Herança escrita por Janus


Capítulo 5
Capítulo 5




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/43095/chapter/5

     - Droga! Bosta! Que merda! – murmurou ela arrancando o seu visor e o jogando na mesa.
     - Que linguajar Anne... – disse Serena impressionada – o que houve?
     - Essa porcaria de visor público... não quer conectar com o meu memochip de novo. Droga! Vou ter que trocar mais uma vez. Já é o terceiro este mês.
     Ela acompanhou com o olhar Anne se levantar e ir esbravejando em voz baixa, a caminho da mesa da professora. Ela era um doce de pessoa, mas, sempre que ficava nervosa, não conseguia evitar de fazer aqueles comentários coloridos... devia ser influência de Haruka. Era quase sempre a mesma seqüência de nomes: Bosta, merda, porcaria... filho de uma... – ela nunca terminava essa. Exatamente como Haruka fazia quando algo não funcionava como devia.
     Deu um sorriso de ironia e voltou a prestar atenção a sua tarefa. Mas.. que nada. Ela queria que já fossem quatro horas, para poder sair e ir visitar Hotaru, em casa. Tinham tanto o que conversar, colocar fofocas em dia... falar do seu namorado, passear no shopping e mostrar as novidades que ela não acompanhou...
     Sentia que uma parte de si tinha finalmente retornado. Sua melhor amiga, Hotaru, estava de volta. Ela ainda não podia acreditar. Ficara décadas se acostumando com a sua ausência, e, agora, umas poucas horas longe já eram muito. Olhou de lado para a carteira do outro lado, e viu Joynah ocupada com a tarefa dada. Ao lado desta estava Herochi. Ora vejam só... os dois estavam de mãos dadas. Que bom que a professora não podia vê-los deste ângulo. O Yokuto estava sentado logo atrás dela, pois era o melhor local para enviar mensagens em código sem que a professora percebesse.
     E, por falar nestas mensagens, ai vinha uma. Ele estava batendo com o pé na perna de sua cadeira, formulando palavras com um código que tinham desenvolvido. Estava perguntando se ela iria na casa de Anne depois da aula. Ela posicionou o seu pé para trás, por baixo da cadeira, e sentiu ele encostar o dele neste, para a "transmissão" da mensagem.
     "Claro" – foi a resposta dela – "estou louca para falar com Hotaru".
     "E as outras?" – perguntou ele.
     Nisso, Anne tinha retornado, continuando a esbravejar. Pôde ver que ela tinha percebido que eles estavam "em contato direto", mas apenas maneou levemente a cabeça.
     "Não sei. Minha irmã quer ir" – respondeu ela – "e terei de leva-la"
     "Então não tem cinema hoje"
     "Fica para depois" – disse ela, encerrando o contato, pois notou que a professora tinha resolvido caminhar pela sala, para acompanhar de perto os alunos trabalhando.
     Ela deu uma outra olhada de lado e viu que Joynah e Herochi não estavam mais de mãos dadas. Será que também tinham um código próprio? Era possível.
     A professora passou ao lado da carteira dela e Serena fez a sua melhor imitação de "olha como estou estudando a lição, fessora", acessando lentamente os dados linkados ao tema – claramente indicados no texto que ela estava lendo – e fingindo que os lia. As vezes, voltava atrás e revia – quer dizer, fingia que revia – tópicos anteriores, depois, voltava ao problema principal e fazia algumas caretas com os lábios, fingindo que ruminava sobre como encontrar a resposta. Trinta segundos depois, a professora já estava longe.
