Guinea P escrita por Gaby Molina


Capítulo 8
Capítulo 8 - Delta


Notas iniciais do capítulo

Olá ;3



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Jess

Eu jamais, jamais admitiria, mas aquilo estava começando a me incomodar um pouco.

Desde que Quatro Olhos se tornara Dois Olhos, era como se a população feminina do Alfa tivesse aberto os olhos para a existência de James.

Ele sempre fora alvo de alguns olhares furtivos e cheios de desejo de algumas garotas ali, mas a coisa toda atingira outro nível. Não havia mais nada de furtivo naquilo. Sem mais olhares de relance. Simplesmente as constantes e diretas encaradas, os sorrisos maliciosos, as piscadelas e os risinhos afetados.

E a completa indiferença de James.

— Tudo bem aí? — ele ergueu uma sobrancelha para mim. — Você está com uma cara bem mais louca e lesada do que o normal hoje.

Eu às vezes me esquecia de como James era gentil e amável.

E eu sequer entendia todo o alvoroço. Eu genuinamente achava que ele ficava melhor de óculos.

— Estou ótima — menti, enfiando mais cereal na boca sem me importar com o barulho que fazia para mastigar.

Por que importava, de qualquer modo? Isso mesmo, não importava. Olhei para o lado, me dando conta de que estava sendo mantida presa no subsolo de uma organização governamental que provavelmente era anticonstitucional em diversos pontos. Eu definitivamente tinha problemas maiores do que James Rivers.

Mas o maior problema — ou a maior dádiva — meu e de James era que sempre entendíamos o raciocínio um do outro sem precisar falar.

Ele tirou os óculos sem grau do bolso e os colocou no rosto. Depois me fitou por um minuto.

— Melhor?

James tinha um jeito estranho de ser legal. Ou de me provocar. Sim, provavelmente de me provocar.

— Não sei do que está falando — menti. Ele ergueu uma sobrancelha. — Sim, melhor.

Ele sorriu, parecendo psicoticamente satisfeito, e voltou a comer seu cereal.

Fiquei um pouco alheia à conversa, mas o ouvi falando com Valerie:

— É isso, Val. Se você quer alguma coisa, deveria ir atrás e ponto. Não precisa significar alguma coisa especial e mágica para sempre, só precisa te fazer feliz por um minuto. Se tem algo a dizer, deveria apenas dizer, e toda essa parafernália. As pessoas se apegam demais a tudo.

Eu não sabia se era proposital ou não, mas James constatou o que eu já sabia: nós havíamos nos deixado levar. Só isso. Não era grande coisa, nunca fora, e nunca seria. Eu queria beijá-lo no dia anterior e ele também queria me beijar. Puramente desejo carnal.

—... Mas se você tem alguma coisa que acha que daria algum futuro e felicidade mais duradoura — continuou James, dizendo a Valerie. — Talvez devesse ir atrás disso.

Certo, ele não estava mandando uma indireta. James nunca me encorajaria a fazer o que eu estava prestes a fazer, mas não era a consciência dele em jogo. Era a minha.

Saí correndo sem dar nenhuma desculpa ou explicação até a mesa de Derek. Ele estava sozinho nela.

— Precisamos conversar — falei, fitando-o. — Te encontro no Térreo em meia hora?

Ele assentiu.

— Claro.

— Certo, até lá.

E voltei correndo para minha mesa.

— O que foi aquilo? — Kristen ergueu uma sobrancelha.

— Eu tenho uma reunião com ele hoje, e não me lembrava do horário.

— Por que tem uma reunião com ele hoje?

Dei de ombros.

— Não sei. Recebi o comunicado ontem à noite.

James não olhava para mim. Eu podia enganar todo mundo ali, mas sabia que jamais enganaria James.

* * *

— O que queria me dizer? — Derek me fitou por um minuto, curioso.

— Eu e você — comecei, fitando-o de volta. — Nós temos uma coisa. Eu não sei o que é, mas tem essa faísca entre a gente que eu não consigo e nem quero ignorar. E mesmo que a gente não se conheça direito, eu gostaria que nos conhecêssemos. Acho que poderíamos dar uma chance a nós dois.

Os olhos verdes dele brilharam de entusiasmo.

—... Mas vamos levar a coisa toda devagar, como estávamos fazendo antes. Podemos só sentar e ver aonde tudo isso nos leva. E Derek...

— Sim?

— Por favor, nunca mais esconda algo de mim, por menor que você ache que seja, ok?

