O céu, a terra e o meio do caminho escrita por Hanako


Capítulo 3
Família




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O sair da fazenda foi o mais difícil. Com muitos hectares e os nervos à flor da pele, cada roçar de folhas parecia um delator e cada quilômetro parecia infinito. No final da noite, ele finalmente estava fora. Perguntas o dominaram assim que saiu: para onde ir? O que procurar? Bem, as únicas notícias que teve dentro daquele inferno em que vivia é que seu avô estava por aí, talvez à sua espera em uma cidade pequena, perto dali. Só tinha uma cidade perto da fazenda e era para lá que ele iria, mesmo que aquilo significasse ser pego, era a sua única esperança. A estrada de acesso era reta e sem muitas complicações. Sua chegada foi rápida, mas a terra que subia por causa de seus passos sem prendeu em suas pernas e roupas. O suor por causa do exercício e do sol quente fez com que o cabelo grudasse em sua testa e nuca e carregar aquele saco começou a doer seus ombros, mas já estava chegando quando se deu conta disso.

A cidade sequer poderia ser considerada como um arraial. Pouquíssimas casas, duas mercearias e uma capela. Nem mesmo um cemitério ela possuía, nem mesmo uma praça, mas havia um rio. Ele tirou suas roupas, tomou seu banho e lavou as peças já bem puídas ali também, para que parecesse pelo menos um pouco apresentável para o seu avô.

Seu peito batia forte enquanto pensava em como ele seria. Será que seu avô era velho e castigado pelo tempo? Ou será que era daqueles que parece nunca envelhecer? Sem perceber, já se imaginava tomando chá e comentando a respeito do dia com ele ao lado, perguntando sobre como iriam os estudos e onde estava durante todo esse tempo, falando que todos morriam de saudade...

Parou as divagações para enfim descobrir onde aquele homem estava. Sabia que o nome dele era João, pois sempre o chamavam de “presentinho de João” e que o sobrenome era Odidre por causa de um ato falho de uma das filhas do dono da fazenda, que o chamou de “desgraça da família Odidre”. Não que gostasse dos apelidos, mas agora eles serviam muito bem ao seu propósito. As roupas ainda estavam úmidas quando ele as vestiu. Jogou o cabelo liso para trás e segurou a sacola apoiando no ombro para dar uma boa impressão aos moradores e saiu para bater de porta em porta à procura de uma informação qualquer sobre a sua própria vida.

Com medo de ser descoberto, não falou nada a respeito de si mesmo. Apenas disse que queria encontrar João Odidre porque tinha assuntos pendentes. Resolveu começar pela maior casa, a mais bela de todas, na esperança de que fosse um centro político, um lugar para a reunião de moradores ou algo do gênero, mas ninguém atendeu. Resolveu seguir a rua na ordem em que as casas se encontravam ao redor desta. Na quinta casa que bateu, um homem finalmente tinha a resposta. Há alguns anos atrás, o velho teria deixado a comunidade e passado a morar em outra próxima e, diziam as más línguas, que era por causa do monte de dívidas que tinha construído ao longo da vida. Sora preferia pensar que tinha saído dali cansado de esperar que o neto voltasse, mas tinha medo de ser positivo demais.

Por sorte, o homem teria que passar naquela mesma cidade para entregar verduras no dia seguinte. Mesmo desconfiado, Sora aceitou. Não tinha nada a perder e nunca teve em toda a sua vida. Pulou no carro de bois e esperava dormir ali mesmo, antes que partissem no dia seguinte. Por pena, acreditou Sora, o homem lhe deu um par de chinelos e uma nova muda de roupas. Agradecido, vestiu ali mesmo na rua, sem estar acostumado a sentir vergonha. Quando viu as cicatrizes, ficou horrorizado e levou o menino para dentro de casa. Algumas explicações deveriam ser dadas e, sendo péssimo em mentir, Sora optou por falar a verdade. Contou o que tinha passado, mas poupou à família de detalhes, eles não precisavam daquilo.

Mesmo assim, se sentiram penalizados com a causa e deixaram o menino dormir dentro de casa. Um jantar bem simples foi servido: uma sopa com os produtos que cultivavam na horta e pães velhos para acompanhar. Era mais do que Sora comia há muito tempo e foi muito bem recebido pelo seu estômago. De barriga cheia, deitou na cama de bom grado e dormiu como uma pedra até o dia seguinte.

Acostumado a acordar com o raiar do dia, estava de pé antes mesmo que um galo ousasse cantar. Levantou-se ainda sonolento e esperou pela família na sala da casa. Sentado no sofá remendado, ereto como se esperasse que alguém o mandasse levantar a bofetadas, observava as fotos na parede. Um casal jovem, um casal idoso e crianças cobriam a tinta que descascava. Sora supôs que o casal jovem era aquele que morava ali.

Atento às figuras, não percebeu quando eles se levantaram e se arrumaram. A mesa já estava servida quando ele se levantou. A mulher lhe serviu café e pão. O homem lhe concedeu frutas e verduras para abastecer sua sacola. Saíram logo em seguida.

Se não fosse pela bondade daquele casal, Sora teria considerado mais fácil ir à pé. O carro de bois demorava muito e, de vez em quando, tinham que parar para não cansar os animais. Quando chegaram, bem mais tarde que o esperado, o homem foi fazer o seu serviço enquanto Sora batia na porta da qual seria a casa do seu avô. A casa era simples, pequena. Branca, metade dela estava suja de poeira e barro, o que dava um aspecto de algo velho. As janelas e a porta eram pintadas de azul, mas a tinta estava descascando e, em alguns pedaços se podia ver a madeira. Ele bateu uma, duas, três vezes, mas ninguém a abrir. Pelo seu instinto de fuga, ouvia os pequenos passos dados atrás daquela porta e se recusou a desistir. Sentou embaixo de uma das janelas e esperou.

O homem que lhe trouxe até ali insistiu para que voltasse com ele, mas o garoto não quis de jeito algum, aquela era a sua única esperança. Continuou sentado no chão e permaneceu assim até que alguém abriu a porta. Nunca soube o nome da família que o ajudou naquele momento, mas sempre se sentiu grato. Talvez, se tivesse retornado naquele momento com ele, se não tivesse aquele medo de ser descoberto e ter que voltar ao trabalho escravo talvez, ele finalmente tivesse um pai e uma mãe e uma família para qual ele daria todo o seu amor, mas Sora tinha medo e o seu medo o impulsionava para longe dali, para o que conhecia, o que lhe parecia confiável. Olhou para a porta sem pensar na possibilidade de desistir de seu avô.

Depois de um tempo, o garoto se deitou e tirou um cochilo. Horas mais tarde, um homem que aparentava ter uns quarenta anos, com cabelos grisalhos e fortes linhas de expressão ao redor dos olhos abriu a porta. Sora se levantou quase tão rapidamente quanto uma pessoa ao levar um susto. O homem o olhava como em estado de choque e não se moveu para dar passagem para dentro da casa por um bom tempo. Seus olhos azuis, de um azul tão escuro que chegava a ser preto pareciam vazios, sem alma. Foi a expressão que o menino guardou para a vida e é o que sempre dizia quando lhe perguntavam a respeito daquele que lhe abriu a porta.

Interrompendo o silêncio, ele pigarreou e disse “Eu sou Sora Odidre, vim procurar pela minha família”.


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