O cômodo onde estavam era muito pouco iluminado, o chão da sala, onde Lina dormira, era decididamente desconfortável, a cabeça da garota rodava por causa da pancada da noite anterior, e talvez por causa da fome também, por um momento de atordoamento não se lembrou onde estava. Não comia nada desde o bolo no café onde Blair trabalha, e logo depois que caíra e batera a cabeça, enquanto tomava banho no apertado banheiro de Blair, ela se trocara e fora dormir no colchão inflável que a garota arrumara pra ela, parecia que nem havia colchão, parecia que ela dormira realmente no chão da sala, dispensando a pizza que pediram, deixando Rafa e a Blair sozinhas para o jantar.

Ao seu lado Rafa dormia no sofá velho, que tinha como estampa margaridas, era extremamente feio e antiquado, tudo naquela casa era, na realidade, parecia que elas tinham ido parar na casa da tia-avó Margo, que costumava fazer pães de mel horríveis e mandar para ela de natal, o cabelo de Rafa estava parecendo um ninho, observou, gostava de ver a amiga dormir, ela parecia muito mais jovem, odiou ter que acorda-la de novo.

–Rafaela, vamos, acorde. - sussurrou dando alguns tapinhas no ombro de Rafa.- Cara, eu to cansando de ter que te acordar toda hora, você não sabe fazer outra coisa, além de dormir?

–Talvez você não se cansasse de me acordar se me deixasse dormir, já pensou nessa possibilidade?- resmungou Rafa, nem sequer abrindo os olhos e virando pro outro lado.

–Um dia irei fazer isso, mas por hora, a gente tem que dar o fora daqui o mais rápido possível. - disse Lina, se levantando meio engatinhando, tentando achar algo que suavizasse a escuridão.

– Que? Por quê? Ainda tá de madrugada, e além do mais, Blair vai achar um lugar para a gente ficar. Qual teu problema, Angelina?- disse Rafa, despertando e se sentando no sofá, tentando encarar a amiga, mas não conseguindo ver nada por causa da falta de luz.

– Você confia demais nessa garota, Rafaela, eu que te pergunto, qual teu problema? A gente tá em um país completamente estranho, aceitando ficar na casa de uma completa desconhecida, em um bairro que poderia ser cenário de algum filme de terror com baixo orçamento, e você ainda pergunta qual o meu problema? – disse Lina finalmente achando seu celular, e usando a luz do visor para poder olhar o rosto da amiga que se franziu com a claridade repentina, não havia sinal algum ali para fazer alguma ligação, caso a coisa ficasse complicada, ligar para a polícia não seria uma alternativa.

– Certo, qual seu plano então?- disse Rafa tateando a parede em busca do interruptor, a amiga estava certa, ela sabia, mas Blair não era nenhum tipo de psicopata, gostava dela, era uma das únicas pessoas que ela cogitara tentar ser amiga.

– Plano? Rafa, a gente se concentra em sair daqui, depois a gente vai pra um hotel, o mais longe possível, e depois a gente pensa em algum plano.- Angelina procurava as malas das duas enquanto falava, tentando sussurrar para não acordar Blair ou quem quer que estivesse dormindo em uma das três portas que havia no corredor, ao lado do banheiro, claro que Rafa acabou com qualquer tentativa de descrição ao acender aquela luz.

– Certo, então a gente espera a Blair, a gente pode pelo menos tomar um café da manhã com ela e... – Rafa disse, contendo um bocejo.

–Rafaela, você não tá bem, certo? Foi drogada? Tá tendo alucinações? A gente precisa ir embora, agora, e de preferência sem que ninguém saiba. – Angelina parara de procurar as malas, que não estavam em lugar algum, se perguntava onde Blair as havia colocado, e olhou para Rafaela, mal reconhecia a amiga, sempre fora só as duas, e bem, e Hugo, por que agora ela fazia tanta questão que tivesse uma outra pessoa? Rafa abriu a boca para responder, mas então ouviram o barulho da descarga, não haviam percebido que tinha alguém no banheiro, e então ela fechou a boca de novo, olhou para a amiga que estava assustada, como se tivessem sido pegas no flagrante, o que na realidade era o caso.

