Facção. Dos. Perdedores escrita por jonny gat


Capítulo 72
Os personagens nunca deixam de ser eles mesmos.




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Ramon não conseguiu meditar por muito tempo. A premonição de Mestre do Universo aconteceu antes que conseguisse chegar até o quinto estágio de sua meditação transcendental, que costumava fazer sempre que se sentia um tanto chateado com os acontecimentos recentes e desapontado com os outros e com os acontecimentos recentes. A distante força puxando-o para fora daquele universo foi algo inesperado, foi algo que nunca tinha antes sentido. Era esse seu destino? Ser caçado, por ser uma Essência da vida, pela eternidade? Essa não era a primeira vez que era abordado por inimigos de um universo alternativo que buscavam acabar com qualquer forma de vida que diziam ser imperfeita. Don Ramon, caso soubesse que o atual líder de seus inimigos era o que a doutrina mercuriana chamaria de imperfeito.

Acontecerá algo antes da luta de Don Ramon ser narrada. Algo que já aconteceu há algum certo período do tempo, mas não faz diferença. Do que adianta contar uma história em ordem cronológica, nessa realidade em que tantos outros tempos existem? Há pouco tempo atrás, Shepard morreu por um ataque vingativo da inteligência artificial que seguia suas ordens, Mendel.

Shepard estava morto e, mesmo que Mendel fizesse a maior parte do plano – até porque ele que enviava sondas espaciais para lugares distantes daquele universo e outros universos distantes em busca de vida imperfeita – Shepard passou a ser visto como líder do plano. Era ele que interferia nos outros universos em busca de um herdeiro do Mormada de sua realidade e limpando qualquer rastro que ele e seus subalternos deixavam. Era, junto com o Mormada, os únicos mercurianos que ainda estavam vivos. O que tinham acontecido com os outros?

Há uma longa história para ser contada, e provavelmente não poderá ser de fato contada por completo. Seu tudo, ou suas partes mais interessantes, terão que ser abordados mais tarde ou em outra ocasião em que o foco da história seja outro.

A humanidade prosperou com suas diversas expansões galácticas. Podemos dizer que esse não foi o início, mas a primeira Imperatriz de Mercúrio Catarina III, tinha algumas coisas a dizer sobre sua opinião em relação à busca pela vida perfeita. Felizmente, o mundo pode prosperar em paz por mais alguns milênios, porque Catarina não teve um reinado muito longo por conta da falta de sua saúde. Mas o livro que deixara escrito, O Fardo Mercuriano, tornou-se a base filosófica por trás do plano do Grão-Duque Regente Ferdinando, que não ligava muito pra essa coisa, mas adorava a ideia de fazer com que os outros lutassem por ele em busca do domínio galáctico. Ele conseguiu, com algumas dificuldades, mas os avanços de sua civilização eram imensos demais para serem parados por uma galáxia praticamente desarmada que buscava a convivência pacífica entre indivíduos.

Mas a ideia não durou muito, na época. Humanos não lutariam mais contra humanos. Todos saudavam o Imperador Mercuriano Primeiro Cidadão da Via Láctea e futuramente do universo Ferdinando, até o dia em que morreu. Diversas guerras foram travadas contra seres de outras galáxias por motivos gananciosos, nunca abandonando a ideia escrita há milhares de anos atrás por Catarina III.

Acontece que, por mais que você fique anos e anos buscando por vida no universo, é muito provável que só o seu neto encontre alguma forma de vida microscópica dentro de um asteroide qualquer que forma o anel de um planeta gasoso e bastante distante do que um dia você já tinha chamado de casa. Mas, mesmo assim, essa forma de vida era destruída. Muitos desses planetas eram inabitados, mas que poderiam ser habitados a partir da terraformação, que a fórmula estava dentro de um potezinho que era vendido num dos mercados digitais de qualquer dispositivo feito depois do décimo quarto milênio que aceitasse banda-ultraonda psíquicas.

 Cada ano a humanidade distanciava-se cada vez mais da Via Láctea, buscando por nova vida em um sistema solar distante em que não fossem obrigados a pagar impostos tão absurdos contra reis que abusavam de seu poder, que julgavam não ter limites. Mercúrio, o centro do mundo, tornou-se uma cidade-planeta vazia cujo lar era apenas de nobres. Archibald IV tornou-se o Primeiro Cidadão da galáxia que os livros de história não lembrariam e não escreveriam sobre, porque ninguém pôde escrever uma simples sentença sobre seu reinado que massacrou todo ser vivo que não julgasse ser perfeito. Que não fosse humano e mercuriano.

Com toda a tecnologia e força militar que a única e maior autoridade da galáxia possuía, Archibald começou a usar todo seu poder para conseguir completar o objetivo de seus ancestrais nobres: limpar o universo. Não foi muito difícil para ele, tinha todos os recursos para destruir todas as pequenas sociedades que estavam crescendo nas galáxias ao redor de seu império. Archibald ria e ria e ria. Archibald morreu, felizmente.

A humanidade se encontrava numa era bastante estranha para se entender, principalmente se quem está tentando entender é um individuo que vive numa sociedade interplanetária, arobótica, pré-clonática e composta por babacas e idiotas ignorantes, em parte. Alguns ainda eram babacas, nessa sociedade alternativa que estamos falando. Mesmo a porcentagem de babacas não sendo tão diferentes, o número de seres humanos vivos por aquele universo era bastante menor que o universo que você conhece (desculpe se isso não se aplica a você, ou se você conhece mais de um universo, não tenho intenção de excluir ninguém, estou apenas generalizando).

