Consciente Submerso escrita por Ana Luiza Postingher


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Este com certeza não é o primeiro texto que escrevo, mas é o primeiro que posto aqui. Foi inspirado na história real de uma garotinha norte-americana à qual assisti esses dias no Discovery H&H. Aquilo me doeu tanto e a doença dela me tocou tão profundamente, que mergulhei no curso que faço (psicologia) para dar voz à personagem esquizofrênica que, quando ouvida, não era entendida. Busquei entendê-la ao máximo, e espero ter cumprido meu intento.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/439788/chapter/1

Se a mãe de Alice soubesse que a filha também teria o próprio mundo, riscaria do caderno de possibilidades esse nome de história de infância. Quando ela nasceu, linda, loura e rosada como um anjo, mamãe e papai a abraçaram muito e murmuraram uma oração de agradecimento aos céus. Deus lhes enviara o presente que almejavam há muito e nada existia que pudesse fazer sorrir com maior e mais verdadeira felicidade os seus corações. Nascera Alice, linda como o sonho que a atormentaria.

Papai e mamãe achavam que tinham ganhado na loteria genética. Alice, com dois anos e meio de idade, brincava com blocos, fazia desenhos e falava de maneira articulada e compreensível. Todos já ouviam que Alice falava e se orgulhavam dela, mas mesmo que o tempo passasse e aquelas primaveras coloridas e psicodélicas fossem deixadas para trás, ninguém jamais seria capaz de entender o que Alice dizia.

Uma vez papai estava deitado no sofá, de barriga pra cima, enquanto mamãe terminava o jantar. Alice estava sentada aos pés do pai, brincando com a boneca a que denominara Brisa, silente e gesticuladora. Até que os movimentos cessaram e Alice fixou os olhos no teto, impenetrável. Alice não piscava e nem se mexia. Papai tentou cutucá-la com os pés, achando graça do modo repentino como a filha desviara sua atenção da boneca e se calara por completo. Deviam ser sete horas da noite. Papai se sentou, chamou Alice, mas ela não se mexeu, permaneceu vidrada. Desesperado, papai correu até a cozinha e pediu que mamãe fosse vê-la. Ah, mamãe queria salvar Alice, como queria! Desde aquele instante tudo o que mamãe mais desejava era cumprir as expectativas de quem a chamasse e resolver todos os problemas do mundo. Ela faria o que fosse preciso para ser a melhor mãe de todas. Quando chegaram ao hospital, o relógio da sala de espera marcava exatas sete horas e quarenta e sete minutos.

Gabriel, sem livro nem nada, nasceu três meses depois do aniversário de quatro anos de Alice. A festa dos quatro anos, no grande salão de festas do prédio, fora linda e tenebrosa. Vovó Zélia mandara fazer bolinhos com glacê em forma de nuvens e um enorme bolo azul, de menta com chocolate. Alice usava um vestido fluido e branco como os olhos da boneca Brisa. Isso porque nos últimos meses Alice alardeava a quem interessar pudesse que o Vento era o seu melhor amigo e que não sabia viver sem ele. Ela corria pelo quintal da casa da vovó Zélia e girava por entre as folhas caídas berrando ao Vento que se aproximasse e lhe acariciasse a face, mas, por estranho que parecesse, ninguém ouvia seu desespero ou sua solidão. Vovó, quietinha como a guerra a ensinara a ser, debruçava-se sobre a janela e observava a neta que rodava como um peão sem rumo murmurando frases ininteligíveis, os olhos sempre vidrados. Ela parecia estar bem naquele dia. Todos queriam que ela estivesse bem naquele dia. O Vento não. O Vento estava bravo por não ter sido convidado para a festa de Alice. Ele chegara e fora barrado, ninguém o deixara entrar. Ele ficou enraivecido e, num ataque de ódio, rasgou o vestido branco de Alice em pedacinhos. Foi embora, muito satisfeito, e deixando estragos imensos para trás. A alma de papai ardia, a face de mamãe queimava, o rosto e os braços de Alice sangravam, arranhados, suas unhas encardidas de medo e pedacinhos de pele.

