que se encontrava minutos antes. Pensou em esperar Vivian, mas estava com medo de Helen então atendeu ao seu pedido. Quando chegou em casa outra vez, com Richard, congelou. Vivian estava gritando do quintal, puxando alguma coisa. Richard correu para ajudar, Vincent também, mas parou na porta para ver Helen na mesma posição de antes, balançando-se de um lado para o outro. Viu sua barriga. Ela está grávida.

VINCENT! VINCENT! A voz de Vivian ecoou. Ela estava chorando, desesperada, e isso fez o sangue de Vincent congelar, enquanto ia para fora. Viu um corpo no chão. Pensou que ia vomitar. Não chegue perto! não parecia Vivian falando. Parecia uma versão desesperada de Clarence Winter. Ligue para a emergência! VINCENT! HELEN! Richard ajudava ela a puxar o corpo, e Vincent não conseguia processar o que estava acontecendo, as palavras que ouvia, a imagem que via, mas de algum modo seu corpo correu para dentro da casa, onde ligou para a emergência com a voz trêmula, um nó na garganta, tendo que repetir o endereço duas vezes pela voz ininteligível.

Vincent só foi descobrir o que aconteceu algum tempo depois. Ninguém o contou nada, mas aquilo mudou tudo.

Helen Gluck estava grávida de quatro meses quando seus pais descobriram e a expulsaram de casa. A única opção que ela viu era procurar ajuda de Vivian, por isso estava lá naquele dia. Ninguém atendeu a porta, então foi para o quintal e encontrou Sallinger. Como estava chorando incontrolavelmente, Harry perguntou o que havia acontecido e ela não resistiu, contando imediatamente. Não esperava que ele ficasse tão furioso como realmente ficou, mas era um homem bom e de valores, e se preocupava até com quem não era o seu filho. Começou a brigar com ela. Helen pirou. Todo mundo sabia que ela era louca, mas ninguém nunca esperava que o colocasse contra a parede em um de seus acessos de raiva. E matasse-o. Vincent ainda não sabe como. Vivian nunca explicou sobre isso e se distanciou dele cada vez mais. Quando a mãe descobriu que Helen havia feito aquilo, entrou naquele estado fantasma e decidiu que ela deveria ir para a prisão, até Vivian explicar que ela estava grávida. Foi preciso muito amor para fazer isso, Vincent imagina. Força sobrenatural. Então Clarence Winter decidiu tirar a filha daqueles dois o mais rápido possível, do jeito que fosse, e os trouxe de volta para Sterling Lake. Ficou furiosa com Vivian. Com o mundo. Vivian morreu por dentro. Há muitas coisas que Vincent não sabe. Como o que aconteceu nas semanas depois disso. Mas ele sabe que algumas semanas depois, Vivian fez uma longa viagem para ver Helen. Vincent sabe disso porque ela trouxe uma foto de ultrassom. Depois outra viagem mais longa ainda. Dessa vez, voltou diferente. Raivosa. Chorou no quarto escondida de todo mundo, mas Vincent estava lá para ver. Eles sempre seriam assim —a sombra um do outro, presenciando cenas secretas. Talvez fosse isso que os unisse, mesmo que a relação estivesse destruída desde que voltaram. Foi então que ele soube que Helen Gluck havia enlouquecido de vez e abortado o bebê. De propósito. E logo em seguida, diagnosticada com esquizofrenia, colocada em um hospital psiquiátrico. Não havia mais ligação entre elas. Nenhum afeto. Estava tudo sendo destruído.

T u d o.

