Elo Perdido escrita por CaahOShea, Bellah102


Capítulo 2
Elo Perdido - Parte II


Notas iniciais do capítulo

Olá, boa noite. Aqui estamos com a segunda parte da one. Obrigada a NielliCris pelo comentário, ela foi a única que comentou.
Ficamos muito desapontadas, mas tudo bem. Espero que tenhamos mais reviews agora.
em mais, boa leitura!
Até lá em baixo!
Beijos



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Trevor Norris

Mais nervoso do que devia estar ao ir encontrar o meu melhor amigo, inclusive o que poderia salvar a vida de Dale consertando seu carro, eu fui até a porta, respirando fundo antes de abri-la.

–Ei. Oi. E aí?

Perguntei, apoiando-me na porta, tentando manter o tom casual. Ele tinha os braços de pele morena cruzados e as sobrancelhas franzidas.

–Já está de volta?

–Já. Já sim. – Limpei a garganta – Teve um... Imprevisto na estrada.

–Um imprevisto?

–É. Uma batida, na verdade.

Seus olhos verdes se arregalaram.

–Você está bem?

–Sim, sim. E a moça do outro carro também. – Estava prestes a dizer que ela estava no meu armário quando me lembrei: Eu a estou ajudando. Então fiz o que um humano faria: Menti. - Eu a levei até a Estação de Cura. Vou até lá amanhã ver como ela está. Mas ela precisa de ajuda para consertar o carro dela. Ela não é daqui, sabe?

–Claro, claro. Bem, amanhã você me mostra onde está. Foi muito feio?

–Pior para o carro dela. Era um modelo antigo.

–Eu vejo. Mas nada que eu não dê um jeito. Até amanhã, então.

–Até. – Esperei que ele atravessasse meu pequeno gramado, até o chamar de volta - Ei Folhas.

Ele virou-se para mim, curioso.

–Você não precisa ficar me vigiando. Eu juro que estou bem.

Folhas Ocultas sorriu e acenou antes de colocar as mãos nos bolsos e olhar para os dois lados antes de atravessar a rua – embora fosse noite e estivéssemos dentro do condomínio. Fechei a porta e fui até o armário, abrindo a porta.
Dale estava encolhida no canto mais distante, abraçando os joelhos e escondendo o rosto.

–Ei, você pode sair agora. Ele já foi embora.

Ela levantou o rosto e parecia mais assustada do que estive algum tempo atrás, na floresta. Uma de suas mãos foi até o bolso, como se lá guardasse algo que lhe acalmasse. Ela respirou fundo.

–Eu sempre fui péssima em esconde-esconde.

–O que é isso?

–É uma... Deixa para lá. Hum, eu estou cansada. Eu...

–Ah, claro, você pode ficar no quarto de hóspedes. – Estendi a mão para ajudá-la a levantar. Ela olhou para a mão, novamente desconfiada. – Vem, eu te levo lá.

Dale M. Porter

Quando saí do banho, minha roupa tinha desaparecido e em seu lugar havia uma camisola e um roupão. Procurei por toda a parte, mas Trevor havia levado minhas roupas. Praguejei. Devo começar a dar adeus à mim mesma.

Aproximei-me da cama e toquei a camisola. Devia ter pertencido à ex mulher. Nas atuais circunstâncias, aquilo soava bem menos psicopata do que soaria normalmente. Vesti-a e ao roupão. Procurei pelas gavetas alguma arma para esconder no bolso. Uma caneta, um lápis afiado, um canivete suíço, um abridor de cartas... Nada. Fui até o corredor. Trevor subia as escadas. Saltador estava em seu ombro.

–Ah, Dale. Coloquei suas roupas para lavar. Espero que não se importe.

–Não. Não. Não mesmo.

Eu disse, sentindo as costas ficarem tensas. Ele assentiu e tirou o pedaço de vidro com cuidado do próprio bolso.

–E você pretendia me contar o que é isso? – Dei de ombros, como se não soubesse – Estava no bolso da sua calça.

–Deve ter entrado lá durante o acidente, ou sei lá.

Ele respirou fundo e cruzou os braços, fitando-me intensamente.

–Você não precisa ter medo. Eu disse que não vou fazer nada à você. Eu menti para o meu melhor amigo, você acha que isso é algo que eu faço todo o dia?

Deixei uma risada escapar, balançando a cabeça.