 Menor ainda era o número de seres que não eram humanos. Criaturas que muitos julgam inocentes também não foram poupadas. Na realidade, ninguém se importava mais com os animais, podiam ser muito bem substituídos por robôs de estimação dentro de casa. A indústria de alimento, em que robôs trabalhavam e eram supervisionados por robôs, não tinham muitos a atender e era baseada na pecuária de protozoários.

Para que mais animais poderiam ser necessários? Ciclo ecológico? Para que, se a tecnologia era capaz de criar um ambiente completamente sustentável a partir da química e ecologia? Bem, para isso você só precisaria de pessoas que saibam ecologia e química. Por que pessoas? Eu prefiro robôs, pessoas cheiram mal e são imperfeitas, disse Archibald antes de exterminar todos os acadêmicos de seu tempo. Substitui-os por máquinas. Máquinas não podem criar teorias acadêmicas, letras de musica nem nada desse tipo, mas isso não significa que a produção cultural e científica da humanidade tivesse acabada. As pessoinhas que sobraram aproveitavam seu tempo bebendo vinho, escrevendo o poema sobre a solidão e o vazio, e a falta de significado da vida. Mas, bem, eles eram nobres. Nobres são meio burros, pelo menos esses nobres. Eles não se importavam muito com nada, muito menos com a ciência. Não estavam nem um pouco preocupado com o fato de estarem usando há 40 anos com a mesma tecnologia. Ela ainda era efetiva, e provavelmente continuaria sendo.

Mas, bem, vamos lembrar que o universo é infinito, as possibilidades são infinitas! O destino é irônico. As sondas que os mercurianos usavam para encontrar vidas para que então pudessem ser completamente apagadas, limpando o solo do espectro universal, encontraram uma sociedade maravilhosa, belíssima. Apesar do autor ter uma visão bastante imparcial sobre como uma sociedade maravilhosa é, não acho que muitos discordariam dele nesse quesito. Era uma sociedade que muitos podiam viver felizes. Homem não era escravo de homem e robô não era escravo de homem. Vidas coexistiam pacificamente em busca do progresso da sociedade em todas as instâncias e sentidos. Apesar da massiva liderança tecnológica, os mercurianos mais uma vez triunfaram pela falta de unidade naquela sociedade. Não que os indivíduos não se entendessem ou fossem rivais, na verdade se davam muito bem. Mas faltava uma autoridade que oprimisse todos os sujeitos para a guerra, obrigando-os a lutar em prol de seus próprios interesses. O interesse de todos, a paz, não poderia ser alcançada pela guerra, e entendiam isso. Muitos simplesmente viraram a bochecha para o outro lado e continuavam seu trabalho, porque sabiam que não conseguiriam oprimir os opressores pelo fato de não buscarem a opressão.

Os mercurianos escravizavam os robôs que podiam criar pelo fato de serem baseados em mais do que três leis que o tornavam escravos do ser humano e dessas leis. Dessa vez, eram escravos dos humanos, mas não dessa lei. Não poderiam enfrentar as armas que eram apontadas a eles. O fundador dessa sociedade, um antigo amigo do atual Primeiro Cidadão da Galáxia, foi executado.

 Por muito e muito tempo as sondas deixaram de captar formas de vida naquele universo. Era o fim? Finalmente eram os seres absolutos e autoridade suprema por todo o solo que existia? Dono de todas as estrelas em todas as galáxias? Não. Com o crescimento científico, outros universos foram descobertos. Outras linhas do tempo. Não, Meuros I não podia aceitar isso. Não podia aceitar que ainda existia tanta vida em tantos universos. Iria declarar guerra contra todos aqueles universos, destruiria tudo que pudesse, cada átomo, cada partícula daqueles universos impuros contaminados de criaturas sujas.

Mesmo sem existir nenhuma menção sobre os Vrils na explicação acima, eles não são tão paralelos à história quanto se pode pensar. Veja bem, Vrils não são os vilões dessa história. Vrils sonham em um novo mundo, em que todos os universos não sejam ameaçados de extinção só porque um babaca decidiu usar um livro antigo que ninguém nunca levou a sério como motivo para guerrear contra todos e tudo. Eles perceberam que não havia mais motivo em continuar vivendo nesses universos e que eles precisavam começar a pensar em construir outro.

Eles não constroem universos, mas sabe-se que a expansão dos universos e da vida estão claramente relacionados à presença dessas pequenas partículas que se ajeitam de formas cristalizadas, os tão famosos e conhecidos cristais Vrils. São cristais poderosos com uma quantidade de energia presentes em sua estrutura. Uma magnitude de sua explosão pode apagar universos, dragões perderiam empregos se esses cristais simplesmente caíssem ao chão. E pelo bem da nação dracônica, existem os Vrils. Eles são a garantia que esse cristal, que representa toda a energia presente em tal universo, não simplesmente caia e faça com que o dragão perca esse emprego. É meio claro que esse dragão não sabe disso, na verdade nem os contratantes dos dragões que giram em torno dos quadrados que se tornam mais quadrados sabem disso. Simplesmente sempre esteve lá, assim como dragões sempre giraram em torno do universo.

Por que estavam coletando esses cristais? Porque não queriam que toda essa energia fosse desperdiçada, para que pudessem outro dia formar um universo que funcionasse sem tanta idiotice.

Vrils não são os caras maus. Tommy não era um cara mal, ele só estava procurando pelo cristal que estava presente naquele universo. Ele sabia onde encontraria e estava bem a frente de onde estava depositado.

