Paper Women escrita por MrsHepburn, loliveira


Capítulo 27
Outra História


Notas iniciais do capítulo

oi? alguém? câmbio? QUANTO TEMPO QUE EU NÃO ESCREVO NISSO AQUI PELO AMOR DE DEUS
espero que gostem desse capítulo que não tem nada muito wow mas tem bastante nho nho nho e detalhes e eu achei a música perfeita pra essa fic, que se chama To Build a Home, do Cinematic Orchestra, e caso alguém ainda não saiba, eu fiz duas playlists pra fic. E eu liberei o board do pinterest sobre Paper Women então se alguém quiser ver, vai estar lá. E eu espero que gostem porque reescrevi esse capítulo MILHÕES E MILHÕES DE VEZES.



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Logo após nossa pequena aventura, Ian tem que ir viajar para ver o pai outra vez. Então com ele fora, restam Eric, Becker e eu, até Eric avisar que ele se inscreveu na escola militar e que ganhou uma vaga e precisa ir o mais rápido possível. Todo mundo fica chocado, porque ninguém sabia que ele queria ser um soldado, mas ele diz que sempre foi o sonho dele e que "estava na cara".

—Não estava não. —replica Becker. E não estava mesmo. A gente faz planos para as férias de verão e viagens que queremos fazer, e nada sequer indicava que ele iria embora. E agora eu nem gosto de pensar nisso, na perspectiva de perder Eric. Não sei como vou reagir quando ele for.

—Você não deu uma olhada nos meus músculos, não? —ela revira os olhos.

—Você não tem músculos. Músculos é o que o Robbie tem, não você.

—Vocês podem calar a boca? —eu interrompo a briga. —Estou tentando ler.

—Ah, cale a boca, se você veio com a gente é porque queria fazer companhia, não ficar lendo um livro depressivo. —Ele arranca o livro da minha mão, mostrando sua expressão falsamente irritadiça.

Agora sinto falta de Ian. Não é a mesma coisa sem ele. Tive uma semana para me acostumar com a sua presença constante apenas para ser colocada a prova quando ele voou para longe, e agora me sinto um pouco menos animada. Mas não sou ingrata. Becker e Eric ainda estão aqui. Estamos indo ver Vincent, e até é melhor que Ian não esteja junto. Robbie veio também. Durante o resto do caminho, Robbie e Eric discutem para ver quem tem músculos maiores e eu voto para Eric porque sou amiga dele e Becker vota para Robbie porque é namorada dele e eles empatam.

—Isso não vai ficar assim. —Eric avisa. —Espere só até eu voltar de lá. Vou te humilhar. —isso me faz pensar na outra opção, que é a de ele não voltar. Por mais que eu tente, minha mente volta sempre a esse mesmo assunto e eu não consigo relaxar. Foi tão de repente. Eu olho para Eric, do meu lado, mas ele não percebe que eu estou olhando para ele. Ou talvez perceba e não diga nada. Imagino como foi quando contou para a mãe dele e se está com medo como eu estou com medo. E é tão estranho porque eu me apeguei tanto a ele e Ian que agora não sei o que fazer com eles indo embora, mesmo que voltem. Nunca se sabe. E eles foram meus primeiros amigos de verdade, com exceção de Becker. Primeiros amigos, primeiro amor. Talvez seja verdade que isso dura para sempre, pela intensidade do que eu sinto. E a razão para ser tão intenso é que eu não sabia quão bom era essa sensação e agora não quero mais deixar de ter. Nunca. Volte, comando à Eric, mentalmente. Vamos ser melhores amigos para sempre.

—Devíamos fazer alguma coisa especial pra quando você for embora. —eu sugiro, silenciando-os.

—Nós já estamos fazendo algo especial. —ele pisca para mim. Becker, no volante, pergunta:

—Quando você vai?

—Semana que vem.

—Por que não avisou a gente antes?! —Becker está levemente irritada, mas eu sei que é só porque gostaria de ter mais tempo com ele. E falando assim, parece que ele está morrendo.

—Eu não queria que vocês ficassem do jeito que estão agora como se eu fosse morrer.

—Mas você pode morrer. —diz Robbie. Ninguém fala nada além de Eric.

—É, mas eu não vou. Sou um ninja.

—Alguém que se autointitula ninja não deveria ser permitido entrar no exército.

—Tudo pode acontecer, baby.

