Orleans escrita por MarianaCamara


Capítulo 3
Capítulo 3 - WildHeart




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Aquela era a terceira xícara de café que empurrava garganta abaixo sem sentir sabor nenhum. E mesmo que eu me esforçasse aquele líquido escuro e fervendo lembrava apenas o sabor plástico da máquina de onde tinha saído. Não parecia de longe um expresso, quanto menos uma bebida indicada para alguém na situação em que eu estava.

Já passava das oito da noite e ainda estava sentada naquele banco duro em frente aos guichês da delegacia, vendo o vai e vem de prostitutas, bêbados e policiais enquanto esperava minha vez de depor sobre o que tinha ocorrido no trabalho. Não sei se podia considerar muita sorte ou muito azar, mas não estava sozinha. Próspero estava ali, sentado do outro lado do corredor em um banco idêntico ao meu, olhando fixamente para o pulso que estava inchado como uma toranja e vermelho. Um dos policiais tinha conseguido um copo plástico cheio de gelo colorido para ele colocar sobre o inchaço, então era um quadro engraçado ficar tentando imaginar de que sabor era a raspadinha azulada dentro do copo.

Samantha andava de um lado para o outro. Tinha feito quatro ligações para casa, recebido uma meia dúzia de outras e para cada vez que seu celular vibrava lá ia ela, bufando e pisando alto para fora da delegacia para atender. Conseguia escutar como ela estava irritada, não com o incidente, mas por não poder ir pra casa jantar e dormir mais cedo em seu dia de folga do segundo trabalho.

– Sam, - chamei assim que ela voltou resmungando - Você pode ir embora quando quiser. Eu vou ficar legal. Peço um táxi assim que terminar por aqui.

– Não vai demorar nada, você é a próxima. - anunciou o policial dentro do guichê, se metendo na conversa - Vai querer mais um café?

– Obrigada, estou bem. - Não queria dizer que o café tinha gosto de qualquer coisa, então dei um sorriso cansado, meu melhor naquele dia.

– Eu não vou te deixar sozinha, te espero e vamos embora juntas. Já esperei até agora, além do mais o advogado da livraria está chegando. A polícia deve sérias explicações sobre a demora no atendimento depois que o segurança tocou o alarme silencioso quando estranhou o cara dentro da loja.

– Isso poderia ter acontecido em qualquer lugar. O mundo é bem violento hoje em dia.

– Verdade. Você precisa ver como são as coisas lá no meu bairro. - Samantha ajeitava os peitos dentro da blusa e acionava seu modo “protetora do bairro”. Ninguém teria coragem de mexer com ela naquele humor.

Assim que ela se acomodou ao meu lado, bateu o ombro com o meu e indicou Próspero com o queixo, depois fez um olhar questionador como se eu pudesse resolver alguma coisa. Sem receber resposta, ela pigarreou e depois de aumentar o tom dos pigarreios e quase transformá-los numa tosse crônica, conseguiu atrair um pouco a atenção dele.

Devagar, como se nós duas não valêssemos um centavo do seu tempo, ele ergueu os olhos azuis para nossa direção e aquela insistente sobrancelha esquerda desenhou um arco interrogativo para Sam.

– Então… O senhor também vai depor?

Oh céus, Samantha não faça perguntas óbvias!

– É o que parece. Passar a noite em uma delegacia não é supostamente um passatempo favorito. A senhorita costuma frequentar este local?

Um vinco apareceu na testa de Sam e notei que o canto da boca dela começou a tremer. Pelos longos meses que tinha passado diariamente ao lado dela, sabia exatamente o que aquilo significava: Samantha estava lutando para não dar uma resposta à altura da que tinha recebido (ou acertar aquele nariz empinado com um soco, o que seria bem divertido). O sorriso que estampou era tão falso que seus dentes ficavam por trás dos lábios, rangendo.

– Todas as quartas. - Sam alfinetou.

– Que curioso.

Próspero encheu aquela observação de acidez e as palavras soaram de uma forma que carregou sua voz pesadamente britânica. Na verdade gritava com letras garrafais “Deus salve a Rainha”! E vou fazer um comentário ridículo: aquilo era muito sexy. Não de uma forma vulgar, mas de arrepiar a nuca e trazer um frio esquisito na boca do estômago que não tinha nada a ver com o desconforto que aquele homem tinha causado mais cedo durante aquele vergonhoso atendimento que fiz. Ou tentei.