Acontece que Vrils e Don Ramon nunca tiveram uma história muito boa. Desde que nascera, ou melhor, desde que tornou-se o que hoje é, Don Ramon lutou com Vrils tantas vezes que não conseguiria contar essas vezes com o número de vezes que fez xixi na vida. Na verdade, é uma comparação boa, porque lutar contra um Vril era uma coisa bastante comum, comum como fazer xixi. E Don Ramon estava prestes a fazer xixi, mesmo que não tivesse percebido que não estava mais meditando nas ruínas de um cenário urbano suavemente destruído pela fura de um Imperador Solar que buscava por seu companheiro de guerra e amigo. Estava agora em outra dimensão. Sentia essa nova dimensão, sentia a intenção assassina Vril, algo que estava tão acostumado quanto o sentimento de alívio logo após de abrir o zíper e deixar a água sair. Já essa comparação não é muito boa, porque não era um alívio lutar contra esse tipo de inimigo, era sempre dor de cabeça e nunca terminava bem.

Nunca tinha morrido contra um inimigo, pelo menos não lembrava, e tinha muitos motivos para pensar que não tinha morrido. Talvez tivesse, em outra linha do tempo ou em outro universo. Que mentira, pensou, não existe outro Don Ramon em nenhum outro lugar. Era um homem único, sim. Não se orgulhava disso. Ser um homem único fazia com que o quadrado que tanto amava e as pessoas que nele morassem estivessem em perigo. Ser um homem único fazia com que o quadrado e todos que nele viviam em tantas realidades diferentes estivesse em perigo, e a sua própria vida também. Sabia que se morresse aquele quadrado estaria morto em pouco tempo. Existia algo em seu coração quebrado que nenhum tinha. Sim, todas essas vezes fazendo xixi... Foi porque era quem ele era. Uma pessoa normal não teria que fazer xixi tantas vezes assim. O xixi simplesmente vinha para ele.

O Vril não se apresentou, nem apareceu. Ramon não abriu os olhos, mas sentiu a mesma frequência e intensidade na aura assassina no que seria seu próximo inimigo. Os sentidos aguçados do Mestre não conseguiam sentir nenhum movimento pelo lado de seu inimigo. Depois de alguns segundos, começou a se indagar se era realmente um Vril, se era realmente um inimigo, ou se simplesmente não estava enganado. Temeu abrir os olhos por não saber o que encontraria ou no que estava prestes a ver, seria um momento perfeito para que fosse atacado. Seus olhos tinham ficado fechados por bastante tempo e demoraria para se acostumar com a luminosidade do ambiente, se bem que não conseguia captar nenhum raio de luz no lugar onde tinha sido subitamente teleportado.

— Abra os olhos, você precisa ver o filme da sua vida – disse Tommy, distante naquela dimensão. A voz ecoou por todos os eixos daquela dimensão. Era uma voz que parecia familiar, mas Ramon só sentia isso porque ouvia muitas vozes enquanto observava a vida dos humanos que prezava.  – Pode abrir, não vou atacá-lo agora. É sério, pode abrir seus olhos.

Don Ramon abriu não queria abrir seus olhos, mas estava suspeitando bastante à situação. Não levou em consideração nada de forma séria do que Tommy havia dito, mas levou em consideração o ambiente constante de onde estava. Certamente não estava sentado ainda em algo sólido, mas sentia que ainda estava sentado em algo, algo que parecia ser o que aquela dimensão se limitava. Expandiu seus sentidos e obteve uma figura de onde estava. Nada que o surpreendeu ou que disse algo sobre a situação. Mas o outro sujeito não estava no mesmo quarto, estava além daquela dimensão. Não existia nenhuma outra forma física naquele quarto pequeno e escuro, nem luz.

— Ok, tudo bem, você não vai abrir os olhos enquanto não souber o que está acontecendo. Meu nome é Tommy e eu sou um Vril, isso você já deve saber. Estou aqui para te matar e você já deve saber disso. Só de saber que sou um Vril já deve você deduzir isso. Deve ser meio repetitivo para você lutar contra nós depois e depois. Desculpe se os outros foram rudes, eu quero fazer isso da forma certa. Quero que você possa ver a sua vida, sentir a sua vida, desde antes de você ter nascido. Quero te explicar a vida, pode ser? Abra os olhos, por favor. Não posso me mostrar nessa dimensão que criei especialmente para você, mas posso abrir uma janelinha para que você possa ver meu rosto, o que acha? – E abriu.

Ramon sentiu modestos raios eletromagnéticos chegando e ricocheteando em várias direções. Estava tentado a abrir seus olhos, mas e se fosse apenas tudo um truque para que pudesse pegá-lo fora de guarda? E se, na verdade, o ataque do inimigo fosse baseado no adversário estar com os olhos abertos? Ele emitia uma radiação tão forte que seus olhos queimariam? Não, não faz sentido. Seus sentidos humanos e subhumanos teriam captado algo diferente caso essa fosse a verdade. Mesmo se fosse algo desconhecido, ainda assim teria um sentimento peculiar.

Em um grande momento de coragem Don Ramon decidiu abrir os olhos e poder encarar os olhos do inimigo. “Eu sou Don Ramon, o defensor da Terra! Eu nunca serei eliminado tão facilmente, se eu não notei nada de errado, não há o que temer!” Destemido, abriu os seus olhos. No primeiro milésimo de segundo que viu a figura apática sem forma concreta do outro lado de uma pequena janela pela qual podia observar uma pequena sala iluminada por uma lâmpada bastante velha e usada, Don Ramon sentiu toda a precaução que estava tendo se tornar em medo. Se o que antes pensava fosse realmente verdade, teria caído na armadilha de Tommy por um momento de exaltação que tivera. Nada de perigoso aconteceu. Alguns segundos depois, a figura abstrata e de diversas cores pastéis de Tommy fechou a janela com o que parecia ser seu braço, mas que na verdade era uma parte de seu corpo que, assim como o restante, não havia uma forma definida. Seu braço, entretanto, gostava de dançar da mesma forma que as ondas rasas e fracas do mar.