—Ugh. —resmunga Robbie.

—Ugh, ugh. —ecoa Becker.

—Eu não estou sentindo o amor de vocês. —Eric murmura, apontando para nós.

—Você deveria estar sentindo nossa raiva por avisar tão em cima da hora que vai embora semana que vem. —Becker estaciona o carro na frente do Cirque D'Hiver e saímos. Me sinto nervosa, vindo aqui. Como se tudo fosse dar errado outra vez. Não sei bem como a ideia de voltar começou, mas minha mente repetia as palavras de Ariel, sobre dar uma segunda chance à Vincent, mesmo que tudo possa mesmo dar errado. Sei que não deveria aparecer do nada, mas não anotei o número dele e não queria que o padre Jonah soubesse que viríamos aqui, porque ficaria nervoso outra vez. Não quero isso. Mas eu sei que preciso deixar essa história limpa, fazer alguma coisa. Não quero que nos anos seguintes, eu olhe para trás e pense que gostaria de ter feito. Sei que geralmente, quando as pessoas falam isso, não se referem a encontros com drag queens, mas se essa é minha única opção, prefiro aceitá-la. Não quer dizer que não esteja nervosa. As pessoas do Cirque D'Hiver continuam na mesma bagunça do outro dia, só nós estamos mais acostumados. As bancadas ainda estão com pessoas tentando comprar ingressos, agendar shows e clientes e atrações se misturam naquele espetáculo de cores e sons, vozes, gritos, risadas, violência implícita em cada movimento, é tudo que vejo. Eric passa o braço ao redor do meu ombro quando entramos, lembrando do que aconteceu na última vez.

—Só para constar, sei que os meus músculos enormes devem estar te seduzindo, mas esse não é o meu objetivo.

—Só não conte para o Ian.

—Oh, você e Ian estão em relacionamento sério agora. —provoca Becker, presa a Robbie. A conversa entre nós serve para abafar os gritos para nós das outras pessoas de fora, e apesar de funcionar, ainda seguro na mão de Becker enquanto caminhamos, para não perdê-la de vista.

—Só passou uma semana. —contraponho, mas as suas palavras me dão borboletas no estômago. Ou talvez seja o nervosismo.

—As garotas funcionam com aqueles anos de cachorro. —comenta Robbie, se empurrando para passar por um grupo na frente de uma boate chamada Sinatra. Admiro ele por estar agindo com tanta normalidade e percebo que deve amar Becker de verdade por aguentar nossas missões secretas e lugares pirados como esse aqui. Ele nem parece surpreso. Fico procurando o cara que me beijou, mas não o acho. O guarda que o expulsou da rua, porém, continua lá. Acena de longe com a cabeça, mas sei que está se perguntando o que diabos estou fazendo aqui —de novo. —Um ano equivale a sete.

—Cale a boca. —eu digo.

—Isso é algum tipo de indireta? —minha amiga questiona, desconfiada. Mas Robbie apenas encolhe os ombros, puxando-a para mais perto quando um cara bêbado se aproxima. Eric faz a mesma coisa comigo.

—Para o que isso serviria de indireta?

—Eu não sei. Tipo, é muito tempo.

—Você está terminando comigo? —ele pergunta.

—Não!

—Nem eu. —então, surpreendentemente, nós rimos. E se eu fechar os olhos e ignorar o barulho, posso achar realmente engraçado. Meus dedos estão fazendo aquilo de novo. Por sorte, chegamos ao final da rua sem nenhuma interrupção e eu olho para Becker, depois para Eric, perguntando silenciosamente quem vai bater na porta. Consigo ouvir meu coração batendo nos meus ouvidos, um tump, tump, tump, como as batidas daquela música na boate e eu nunca senti tanta falta de Ian como nesse momento. Gostaria de ligar para ele e contar sobre isso, mas decidi com os outros que só falaria se isso desse certo. E eu duvido que dê, e me sinto culpada porque depois que saímos daqui da última vez, eu e Ian dissemos que aquela seria a última vez. E eu continuo voltando, porque tem algo que me impede de desistir e me sinto horrível por isso.

Por fim, para acabar com o sofrimento, Eric bate na porta. Nós esperamos. São os três segundos mais longos da minha vida. Não consigo respirar quando alguém finalmente abre a porta. Vincent, minha mente grita. Mas não é ele. É uma mulher com um vestido branco sem sutiã, de modo que consigo ver tudo que está por trás do pano e todos os outros também. Reconheço ela como a garota que chamou Vincent aquele dia, mas não lembro do seu nome. Becker fala primeiro.