A porta se abriu, rangendo, parecia que tudo rangia naquela casa, e então saiu um garoto que aparentava ser mais velho que elas, Rafa não queria admitir que a primeira coisa que reparara nele fora os músculos, mas fora, ainda mais por que a regata branca que ele usava os deixava mais evidentes, o efeito era o mesmo que se tivesse uma placa apontando e dizendo “olhe para os braços que parecem ser produtos de bomba, olhe, babe, sonhe com esses braços”, a samba-canção também não parecia coisa de senhores de noventa anos que não sabiam mais o que era sexo a pelo menos trinta anos, ele ficava até que bem com ela.

– Quem é você?- reagiu Angelina, depois de um bom tempo, ficara tão atordoada quanto a amiga, ainda mais quando ele cruzou os braços e se encostou na parede, extremamente confiante e confortável, até demais na realidade, se considerasse que ele estava de pijama na frente de duas desconhecidas, enquanto elas se sentiam completamente idiotas e patéticas por terem ficado daquele jeito só por causa de um garoto bonito, que as estava encarando com incríveis olhos azuis, de um azul incrivelmente escuro.

– Levando em consideração que vocês estão, por algum motivo, na minha casa só de pijama, acho que eu que deveria perguntar isso, não?- disse o desconhecido, dando um sorriso torto, a voz dele era rouca e muito grossa, quando ele disse aquilo Rafa se sentiu extremamente consciente de estar usando só a blusa de Hugo como camisola, talvez não fosse ele que devesse ficar constrangido, e talvez ela devesse pensar seriamente em começar a usar um pijama de verdade, no final das contas.

– Somos amigas da Blair, ela nos convidou para passar a noite aqui. – respondeu ela, a voz saindo satisfatoriamente controlada, por falar em Blair, ela não havia falado muito no irmão, ela achara que ele devia ser bem mais velho, gordo, careca, e que morasse bem longe dali, não que ele sorrisse e dissesse um “ah, claro, desculpa.” relaxando, e muito menos que fosse ao encontro delas, cumprimentado cada uma com um beijo na bochecha.

– Sou Ethan. - disse se tacando no sofá, ele quando sorria parecia mais novo, não fosse por ser alto demais e forte demais, se desconsiderasse isso, parecia ter quinze anos- E aí, qual o nome de vocês, afinal?

Quando Ethan apareceu, Lina estava decidida a odiá-lo, mas por algum motivo, se viu se sentando ao seu lado no sofá e contando a história das duas a ele, o que foi uma merda, por que assim elas descobriram que aquele jeito de idiota convencido era só faixada, e que ele era provavelmente o garoto mais legal que conheceram, talvez um pouco extrovertido e caloroso demais, como ela odiaria aquilo?

–O que tá havendo aqui?- Blair apareceu na porta, vestindo um pijama rosa com estampa de coelhinho, parecia que tinha sete anos- Ethan, o que você está fazendo acordado a essa hora conversando com as minhas amigas?- continuou ela, olhando horrorizada na direção do irmão, que mostrava um CD da banda preferida dele à Rafa, que por coincidência era a mesma que a da garota.

Apesar de não ter nada de aterrorizante na cena, Angelina tava suando frio, estava com medo, ou algo parecido com isso, definitivamente não era nada agradável ficar na companhia de Blair, agora na companhia de Blair e de Ethan? Era quase mais do que ela podia suportar, e se eles fossem algum tipo de psicopata? Se fosse algum tipo de armadilha? Como que ela conseguiria escapar deles e fugir com Rafa?

–Na realidade, eu estava realmente querendo voltar a dormir- disse ela, tentando disfarçar seu nervosismo.

–Desculpe, mi amor,- corrigindo, na lista de defeitos de Ethan tinha também ele achar que no Brasil se falava espanhol- Vou deixá-las dormir, amanhã nos falamos.- e ele foi saindo, depois de piscar para ela, e puxando a irmã com cara de criança fazendo birra junto, e deixando uma Rafaela confusa, que ainda segurava o CD da tal banda.