–Você acha o quê? Que isso é um jogo? Que um dia acaba? – Surpreendendo-o, eu tirei o pedaço de vidro da sua mão e apontei-o na sua direção. Ele automaticamente levantou as mãos, sobressaltados. Saltador grasnou, voando para o andar de baixo. – Eu sempre vou precisar ter medo. É por isso que eu ainda estou aqui. Ter medo é o que me manteve viva.

–Dale... – Ele disse com cautela. Devia achar que eu havia perdido a cabeça. Talvez eu tenha. Ou só tenha recuperado agora. – Abaixe isso.

–E daí o que? Espera que eu acredite que vai me deixar embora? Que vai dar tudo certo?

–É exatamente nisso que eu quero que acredite.

Senti-me fraquejar, enquanto a minha parte criança rastejava na direção dele, querendo tanto acreditar. Apertei o vidro na mão, sentindo a pele abrir-se suavemente, e os olhos arderem de frustração.

–E porque eu deveria acreditar em qualquer coisa que você diz?

Ele lentamente caminhou até mim. Dei um passo para trás. Ele tentou de novo, sem dar pistas do que ia fazer. Deixou que o vidro ficasse sobre o peito da sua camisa. Seria muito fácil dali. Um passo à frente e acabou.

–Vá em frente, então, se é o que quer fazer. Se você acha que vai ficar melhor sem mim. Pode ir. Eu só acho... – Ele olhou para mim, e foi como se pudesse ver através de mim. Como se realmente soubesse. – Acho que você está cansada dessa vida.

Soltei o ar, mas por algum motivo, eu não me preparei para fazer nada. Eu apenas respirei fundo mais uma vez e deixei o caco de vidro cair no chão com um tinido. Permanecemos no mesmo lugar. Meu braço esticado na sua direção e suas mãos levantadas. E lentamente, ainda como se lidasse com um animal selvagem, ele se aproximou e – eu não sei porquê – ele me abraçou.

Eu não conseguia dizer nada, congelada no mesmo lugar. Fechei os olhos e devolvi-lhe o abraço. A verdade era que eu estava cansada. Estava terrivelmente cansada. Talvez tivesse sido por isso que eu havia aceitado sua carona, afinal de contas. Queria que aquilo acabasse de uma vez, e que acabasse bem. Tranquilamente. Acho que uma parte de mim não esperava que ele fosse realmente me ajudar, embora a outra esperasse.

–Agora vamos dar um jeito na sua mão, e dormir um pouco. Amanhã Folhas vai buscar seu carro. E tudo vai melhorar. Você vai ver.

E embora houvesse um milhão de frases que eu pudesse dizer, tudo o que eu realmente disse foi:

–É o carro do meu pai.

Quando acordei na manhã seguinte, achei que ainda estava dormindo. O sol entrava pela janela e era filtrado pela cortina branca, espalhando luz pelo quarto. Eu me sentia lenta e pesada, relaxada, sobre um colchão de verdade, com cobertores de verdade. Da porta, eu podia sentir o cheiro que panquecas subindo as escadas. Era como se os últimos dois anos nunca tivessem acontecido. Era como se tivesse voltado para casa.

Levantei-me e calcei chinelos que me aguardavam ao lado da cama. Desci as escadas cautelosamente, ainda esperando que um bando de Buscadores surgisse de repente. Mas lá embaixo só havia Trevor inclinado sobre o fogão e Saltador assobiando baixinho em seu poleiro. Fiquei parada na escada, com medo de que qualquer movimento fosse quebrar aquela fantasia tão agradável, até que Trevor percebeu a minha presença.

–Ora, ora, ora. Bom dia, flor do dia. Já passa das 10h da manhã. É bom descer aqui antes que essas panquecas comam a si mesmas.

Calada, eu desci as escadas e fui até a mesa. Trevor serviu meu prato e colocou-o na ponta da mesa. Sentei-me e comecei a comer silenciosamente, espiando Trevor com o canto dos olhos enquanto ele atravessava a cozinha com um avental branco.

–Dormiu bem?

Ele perguntou, servindo a si mesmo de duas panquecas e vindo até a mesa para colocar melado sobre elas. Ele sentou-se ao meu lado, encarando-me como se realmente quisesse uma resposta sincera. Desviei os olhos para o prato, desconfortável.

–É, dormi sim. – Olhei de relance para ele, que olhava para mim ao invés de para o prato. – Belo avental.

Ele olhou para si mesmo e deu um risinho.