—Queremos falar com Vincent. Ele está aí? —ela parece surpresa, depois confusa. É bonita, mas o tanto de maquiagem que coloca no rosto a deixa mais velha. Deve ter no máximo vinte, trinta anos. Não entendo o que está fazendo num lugar como esse, depois lembro que nem todo mundo nasceu em famílias favoráveis. Consigo ver o pó que ela usa na pele e todas as imperfeições que isso não consegue esconder. Imagino como deve ser a vida dela fora daqui, então ela responde:

—Quem?

—Vincent. —repete Eric.

—Lucille. —corrijo, e seu rosto se ilumina, arqueando uma sobrancelha, sem saber porque estamos aqui.

—Vocês atrasaram ela da última vez que estiveram aqui. Não sei se é uma boa ideia. —ela se apoia na porta de uma maneira que pareça que está posando para uma revista imprópria. Fico desconfortável só de ver, e com vergonha por ela, sabendo que isso é tão desagradável para mim quanto é para os outros e parece que ela ainda não sabe.

—São cinco minutos. —diz Robbie, com mais firmeza, e a pose dela muda. Reviro os olhos mentalmente, e ela retrai um pouco.

—Tudo bem. Vou chamar ela, mas não quero prejuízo. —então se vira e sai, os quadris remexendo de um lado para outro, com o salto preto.

No que vocês se meteram? —sussurra Robbie, incrédulo, olhando para nós. —Honestamente?

—Não é nossa culpa. —explica Eric. Não consigo me concentrar no que está falando porque estou nervosa demais, mas quando ele diz meu nome, faço que sim distraída e continuo esperando por Vincent. Talvez tenha sido uma má ideia. Talvez seja a mesma coisa de sempre e Ian vai me matar. Sou otimista demais. Sonhadora demais. Foi uma má ideia. E antes que minha mente exploda, felizmente, Vincent aparece. No começo, sua expressão desconfiada se torna indignação e eu acho que ele vai nos enxotar. É tão obsceno como da última vez, o vestido colado ao corpo e a mesma peruca ruiva. Percebo que essa peruca não é a sua "fantasia", é algo permanente. É o que torna Lucille uma pessoa de verdade.

—O que diabos vocês estão fazendo aqui?!

Aquela voz.

—Queremos falar com você.

—Pedir desculpas. —interrompo Becker e as minhas palavras o surpreendem. Talvez ele ainda se sinta culpado pelo jeito que nos tratou —como deveria estar —e não esperava isso. Mas Ariel me disse que são pessoas como ele que precisam de paciência e amor, e se é isso que preciso fazer para finalizar a missão de Vivian, quaisquer que sejam suas razões para isso, eu farei.

—O que você fez, garota?

Não se irrite.

Nós fomos embora quando não deveríamos, e eu peço desculpas. —Ele intercala olhares para cada um de nós, até seus ombros caírem e ele olhar para trás, hesitante. Depois olha para

—Venham comigo. —se vira abruptamente, e temos que acompanhá-lo. É o camarim, então é quase tão tumultuado quanto lá fora. Algumas garotas —não-drag-queens—se maquiam no espelho e nos encaram, tornando mais óbvio que nosso lugar não é ali. Elas conversam e xingam e fazem poses e uma delas sai do banheiro sem camisa e Eric arfa surpreso antes de desviar os olhos.

—Pode olhar, querido. —ela tenta fazer uma voz sexy, mas sai meio assustadora.

—Não, obrigado.

—Você é gay?

—Deixe o garoto em paz, vadia. —intromete-se Vincent, na mesma hora que Eric diz:

—Eu tenho respeito.

E assim, Vincent abre outra porta para nós, deixando as garotas para trás. É ainda pior. Há uma grande mesa no centro e espelhos nas paredes e roupas penduradas nos cabides rodeando o lugar inteiro, todas brilhantes ou espalhafatosas. Nada parecido com o que Vincent usou no funeral. Há outros drag queens aqui, também. Um deles usa uma daquelas lentes de contato azul claras, e quando me encara, sinto um frio percorrer meu corpo porque é algo meio anormal. Feroz. A maquiagem acentua demais os seus rostos. Tem pelo menos seis deles, todos vestidos, felizmente.