Ele afastou uma mecha de meu cabelo do rosto, como sempre fazia.

— Eu prometo, Jessica.

E, por algum motivo, eu genuinamente acreditava nele. Ele se aproximou e eu deixei que me beijasse.

— Nós somos, tipo... um lance, então? — Derek abriu um meio-sorriso, me fitando.

— Tipo isso — eu ri um pouco. — Não precisamos apressar nada.

— Nenhuma objeção quanto a isso — ele abriu um leve sorriso presunçoso e me beijou novamente.

Os lábios de Derek eram gentis e se moviam devagar, como se tivéssemos todo o tempo do mundo. Ele sorria entre os beijos, e acho que eu o fazia também.

— Nada mau, Woopert — elogiei quando nos afastamos.

— Oh, obrigada, Jessica. Mas não vou chamar você pelo sobrenome, porque ele me lembra o Rivers e isso seria totalmente anticlimático.

Isso me lembrava de que eu estava exigindo honestidade de Derek, mas não contara que James havia me beijado. Eu planejava contar. Mesmo. Mas aquele parecia ser o pior momento possível para tal.

— Ele não é tão ruim. Por que vocês se odeiam?

— Não tem um grande evento que sirva como motivo, na verdade. Tivemos alguns desentendimentos, como alguns que você já presenciou. O cara é simplesmente pretensioso e arrogante demais.

Eu ri.

— Ele acha a mesma coisa de você.

— Qual é, eu não sou arrogante.

— Não acho que seja. Também não acho que James seja arrogante. Ele só é muito sincero e extremista quanto a tudo. Ele nunca para a fim de respirar e contar até três. E nunca entra em alguma coisa se não achar que pode ganhar.

Derek ergueu uma sobrancelha.

— Rivers te contou todas essas coisas?

Dei de ombros.

— Ele não precisou.

James

— Jess.

— Sim? — respondeu ela sem olhar para mim.

Estávamos deitados em minha cama, mas não nos tocáramos desde que ela chegara. Não era desconfortável ou embaraçoso, porque nenhum dos dois realmente achava que era grande coisa.

Camas são móveis como qualquer outro, principalmente quando se está vestido. E são móveis bem confortáveis.

— Quantas reuniões, exatamente, você perdeu quando estava irritada com o Woopert?

— Duas ou três, por quê?

— Porque, quando eu fui à sala de testes hoje, tinha uma ficha sua sobre a mesa. Isso nunca é um bom sinal — mordi o lábio. — E, antes que você pergunte, não, não vão mandar você para o Ômega.

Ela riu um pouco.

— Bom saber.

* * *

Eu às vezes odiava o fato de estar sempre certo.

— Sr. James. Srta. James — Tender nos encarou no dia seguinte quando fomos chamados à sala de testes.

— Por que diabos você o chama pelo primeiro nome?!

— Jess, isso é mesmo relevante? — ergui uma sobrancelha.

— Érrr... Certo. Prossiga, Dylan Fofinho.

Comprimi um sorriso. Aquela garota...

— Andamos fazendo alguns testes de DNA, e descobrimos que o material genético de vocês dois é bastante diferente. Os dois mais diferentes entre si, na verdade. Então, o Projeto tem interesse em juntar essas duas bagagens genéticas em um novo humano cuja capacidade física e cerebral seria ainda mais desenvolvida.

Não foi nada combinado. Eu e Jess simplesmente explodimos em risadas.

— Você quer mesmo que a gente...?

Nos entreolhamos e começamos a rir mais.

— Não precisa ser imediatamente — acrescentou Tender. — Mas mantenham em mente que estariam fazendo um grande serviço ao seu país.

— Mantenha em mente que não vai acontecer — disse eu ao homem, ainda um pouco atônito com a ideia.

— Sr. Rivers, não foi um pedido.

— Uuuh, ele chamou pelo último nome — provocou Jess. — E se nós nos recusarmos?

Tender estalou os dedos e cinco seguranças enormes entraram na sala.

Jess

Eu tinha quase certeza de que essa coisa de estalar os dedos só funcionava em filmes, mas eu aparentemente estava errada.

Que grande surpresa.

— O que eles vão fazer com a gente? — perguntei a James enquanto nos arrastavam. — Ai, porra, você está me machucando! — cerrei os dentes para o segurança que segurava meu braço.

Nos levaram até o elevador, onde apertaram o botão -3. O elevador começou a descer ainda mais.

— Onde estamos? — perguntei, olhando em volta.

— Bem-vinda ao Delta — James fingiu estar impressionado.