 - Então, lembra aquilo que quando uma pessoa morre ela assiste a sua vida passar por seus olhos?

— Eu estou morto?

— Não, ainda não. Eu disse que vou te matar, mas isso não vai acontecer agora – disse, chateado com a intromissão. – Lembra aquilo que quando uma pessoa morre ela assiste a sua vida passar por seus olhos? – repetiu para que então pudesse prosseguir.  – Você vai morrer, Don Ramon, e eu estou te dando o direito de ver toda a sua vida porque isso não acontece de verdade. As pessoas só morrem. Você vai ter essa chance, sinta-se grato.

— Eu não sinto nenhuma forma que você possa me derrotar sem atravessar essa parede, Tom. Na verdade, sinto com toda a certeza que mesmo que estivesse desse lado da parede seria morto assim como todos os outros malignos seres que já atacaram a mim. Não deixarei que escape dessa, não deixarei que saia impune depois de atrapalhar minha meditação e por tramar em prol do fim da vida. Não te pouparei, assim como não poupei os que vieram contra você. – Don Ramon estava inspirado. Mesmo no escuro e sabendo que o inimigo não estava no mesmo quarto, pôs-se em forma de batalha. Sua guarda estaria atenta para caso seus sentidos captassem algo estranho.

— Não precisa estar assim, velho, vai estar tudo bem. Não importa o que você faça, sua morte é um fato certo. – Don Ramon enfureceu-se. – NÃO VOU DEIXAR QUE O MEU MUNDO MORRA COMIGO. DERROTAR-TE-EI INDEPENDENTE DE QUEM TU SEJAS OU QUAIS SEJAM SUAS HABILIDADES. – Seu corpo começou se agitar e a levemente brilhar, sua expressão era a de um homem enfurecido com os últimos dez minutos dessa vida. Faria xixi de uma forma tão furiosa que nunca fez antes. Don Ramon percebeu que fazer xixi não é uma boa comparação com lutar contra um Vril. Pôde ter sido por uma boa parte de sua vida, mas não dessa vez.

— Acalme-se, eu... Não vai ser eu que vou te derrotar. Você quer assistir a sua morte? Posso mostrá-la para você antes que aconteça. Não sei se você se importa muito com spoilers, porque eu mesmo não me importo, até porque não existem spoilers para mim. Eu já sei de tudo, Don Ramon. De seu passado e de seu futuro. É claro, as pessoas tem diversos futuros, porque as possibilidades para elas são infinitas. Cada escolha burra de suas vidas idiotas e imbecis cria uma linha do tempo em que essa pessoa não fez essa escolha, mas fez outra, ou não fez nenhuma dessas. São infinitas as possibilidades. Então, essa pessoa existe em duas linhas do tempo, ou mais. Mas você, Don Ramon? Você só existe em um universo, em uma linha do tempo. Você é um milagre! Você é a única babaquice que é fácil de ver o futuro porque você só pode ter um, certo? Você quer assistir?

— Eu não assistirei algo que não acontecerá. VAMOS, VENHA E TE DERROTAREI.

— Não é bem assim. – Riu. – Eu não tenho motivos para ir aí e te matar, já que alguém fará o trabalho para mim. Se eu tivesse que tentar derrotar-te, eu não conseguiria. Minhas habilidades não são tão boas assim. Eu posso fazer alguns truquezinhos, mas nada que conseguirá derrotar o Grande Don Ramon, Mestre do Extinto Clã Xyauxyau.

— Você irá falhar, Vril.

— Por favor pare de ser tão chato e me pergunte sobre minhas habilidades, pelo menos assim eu posso me divertir um pouco. Você é só mais um imbecil que quer destruir os outros, por isso que estamos recolhendo de volta os cristais. Nossa, vocês são tão babacas....

— Eu não vou perguntar, apesar de sinceramente não ter nenhuma ideia de onde eu esteja e como eu possa sair daqui. Suspeito que esteja aqui por conta de suas habilidades e que não poderei sair enquanto você não puder.

— Bem, se você não for perguntar, então eu não irei dizer a minha habilidade. – disse. – Isso é mentira. Eventualmente eu vou querer dizer. Essa é a primeira vez que eu faço isso. O cristal que eu fui destinado a proteger foi destruído antes que eu pudesse resgatá-lo. Repentinamente, minha mente começa a se virar mais para esse universo, Don Ramon. Você já perguntou como funciona a vida de um Vril, meu querido velho?

Don Ramon, obviamente, não respondeu. “Qual é o problema desse cara? Ele não cala a boca”.

— Então, você não vai perguntar? Vai jogar o joguinho do teimosinho? Tudo bem, eu não vou explicar também. Venho aqui com boa vontade, de explicar tudo para que você possa morrer sem dúvidas. Com boa vontade de fazer com que relembre todos os momentos da sua vida e cada uma das emoções que você sentiu em todos esses momentos. Se você não quer que eu explique, tudo bem, podemos continuar assim. Irei direto para o que interessa, então.

— Finalmente.

Don Ramon não estava apreciando muito esse capítulo atual. Nunca tinha antes enfrentando um Vril que enrolasse tanto para que pudessem cair na porrada. Geralmente eles simplesmente apareciam ou o atacavam. Don Ramon não ganhava com facilidade, mas ganhava com toda a sua glória e honra como defensor do seu planeta natal naquele universo. Estava enfurecido. Por outro lado, era a primeira vez que Tommy estava exercendo o seu trabalho e por isso que Tommy estava tão empolgado, querendo pagar do bonzão ao invés de fazer o que tinha como objetivo. Não estava com pressa até porque enrolar não atrapalharia o seu plano.