—Tenha um bom show, Lucille. —um deles diz, com uma voz ainda mais fina que a de Vincent.

—Eles não são clientes.

—Quem são, então? —um drag magricelo e negro pergunta, com os olhos pintados com purpurina verde, combinando com o vestido. Sua peruca é loira. Nada nele parece real, e me pergunto como se sente a vontade sendo uma mentira.

—Não é da sua conta. —Vincent abre outra porta, dessa vez nos levando a um quarto menor ainda. É tão cheio de roupas como os outros, até mais, mas não há espelhos nem maquiagem. Só pouca iluminação. Vira-se abruptamente. —O que vocês querem?

—Podemos falar com você? Sobre Vivian? Sem você... pirar?

—O que faz vocês pensarem que alguma coisa mudou e eu vou ser a fada madrinha de vocês agora?

—Não achamos isso. —diz Becker. —Mas agora conhecemos você e você conhece a gente. —ele olha cada um de nós, a expressão sem mudar nenhum centímetro e começo a ficar tensa, como se isso fosse uma confirmação de que isso vai dar errado. E tenho a sensação de que eu não conseguiria esconder isso de Ian.

—Ian não está aqui hoje. Nem o padre Jonah. E eu não acho que ela te colocou nessa missão maluca para apenas descobrirmos quem você é. —digo, com convicção, mesmo que não me sinta tão confiante. —Porque isso não faz a menor diferença na minha vida. —ele me encara por um tempão, os olhos neutros. Não consigo entender.

—Você só está aqui porque quer o próximo nome.

Próximo nome.

Eu não sabia que tinha um próximo nome. —resolvo contar a verdade. —Estou falando de você.

—Olha, Vincent, —Becker recomeça, em uma voz mais gentil. —não sabemos o que ela queria que a gente fizesse quando te colocou nisso. Só estamos tentando entender. Antes de passar para a próxima.

—Não há nada para entender.

—Há sua família. —Vincent foca em mim. —E eu conheci eles. Isso faria diferença na vida deles.

—Não ouse se meter nos assuntos da minha família. —vocifera.

—Quando foi a última vez que viu eles?

—É isso que vocês querem? —ele grita, sua voz caindo na masculinidade. —Se meter na minha vida achando que era o que ela queria?

—Ela nunca te disse que era hora de você contar para as suas irmãs? —Eric pergunta, e então ele para. Sei que é verdade antes mesmo de ele confirmar.

—Vocês são crianças. Eu sou adulto. Eu faço o que eu quiser e vocês ficam quietos. Se era para isso que vocês vieram aqui, podem ir embora. —ele abre a porta e os outros drag queens nos encaram.

—Não, eu vou ficar aqui. —Porque você precisa de paciência. Isso faz ele revirar os olhos.

—Cai fora, garota.

—O que você quer Vincent? Por que deixou a gente entrar? —Eu amo Becker. Amo ela e suas perguntas inteligentes. Essas perguntas que o fazem pensar por um segundo, abaixar a guarda. Não parece mais tão assustador assim. Parece mais com Visia do que com Victoria nesse aspecto, quando deixa a sensibilidade se mostrar. Ele se vira, e mexe em um dos vestidos, sem achar o que procura. Então olha em uma gaveta no canto da sala, depois em outro, e o lugar fica cada vez menor. Por fim, ele acha e estende para nós um pedaço de papel. Por medo, eu não pego. Já sei o que é. Eric pega.

—"Me dê a sua mão, dê espaço para que eu siga e conduza você a diante dessa poesia raivosa". Quê?

—Não, eu não vim aqui pra isso. —balanço a cabeça veemente, na esperança de que se torne verdade. No fundo, meu coração implora para que eu pegue o papel, ache a pessoa e termine isso. Mas por enquanto, tenho que lidar com Vincent.

—Foi por isso aí que eu deixei vocês entrarem. —ele aponta, como se odiasse cada segundo. —Eu só quero que me deixem em paz.

—Por que você não para de agir como um idiota e admite que estamos tentando fazer uma coisa boa por você?

—Então vocês não querem o nome?

—Não agora. —eu aviso. —Estamos aqui por você. Por que só ela sabia disso? —aponto para suas roupas.

—Porque ela era minha melhor amiga.

Meu coração parte.

—Mas e Visia e Victoria?

—Elas não entendem o que eu e Vivian passamos.