Vincent em Sterling Lake era o pior Vincent. Odiava cada fibra do seu ser, odiava o pai de verdade, sentia falta de Harry Sallinger, não podia mais contar com a mãe, e sentia uma raiva ardente crescer a cada ano dentro do seu peito. Era um fim de mundo, aquela cidade. Um nada. Não havia liberdade. Tudo que ele tinha eram memórias dos drag queens e fantasias de um dia poder ser feliz como eles. Visia nasceu, sua raiva acalmou-se. O amor que sentia pelas irmãs cancelava um pouco o ódio dentro de si. Ele costumava sentar-se com Visia, sozinho, e contava sobre sua vida, sabendo que aquele bebê nunca o acusaria de nada, não entendendo uma palavra. Chorou para ela. Disse, pela primeira vez, que era gay àquele bebê. Então, com a luz entrando aos poucos, achou que as coisas iam melhorar. Até Richard aparecer um dia depois da formatura de Vivian e ela avisar que estaria saindo de casa. Para a Inglaterra. Bem, bem, longe. Com seu amigo.

Foi a primeira vez que Vincent fugiu de casa. Estava tão irado —se sentia traído e sujo e brigara com Vivian fervorosamente nesse dia, que foi parar na cidade. Foi para um bar, bebeu que nem o pai e bebeu ainda mais para esquecer desse detalhe, e fez sexo com um homem pela primeira vez —dezesseis anos. Não se lembra como foi, mas lembra de no final ter sido jogado para a rua, sem lembrar de como voltar para casa. Foi Vivian que o buscou, furiosa. Você não tem que se preocupar comigo, ela disse.

Eu não dou a mínima para o que você faz ou deixa de fazer.

Ambos sabiam que isso era mentira. O que aconteceu com Helen?

Nada.

Mas então contou que ela tinha sido internada em um hospital Nunca chegou a ser presa pelo que fez com Harry Sallinger. Vincent não sabia como Vivian estava por dentro, aguentando todo aquele sofrimento. Era tudo tão estranho, ele não entendia. Como ela podia agir tão naturalmente? Sua melhor amiga havia matado seu pai. Mas ela não deu mais tempo para ele pensar sobre isso, porque logo foi embora para a Inglaterra, e a vida de Vincent se tornou o foco.Agora ele não era preso a mais ninguém. Victoria estava crescendo. Visia também. E quando fez dezoito anos, saiu de casa. Foi para Nova York, e na primeira semana, gastou todo o seu dinheiro em vestidos e maquiagem, e prometeu a si mesmo que ia viver a sua vida da maneira que quisesse, já que ninguém estava lá para impedir.

Conseguiu um emprego. A raiva ardente que sentia era minimizada quando dançava com as suas roupas chamativas e o olhar de desejo das pessoas, como se dissessem para ele você é desejável. Você é bom. Ninguém te acha um merda agora. Ninguém sabe sobre o seu pai. Dance, Lucille. Está tudo bem.

Ele dançou. No começo, eram performances pequenas, de cinco minutos. Não chamava muita atenção, mas a atenção dos que estavam presentes era suficiente. Ele se sentia bem. Com o batom chamativo. A pose sensual. E conseguia esquecer absolutamente tudo. A paixão transparecia na dança, e ele arranjou um namorado na primeira boate em que trabalhou. Lembrava-o daqueles drag queens que viu com Vivian, Helen e Richard. Lembrava-o do desejo que teve e o fazia feliz por perceber que estava vivendo o que queria. Não havia morte, nem pais terríveis, nem impossibilidade. Havia magia, cor, amor.

Sua mãe morreu. Foi a primeira vez que se viu tendo que esconder fisicamente o seu antigo eu, não cedendo mais lugar à Vincent, e sim a Lucille. As irmãs não o reconheceram.

Quando o namorado e ele terminaram, porque Vincent estava recebendo mais atenção na boate, resolveu partir em busca de novos territórios. Foi então que Vivian entrou em contato pela primeira vez em anos, o que serviu como um choque de realidade. Parecia melhor do que antes, quando fugiu de casa para estudar na Inglaterra. Seu amigo não veio junto, e ela estava casada.

Casada.