Antes que Ramon comece a sentir os efeitos da Jornada Maravilhosa, é necessário que alguns fatos sejam ditos para que o próprio leitor entenda o que está prestes a acontecer. Para melhor organização e consequentemente melhor entendimento, o narrador decidiu dividir essa explicação em três tópicos: I, como Ramon se importava com a situação. II, As habilidades de seu inimigo e III, o plano do guardião do cristal.

Como Ramon se importava com a situação.

Pode parecer que o autor está enrolando, por estar repetindo esse tópico sendo que o parágrafo antes do anterior esse era em maior parte o tema. Bem, dessa vez será dita uma coisa que não tinha sido explicita nesse parágrafo anterior: Ramon não estava se importando com a situação. Nem um pouco. Já tinha derrotado tantos e tantos inimigos como esse que era algo menos importante do que fazer xixi porque não se sentia aliviado quanto a isso. A sensação de derrotar um Vril era a sempre a mesma: de indiferença. Sabia que mais viriam atrás dele mesmo para sempre. Era como se fosse um evento em sua rotina que acontecesse em horários e frequências aleatórias. Esse, entretanto, era o primeiro Vril que enfrentava nessa semana, ou mês. Era difícil lidar com a passagem do tempo quando se acidentalmente viaja para um planeta aleatório em um quadrado aleatório quando o que você realmente queria era poder salvar o mundo de uma versão alternativa da espécie humana que queria destruir todos os outros universos.

O guardião não tinha ideia da relação dos Vrils com seu inimigo. Também não tinha ideia do que os Vrils eram. Sabia o que eles queriam: o cristal de energia guardado em seu coração. Sabia pouco desse cristal, mas desde que o recebera pelo Espírito Ancestral, há milhares de anos atrás, seu dever era de protegê-lo. Uma mudança em seu corpo e em sua alma aconteceu sem que percebesse durante os seguintes anos, o que fez se tornar o que era hoje.

Ramon estava um pouco curioso quanto sobre como derrotaria o seu inimigo, seu plano e suas habilidades. Era o primeiro do tipo que tinha tentado dialogar com ele.

Mas sua raiva e impaciência faziam com que não conseguisse perceber sua curiosidade. O gosto em sua boca estava bastante amargo.

As habilidades de seu inimigo.

Antes mesmo de Don Ramon ter se tornado o protetor da gema, a terminologia Vril já tinha sido criada por uma civilização muito antiga. Essa pode ser uma história bastante grande, e talvez interessante. Leve-o como um conto antigo.

Um casal de aldeões de uma tribo pequena em uma época anterior à escrita teve sua pequena filha que não fora nomeada. A figura celestial e autoritária da tribo, que se dizia o intermediário entre o homem e as divindades, julgara a criança uma ameaça aos deuses por causa de uma marca em seu corpo. A mãe, estéril e que a impregnação foi considerada um milagre vindo diretamente dos deuses, chocou-se ao descobrir que a sua única criança teria que ser sacrificada pela mão de seu pai. O pai, apesar de prezar muito pela sua única e querida filha, sentia-se pressionado pelas autoridades da tribo a sacrificar a criança em prol da purificação do povoado.

Levou-a até a montanha mais alta dos arredores e decidiu que o faria mesmo com tantas incertezas em sua mente que sempre ao pensar o levavam ao mesmo caminho de sofrimento. Erguera a lâmina e esfaqueou a criança. Mesmo antes de abrir os olhos, já chorava. Mas foi quando abriu seus olhos que percebeu que a criança não era um demônio, mas sim um milagre. A faca tinha partida ao meio, e não a criança. Seus olhos encheram-se mais e mais de lágrimas ao perceber que a criança estava viva. O xamã estava errado, pensou, e os deuses provou isso agora. Essa é a criança que os deuses decidiram nos dar. Abraçou-a e, então, morreu. A mesma faca, deformada, que erguera contra a criança, foi erguida magicamente por forças sobrenaturais para que atravessasse seu coração. Sua morte foi inusitada.

A menina, abandonada, crescera sem problemas. O mesmo corte que fora sua maldição era o corte que a alimentava com a força vital de todos os seres em sua volta. Sem saber se comunicar com outro ser humano e sem nunca ter ido até a vila onde nasceu, chegou aos seus dezesseis anos. Mesmo que comer não fosse necessário para a sua vida, sentia fome como qualquer outro ser humano. Suas tentativas de subir árvores sempre falhavam. Comia as ervas pouco nutritivas que cresciam na floresta. Até quando alcançou seis anos, percebeu que não precisava ser como os micos e subir nas árvores para comer as frutas. Sempre que ela imaginava as frutas caindo ao chão, elas magicamente caiam.

Seu primeiro contato com humanos quase aconteceu na idade de dezesseis. Aldeões que decidiram caçar em um lugar mais distante chegaram à montanha para conseguir a refeição de seu dia. Nunca ousaram tanto como nessa ocasião, quando iam além do território da tribo para procurar por sua refeição, entretanto a seca que levou a morte dos animais ao redor não lhes deixou outra opção além de procurar por animais em outras regiões que eram consideradas perigosas. Antes que percebesse da presença dos outros índios, rochas tinham sido magicamente jogadas e árvores tinham caído neles. No decorrer de sua vida, nenhum outro animal a tinha contatado.