—Como assim? —pergunta Becker, cruzando os braços. Robbie a puxa para o seu lado, colocando um braço em volta dela. Vincent hesita em contar, como se estivesse perdendo seu tempo, mas algo faz as palavras saírem dele e suspiro de alívio, sem saber quanto estava esperando ouvir algo.

—Meu... meu pai era difícil.

—O avô terrorista.

—É. —quando ele não fala mais nada, desviando os olhos e se apoiando em apenas um dos saltos, resolto tentar a sorte mais um pouco. Sou como uma sobrevivente no deserto procurando água e tenho consciência de que isso é irritante, mas se não tentar agora, ele me pode me expulsar para sempre.

—Você sente falta do Harry? —suas sobrancelhas se juntam, numa expressão confusa e irritada ao mesmo tempo, talvez surpresa.

—O quanto você sabe?

—Quem é Harry? —pergunta Eric.

—Meu padrasto. E não.

—Victoria me contou.

—Eu quero saber, também. —comenta Becker, e eu esqueço que ela não sabe os pequenos detalhes, que não estava lá. Que aquilo é algo apenas meu e de Ian, e da família dele. Por algum motivo egoísta, eu não quero que ele conte. Porque na minha cabeça, se contar, é como se eu não participasse mais da família, não fosse um segredo exclusivo. Mas é Becker. E eu quero saber a história dele.

—Vocês tem um cigarro?

—Não.

—Merda. Escutem, eu não posso falar nada agora. —diz, depois que alguém bate na porta. Parece agitado. —Fiquem com o papel. Cadê Ian?

—Foi ver o pai. Você não sente falta do seu padrasto?

—Você continua não sabendo de nada. —A batida na porta continua. Um dos drag queens grita.

—LUCILLE!

—JÁ VAI, CACETE. —Vincent arruma o cabelo, mas a peruca não ajuda. Becker intervém e abaixa os tufos de cabelo ruivo, e ele dá um passo para trás, sem esperar por isso. Sempre me impressionei com a capacidade de Becker de interagir com intimidade com qualquer pessoa, e talvez Vincent seja que nem eu, que se surpreende com qualquer um que aja desse modo perto dele. Seus olhos conectam-se com os dela e ele fica tímido, mas o encanto se quebra com mais uma batida na porta e Vincent fica tão masculino como feminino, posicionando-se daquele jeito violento enquanto abre a porta. O drag queen negro dá um passo para trás, sem esperar a pressa de Vincent.

—Que é?

—Baby está te chamando.—ele só levanta uma mão, impaciente, para o rosto do outro e olha para nós.

—O endereço está do outro lado da folha do poema, mas não se metam lá sem mim, entenderam? Ligarei. Agora, saiam daqui antes que vocês acabem na cama com um deles. —Eric solta um "ha", lembrando da frase da nossa última vinda. O clima é ameno, mas tem algo que me prende aqui.

—Você vai ligar, não é?

—Não sou seu namorado, garota. Você não faz esse tipo de pergunta para alguém como eu.

Becker explode em risinhos, passando um braço pelo meu pescoço, se apoiando.

—Ela está em um Relacionamento Sério com o Ian.

—Vincent! —uma voz grita.

—VÁ SE FODER! —grita ele, em retorno, e ergue uma sobrancelha para mim. —Você é rápida, garota.

—Não estamos em um Relacionamento Sério.

—Não é da minha conta. Não fique grávida.

Está vendo? Eu não consigo entender Vincent. Ele age como se não ligasse para nada, mas fala essas palavras na pura honestidade e seriedade, e eu me pergunto o quanto ele acompanha da vida da família, mesmo que ninguém perceba. Mesmo que a família em si não perceba. Chego a conclusão de que ele se importa, sim, e tem um coração bom, sim. Só precisa de atenção, porque essa atenção nos faz captar esses detalhes que ele deixa escapar que mostram o Vincent de verdade. Ou a Lucille de verdade. Ele é que nem Vivian. Sem dizer nada, ele se afasta e o drag queen na nossa frente, com a maquiagem verde chamativa abana a mão nos nossos rostos.

—Deem o fora, amores. Isso não é para crianças.