     Ainda bem... ela já estava quase com feridas dentro da boca de tanto torcer e morder os lábios daquele jeito. E essa hora que não passava? Olhou de soslaio para Anne e, lá estava a genialidade em pessoa, claramente resolvendo a tarefa imposta - com requintes de ordens nazistas - pela professora, que, claramente não queria dar nenhuma aula naquela tarde. Devia ser bom ser professora... todos os exercícios resolvidos, podia mandar a vontade, quando não queria trabalhar era só mandar a classe fazer uma tarefa ou um exercício por conta própria... hum... talvez ela devesse seguir a carreira de magistério... quem sabe? Professora Serena...
     Deu um largo sorriso com a idéia. As crianças indo até a sua sala, onde ela era a manda chuva. Sua palavra era lei. Fez a lição de casa? Não? Já para o canto de castigo. E você? Fez? Apresente no quadro holográfico. E, depois de conferir com a sua resposta – previamente feita por alguém, para que o professor não passe vergonha – está errado! Pode fazer de novo. Essa maçã é para mim? Que fofo... obrigada! Tia Serena! Como se faz isso?
     Do que você me chamou?
     Pensando bem... ser professora não era assim tão bom. Já pensou? Ser chamada de tia por trinta crianças? Como ia se sentir velha com isso...
     - Serena!
     - Ai!
     Seu corpo tremeu tanto com o susto, que seu visor se soltou e caiu no seu colo, deixando-a totalmente sem jeito. Olhou na direção de quem a tinha, não muito educadamente, chamado, e começou a suar frio. Era a professora...
     - Princesa Serena... posso saber o que pensa que está fazendo? Por acaso, está no mundo da Lua?
     - Eu.. eu, eu... estava pensando na tarefa...
     - Mesmo? – ela sorriu de uma forma um tanto irônica – e, por um acaso, lembra-se de qual foi a tarefa que passei?
     - Bem... claro! Deixa eu ver...
     Ela pegou o seu visor e tentou coloca-lo diante dos olhos, para ver o que é que ela fingia estar fazendo. Mas não conseguiu. A professora o tomou de suas mãos antes que pudesse fazer qualquer coisa.
     - E então?
     - Eu não lembro o nome exato – disse ela sorrindo de uma forma claramente forçada – mas era sobre cálculos complexos, não é?
     - Isso foi na parte da manhã... a tarde eu pedi para lerem sobre a mitose das plantas e fazerem um resumo. Quase todos estão terminando, mas você, nem começou. Bem que achei estranho você não estar nem escrevendo, nem ditando nada para ser registrado.
     - Eu, eu... é mesmo? – ficou surpresa com aquilo. Ela adorava estudar sobre plantas.
     - É – ela pos as duas mãos na cintura e ficou encarando ela – era sobre isso. Já para a frente da classe.
     - Mas...
     - Sem conversa! – ela estava séria – você já tem zero neste trabalho, e agora, vai me ajudar com a última aula de hoje. ANDANDO!
     Ela pulou da carteira e literalmente voou para a frente da classe – que já não disfarçava as risadas. O que será que ela iria aprontar desta vez? Da última, foi Joynah quem foi pega distraída e teve de ficar ali em frente, enquanto ela apontava para um músculo dela e pedia para a classe responder qual o nome do mesmo.
     - Muito bem classe, o tempo para o trabalho acabou. Enviem o resumo, do jeito que está, para o meu arquivo.
     Houve alguns ahhs e ohhss sussurrados. Mas todos enviaram o texto do jeito que estava para ela.
     - Ótimo – disse ela quando viu que todos, menos Serena, o tinham enviado – agora, vamos relembrar anatomia humana. Temos prova semana que vem, lembram? Serena, erga o braço esquerdo.
     Ela o ergueu. Aula de músculos de novo?
     - Anne – chamou a professora – qual o nome deste osso? – perguntou ela indicando um osso de sua mão.
     - Falange – respondeu ela.
     - Muito bem. Joynah, e este osso aqui? – apontou para a sua coxa.
     - Fêmur.
     - Perfeito. Calma princesa, o corpo humano tem apenas uma centena de ossos. Vamos revisar TODOS!
     - Hether, e este?
     - Úmero.
     - Errado, este aqui é a clavícula.
     Ai, ai... ela ia ficar de pé ali parada por quase uma hora...