–É. É da minha... – Ele se interrompeu – Era da minha esposa.

A palavra automaticamente me fez olhar para a sua mão, hábito que eu havia adquirido da minha mãe. E lá estava a aliança dourada, brilhando sob a luz do sol da manhã.

–Há quanto tempo ela... Morreu?

–Não muito. Uns meses, eu acho.

–Meses? Não acha que já é hora de tirar isso?

Apontei com a cabeça para sua mão. Ele deixou o garfo sobre o prato, olhando para o anel.

–Talvez. Não sei se quero.

–Bom, você não precisa, se não quiser. Só acho que você precisa aceitar que acabou.

Ele encarou o prato, sem dizer nada. Entendi que era hora de me calar também.

Quando Trevor saiu para trabalhar, eu me senti a Branca de Neve, sozinha na casa dos Anões. Mas ao contrário dela, não havia nada com que eu pudesse me ocupar. A casa era impecavelmente limpa e não havia televisão em lugar algum. Procurei por revistas ou livros, mas não encontrei nada. Pelo menos, não nos limites da casa que eu estabeleci. O quarto de Trevor e da esposa morta estava fora dos limites. O porão estava fora dos limites. A varanda estava mais do que fora dos limites.

Fiquei tomando conta de Saltador e tentando convencê-lo à comer. Eu nem ouvi a porta se abrindo ao som da primeira batida.

Trevor Norris

Quando abri a porta, soube que algo estava errado. Saltador estava no seu poleiro, assobiando o hino dos Estados Unidos como de costume, e a corrente de ar característica do corredor me recebeu ao invés dos braços de Rosas no Deserto. Mas surpreendi-me ao perceber o que estava faltando naquele cenário.

–Dale? – Entrei na casa, deixando o jaleco e a maleta de lado. Corri até a escada.

– Dale!

Subi as escadas e revirei seu quarto – o quarto de hóspedes - e o banheiro. Lá embaixo, a cozinha também estava vazia. Por alguma razão, senti um aperto no coração. Não tinha percebido como era engraçada a sensação de ter alguém lhe esperando em casa. Ela é uma humana, o que você esperava? Eles machucam e partem. É tudo o que fazem!

Pensei e imediatamente me arrependi. Estava apoiado na mesa, de frente para o armário da escada. Em um impulso, abri a porta. Como na noite anterior, Dale estava encolhida contra a parede do armário, joelhos contra o peito, abraçando-os. Ajoelhei-me ao seu lado. Ela estava chorando baixinho.

–Eu estava tomando conta de Saltador, Trevor, ele entrou tão rápido... Não houve tempo para nada. Eu não devia ter sido tão boba, falado tão alto, mas quando eu vi... Era... Era tarde demais...

–Dale, Dale, Dale. – Segurei seus ombros para que ela olhasse para mim – O que aconteceu? Qual o problema com você? O que está fazendo no armário de novo?

–Seu amigo. Ele sabe que estou aqui. – Ela se aproximou e encostou a testa quente no meu ombro – Eu não quero morrer, Trevor, não deixe que eles me levem.

–Não vou deixar. Folhas é ótimo. Ele nunca faria isso. Fique tranquila, está bem? – Olhei ao redor, procurando pistas de há quanto tempo ela estava ali – O que você disse para ele?

–Bem... Eu disse oi. E ele disse oi. Então ele perguntou quem eu era. E eu disse meu nome. Daí ele ficou encarando meus olhos, então eu entrei em pânico. Corri para cá.

Suspirei, assentindo.

–Ok, ele já foi embora. Vá lá para cima, eu já te encontro lá.

>>>

Dale M. Porter

–Ei Trevor.

Encostei-me à batente da porta aberta dele, com Saltador empoleirado no meu dedo, cantando baixinho. Ele estava bem melhor. Estressado era tudo o que ele estava, provavelmente por toda a atenção que Trevor lhe dava, como se fosse uma criança ao invés de um pássaro independente.

–Sim?

Acariciei as bochechas vermelhinhas de Saltador, sem olhar para Trevor.

–Eu estive pensando... Qual era o seu nome? Quer dizer, antes da Terra?

Ele ficou calado por um segundo, compenetrado no que quer que estivesse fazendo.

–Eu nunca tive certeza da tradução.

–Por isso adotou o nome do seu corpo?

–Do meu hospedeiro, sim.