No carro, eu faço Eric ficar com o poema, sem nem olhar, nem tocar nele. Mas saber que ele existe —uma Próxima Pessoa, Próximo Passo —é reviver Vivian outra vez. Me sinto agitada só de pensar nisso. Quando eu chego em casa, meu pai está gritando/mandando em algum sócio dele no seu escritório, e minha mãe está na cozinha, com o computador na bancada como sempre. São nove horas da noite, e eu esperava que não houvesse ninguém acordado, mas, julgando pelo olhar exausto da minha mãe, o dia vai ser longo.

—Oi, mãe.

—Diana.

Vou até a geladeira, e tiro o leite. Enquanto procuro por copos, ela continua a conversa.

—Seu pai me disse que você quer estudar em Nova York.

—Eu já me matriculei. —aviso. —O resultado da prova foi o suficiente e eles me aceitaram.

—Precisamos conversar sobre isso. —Silêncio. —Você acha que pode fazer escolhas e nem nos contar? O dinheiro é nosso.

—Eu tenho dinheiro.

—Desde quando você trabalha?

Alguém me tire daqui.

—Eu não trabalho. —mas deveria. —Ainda. Eu já contei isso para o papai. Ele não mencionou?

—Ele mencionou.

Quando eu fico quieta —novamente —ela também se fecha e eu vou para o meu quarto, ignorando as vozes vindo do escritório do meu pai. Estou quase dormindo quando escuto o telefone de casa tocar, então saio do quarto para atender. Minha mãe está no corredor também, mas eu pego antes dela, porque quase ninguém liga para a nossa casa à negócios. E eu acerto, porque é Ian. Ian!

—Diana? —ele tem uma voz bonita.

—Oi? —eu respondo, e minha mãe me olha, um olhar vazio. Cruza os braços, e eu me afasto do telefone, para comunicá-la com uma falsa calma que a ligação é para mim. Nada importante. Nada raro. Entro no meu quarto antes de alguma resposta dela, me jogando na cama, o coração batendo.

—Aí é tarde? Eu posso ligar amanhã.

—São só duas horas de diferença. —sussurro, sem razão. De repente, é como se ele estivesse do meu lado. —O que você está fazendo?

—Uns amigos do meu pai estavam enchendo meu saco para beber cerveja com eles, então resolvi ir para a cama mais cedo.

—Seu pai é idiota?

—Às vezes.

—Sei como é. —ele ri delicadamente.

—E você? —me pergunto se devo contar para ele sobre Vincent e decido que é melhor assim. Não corro o risco de ele descobrir quando chegar, mas hesito por um segundo, porque ele pode mesmo ficar bravo. Não queria que ele ficasse assim.

—Eu fiz uma coisa hoje.

—Ah, é? O quê?

—Mas eu não quero que você fique bravo.

—Não tem como eu ficar bravo com você agora. —Pausa. —Você se pegou com alguém?

—Não! —dessa vez, ele gargalha e eu sinto meu rosto esquentar. Sorrio contra o travesseiro.

—O que pode ser pior que isso?

—Fui ver Vincent. —cuspo as palavras para fora. Há uma onda de silêncio onde só escuto sua respiração contra o telefone, normalizada. Então percebo que não há motivos para ele ficar bravo comigo, mas mesmo assim, espero suas palavras como se fosse o fim do mundo.

—Por quê? Pensei que tinha acabado.

—Porque isso é importante, Ian. Para mim. Para você.

—Ele deu algum nome?

—Sim, mas deixei com o Eric. Vincent disse que não podíamos ir sem ele. E vamos esperar você voltar. Você está bravo?

—Não, —ele responde, com a voz moderada. —eu não estou. Eu só... não sei. Victoria me ligou hoje mais cedo. Quase contei para ela sobre ele. E se ele estiver ajudando e fazendo isso só para se livrar da obrigação de verdade? E se isso só piorar?

—Eu sei. Eu sei. Só que... eu não consigo. Não sei explicar, mas... nós temos que fazer isso. —não falamos nada por alguns segundos. —E se for alguma coisa boa?

—É a minha mãe, Diana. Quase nunca é algo bom.

—É mas... e se no final de tudo isso a gente encontrar algo muito bom? Que mude a nossa vida? Talvez aconteça e eu preciso saber. —Mais silêncio. Resolvo mudar de assunto. —Como foi hoje?