Alice tinha um monstro que morava em seu espírito. O doutor dissera que era uma doença, mas ela sabia que era mentira. Seis, o gato, contara-lhe isso. Ele dizia para ela não tomar os remédios que mamãe levava ao quarto, mas, tremendo e chorando, Alice tomava, teimosa, apenas querendo que mamãe trocasse a expressão de susto por um esboço de sorriso. O sorriso de mamãe era seu novo melhor amigo, juntamente com o gato Seis, o tigre Doze, e aquela menina de rosto queimado que se chamava Reflexo. Reflexo não falava, ao contrário de Seis e Doze. Ela era triste, Alice sabia, e gostava de machucar as pessoas. Por causa do monstro, eu acho. Era horrível, mas era preciso. Se as pessoas não se machucassem, o monstro gritaria como uma sirene quebrada e faria a cabeça de Alice explodir em agonia. Sempre que podia, sempre mesmo, Alice escolhia ferir a si mesma. Era generosa e boa, a Alice, e amava muito sua família.

Num dia de prova na escola, Alice, Seis, Doze e Reflexo foram trancados no quartinho em que ficavam guardadas as coisas do zelador. Alice gritava, pedia socorro, mas as pessoas pareciam não entender ou não querer ajudá-la. Seria possível que ninguém tivesse percebido que o monstro fora trancado com eles? Tirem-nos dali, pelo amor de Deus! Se Deus ama a todos, por que não abraça Alice e a leva consigo para a morada santa? Por que, Senhor misericordioso, não debruça as asas da morte sobre essa pobre criança e a livra de si mesma? Ela implora. Mamãe e papai foram chamados e a diretora explicou que Alice agredira os colegas, quebrara cadeiras e depois saíra correndo pelos corredores, jogando-se violentamente contra as paredes e falando sozinha. Se eles não fossem buscá-la o mais depressa possível, a filha, que estava trancada por motivos de precaução, seria levada pela polícia. O coração de mamãe desistiu de bater naquele dia e passou a só bombear sangue. Papai engoliu a voz e a língua, sem água e nem nada, e de mãos dadas com mamãe aguardou que o Estado abrangesse o que eles não conseguiam. Por que os policiais não carregaram apenas o monstro naquele carro fedorento?

Alice tinha sete anos. Mamãe e papai se revezavam para dormirem na casa da família ou na dela. A casa da família, Alice sabia, era aquela em que Gabriel morava e em que tinham facas guardadas nos armários da cozinha. Na sua não havia Gabriel ou objetos cortantes, e Alice sentia que o monstro ganhava força e vencia mais uma batalha. Uma batalha, dizia Doze, sempre otimista, mas não a guerra. E que guerra, afinal, era essa? Alice queria lutá-la? Alice queria vencê-la? Alice precisava de paz, de um sono sem sonhos e de uma vida sem pesadelos. Talvez, Seis sussurrava, fosse melhor que ela voltasse para o hospital ao qual tinha sido levada pela polícia no ano anterior. Sentia que incomodara menos ali. Alice nunca mais fora à escola e nem nunca mais brincara com outras crianças, nem mesmo com Gabriel. Ela não precisava deles e era melhor mesmo que ficassem longe, ou Reflexo os machucaria. Seis, Doze e Reflexo não eram bons amigos, mas existiam. Viviam para ela naquele universo que era tão real, mas tão real, que doía, e ninguém mais os podia ver ou feriria a alma, exceto Alice, que guardara a alma na caixinha de papelão em que guardava desenhos, abraçada à mamãe com asas e ao papai pintado de verde. Nos desenhos, Alice sangrava.