Soltei um risinho, pousando Saltador sobre o meu ombro, onde ele mordiscou carinhosamente o lóbulo da minha orelha, enquanto tentava escalar até o topo da minha cabeça.

–De onde eu venho, hospedeiros hospedariam hóspedes de forma... Você sabe, voluntária.

Ele deu de ombros.

–Trevor era razoável. Acredito que ele entenderia a missão das Almas.

Olhei para ele para fazer uma piadinha sarcástica que ele não entenderia, mas interrompi-me, com as palavras presas na garganta.

–Você está... De camisa e gravata.

–Estou indo trabalhar. Isso dá tranquilidade às novas Almas, já que os Hospedeiros se sentem seguros com pessoas profissionais. De terno.

–Mas... – Eu não conseguia conceber o fato do descontraído Trevor que eu conheci estar realmente vestindo uma camisa e uma gravata, como se estivesse indo à Igreja no domingo de manhã – Você não se veste assim.

–Você só me conhece há uma semana. Pode ter sido um lapso.

Ri, caminhando na sua direção e afastando suas mãos da gravata que ele tentava dar o nó, antes que ele acabasse se enforcando por acidente.

–Pela forma que está dando o nó nesta gravata, faz algum tempo que não usa uma.

Eu disse, lembrando-me do meu pai, que todos os dias tentava fazer seu próprio nó e todos os dias pedia ajuda para minha mãe. Eu achava aquilo a coisa mais romântica que eu já tinha visto na minha vida. Pedira que ela me ensinasse na época da minha primeira paixonite, imaginando que um dia eu amarraria a sua gravata todos os dias.

E hoje eu estava imaginando se iria sobreviver todos os dias até o mês que viria. Como as coisas mudavam...

–Desculpe. – Ele disse, enquanto eu desfazia seu nó desajeitado, como uma criança pega fazendo algo errado – Rosas costumava fazer isso para mim. Eu achei que eu tinha lembrado como fazer, mas...

Emiti um ruído indiferente, amarrando a gravata. Virei o colarinho, ajustando-o ao ombro de Trevor. Senti o calor da sua pulsação contra o pescoço. Peguei a mim mesma encarando a veia pulsante. Como alguém que não faz parte desse mundo pode ser tão... Natural?! Eu passara tanto tempo pensando nas Almas como inimigas que nunca imaginara o coração de uma batendo. Nunca imaginara como devia ser... Ser uma delas. Estar dentro de alguém. No controle.

–Dale?

–Huh?

–Já acabou? Sem pressa, mas...

–Ah... – Afastei-me rápido demais, juntando minhas mãos traidoras atrás de mim, enquanto Saltador reclamava do movimento. – Já sim. Desculpe.

–Obrigado. Ficou muito bom.

Ele deu um sorriso de leve e foi para o banheiro.

–Ei Trevor?

Chamei, apoiando-me na parede, de pernas estranhamente trêmulas.

–Sim?

–Como é... Estar dentro... Do Trevor? Quer dizer, ele ainda existe? Dentro de você?

Ele saiu do banheiro, penteando o cabelo louro para trás. Estava sério.

–É... Normal, eu acho. Sempre estive dentro de alguém. É natural para mim. – Ele parou à frente do espelho ao meu lado para ver o resultado do seu trabalho. Não parecia feliz. Voltou à pentear. – Acho que não. Algumas Almas dizem ouvir instintos estranhos. Eu não ouço nada. Apenas eu e eu mesmo aqui dentro.

Ri, alcançando a escova da sua mão e puxando seu colarinho de leve para que ele olhasse para mim. Estava doida para erguer um topete naquela cabeleira há tempos.

–Isso é muito estranho, sabia?

–O que é estranho?

Dei de ombros. Saltador grasnou e voou até a cama, afofando as penas debaixo das asas, mostrando como estava magoado comigo.

–Você. Eu. Quer dizer, nós somos amigos. Ninguém invadiu e ninguém matou. Quais são as probabilidades?

Trevor pareceu pensativo.

–Esse era o objetivo, sabe? Desde o começo. Harmonia. É o nosso modo nos outros planetas. Mas acho que devemos ter nos perdido no caminho. Sem querer, transformamos isso em uma guerra.

Ri, cruzando os braços.

–Acho que somos o elo perdido, então. Entre o que é, e o que devia ser.

–É. – Ele sorriu. – Acho que somos.

Deus. Pensei enquanto ele saía. Seu sorriso é lindo.