O Delta era como uma prisão. Bem, na verdade, era quase literalmente uma prisão. Celas com gente dentro.

Merda, era literalmente uma prisão. Os seguranças nos jogaram sem nenhum cuidado dentro de uma das celas vazias. Olhei em volta. Todas as paredes consistiam em grades, exceto por uma de concreto cinza. Na cela havia dois beliches que pareciam prestes a desabar e uma pia.

— Não gosto desse lugar — falei quando trancaram a cela.

— Você se acostuma — James deu de ombros.

— Quanto tempo vamos ficar aqui?

— Não faço ideia. Mas, enquanto isso, sugiro que aproveite a estadia. Pode-se aprender muita coisa aqui embaixo.

— O que uma cela e cinza em todo lugar podem ensinar?

— Ah, não é o lugar — ele sorriu. — São as pessoas. Aqui embaixo estão as pessoas relevantes de verdade. Os desajustados, revoltados, revolucionários, vândalos, rebeldes, delinquentes... Todos os que ousaram ir contra alguma ordem imposta pelo Projeto Guinea P.

— Guinea. É disso que ficam nos chamando.

— Guinea porcum — concordou James, desviando o olhar. — É um termo em latim para "porquinho da índia". Sabe o que isso quer dizer?

Um surto de entendimento transpareceu em meus olhos.

— Cobaia.

— Bingo.

Um segurança abriu a porta de nossa cela.

— Hora do almoço.

O almoço do Delta não era lá muito legal. Consistia em uma pasta branca que eu não tinha muita certeza do que era, mas tinha medo de perguntar.

Eu ia me sentar em uma mesa vazia, mas James tinha outros planos. Ele me arrastou até a última mesa no fundo do refeitório, onde só havia uma figura sentada: um homem de quarenta e tantos anos com a barba muito por fazer, vestindo roupas um pouco rasgadas e parecendo completamente hostil.

— E aí, Gregory? — James abriu um leve sorriso, sentando-se.

O homem desviou os olhos escuros da comida. Quando focaram-se em James, ele soltou um leve riso cético.

— De novo, James? Não aprendeu sua lição da última vez?

— Oh, sabe como é. Pelo menos eu volto, Greg. E você que sequer sai?

— Está ficando muito abusadinho. Respeito com os mais velhos — o olhar dele se cravou em mim. — Vejo que trouxe uma amiga. Isso é novidade.

— Jess James — me apresentei.

— Gregory Santiago. É um prazer. Por que estão aqui?

— A gente se recusou a ter um bebê — contou James, enfiando um belo bocado da comida desconhecida na boca.

— Clássico.

— Espere, isso acontece o tempo todo?! — arregalei os olhos.

Gregory ergueu uma sobrancelha.

— Ela é novata — explicou James. Depois se virou para mim. — Sim, Jess. Esse lugar é o que acontece se você não for o brinquedinho perfeito que eles querem que você seja. Toda aquela mordomia lá em cima é uma recompensa por não se revoltar. Eles querem mostrar como tudo é muito melhor quando nos mantemos na linha.

— Mas... As pessoas realmente fazem coisas como ter um bebê para ficar lá em cima?

James riu.

— Elas fazem coisas muito piores, Jess.

— Dizem que muito tempo aqui embaixo pode enlouquecer você — contou Gregory. — De qualquer forma, é bom ver que não ficou cego, garoto.

— Cego? — fitei James, confusa. Ele suspirou.

— Valeu mesmo, Greg.

— Oh, desculpe por envergonhá-lo na frente da sua garota.

— Qual é. É a Jess — ele revirou os olhos.

Eu não sabia o que "É a Jess" queria dizer, e não tinha muita certeza se queria descobrir.

— Da última vez que acabei aqui embaixo — contou James. — A condição para que eu saísse era que participasse do desenvolvimento de um soro para curar miopia. Tinha basicamente 20% de chance de que eu ficasse cego no processo. Aceitei mesmo assim, como você pode ver.

— Mas...

— Não venha me censurar — pediu ele antes que eu começasse. — Você não entende.

Quando abri a boca para falar, ele completou:

— Não estou com fome. Vou voltar para a cela.

E então observei enquanto um segurança o acompanhava de volta. Encolhi-me na cadeira.

— Não é sua culpa — disse Gregory, e seu tom compreensivo me surpreendeu. — Esse lugar não faz bem a ele.

— Por quê? — Não sou a pessoa certa para te contar essa história. Mas é bom que ele tenha você aqui com ele. Eu geralmente sou sua única companhia, e não sou exatamente a primeira opção de um garoto de dezoito anos.