Aos vinte e cinco anos, a mulher sentiu uma vontade incontrolável e repentina que ela não conseguia questionar em andar a uma direção. Quando o solo dessa direção tinha terminado e apenas restava o oceano, sentiu uma força sobrenatural manipulando-a para que voasse através dos mares.

Era o cristal, chamando-a para que ela o resgatasse. A jornada até o cristal fora sangrenta sem que a mesma percebesse esse fato. Muitos guerreavam contra objetos que flutuavam magicamente, e apenas os que escapavam ao perceber que para eles não haveria salvação conseguiriam ver a luz do próximo dia. Outros diziam ter visto uma mulher nua com longos cabelos castanhos andando na direção contrária da vila com o Cristal Sagrado em mãos. Os rumores então se transformaram na história da bruxa dos cabelos longos, chamada de Jeeha. A moça que nunca percebera que sua aura tinha tirado diversas vidas aproximou o cristal de sua cicatriz de nascença, a mesma que tinha amaldiçoado a sua vida com sua família, e ascendeu para o além-multiverso. Seu propósito de vida, de proteger e recuperar o cristal quando fosse necessário, foi completado.

As nuvens não olhavam mais para ela e ela não estava mais olhando para as nuvens. Ao invés do céu e do solo, via os infinitos cristais do multiverso em uma figura infinita que se expandia para além do solo cósmico que estava em pé, ou estaria deitada? Não conseguia entender o que estava acontecendo, e virou-se para olhar para trás, quando encontrou outra moça. Era a primeira vez que Jeeha via outra de sua espécie.

— Bem-vinda, é a sua primeira vez, não é? – disse, com um sorriso no rosto.

Jeeha não conseguia responder e continuou lá, numa posição indefinida em cima do espectro sem fim e sem forma. Seu corpo levitava e deitava-se como se estivesse sendo puxada pelo campo gravitacional de uma estrela de tamanho imensurável, mas, ás vezes, estava apenas livremente levitando sem nenhum referencial no aglomerado de figuras cristalinas no mapa incompreensível de toda a existência. Olhava-a e tentava entender coisas que nunca antes tinha visto. Obviamente não tinha percebido isso, mas seu instinto Vril percebia perfeitamente como seus poderes pareciam inalcançáveis nessa dimensão onde estava. Jeeha buscou perguntar diversas coisas, mas não conseguia pronunciar palavras em nenhuma língua conhecida, pois nunca as tinha ouvido. Sua alma, então, conseguiu fazer tais perguntas sem que ela mesma perguntasse.

A moça, também através de sua alma, já que tinha percebido que a outra não conseguiria entender seu idioma, respondeu:

— Eu sou Beatriz. Você é Jeeha, não é? Parabéns por conseguir recuperar o cristal, estamos na nossa Terra Natal. Chamamos de Altar Multiversal, nunca esteve aqui antes, né? Espero que se acostume, estaremos aqui por bastante tempo. Aproveite todo o tempo que quiser aqui, enquanto O Chamado não alcançar seu coração dizendo-a que deve defender outra gema. Caso tudo ocorra perfeitamente, o que não acontecerá e nunca aconteceu, assim como não está acontecendo, não precisaremos nos preocupar com nada e poderemos esperar até que o Grande Cristal seja completamente reunido e possamos recriar um mundo melhor.

— Que Cristal é esse?

Beatriz fechou os olhos e aconselhou que Jeeha fizesse o mesmo. As duas flutuavam, próximas uma da outra, e deixavam as forças incontroláveis e sem sentido daquela dimensão puxarem-nas levemente ou grossamente pelos cantos daquele local. Com os olhos fechados, podiam visualizar todas as partes do Grande Cristal que viajavam de um ponto do multiverso para juntarem-se onde não existissem mais nuvens e matéria alguma.

Beatriz segurou sua mão em Jeeha para que pudessem juntar, sentir os cristais que tinham reunido. Naquele momento de paz e harmonia que nunca terminaria caso tudo ocorresse conforme o planejado, avistaram uma das pequenas partes saindo de um ponto tão distante no mapa multiversal que não conseguiam ver sua origem. Conseguiam apenas ver o raio que emitia em sua trajetória e sentir a energia sugada daquele local. Era uma cena belíssima.

Sentia, em algum local desse mapa, um cristal sufocado em um ambiente quente e forte como a alma da mais determinada e forte criatura de todo o mundo. Sentiu, próxima e ao mesmo tempo distante dessa criatura, outra que tinha um laço incrivelmente forte com esse cristal. Seria outro Vril, assim como Jeeha e Beatriz? Será que poderia também um dia sentir a intensidade, alegria e paz de assistir ao Grande Cristal ser recriado para o bem do futuro dos mundos? Esse era Tommy, e é agora que a história de Jeeha termina.

A habilidade de Tommy não era uma fácil de perceber e algo bastante mais específico do que poder inconscientemente usar a gravidade a seu favor. Tommy, nascido nos anos 90 de uma versão alternativa do planeta Terra em que o planeta tinha sido destruído por uma guerra nuclear, apenas percebera essa sua habilidade aos nove anos de idade e mesmo assim não conseguia entendê-la.