>>>

Assobiei para Saltador e ele me imitou, divertindo-se. Bicou meu dedo, pedindo que eu continuasse. Comecei a assobiar uma canção qualquer. Ele me seguiu, imitando-me a cada compasso terminado. Sorri para ele e lhe dei uma das castanhas que eu tinha nas mãos. Ouvi alguém bater na porta. Congelei no lugar. A porta se abriu.

–Dale?

Chamou Folhas, olhando ao redor. Engoli em seco e pousei Saltador sobre o seu poleiro, resistindo ao instinto de pedir ao homem que fechasse a porta antes que ele fugisse.

–Estou aqui.

Ele olhou para mim, e surpreendi-me quando ele sorriu.

–Ah, olá. Trevor está aí?

–Não. Vai demorar à voltar.

Um ano. Talvez mais. Agora vá embora. Pensei, congelada de medo no lugar. Por favor.

–Ah, ótimo. Era com você mesmo que eu queria falar.

Ele tirou algo do bolso e jogou na minha direção. Pulei para longe, pressionando minhas costas contra a parede. Ele me encarou e riu, pegando novamente o objeto e jogando-o novamente na minha direção. Dessa vez eu o peguei.

–É uma garota arisca, não é? Não é bem como eu imaginei.

–Desculpe decepcioná-lo.

Ele sorriu.

–Não estou decepcionado. Aliviado, na verdade. – Olhei o que eu tinha em mãos. A chave do antigo Cadillac que se tornara tão familiar para mim ajustou-se à minha mão como uma velha amiga. – Eu terminei o motor, então, vim te devolver. Vou trabalhar na lataria agora. Em mais uma semana, seu amigo deve estar rugindo por aí.

Assenti, verdadeiramente agradecida, mas nenhuma palavra saía da minha garganta. Ele começou a sair, mas se interrompeu e voltou para perto. Apertei-me mais contra a parede. O que é que ele vai fazer?! Tirar um Buscador do bolso?! Recomponha-se garota!

–Só mais uma coisa. Eu juro. – Ele parecia desconfortável. Uniu as mãos à frente do corpo e suspirou. – Eu... Queria te agradecer.

–Me agradecer? Pelo que?

Ele levantou os olhos, com um sorriso divertido.

– Pelo que você vem fazendo por Trevor, é claro.

Uni as sobrancelhas.

–O que? Tomar conta da calopsita estressada dele enquanto ele trabalha? Realmente não precisa me agradecer por isso.

Ele riu e balançou a cabeça.

–Dale... Você realmente não vê o que fez com ele? – Balancei a cabeça, assustada. O que eu tinha feito?! – Ele voltou a se vestir bem. À se barbear. Cozinha todos os dias, ao invés de pedir comida. Está até cantando no banheiro! – Ele se aproximou e colocou as mãos em meus ombros – Você o convenceu à tirar a aliança! Sabe quando tempo eu estava tentando isso?

Fiz que não. Ele sorriu tristemente.

–Quando a esposa dele morreu, Trevor foi junto. Ele nunca se recuperou verdadeiramente. Eu achei que eu ia perdê-lo também. E aí você apareceu. – Ele apertou meu ombro e foi na direção da porta. Olhou para mim antes de sair. -Pense no que eu disse, Dale. Trevor está mudando. Ele está voltando à vida.

Trevor Norris

Na manhã seguinte, a campainha tocou no andar de baixo. Levantei-me sem sentir, sonolento. Fui automaticamente até o quarto de Dale, a sensação horrível de não encontrá-la em lugar algum na casa enorme dos meus pesadelos achando seu caminho de volta para o peito. Mas pude vê-la do corredor, espiando à janela, alerta. Ela alcançou meu braço quando me aproximei, encarando a escada como se visse à própria morte se aproximando.

–Ei Trevor, sou eu!

Chamou Folhas lá fora.

–Não desça.

Dale pediu, assustada, apertando meu braço. Acariciei seu ombro, tentando lhe passar segurança e sorri de leve para ela, espiando lá fora.

–Merda, tem muita gente lá fora, Trevor.

–Fique aqui em cima. Eu volto já.

Desci as escadas sem entender a tensão no meu corpo. Eram só outras Almas, meus irmãos, meus vizinhos. Dale só estava sempre nervosa porque não os conhecia, e não parecia saber que eles jamais a machucariam. Lá fora, uma pequena multidão estava ajuntada no meu jardim atrás de Folhas Ocultas, que sorria.