— Há quanto tempo está aqui embaixo?

— Semanas, acho. Não sei bem.

— O que fez para acabar aqui?

— Me recusei a testar um soro de visão a longo alcance.

— E por isso te deixaram aqui todo esse tempo?

— Não. Estou aqui porque quero. Se eu voltar, vou passar meus dias sendo testado e tendo soros de merda sendo injetados na minha bunda para que algum empresário, cientista ou o raio que o parta fique feliz. Não, obrigado, estou muito bem aqui embaixo no meu cantinho.

Fitei-o por um minuto. Eu podia ver claramente o que James via nele.

— Foi você, não foi? — abri um leve sorriso.

— O quê?

— Que criou os fundamentos das teorias de James. Aposto que tudo aquilo não veio dele.

— Na verdade, veio, sim. Eu apenas o ensinei a ver as coisas por outro ângulo.

— Ele deve admirar muito você. Não passa dez minutos sem despejar alguma teoria em mim.

— Ele costumava mantê-las em segredo num caderno — contou Gregory. — Deve confiar mesmo em você se as compartilha.

— Por que isso?

Ele ergueu uma sobrancelha.

— Jess, não é? — Assenti. — Bem, Jess. Se essas teorias forem descobertas e relacionadas a James, o garoto vai ser tachado como, no mínimo, terrorista. E isso não acabaria nada bem.

— Matariam-no?

— Matá-lo seria a coisa mais generosa que eles poderiam fazer.

James

Jess voltou para a cela depois de algum tempo.

— Oi — ela me fitou por um momento.

— Oi.

Ela se sentou no chão, encostada na parede de concreto.

—... Eu não deveria ter saído daquele jeito.

— Não faz mal. Gregory disse que esse lugar não te faz bem.

— Ele disse por quê?

Ela balançou a cabeça.

— Disse que não era a pessoa certa para me contar.

Assenti.

— Concordo com ele.

— Deus, isso tudo é tão...

— Errado? — sugeri, sentando-me ao lado dela. — Acredite, eu sei. Sobre o que você e Gregory estavam falando?

— Sobre você.

— É mesmo? E o que disseram?

Ela sorriu.

— Nada importante.

Ergui uma sobrancelha.

— Você está se divertindo muito com tudo isso, não está?

— Com certeza — ela riu, encostando a cabeça em meu ombro.

— Acha que seu namorado babaca pode tirar a gente daqui?

Ela franziu o cenho.

— Cale a boca, James.

— Calei.

* * *

Quando Jess colocava uma ideia na cabeça, era impossível tirar. O que era ótimo, porque eu também era exatamente assim.

Um dia inteiro se passou antes que ela se sentasse decidida no jantar, perto de mim e Gregory, e dissesse:

— Precisamos dar o fora daqui.

— Vão liberar você em alguns dias, querida, não se preocupe — disse Gregory, que já passara por aquela situação um milhão de vezes.

— Não, não do Delta. Quero dizer, daqui. Do prédio. Do Projeto Guinea P.

Greg riu.

— Tá bom.

Uma ideia se formou em minha cabeça.

— Ela está certa.

Gregory ergueu uma sobrancelha, surpreso com o meu apoio, e disse:

— Escuta, vocês acham que é fácil assim? "Olha, não tenho nada para fazer hoje... Vamos fugir!". Se fosse, todo mundo já o teria feito.

Abri um pequeno sorriso malicioso.

— Ainda assim, acho que poderíamos fazê-lo.

O homem revirou os olhos.

— Essa comida aqui de baixo não está fazendo bem a vocês. E olha quem está falando.

Falo com você depois, formei com os lábios para Gregory. Ele assentiu.

* * *

— Tudo bem — Gregory me encarou no café-da-manhã.

Jess sempre dormia até o segundo café, então eu tinha algum tempo até que ela acordasse.

— O que vocês têm que todas as outras tentativas de fuga não tiveram, e por que a bonitinha não pode ouvir?

— Jess não pode ouvir porque eu ainda preciso achar um jeito de convencê-la. Eu acho que podemos dar o fora daqui se tivermos ajuda de alguém que trabalhe no Projeto Guinea P. Alguém que saiba a ronda dos seguranças, os pontos cegos...

— E quem diabos nos ajudaria?

Abri um leve sorriso malicioso.

— Woopert. Derek Woopert.


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Notas finais do capítulo

James totalmente bobo e nem um pouco oportunista...