Então ele aceita a mudança e me conta sobre a vida com o pai dele. Curiosa, escuto cada detalhe, absorvendo tudo, esse monte de informação sobre uma realidade que não conheço, desejando estar com ele a estar aqui.. Me coloco debaixo da coberta e ele continua falando sobre a madrasta dele, que deseja mais que tudo no mundo que ele a chame de mãe, mas Ian não consegue. Diz que é muito esquisito. Ele me conta que quando ele contou que a mãe dele tinha morrido para a madrasta, ela disse que ele podia chamar ela de mãe agora.

—Como se ela estivesse esperando a minha mãe morrer pra tomar o lugar dela, sabe?

—Sei. Que idiota.

—Pois é. E ontem, meu pai me levou para ver uns carros novos que ele quer comprar pra mim. Eu sabia que era uma emboscada, porque ele quer que eu faça faculdade perto dele, mas eu consegui recuar antes que ele me ameaçasse. —lembro dos meus pais. —E minha irmã mais nova...

Pausa.

—Você tem uma irmã mais nova? COMO ASSIM?

—Ela tem cinco anos. Julie. Você ia amar ela, parece uma Barbie.

—Eu... eu não sabia que você tinha uma irmã. Isso é importante.

—Eu vejo ela uma ou duas vezes por ano, só. Ela nem gosta de mim. —mas ele ri, descontraído, e no meio da risada, toda minha tensão por encontrar Vincent e falar com meus pais se dissipa. Fecho meus olhos, encarando a noite lá fora.

—O que você ia falar sobre ela?

—Ela estava contando quantos giz ela tem e eu disse que Visia tem milhares de potinhos de plástico onde ela guarda um monte de coisas que acha que vai esquecer. Eu contei que ela obriga eu e Yasha a fazermos isso também, e Julie colocou na cabeça que precisava dos potinhos de plástico pra guardar os giz.

—Ai meu Deus. O que aconteceu? —pergunto, sabendo que algo idiota bem pela frente, pela voz risonha de Ian.

—Então eu disse pra ela que ela precisaria de MUITOS potinhos pra guardar tudo, e que eu não tinha dinheiro pra comprar tudo. Então falei que eu ia roubar dinheiro do meu pai pra comprar pra ela, e ela teria que ficar quieta.

—Você roubou dinheiro do seu pai?

—Não! Eu tinha dinheiro! Eu só queria brincar com ela. Então eu fingi que peguei dinheiro da carteira dele e fui com ela comprar os potinhos. Aí eu contei pro meu pai que disse que tinha pego dinheiro dele, e quando a gente saiu pra jantar, ele ficou fazendo o maior drama porque o dinheiro dele tinha sido roubado. Eu quase acreditei! Ele ficou muito sério, e Rebeca, a minha madrasta, não sabia o que estava acontecendo, então ficou super séria também. Eu olhei para Julie e me matei de rir da expressão culpada dela, como se tivesse feito algo muito ruim. Achei que ela ia começar a chorar, mas então ela gritou "FOI O IAN! FOI O IAN! ELE DISSE QUE IA COMPRAR OS POTINHOS!" e então ela começou a chorar porque achava que eu ia ser preso. Meu pai nunca riu tanto.

—Não é surpresa que a menina não goste de você. —uma risada me escapa, preenchendo os silêncio do meu quarto.

—Foi engraçado, eu juro.

—Você devia ir pra cadeia. —rio um pouco mais. —O que a sua madrasta disse?

—Ela riu junto. Até a Julie riu, depois de me dar um tapa.

—Péssimo irmão.

—Foi engraçado.

Se ela crescer traumatizada, o culpado é você.

—Tchau, Diana.

—Você vai desligar? —pergunto, meio alarmada.

Ele não desliga. Continua falando, e me pergunta sobre Vincent e como foi e sobre meu dia, até a noite acabar e o dia amanhecer e eu perceber que dormi, pois acordo com o telefone grudado no rosto e a ligação terminada. O registro do telefone diz que a ligação terminou duas da manhã. E mesmo com sono, eu sorrio, me sentindo em uma daquelas bolhas onde nada pode dar errado e minha vida está seguindo um rumo certo. Consigo fugir dos meus pais pela manhã para ir para a casa de Becker, e nós ficamos planejando os lugares que vamos quando visitarmos Nova York depois da formatura. Ligamos para alguns lugares, discutimos dinheiro e ajudamos a mãe dela a fazer a comida. Durante o almoço, a senhora Mollison me pergunta sobre o "meu namorado" e eu olho para Becker, queimando-a com os olhos, mas tudo que faz é desviar o olhar e reprimir o sorriso. Eu digo que ele está ótimo, para me livrar do assunto, e ela me pergunta como estão os meus pais, e eu respondo que eles estão ótimos, também.