Durante sua vida sempre percebeu que tinha algumas verdades que chegavam à sua cabeça subitamente ao olhar para uma pessoa. E nunca achou que isso era estranho. Sabia que alguém era alto quando olhava para alguém alto e sabia que alguém morreria esfaqueado por bárbaros quando esse alguém morreria esfaqueado por bárbaros algumas horas mais tarde. Sabia, também, que essa pessoa tinha perdido a mão ao olhar a falta de uma mão. E, mesmo que essa pessoa não falasse, sabia que essa pessoa tinha perdido a mão por roubar em um dos vilarejos a sudoeste do acampamento que morava. Conheceu Roger, um velho de quarenta anos, aos nove anos e perguntava-se como um homem tão velho tinha conseguido sobreviver sozinho como um andarilho no mundo perigoso e radioativo que se existia por depois da caverna que chamava de casa. Perguntou a Roger o que tinha roubado para que perdesse a mão. Nessa ocasião foi que percebeu que não, não era normal saber o passado e o futuro das pessoas só por olhar para elas. Mas para ele estava ali, sabe? Simplesmente estava ali, pendurado ao lado das cicatrizes do rosto de Roger um lembrete que dizia que aquelas cicatrizes foram causadas pelo ataque de um urso. Entretanto nunca teve a chance de conversar com Roger sobre a batalha feroz contra o urso selvagem radioativo porque Roger repreendeu-o com frases como “De onde você tirou isso, moleque?”, “Na minha época crianças tinham mais respeito” e tapas no rosto do garoto. O tio de Tommy deixou-o de castigo por duas semanas sem comer e sem poder sair da cabana por desrespeitar um senhor mais velho, até mesmo um que há poucos dias tinha se juntado à pequena tribo. Isso tudo foi meio triste para Tommy. Estava tendo um relacionamento tão bom com o velho desde que esse tinha se juntado ao pequeno grupo que vivia na caverna. Mas Tommy não ainda tinha percebido que conseguia ver a alma de uma pessoa em todas as instâncias e momentos da sua vida.

Esse não era a única habilidade de Tommy, obviamente. Tommy tinha descoberto há alguns anos atrás, com quatro anos de idade e quando estava chateado por seu tio estar deixando-o de castigo na cabana sem comida por sete dias sem motivo nenhum. Tommy descobriu que caso desejasse muito muito muito mesmo ir para um outro lugar, ele iria para outro lugar. Um lugar completamente escuro com uma cadeira de madeira, portas e janelas. Sempre que queria estar sozinho era lá para onde ele iria.

Descobriu também que, aos sete anos, se desejasse muito muito muito mesmo que alguém simplesmente sumisse da sua frente isso aconteceria. Na verdade, o que aconteceria era que ele voltaria para aquele quarto escuro e a pessoa estaria do outro lado da janela, sem poder ver Tommy. Percebeu também que, enquanto com outra pessoa nessa dimensão que ele criava, podia envelhecer ou rejuvenescer a pessoa na velocidade que quisesse. Não sabia, entretanto, e só conseguiu descobrir isso antes depois com a prática que ele não estava realmente nessa dimensão, nem quem ele trazia consigo. Não fisicamente, eram suas almas. Outra coisa que não sabia era que tanto ele quanto o outro desmaiavam quando isso acontecia. Descobriu que quando controlava a alma da outra pessoa, não controlava a sua própria imagem e acabava se tornando uma figura aleatória que dificilmente poderia ser entendida como um ser humano.

Esses são os poderes de Tommy.

O Plano de Tommy.

Tommy estava tão feliz por finalmente ter um objetivo na sua vida. Depois do assassinato de todos na sua vila quando tinha 15 anos de idade, incluindo a de si mesmo enquanto estava em seu quarto especial, sua alma prosseguiu andando pelo espectro material com dificuldade, depois de retornar de sua dimensão, de entender o que estava acontecendo com ele e o que tinha acontecido. Não conseguia processar tudo aquilo e entender que mesmo morto vivia pelo mundo dos vivos. O Chamado, então, tocou sua alma para que viajasse para outro universo alternativo e capturar a gema que muitos tinham falhado em recuperar. Haviam-se passado 20 anos desde a sua morte, mas não era como se conseguisse entender a passagem do tempo na forma em que estava. Entretanto, agora se sentia mais determinado, motivado, e finalmente conseguia entender o que estava acontecendo ao redor. Conseguiu aceitar sem dificuldades que tinha morrido, e que mesmo depois de morto ainda tinha sua essência da vida intacta, entretanto fora de seu corpo já incapaz de receber viva: tudo por causa de sua habilidade especial.

Sua alma direcionou-se para esse outro universo onde pôde observar, distante, a alma de Don Ramon. Não precisava mais desejar tanto para que pudesse carregar sua alma para fora de seu corpo da mesma forma que fazia quando era criança. Só precisava fazer chamá-la que ela responderia e voaria diretamente para o outro lado da janela na dimensão escura. Mas precisava fazer isso no momento certeiro, para que conseguisse assassinar Don Ramon e unir sua alma ao cristal Vril preso no peito do Guardião do universo.

Antes de chamá-la, encarou a alma do homem e viu todos os momentos em que ela presenciou e que ela presenciaria. Interessou-se pelo fato de ver apenas um caminho possível e, nesse caminho único que a alma de Don Ramon traçaria, via um ataque. Um ataque vindo de cima de um prédio enquanto todos os seus discípulos e comparças voavam e andavam para outras direções. Um ataque que, caso desmaiado, o mataria. Era isso que precisava.

Dom Picone olhou para os lados sem muito entender o que deveria fazer e para onde devia ir. Não tinha nenhuma maquininha de teletransporte em seu bolso para que pudesse ir de volta à Shan Grila e, por mais que quisesse, não queria simplesmente voltar para casa como esse tinha sido um dia normal. Já tinha feito bastantes coisas loucas em sua vida, mas ultimamente as coisas loucas só estavam se tornando mais e mais loucas. Esse dia entraria em um dos dias que as coisas loucas tinham se tornado mais loucas, pelo menos nos últimos cinco anos de sua vida.