De uma forma muito correta as coisas se encaixavam. Próspero era um inglês mesquinho e metido, daqueles que tomam chá com cubos de açúcar e erguem o mindinho para lembrarem a monarquia adorada de seu país natal. Ele poderia ter ficado na Europa, aposto que a economia estava em declive devido a falta imensa que ele fazia aos seus compatriotas.

Mas não podia ser de todo tão taxativa com ele. Próspero era um ranzinza mal educado pelo que pude notar, mas ainda devia a ele um favor imenso. Por causa daquele pulso aberto e do volume gigantesco de Obra completa e Dramas para Palco – Peças de William Shakespeare, o assalto não tinha causado dano maior a ninguém. Exceto ao ladrão, nocauteado pelo livro.

– Senhorita Dalton? - o policial reapareceu no guichê e leu meu nome numa folha de papel. Respirei fundo e ergui a mão pateticamente, como se aquilo fosse alguma lista de chamada do ensino médio.

– Me deseje boa sorte e não mate ninguém. - pisquei para Samantha e consegui rir um pouco com a vaga ideia de vê-la esbofeteando Próspero assim que saísse do banco de espera.

Deixava todos meus documentos com um dos policiais quando meu celular tocou. Era um alívio escutar o barulho do toque e imaginar que em algum lugar, alguém notou que já era bem tarde e eu não estava em casa.

– Kate? Estou te esperando há mais de uma hora, você está fazendo hora extra? Devia ter me avisado! - Adria e sua inconfundível mania de falar tão rápido quanto uma metralhadora. Será que minha irmã era tão desligada a ponto de não notar que a loja deveria estar fechada e sem ninguém lá dentro? Desde que horas estaria plantada na calçada esperando por um sinal meu?

– Estou numa delegacia, Adria. Longa história.

– Delegacia? Ai, Meu Deus… No que você se meteu? Quer que eu vá te buscar? Tem que pagar fiança ou alguma coisa assim?

– Foi um assalto na livraria, não você não precisa pagar fiança… - aquilo me fez rir e assim que assinei os papéis um dos policiais fez um sinal de que eu poderia sair, sendo bem gentil em não interromper a minha ligação. - Pode vir me encontrar?

– Claro, me passa o endereço... Táxi! - por sorte Adria afastou o celular antes de gritar com motorista e enquanto saía da delegacia escutava ela discutir com o taxista indiano (que não conseguia discernir entre avenida e alameda) e dizer um milhão de vezes que eu deveria ficar calma acima de tudo. Mas eu não estava calma. Sentia meus dedos tremendo por dentro com a overdose de cafeína e o final da adrenalina dentro de mim. Tudo que eu mais queria era um banho quente, minha casa confortável no porão da senhora Fighbright e uma noite de sono que não envolvesse nenhuma situação estranha.

Quando cheguei à frente dos guichês, Samantha estava sozinha jogando alguma coisa em seu celular durante a espera.

– E aí, deu tudo certo?

– Eles disseram que sentem muito, pegaram todos meus dados e agora posso ir para casa. - treinei um sorriso murcho. - Quero muito ir pra casa.

– Lex ligou preocupado com você. Ele disse que você não precisa ir ao trabalho amanhã, vão te dar um dia de folga para compensar o stress.

Sam seguiu falando sobre direitos trabalhistas, segurança no trabalho e outros detalhes que eu realmente não acompanhei enquanto caminhávamos para fora. No fundo, quando passamos direto pelos bancos nos guichês, procurei pela presença do meu Carma, mas ele não estava lá. Ia perguntar para Sam se ela havia o nocauteado, mas mudei de ideia.

– Vou pedir um táxi pra nós. Você está péssima, Branquela.

– Não precisa Sam. Adria ligou, ela está na metade do caminho dentro de um táxi. Vamos esperar e rachamos a viagem, o que acha?

– Pode ser. Não quero ir pra casa sozinha neste horário.