–Folhas. O que é isso? Todo mundo do condomínio está aqui!

Ele deu de ombros, sorrindo.

–Todos querem vê-la, Trevor.

Senti-me tentando engolir um copo cheio de areia.

–Você contou à todos?!

Ele pareceu confuso com o tom da minha pergunta.

–Não deveria?

Soltei o ar. Era o que eu faria se Dale não tivesse me pedido que não o fizesse. Fiz sinal para que ele esperasse e dei um passo para dentro.

–Dale! Tem umas pessoas aqui querendo conhecer você. Você pode descer um segundo?

Ela surgiu no topo da escada, as mãos apertando o corrimão até que os nós dos dedos ficassem brancos.

–Buscadores?

Ela sussurrou.

–Não. Mas tem uma florista, então eu entendo se tiver medo – Eu disse, tentando lhe passar tranquilidade através de um sorriso – Vamos, eles só estão curiosos. Que mal pode fazer?

Dale respirou fundo, encarando-me. Estendi a mão para ela, encorajando-a. Ela revirou os olhos.

–Não acredito que estou fazendo isso. – Ela alcançou minha mão, apertando-a. – Vamos conhecer seus amigos Almas.

Dale M. Porter

Conhecer pessoas novas já costumava ser aterrorizante quando tudo o que elas podiam fazer eram ser cruéis. Tudo se tornava muito pior quando elas podiam chamar em um instante pessoas que podem apagar tudo o que você é em questão de horas, e levá-la à um destino quase pior do que uma morte para você e todos que você já conheceu.

Diante daquela porta, eu me sentia andando em uma prancha de pirata. De um segundo para o outro, a água inundou tudo.

–Olhe os olhos!

–Que engraçados!

–Porque não se move?

–Cuidado, não chegue muito perto.

–Não cutuque, ela vai morder você!

E elas continuavam falando e falando e cutucando-a e analisando-a. A mão de Trevor foi arrancada da minha, e toda a minha coragem desapareceu. Olhei ao redor procurando-o, mas tudo o que podia ver era gente, gente de olhos prateados, não-gente.

–Parem com isso. –Eu disse, mas sem a convicção necessária. Eles continuavam a falar e cutucar e perguntar. – Por favor. Saiam.

–BASTA! – A voz forte de Trevor no turbilhão fez todos se calarem. Nunca tinham ouvido um deles falar daquele jeito. Ele voltou para perto de mim com um passo e pegou minha mão. Escondi-me atrás dele, achando que nunca sentira tanto medo quanto naquele momento. – Ela é exatamente igual à vocês. Está escondida há muito tempo. Ela não gosta de alvoroço.

–Trevor, eu não sou um animal.

Sussurrei para ele. Ele só apertou minha mão em resposta.

–E quando você vai entregá-la?

Perguntou uma moça da minha idade, como se perguntasse onde eu havia estudado.

–O que?!

Eu engasguei. Ela sorriu para mim.

–Ora querida, você não achou que podia ficar, não é? Não quer se tornar uma de nós? Pacífica?

Trevor estava prestes a dizer algo, mas eu soltei sua mão, sentindo um frio subir-me a espinha.

–Não vou virar uma de vocês. Trevor prometeu.

–Eu prometi. – Ele confirmou, olhando para mim. Só conseguia ouvir um chiado na minha cabeça. – Ninguém vai levá-la.

–Mas você não pode fazer isso. – Disse um senhor de meia idade, com um cachorro no colo. Ele latia para Saltador, mas o homem não lhe dava atenção. – É o nosso dever. Imagine como os olhos vão ficar mais brilhantes...

–Não!

Gritei. Todos se afastaram de mim, sobressaltados. Uma mulher adulta se recuperou logo.

–Porque você entraria em atrito com nossos Buscadores por alguém imperfeito, Trevor? Ela voltará logo, você sabe como é rápido.

Senti o corpo todo tremer e me desliguei de tudo. Sim, por quê? Porque ele arriscaria tudo o que ele tinha? Por alguém imperfeito em tantos sentidos? Mas acima de tudo, porque eu ainda estava ali? Eu tinha alguma ilusão quanto ao que Trevor era? Que nós poderíamos simplesmente ignorar tudo aquilo? Não podíamos. E aquelas pessoas eram a prova viva.