O mundo estava para acabar e queria fazer algo sobre isso. Era algo que seu mestre sempre o dizia “Jovem, o mundo está em seu fim”, mas nunca soube exatamente o que fazer sobre isso. Quer dizer, será que Don Ramon sabia o que fazer sobre isso? Será que já estava fazendo algo para proteger as pessoas e o universo que tanto amava? Talvez estivesse sim fazendo algo a respeito,e por isso ainda estivesse vivo e esse universo ainda existisse.

Percebeu que pensar pensar e pensar sobre a situação não levaria a nada, principalmente ficar supondo o que o seu mestre faria para salvar o mundo. Se seu Mestre falhasse, ele teria que guardar o universo e não sabia nem como tirar os pés da cama com toda essa responsabilidade. Era um homem muito responsável sim, administrava muito bem as suas empresas e nunca tinha faltado um dia de trabalho e de aula, tirando os últimos dias que estavam mais loucos que o normal. Por algum motivo, a imagem de sua avó voltou a sua cabeça. Isso mesmo, a sua avó amada. Amava-a muito, mas sempre que essa imagem vinha ele já sabia o que estava por vir: um sermão. Era algo sobre responsabilidade, ou sobre proteger as pessoas, ou o universo morrendo, ou salvar o mundo. Nunca sabia o que estava para vir. Já tinha relembrado tantos sermões que sua avó tinha dado que começava a se perguntar se sua avó tinha realmente dado todos esses sermões para ele ou se sua cabeça estava inventando tudo aquilo. Sua avó poderia ser muito bem uma parte de sua personalidade tomando a imagem da ente querida para manifestar seus pensamentos. Pensando bem, talvez tinha um pouco de sua avó na sua mente sim e decidiu que pensar sobre isso não faria muito sentido. Estaria pressupondo bastante.

Antes que percebesse, a imagem da sua avó tomou mais e mais forma em sua cabeça. Ela disse algumas palavras, palavras marcantes. Era difícil de conseguir lembrar o que ela tinha dito nessa ocasião. Tinha impressão que era algo que ela tinha dito isso no Natal em que o Tio Larry tinha se esquecido completamente de levar o pernil, algo que sempre fazia todos os anos. Ah, tinha lembrado: “Quando se tem responsabilidade sobre muitas coisas, não se pode esquecer também de olhar para suas costas e olhar as responsabilidades sobre você que você mesmo tem! Entendeu, filho Larry? Não esqueça mais o pernil, nunca mais, é melhor estar morta do que um Natal sem pernil.”

O que será que ela queria dizer com isso? Não sabia. Quer dizer, o significado... Olhar para as suas costas e lembrar a responsabilidade que você tem em você mesmo? Isso não seria melhor usado na ocasião que Tio Larry estivesse cansado por ter trabalhado o dia inteiro e ainda passado a noite preparando o pernil? Geralmente era isso que acontecia, mas não foi nessas ocasiões que a vovó tinha dito isso. Sentia pena de Tio Larry, um homem tão velho e de bom coração, fazia tudo por todos, mas era punido caso tentasse fazer algo por si mesmo. Deviam ter passado a tarefa de fazer o pernil para o Primo Bill, que tinha bastante mais tempo para esse tipo de coisa do que o Tio Larry. Tio Larry podia fazer algo mais simples e menos cansativo como ajudar a cortar os legumes.

— Olhar para as suas costas. Realmente guardo um grande amor pela minha querida avó – e riu como uma criança inocente que percebe pela primeira vez que o amor que sente por alguns membros de sua família é incondicional, ou seja, não importa a besteira que eles digam. Olhou para trás, só pra poder continuar a sua jornada de pensamentos sem antes tentar encontrar algum sentindo no sermão da velha enfurecida por não poder comer pernil naquela madrugada do dia vinte quatro para o dia vinte cinco.

O estado de seu mestre fez com que Don Picone se assustasse. O velho estava caído desmaiado como se sua alma estivesse finalmente escapado para fora de seu corpo para ir para o descanso eterno. Correu para tentar assisti-lo de alguma forma, mas não sabia o que tinha acontecido. Don Ramon sempre tinha se mostrado um guerreiro poderoso com uma grande stamina. O que tinha acontecido? Teria morrido repentinamente? Ou será que o velho tinha sido atacado enquanto seu discípulo estava por aí pensando na responsabilidade de tomar conta de todo o universo? Não, não tinha sentido nada de estranho em seus sentidos aguçados de um guerreiro treinado pelo mestre guardião daquele universo. Na verdade, algo estava cheirando, ou melhor, soando estranho naquele local.

Em três segundos, o chão vibrou com uma intensidade incrível e rachou. As autoridades, que estavam chegando para tentar desvendar o que tinha ocorrido com o local, recuaram após sentir o terremoto causado pela força de um único ser humano. Ramon não estava mais naquele local, nem seu discípulo. O jovem havia carregado seu mestre em seus braços para um local mais seguro. Usando o controle que Picone tinha pela gravidade, foram capazes de escapar sem que houvesse atrito entre os sapatos do galã e do solo. Picone sabia quem causou o ataque e não estava com saco para enfrentar um inimigo, não um que pudesse enfrentar à distância. “Pensei que Ikovan tinha conseguido derrotá-lo no capítulo 13”, pensou Don Picone, inconformado com o fato dele ainda existir mesmo tantos capítulos depois.

Em um local bastante distante de onde Picone e Raul estariam para se enfrentar, Rossiano sentava-se novamente no banco que costumava se sentar para conversar com o amigo que tinha feito do outro lado do multiverso. Mas, bem, Shepard estava morto, e não tinha mais como conversarem. Mas Ross lembrava claramente quais eram as ordens que Shepard tinha deixado caso não mais pudesse responder às vozes do pensamento de Rossiano.


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