Adria não demorou. O taxista estava berrando quando estacionou paralelo ao meio-fio e ela saltou pela porta numa tormenta que apenas uma Dalton poderia causar. O sobretudo com estampa de zebra era um luxo que fez Samantha arregalar os olhos, mas estava tão acostumada com o guarda-roupa incomum da minha irmã que aquilo não me surpreendia em nada. Talvez se um dia Adria se vestisse como um ser humano comum, isso me surpreendesse um pouco.

– Oh, meu Deus! Princesa! - Adria me sufocou entre seus peitos com um abraço tão forte que duvidava que alguém sobrevivesse à overdose de perfume que ela jogava no busto. - Você está bem? Me conta o que houve!

– Foi um assalto na loja, eu estou bem. Você não escutou nada do que eu te disse no telefone?

– Escutei que estava na delegacia e não precisava pagar fiança. Tinha mais alguma coisa importante?

Rimos juntas de nervoso e ansiedade. Coisa de família.

– Esta é Samantha, minha única e melhor amiga na cidade… Samantha, esta é…

– Sua irmã. Nem precisava me apresentar, vocês são mesmo parecidas. Em partes.

Sam e Adria trocaram um aperto de mão e dois beijinhos no rosto, mas dava pra notar quando Adria gostava de alguém e pelo sorriso de Sam ela teria uma ou duas coisas a dizer sobre a primogênita dos Dalton quando nos encontrássemos de novo.

Deixamos a delegacia pra trás e enquanto Sam e Adria revezavam seus gritos com o condutor indiano (que não conseguia compreender patavinas do endereço) encostei a cabeça na janela e fiquei observando a cidade embaçada. Que noite. A chuva tinha parado e algumas estrelas estavam no meio das nuvens. O mundo continuava girando, alheio a tudo que havia acontecido. Minha vida azarada continuaria a mesma.

Compramos comida chinesa num restaurante minúsculo a caminho do porão da Sra. Fighbright logo após deixarmos Samantha na porta de casa. Ela não havia mentido sobre seu bairro ser mesmo barra pesada. Nem mesmo o taxista despreparado queria perder muito tempo com as janelas abertas por lá. Não poderia culpá-lo por isso.

Foi com o alívio de finalmente chegar à minha humilde casinha que senti o peso do mundo nos ombros. Não posso mentir, fiquei abalada com aquilo e antes de conseguir comer uma garfada sequer da comida, despenquei em lágrimas. Nunca passei por uma situação de tensão, menos ainda envolvendo uma arma com o cano apontado pra minha cabeça e aquilo foi uma gota d’água no meu pequeno copo de capacidade emotiva.

Fiquei abraçada com Adria por algum tempo, em silêncio, até escutar aquela música conhecida no toque do celular. O som vinha abafado dentro da minha bolsa e mesmo que Adria dissesse que eu deveria deixar desligar ao menos naquela noite, senti que precisava atender.

Vai ver era um sexto sentido. Vai ver eu precisava escutar mais Adria em momentos como aquele.

O número não tinha identificação, mas me pareceu conhecido. Era um interurbano e só apertei o botão pra receber a chamada quando estava prestes a perdê-la. Era aquele código conhecido, da minha cidade natal.

– Alô?

– Kate?

Reconheci a voz de imediato, afinal não é sempre que se consegue esquecer a voz de um homem com tanta presença quanto aquele em particular.

– Oi, Bruce. Desculpa não ter atendido antes.

– Eu sei que deve estar tarde por aí, tentei de ligar antes, mas imaginei que estivesse no trabalho.

– Não exatamente.

Adria apertava as sobrancelhas e gesticulava, pegando sua caixinha de comida e se sentando ao meu lado no sofá. Estava tão curiosa que colamos as orelhas pra que ela escutasse a conversa.

– Você não me ligou pra almoçarmos. Perdeu uma lasanha maravilhosa, sabia?

– Eu não dei certeza se aceitaria o seu convite.

– Sei disso. Mas eu me lembro de que poderíamos ser amigos e como um bom amigo, te chamei pra almoçar comigo. Não seja malvada, Katerina. Olhe, vou estar na cidade até o final de semana e adoraria que aceitasse outro convite meu. Pode ser?

Adria deu um guincho de excitação e tive que tampar o bocal do telefone com pressa. Conseguia ver a euforia no jeito dela agitar os hashis no ar e apontar pra mim. Só não sabia decifrar se ela queria dizer que ia me matar ou se mataria o meu futuro-ex noivo.