Uma palavra que Vincent nunca achou que escutaria de Vivian, porque ela sempre reclamava com os amigos sobre relacionamentos. Ele até achou que era lésbica. Mas agora ela era casada. Com um homem. E parecia apaixonada.

O amor tinha um efeito bom nas pessoas. Elas sorriam mais. Riam mais. Ajudavam mais. Deu até vontade de se apaixonar também. Ela o obrigou a visitá-la na sua nova casa —um casarão que mais parecia aquelas casas de ricos em filmes de terror —e quando mencionou isso, Vivian riu sua risada no volume mais alto, como se fosse a coisa mais engraçada do mundo.

Vincent descobriu que a raiva não existia mais. O que restara, porém, era um nada. Era como se eles tivessem que começar a relação do zero. Gregg Webster —o marido de Vivian —não sabia que Vincent era gay ou drag. Nem Vivian tinha certeza, porque Vincent foi visitá-los com roupas normais (de homem), mas quando revelou o segredo somente à ela, como sempre fez, Vivian não pareceu muito surpresa. E a confiança dos dois subiu para um pedestal mais alto. Talvez o laço de sangue garantisse sempre a confidencialidade um do outro. Me diz alguma coisa que eu não saiba, comentou ela. Aos poucos, eles voltaram a conversar. Sem ela saber, arranjou uma emprego na sua cidade, no Cirque D'Hiver. Era só ajudante de palco, porque mesmo que trabalhasse em Nova York, ali era um nível totalmente diferente. Era uma rua especializada no tipo de coisa que ele adorava, e eram profissionais. A boate de antes não era nada comparada ao agito que a última casa da rua se tornava a noite. Ele amava a adrenalina, os olhares que recebia mesmo quando não era ele o principal. Com o passar do tempo, foi evoluindo. Passou a fazer shows menores novamente. As pessoas gostavam. Os homens gostavam. Às vezes, até as garotas. Se tornou melhor amigo da dona da boate, ascendeu um pouco mais. E no seu grande show —o primeiro, com luzes, sons, dançarinas de suporte —convidou Vivian. Ela quase engasgou quando ele contou o que acontecia por lá, e Vincent duvidava que ela fosse, mas pelo menos teria tentado.

Ela foi.

Ele a avistou enquanto estava no palco, sob os olhares dos espectadores. Não importava mais a atenção das outras pessoas. Não era nem esquisito ela estar lá observando ele. O que importava é que parcialmente, agora sua família sabia. Seu vínculo sempre foi mais forte com Vivian do que com as outras meninas —ele ligava para casa de vez em quando, para treinar sua voz normal, conversar com Victoria sobre Visia e o pai e a mãe —mas Vivian era Vivian, quem sabia como o pai era antes de todas as outras. Que amava Harry Sallinger, mesmo que sua melhor amiga tenha os tirado dele. Vivian era Vivian. E ela estava lá, a única coisa que Vincent precisava que fizesse.

Assim que o show terminou, as pessoas aplaudiram, os homens deixaram de rodeá-lo, Vincent correu para rua, atrás da boate, e começou a chorar. Não demorou muito até Vivian chegar. Tinha vinte e quatro anos e ela, vinte e seis. Abraçou-o como a mãe abraçava e percebeu como sentiu falta disso. O que foi um pensamento engraçado, pois nessa mesma noite disse que estava grávida. Um pensamento veio à cabeça de Vincent, e conversaram sobre Helen pela primeira vez. Foi a primeira vez em anos que viu Vivian chorar. Eu a amo e a odeio, disse, respirando fundo. Mais do que consigo explicar. Mais do que consigo mostrar do lado de fora. Mas quem liga? Não sei onde ela está de qualquer forma, ela nunca vai saber o que fez comigo e com Richard. Foda-se.