O doutor esbravejava e a enfermeira ralhava, dizendo à Alice que tomasse os remédios. Você já é uma mocinha, faça o que tem que ser feito! Alice já disse a alguém o quanto odeia ser mocinha? Já disse a alguém que cada vez que um pedacinho dela escorre quente por entre suas pernas, monstro arreganha os dentes e a xinga de nomes terríveis? Alguém viu Doze no jardim? Alice já o procurou por toda parte! Olhou nos quartos dos outros pacientes e abriu todas as gavetas do mundo, mas não o encontrou. Seis disse que monstro o levou com ele e que ele não mais voltará, e, por mais que teime e mande Seis dormir sozinho, Alice sabe que ele não mente e que Doze e o otimismo se foram para sempre. No meio do sangue, talvez? Das pernas, dos pulsos, dos lábios? Dos olhos, quem sabe? De que importa? Reflexo acha que vai ser melhor assim. Não disse nada, mas Alice sabe. Sem Doze ela pode ferir a Alice que resta.

Resta Alice?

Resta dor, sabemos, e tristeza, e gritos, e pesadelos e facas e papai e mamãe e distânciaeatropeloedesamoregatosnotelhadoehistóriasdebruxasfeiaseprincesasmortaseojardimsecandosecandosecandosecandosecandoseandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecandosecando…

Numa noite fria como o quê, Alice ouviu chamarem-na. O seu nome parecia lindo dito pela voz que a chamava, doce, assustadora e convidativa como era a vida. E quem poderia chamá-la se não a vida? Quem mais emitiria som tão melodioso? Ele a esperava no jardim, embaixo do carvalho grande que ficava bem no centro e sombreava a grama quando era dia. Vestia-se de branco, como a camisola de louca de Alice, e sorria comedido, com um ar de mistério que encantava e fazia tremer. Alice tremia, mas não era de frio. Ela não tinha mais medo do Vento, não com ele. Descalça, andou gentilmente em sua direção e aceitou a mão estendida. Curvou-se de leve e sentiu-o abraçar sua cintura e conduzi-la com carinho e com firmeza. Ela dançava porque as estrelas dançavam, e não importava o quão bonito aquilo fosse, Alice nunca soubera dançar. Mas dançava agora. Está vendo? Ela está dançando! Girou já duas vezes sem cair. Está perto de alguém e ainda não o atacou. Onde estão Seis e Reflexo agora? Onde estão papai e mamãe? Onde está Gabriel? Onde está o monstro? Alice os enganou a todos e os trancou num cofre sem chaves. Vê como ela sorri e como o anjo sorri de volta? Ele a entende e não sucumbe. Não há agonia no orvalho, há? Não pode haver, ou o nascer do sol não seria tão lindo. Deite-se, Alice, por todos nós. Feche seus olhos, querida, e abandone de uma vez o monstro. Ele é você, meu bem. Nunca percebeu que nunca foi sem ele? A cabeça roda? Abandone os pensamentos. Uma vez na vida, Alice, abandone os pensamentos! Ele está com você, é ele quem vai levá-la. Siga-o. Deixe-o vê-la. Está quase na hora de abrir o cofre e trazer todos de volta. Eles sempre voltam. Mas, acalme-se, Alice, desacelere os batimentos, eles vão encontrá-la imaculada sobre a grama e vão chorar sangue por você. O reverendo a mandará para o paraíso com trechos decorados da Bíblia e o céu se derramará por inteiro. Confesse. Tudo findou quando ele a beijou, não foi? Tranquilize-se. Ele já foi. A morte soprou e você já pode se reconciliar com Deus. Ele abriu as portas do impossível cedo demais para você. É difícil a realidade Dele… Durma, Alice, durma. Papai chegará em breve com o monstro morto em seus braços. Ele o dará de presente a você e você o embalará como se embala um bebê. O carvalho está tocando a valsinha de Alice, veem? Ouvem? Sentem?

Nesta rua, nesta rua tem um bosque

Que se chama, que se chama Solidão

Dentro dele, dentro dele mora um anjo

Que roubou, que roubou meu coração


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Ficarei contentíssima quando receber comentários. Ouçam Alice e sua valsinha e meu objetivo terá sido alcançado. O trocadilho do título e a compreensão do monstro ficam por conta de vocês. Boa sorte a nós, que tentamos!



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Consciente Submerso" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.