Trevor estava olhando para mim. Eu gostava demais dele. Queria estar ali. Mas minha cabeça doía e rugia, e eu sabia que não podia fazer aquilo com ele. Nós só poderíamos nos machucar. Éramos rosa e espinho, destinados a estar separados.
Ele estendeu a mão para me tocar.

–Não!

Gritei e empurrei todos para longe, correndo para fora. Pulei a cerca branca, ouvindo todos gritando de terror atrás de mim. Gritavam que eu não me machucasse e que eu voltasse. Gritavam para que eu fosse um deles. E acima de todos eles, Trevor gritava para que eu ficasse.

[...]

A vida sem um carro era mais difícil do que eu podia ter imaginado. Eu também não tinha mais minha mirrada bolsa de suprimentos, e nem nenhum plano para o que fazer à seguir.

Decidi que a cidade não era segura de forma alguma, depois do desastre no condomínio. Quando invadi o mercado, precisei fazê-lo à noite, sem que ninguém me visse e tentasse me oferecer uma carona ou algo parecido.

Montei acampamento na floresta. Folhas Ocultas dissera que meu carro estaria pronto em uma semana, e era quando eu planejava buscá-lo. Segui-o uma vez quando ele saía do condomínio até sua oficina. Eu não tinha certeza do que doía mais: A saudade do meu carro e da minha antiga vida ou a de Trevor e sua casa. Mas comparar os dois era como comparar colocar a mão no fogão ou sobre um isqueiro. Doía de qualquer forma.

Passei grande parte dos dias seguintes enrolada em uma bola, tentando não morrer de frio do outono que se aproximava, em um estado semiconsciente de sono vigilante que não descansava o corpo em momento algum. Nos breves períodos de sono eu tinha pesadelos com carros prateados, e olhos familiares. Acordava mais cansada do que antes, e apenas poucas horas mais perto de partir.

No tardar da última noite do prazo de sete dias, eu fui até a oficina e me esgueirei pela porta sem trancar. Peguei a chave do bolso, de onde nunca tinha saído desde que entregue e apertei-a, fazendo os faróis acenderem na escuridão.

–Bebê.

Sussurrei saudosa, como meu pai fazia toda a vez que entrava na nossa garagem.

–Está como novo, eu garanto.

Uma luz se acendeu sobre uma mesa, revelando Folhas Ocultas na escuridão. Alcancei a primeira coisa que podia para usar como arma. Um pé-de-cabra decorativo na parede, e segurei-o como um bastão de beisebol.

–O que você quer?

–Quero que volte.

Engasguei com a sua sinceridade repentina, baixando um pouco o objeto de metal.

–O que?

–Para a casa de Trevor. Quero que volte.

Senti um sorriso me subir aos lábios só de pensar, mas então balancei a cabeça.

–Eu jamais... Seus vizinhos estavam certos, Folhas. Eu não pertenço àquele lugar, eu não pertenço à Trevor, porque eu não sou uma de vocês e jamais vou ser.
Ele levantou-se de um salto, vindo na minha direção. Levantei o pé-de-cabra, avisando que não se aproximasse mais nem um passo. Ele recuou, mas o olhar não perdeu a determinação que tinha.

–Eu não entendo também, Dale. Isso nunca aconteceu antes em todas as minhas vidas. Tudo o que eu sei, é que Trevor era um fantasma naquela casa, e então você chegou, toda resiliência e violência. E não entendo, talvez seja o corpo humano dele, mas não acho que seja. Sei que o que quer que você tenha feito por ele funcionou. Eu nunca o vi tão feliz. Nem mesmo com Rosas.

Arquejei, o coração ardendo.

–Porque está fazendo isso? Porque está me dizendo essas coisas?

–Porque você precisa saber. Porque você tem uma escolha, e quero que seja a escolha correta. – Ele apontou para o meu carro no canto da garagem, lindo e polido.

– Você pode pegar esse carro e ir para Oeste, para longe daqui. Ou pode pegar para Leste, e voltar para essa Alma que nunca fez nada para te machucar. Pelo menos lhe diga adeus. Ele está louco atrás de você. É tudo o que eu lhe peço.
Engoli em seco e assenti.

–Um adeus eu posso fazer. Mas você não pode me pedir para ficar. Não vou desistir de quem eu sou, e nenhuma de vocês, Almas, jamais vão entender isso.

–Não, não entenderemos. – Ele suspirou – Mas Trevor entende, e ele não é responsável por todos nós.

[...]