Mas Vincent sabia que isso não estava acabado, só deixou o assunto para lá. Ela contou que começou a dar aulas. E tirando as lágrimas de Helen, estava feliz. Vincent também estava. Eles começaram a conversar cada vez mais. Sobre os sonhos, coisas de adulto, memórias de criança, do tempo com Harry Sallinger. Na opinião de Vincent, isso serviu para que os dois derrubassem a parede que protegia as memórias que vinham com a morte de Harry e aprenderam a lidar com isso. Vivian contava sobre como as irmãs estavam, o que ele perdia quando deixava de voltar para Sterling Lake. Vincent usava as lembranças e vozes da família o guiarem quando se apresentava no palco. Aquela foi a primeira e última vez que Vivian visitou Vincent no Cirque D'Hiver. Nas outras vezes, ela ia buscá-lo para jantarem fora. Ou trazia-o para casa quando não estava. Via a barriga dela crescer. De alguma forma, seu amor pela criança de Vivian ficava maior conforme a barriga crescia, como se o futuro dos dois —Vivian e Vincent —estivesse dentro dela, crescendo para ser melhor que eles. Logo Vincent descobriu que o marido de Vivian não a amava mais e assim que o pequeno Ian nasceu, alguns anos depois, todas as esperanças de Vincent de poder ter uma família feliz por perto foram destruídas quando os dois se separaram e Gregg Webster levou Ian para longe. Vincent era neutro com relação à Webster, mas assim que soube disso, ficou convencido de que o ex-marido havia convencido-a de deixá-lo com a criança. Ela ficou brava. Dava para ver que ainda era apaixonada por Gregg Webster, e estava muito mal, mas nunca falaria mal do marido.

Então o que foi, Vivian? Me faça entender. Eu estou puto da vida.

Eu escolhi desse jeito.

Por quê?

Houve uma pausa.

Eu tenho tanto medo, Vincent. De não amar ele. Eu fico lembrando da Helen. E a mamãe, o terrorista. Eu me lembro do Gregg. E lembro que eu não tenho mais nada, então o que eu poderia dar à ele? Gregg vai ser um pai melhor do que eu serei.

Cale a boca, porra. Vincent vociferou, naquele tom de sempre. Violento. Vivian fechou os olhos, se segurando para não chorar. Ele não estava acostumado com o seu lado frágil. E havia ficado tão desnorteado quanto ela com a menção de todas as coisas ruins na vida deles. Ela foi embora sem se despedir e Vincent foi incapaz de dormir naquela noite. Lembrava da criança e de toda a felicidade momentânea que Ian trouxe aos dois, as chances, futuros. Ele logo percebeu que não podia depender da felicidade dos outros. Não podia depender da família, ou uma criança. Decidiu apostar no trabalho. A sua liberdade. A sua vida. Ele não queria mais um homem na sua vida —alguns beijos roubados cá e lá, mas nada que trouxesse alguma razão para a sua vida. Depois de um tempo, Vivian começou a mandar fotos de Ian para Vincent, como fazia para as irmãs. Eles conversavam no telefone, e Vivian o visitava com mais frequência, mesmo que a parede entre eles reaparecera um tempo depois, quase invisível, ainda lá. Os laços mais especiais, mesmo que difíceis de serem separados, uma vez que acontece, talvez nunca cheguem a ser os mesmos. Vincent só estava contente de ter ela por perto outra vez, a única coisa que restara do seu passado. Vivia cada vez mais como Lucille. As pessoas das ruas se acostumaram com as suas roupas. Ele tinha dinheiro o suficiente para comprar sua própria maquiagem. Ainda se escondia de Victoria e Visia, com medo do que aconteceria em seguida, mas com Vivian, isso não existia. Ele nunca mais viu Ian ao vivo e a cores. Até o funeral, é claro. Lembra-se de se vestir como se vestiria em uma dia normal, lembra-se das lágrimas das pessoas, de todo mundo que criara laços com Vivian, mas principalmente, lembra-se de, ao ver o corpo paralisado no caixão, diferenciar o tom roxo do batom nos lábios dela, trazendo vida a sua morte.


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