 

-x-

 

     Três salas ao lado da de Serena, mais precisamente no laboratório da escola, a classe de Diana e Marina estava fazendo anotações e observações de algumas pesquisas simples sobre como funcionava o clima do planeta. Um holograma mostrava como as nuvens se formavam, como se moviam ao sabor do vento, e de que forma, as vezes, elas despejavam sua carga preciosa na terra, muitas vezes ávida por água, e, em outras ocasiões, sem nenhuma necessidade da mesma.
     Diana, contudo, não estava prestando atenção. Ela preferia observar, com os olhos brilhando, um mostruário com pássaros exóticos, em que estes pulavam de galho em galho, e fazendo movimentos rápidos.
     - Diana... – murmurou Marina – você... está ronronando?
     Ela não respondeu. Mas, seus olhos falavam por ela. Eles acompanhavam com interesse os movimentos dos pássaros exóticos e de muitas cores. Seus lábios esboçavam o sorriso que uma criança faz quando vê um delicioso bolo na frente, e sabe que é tudo só para ela. Sua cauda, normalmente envolta na cintura, para disfarçar sua real origem, estava tremulando ao redor desta. Apenas Marina percebia isso, vendo, no elástico da saia escolar – onde ela sempre deixava a cauda, para disfarçar o seu volume – este tremer e balançar ritmicamente.
     - Diana, controle-se. Não estamos aqui para farrear.
     Ela não respondeu nada, simplesmente não ouviu. Sua boca abria-se um pouco e, ela quase soltava um miado de preparação para o ataque. Mas controlava-se em seguida, sentindo que ainda não era o momento.
     - Diana – disse Marina com os dentes pressionados – pare!
     Ela lambeu seus lábios, deixando-os mais úmidos. Era agora. Era a melhor hora. O pássaro que ela tinha na mira estava distraído. Era só pular sobre a Kátia, tomar impulso no ombro do professor, e, com as mãos estendidas, agarrar o seu prêmio. Ela deu um passo para trás e, prendendo a respiração, preparou-se para dar o bote.
     - IAUUUUUUU!
     Toda a classe parou de olhar o holograma e observaram Diana pulando no mesmo lugar, massageando uma parte de sua barriga, do lado direito, bem em cima do elástico da sua saia.
     - O que foi? – perguntou o professor, surpreso com o súbito grito de Diana.
     - Ela está com cólicas – disse Marina meio sem jeito – ela já estava com um pouco de indigestão na hora do almoço. Posso leva-la para a enfermaria? Acho que agora ela não tem mais desculpa.
     - Pode – autorizou ele, apesar de, claramente, estar achando estranha aquela explicação.
     - Ai, ai, ai, ai, ai, ai...
     - Vamos Diana – disse ela pegando-a pela nuca, aparentemente, apertando com força – vamos tomar ar puro que logo, logo, essa dor passa.
     Era estranho, mas, assim que ela fez aquilo, Diana parou de pular, como se ficasse subitamente sem forças.
     - AI! porque fez isso Marina?
     Elas tinham ido para o banheiro das meninas, onde Diana tirou sua cauda debaixo da saia e ficou massageando ela.
     - Ora bolas! Você estava prestes a pegar aqueles pássaros no laboratório. Já pensou no que ia acontecer se eu não agisse? Controle seus instintos.
     - Mas eu não ia machucar eles – disse ela chorando e com um pouco de raiva – apenas queria me exercitar um pouco. puxa vida... você dobrou minha cauda. Podia ter quebrado ela, sabia?
     - Você não escuta não? Não pode fazer isso aqui na escola, muito menos na forma humana. Diana! Aqui você é uma garota, não uma gata. Não pode agir assim.
     - Eu sei... – ela finalmente ficou mais calma – eu sei disso. Mamãe sempre me fala isso, papai também. Mas... eu não consigo! Quando sinto que minha presa está a vista, que eu posso domina-la, captura-la, alcança-la... eu, eu... não me controlo. Não vejo nem ouço mais nada.
     - Então acho que vamos ter que te botar numa coleira, pois...
     - NUNCA! – gritou ela pulando em cima de Marina, jogando-a no chão e a dominando completamente – jamais pense em fazer isso – disse com uma determinação fora do comum, mostrando os afiados e pontiagudos caninos, como se fosse arrancar um pedaço dela.
     - C-calma – gaguejou ela assustada – foi só uma maneira de falar...
     Diana subitamente percebeu o que tinha feito. Ela não queria, e nem precisava fazer aquilo. Mas, a simples menção de que alguém iria restringir sua liberdade de ação a deixou furiosa. Talvez ela tivesse razão. Era hora de se controlar um pouco mais.