—Ainda difíceis?

—Um pouco, sim.

—Se você precisar de ajuda, estaremos sempre aqui. —e minha garganta se fecha imediatamente. O olhar que eu dou à ela diz tudo que não consigo pronunciar, como muito obrigada. Ela sorri e manda a gente lavar a louça. A tarde, vamos ao jogo de Robbie com Eric. Ele me obriga a jogar pipoca no cabelo das pessoas, para depois nos abaixarmos quando alguém olha para trás. Em um dos processos, Eric acaba empurrando minha cabeça contra uma das cadeiras sem querer e depois corre para comprar uma garrafinha de água gelada o suficiente para colocar contra o hematoma, rindo da minha cara enquanto eu rio da dele. Becker grita tanto que fica rouca, e rimos dela quando Ian liga e confunde a voz dela com a de Eric.

—Vai se foder. —ela resmunga no celular, mas a notícia boa vem logo em seguida, quando Ian avisa que está no aeroporto e quer saber que podemos ir buscá-lo.

—Você ficaria bravo se eu ficasse com o Robbie hoje? —ela pergunta à ele, e obviamente, todos nós a deixamos ir quando o jogo acaba, e eu vou com Eric buscar Ian.

—Dá para você parar de estragar o carro da minha mãe? —Eric pergunta, percebendo minha ansiedade, mas sem ajudar em muita coisa. Começo a mexer nos meus dedos ao invés disso, sem conseguir me aquietar. Você está tão apaixonada.

Que esquisito.

Entramos no aeroporto, escaneando a multidão desesperadamente. Um mar de pessoas se aproxima, nos alcança e nos ultrapassa, tantas chegadas e partidas. É a terceira vez que venho para esse aeroporto —a primeira foi para levar minha irmã embora, e a segunda para levar Ian embora. E agora, pelo menos um deles está voltando agora, mesmo que eu Gwen tenha passado por aqui toda vez que vem me visitar.

—Ali, —mostra-me Eric. —com a mala azul. —aponta para a direção certa, e meu coração dá um pulo quando encontra Ian, e consigo escutá-lo nos meus ouvidos quando nos aproximamos o bastante para saber que é o Ian de verdade e ele está aqui. Ele abraça Eric rapidamente, dando um tapa na sua cabeça e mencionando a escola militar. Rio nervosamente, e isso chama a sua atenção, fazendo com que os olhos dele caiam em mim e eu não escuto mais nada além do som que minha euforia cria na minha cabeça, enquanto ele se abaixa e lambe meus lábios, com as mãos nos bolsos do casaco. O gesto é tão bobinho que me faz corar, sorrir e desviar os olhos.

—Oh-oh. Alerta de língua. Vocês querem que eu me vire para dar privacidade?

—Não precisa, eu sou prático. —Ian segura um folder turístico na altura das nossas cabeças, cobrindo nossos rostos enquanto a sua boca entra em contato com a minha. —Oi. —sussurra.

—Oi. —toco sua bochecha. Ele sorri.

Eric estaciona o carro na frente da casa de Vivian quando chegamos, e todos nós vamos para a sala, mas apenas eu não paro no sofá, e sim na janela, encarando a igreja. Há uma missa acontecendo, como sempre. As portas estão fechadas mas consigo ouvir a voz do padre falando lá dentro e pergunto se eles querem ir na missa.

—Nesse exato momento, —responde Ian, ocupando todo o espaço do sofá. —só quero dormir. —em seguida fecha os olhos e coloca um braço cobrindo o rosto. —Por uns dez anos.

—Não vai dar, cara. —Eric comenta, do nada. Ele nos encara, com a expressão séria, olhando para o celular. —Becker me mandou uma mensagem. Disse que Vincent ligou para ela para avisar que estava vindo.

—Vindo... para onde? —é uma pergunta idiota.

—Para cá. Agora. E ela disse que, nas palavras do Vincent, "essa porra ia acabar de vez".


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Notas finais do capítulo

ATÉ O PRÓXIMO CAPÍTULO QUE EU ESPERO QUE NÃO DEMORE TANTO ASSIM PRA SAIR DA MINHA CABEÇA, BYE



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