–Quer saber?- disse Angelina, que estava sendo vencida pela exaustão, parecia que seu cérebro estava desligando gradativamente, devia estar tendo algum ataque de paranoia- Não acho que uma psicopata usaria pijama com estampa de coelhinho, ou uma samba-canção. Acho que a gente pode esperar um pouco antes de fugir, não?- ela nem sequer esperou a amiga concordar ou discordar, virou e dormiu quase que instantaneamente, estava começando a achar que precisava de algum psicólogo, remédios também, estava ficando com mania de perseguição.
– Lina? - Rafa chamou a amiga cutucando-a.
A garota abriu os olhos, fitou por alguns instantes os olhos verdes de Rafa e apenas virou e se pôs a dormir de novo.
– Vai se fazer de difícil? - sussurrou Rafa - Tudo bem.
– PUTA QUE PARIU RAFAELA - Lina levantou, Rafa havia jogado água nela, agora o pijama grudava ao corpo e o chão da casa dos Clarkes estava ensopado. "Oops" pensou Rafa vendo a bagunça que fizera, pensando se a forçariam a limpar depois - VOCÊ É LOUCA?
– Bom dia pra você também - respondeu Rafaela - Ainda quer ir embora?- indagou, baixando ainda mais o tom da voz.
– Não tenho certeza. - disse Lina no mesmo tom que a amiga, franzindo o cenho, se perguntando o que a havia feito mudar de ideia, não antes de mostrar seu belo dedo do meio para Rafa.
– Certo então - Respondeu Rafa - Se eu fosse você, tomava um banho ou trocava de roupa, a menos que você queira que Ethan a veja nesse estado, né por nada não, mas durma com uma roupa mais escura, sua blusa tá praticamente transparente, dá pra ver tudo.
– A culpa é sua, vai se foder sua vadia - Angelina fuzilou a amiga após constatar que ela dizia a verdade.

Depois de procurar uma muda de roupa e se trocar no banheiro, Angelina voltou a sala, viu que o "acampamento" das duas estava desfeito e que a bagunça que a amiga tinha feito também desaparecera, Rafa não estava por ali tampouco, mas a encontrou no cômodo ao lado, a cozinha, ajudando Blair e Ethan a colocar a mesa do café, apesar de estar mais para a hora do almoço.

– Bom dia.- disse Blair, com um sorriso meio afetado- Quer panqueca?

Rafa observava Angelina comendo as panquecas de Blair como se nunca tivesse visto comida na vida, claro que depois de ter hesitado e esperado Blair e Ethan comer, como se a comida fosse ter algum veneno, ela achava que a amiga estava ficando paranoica, não era a toa que os gringos achavam os brasileiros eram selvagens, o modo como Angelina comia comprovava tal teoria.
–Bom dia- trovejou uma voz, era um homem baixo que vestia um terno de um verde berrante e estava parado observando a cena da porta da cozinha, o comprimento que tinha do pé a cabeça era quase que o mesmo da sua cintura, cabelo? Tinha mais nas narinas do que na cabeça, mas o que chamava a atenção eram os olhos que pareciam ser capazes de ver a alma de alguém, eram incríveis olhos, de um azul incrivelmente escuro.
–Oi, pai- respondeu Ethan com a boca cheia, nem olhando na direção do pai, Blair deu outro de seus sorrisos afetados, ao mesmo tempo que se encolhia na cadeira.
–E quem seriam essas duas belezuras?- questionou, com um sorriso amigável contrastando com a voz que dava medo, e após as devidas apresentações deu um beijo na bochecha de cada uma, que sorriram timidamente.
–Pai, você poderia emprestar um de seus apartamentos para as minhas amigas? Elas vão ficar um tempo na cidade enquanto procuram um amigo.- Blair disse, colocando uma pilha de pratos sobre a pia.
–Não vejo por que não.- respondeu o senhor, alargando o sorriso já muito largo.
–Aliás, como é esse famoso Hugo que foi capaz de fazer vocês viajarem meio mundo para encontra-lo?Vocês tem uma foto? Pode ser útil.- falou Ethan, com a boca ainda cheia e com calda até no nariz, era tão civilizado comendo quanto Angelina.
–É esse aqui- disse Rafa mostrando uma foto de Hugo com Lina, que era seu papel de parede do celular, estava os dois abraçados e sorridentes, Rafaela tirara aquela foto uma semana antes de Hugo sumir, durante uma maratona que os três fizeram de American Horror Story, que Rafa era fã, nesse dia Hugo se agarrara as meninas e fingira que era ele que as protegia, mesmo que aquilo nem desse medo.
–Eu conheço ele!- disse Blair arregalando os olhos e se engasgando com o suco de laranja que tomava, ao mesmo tempo que seu pai se espreguiçava, deixando a vista a arma que trazia presa ao cinto.