     Só que, ela era uma felina. Agia por impulso, por rompantes de vontade, sem um grande planejamento a longo prazo, ou avaliações de conseqüências imediatas. Já havia arrumado muita confusão por causa disto, fato este que suas amigas sempre a lembravam. Mas o que ela podia realmente fazer?
     - Diana... pode me soltar?
     - Desculpa – disse ela se levantando encabulada. Ajudou ela a se levantar também, e, depois, ficou cabisbaixa, olhando para ela.
     - Há não! Pode parar com esse olhar de súplica. Foi só um... acidente. Não se culpe, mas, por favor, controle-se.
     - Vou tentar – disse ela – você... vai na casa de Anne hoje?
     - Claro que não. Hoje é a minha vez na cozinha, lembra? E o restaurante já ficou fechado ontem. Não vai ter jeito. Acho que só mesmo sábado, depois do treino. E você?
     - Eu estou pensando em não ir... não sei. acho que a Serena só vai querer falar com ela. E não estou a fim de ficar para escanteio. Nem me deixaram visitar ela no hospital.
     - Não deixaram nenhuma de nós visitar ela. Alias, eu mal me lembro dela. Nem sei como é a sua aparência.
     - Ela é bonita. Cabelo preto, curto, alegre, brincalhona, e bem poderosa como sailor.
     - Grande descrição...
     - Ah, não enche. Droga... acho que vai todo mundo na casa dela. Eu queria ir passear hoje. Hum.. acho que vou no shopping, comprar uma roupa.
     - De jeito nenhum – disse ela assustada – sua mãe proibiu você de comprar roupas sozinha, lembra? E já perdemos muito tempo. arrume seu rabo...
     - CAUDA! Quem tem rabo é rato e cachorro!
     - Desculpa – ela ficou assustada de novo – arrume isso e vamos voltar. E, controle-se, ou vou te dar outra torção no seu... sua cauda.
     Diana não disse nada, mas, com cuidado, tratou de enrolar sua cauda logo acima da saia. Depois, colocou esta cobrindo-a, e se olhou no espelho para ver o resultado. Perfeito! Fez uma cara um tanto emburrada, ao pensar que deveria se controlar na presença daqueles pássaros. Ela podia, mas, realmente não queria. Era uma sensação tão boa aquela...
     - Vamos – disse ela saindo lentamente do banheiro.
     Ela tinha que lembra-la disto? De que não podia comprar roupas sozinha? Ora bolas. Sua mãe realmente estava passando da conta. Ela tinha seus próprios gostos, pessoais, únicos, intransferíveis. Bem, Anne tinha um gosto muito parecido, mas não importa. Qual o problema dela escolher livremente a roupa que queria comprar? Só porque, por uma regra de etiqueta boba, não podia usar quatro dedos de saia nem nada que a deixasse super esbelta, seria considerada uma... como era o nome mesmo? Oferecida? Não... vagabunda, isso mesmo, foi o nome que sua mãe disse, vagabunda.
     Ela não tinha entendido então e ainda não entendia agora. Pelo que ela sabia, vagabundas são mulheres que vagueiam por ai, sem emprego, sem família, e sem vontade de querer mudar. Ela não era assim, tinha amigos, não ficava vadiando por ai – certo, deixa o emprego para lá – então, porque seria uma vagabunda se usasse aquelas roupas tão brilhantes e que a deixavam tão bonita?
     Tinha tanta roupa que ela adorava... – e já tinha comprado – mas sua mãe só a permitia usar em ocasiões especiais. Bem, ela até que concordava em parte com aquilo. Alguns vestidos longos – e colados no corpo – podiam facilmente se desgastar se usasse no dia a dia. Mas porque não podia usar aquele de couro preto que se parecia com um maiô? E onde ela o tinha escondido? Aquele era um dos melhores... com pregas de metal – pareciam rebites – que formavam um contorno logo abaixo de seus seios, deixando-os firmes e sem perigo de balançarem, mais uma costura forte formando uma dobra na região da cintura. Era perfeito! Muito bem costurado e voltado para dar firmeza ao corpo feminino. Porque ela ficou tão alvoroçada quando a viu com ele?
     Ela nunca entendeu, e, desde então, ficou proibida de comprar roupas sozinha. Que coisa mais injusta.
     Teve de parar com seus pensamentos pois notou que tinham entrado de volta no laboratório. Marina disse algo para o professor – que ela não prestou atenção – e este assentiu com a cabeça, olhando meio de lado para ela. Será que ele não acreditou na mentira? Bom, dane-se. Ela já estava meio injuriada mesmo. Tanto que, mesmo vendo os pássaros pulando com mais fervor que antes – como se estivessem zombando dela – ela nem se incomodou com eles. Fingiu que prestava atenção na explicação até que chegou a hora de sair.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Herança" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.