Saltador assobiou, feliz, quando entrei na casa. Ele voou na minha direção e pousou em meu ombro, esfregando o pequeno topete amarelo em meu rosto. Acariciei-o, beijando o topo da sua cabecinha frágil. Ele agitou as asas, como se me desse uma bronca por ter sumido. Peguei-o no dedo e passei o dedo pelas suas penas, pedindo que fizesse silêncio.

–Shh, shh. Não posso ficar. Faça silêncio, ou os vizinhos vão ouvir.

Ele ficou calado, mas não aceitou ficar longe de mim. Voou novamente para o meu ombro e cravou as garras ali, de forma que eu não pudesse colocá-lo de volta no viveiro. Mas estava muito bem. O peso de um pássaro era familiar no meu ombro novamente, e isso me daria forças para o que quer que viesse agora.

Subi as escadas agora tão familiares até o andar de cima. Imaginei se, caso algum dia realmente voltasse para casa, me sentiria tão bem quanto me sentia agora. Caminhei até o quarto de Trevor, espiando pela porta.

Ele dormia esparramado na cama como uma criança, com a boca entreaberta sobre o travesseiro. Soltei o ar, sem coragem de repente. Como poderia acordá-lo no meio da noite para lhe dizer adeus? O que é que eu estava fazendo aqui? Não seria muito mais doloroso assim? Talvez fosse melhor só partir. Como tirar um curativo: Quando você tira rápido, dói tudo de uma vez. De que serviria prolongar a dor?

Trevor gemeu no meio do sono, um ruído doloroso, e fez uma careta, fechando os punhos ao redor dos lençóis. Como uma mãe movida por instinto, eu fui compelida até a cama, sentando-me ao lado dele no colchão, fazendo o possível para não acordá-lo. Envolvi os punhos cerrados das suas mãos com os meus dedos gelados lá de fora, chocando-me com o contraste de temperaturas.

Ele lentamente relaxou, voltando dormir profundamente. Sorri, tranquila, mesmo sabendo que logo teria que partir. Estiquei a mão e tirei-lhe o cabelo dos olhos, imaginando o que aconteceria se eu decidisse ficar. Imaginei se eu fosse invadida e se eu voltaria para ele mesmo assim. Seria um ótimo último desejo.

Sem perceber, eu me inclinava na sua direção. Fechei os olhos, imaginando que toda aquela loucura alienígena era apenas um filme bobo do cinema e que nós éramos apenas pessoas. E o beijei, tão suavemente que a reação do meu corpo surpreendeu.

Uma corrente elétrica percorreu-me toda. Senti-o despertar sob mim. Ele abriu os olhos, surpreso e sentou-se de um salto. Tentei recuar, mas era tarde demais. Ele puxou-me para um abraço e eu não tive como resistir. Não quero resistir.

–Estava tão preocupado com você.

Ele disse, fechando os braços ainda mais ao meu redor.

–Desculpe.

Sussurrei, como uma criança que foi pega fazendo algo errado.

–Achei que eu nunca mais ia conseguir...

–Conseguir?

–Te dizer. O quanto eu sinto muito. – Ele afastou-se apenas o suficiente para olhar para mim de frente. – Eu nunca achei que eles seriam tão cruéis. Eu jamais deixaria ninguém levar você embora de mim.

Senti um pequeno sobressalto no peito.

–De você?

Ele soltou o ar, tão bobo quanto eu.

–Sim. Ninguém poderia tirar você de mim.

Só eu mesma. Mas só se eu for embora agora. Caso contrário... Soltei o ar.

–Trevor. Não podemos.

Pude ver seu rosto murchar como um balão furado.

–Do que está falando? É claro que podemos.

–É contra o seu dever, é contra a sua natureza. De todos aqui. Eu jamais poderia ficar. E não posso pedir que você deixe o seu lar.

Suas mãos quentes envolveram meu rosto, aquecendo o pescoço e enviando uma onde de calor gostoso por todo o corpo.

–Meu lar é neste elo perdido entre o que é e o que deveria ser. – Ele se aproximou, cortando minha respiração na garganta. – Meu lar é onde você estiver, Dale Madson Porter. E eu demorei tempo demais para perceber isso.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado, de verdade. E por favor, deixem seus reviews, eles são nossa inspiração. Estamos escrevendo para vocês, de todo coração. Não vai doer deixar um ''Gostei'' não é?
Em breve voltamos com o bônus especial para vocês!
Beijos!
Até!



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