– Olhe Sr. Campbell, não é um bom momento. - tinha que voltar ao meu foco.

– Você tem outra programação?

– Não, não é exatamente isso. Passei por uma situação delicada no trabalho hoje e…

– Te despediram?

– Não, não me despediram. A loja foi assaltada e eu…

– Você está bem? Pela madrugada, Kate aconteceu alguma coisa com você?

Será que as pessoas nunca iam me deixar terminar uma frase?

– Eu estou bem. Estou em casa agora, minha irmã está comigo.

– Como isso aconteceu? Você precisa de alguma coisa? Levaram algo seu? - a preocupação dele estava começando a me incomodar. Não porque alguém preocupado comigo fosse incômodo, mas parecia tão sincero que estava me deixando completamente sem jeito.

– Bruce, calma. Não aconteceu nada comigo, nem com as minhas coisas. Eu tô legal.

– De verdade?

– Verdade.

– Jura por suas botas amarelas?

Ok. Definitivamente as galochas amarelas estavam riscadas da minha lista de “como não ficar atraente para nenhum homem na face da terra”.

– Pelas botas amarelas. - comecei a rir, aquilo era adorável demais até pro meu coração gelado.

– Ótimo. Agora sei que está falando a verdade. Então não vou tomar mais seu tempo, você deve querer um bom descanso e não vou te atrapalhar. Mas… - ele suspendeu o tom, só pra aguardar que eu perguntasse. Óbvio que eu perguntei.

– Mas?

– Quero te ver antes do final de semana.

– O quê?

– Sem recusa. Quero saber como você está. Eu, você e um café ao menos. No Hallow’s Barn se quiser ir com as botas.

– Galochas.

– As duas. Pode trazer as duas.

– Bruce, eu não posso… Ai! - Adria me beliscou e só consegui segurar o celular porque meus reflexos ainda existiam, comparados a minha capacidade normal. Olhei feio pra ela, mas ela só gesticulava com aquelas sobrancelhas franzidas: “Aceita! Aceita! Aceita!”. Que raios de grilo falante eu fui arrumar? Será que Adria não sabia que os Campbell eram a maravilhosa família com quem nosso pai queria que uma das filhas se casasse?

– O que houve? - ele tornou a se preocupar na ligação. Se alguém desse um grito como o meu durante uma ligação, definitivamente eu teria desligado antes de me relacionar com uma pessoa potencialmente doente das funções mentais. Mas como eu disse, Bruce Campbell era muito educado pra isso.

– Nada, bati meu dedo no sofá. Já passou.

– Então, ligo pra você assim que chegar a Nova Iorque, está bem? Boa noite, Kate.

– Er… Boa noite, Bruce.

Assim que desliguei Adria deu um grito extasiado, quase jogando a caixinha de yakissoba e os palitos para o alto. Parecia uma criança prestes a receber o maior e melhor presente do universo.

– Me conta! Conte já! Quem é o cara? Onde se conheceram? Por que você não quer sair com ele? Você é lésbica?

– Adria!

– Tá bem, você não é lésbica. Mas parece às vezes. Ele é tão feio assim pra você dispensá-lo? É só um café.

Respirei fundo e guardei o celular antes de pegar a comida na mesa e sentar ao lado dela mais uma vez. Então olhei fundo nos olhos da minha irmã, pra que todo aquele ânimo correndo pelas veias dela não a deixasse surda mais uma vez. Comecei lentamente:

– Adria. Bruce Campbell é o filho único dos Campbell, o cara com que nosso pai quer me casar. Nossa amada mãe passou meu telefone e endereço pra um completo estranho, que agora, quer sair comigo.

– Oh… - conseguia notar a animação de Adria murchando como uma bexiga de festa. - Mas ele me parece um cara legal, Kate. Uma pena ser “aquele cara”.

“Aquele cara” era como eu e Adria passamos a nos referir ao meu noivo forçado. Mesmo sem sabermos como ele era realmente já tínhamos criado dúzias de apelidos engraçados para o infeliz que havia aceitado um acordo tão primitivo quanto um casamento arranjado.

– Ele parece sincero. - Adria emendou. - É bonito?

Assenti e depois enumerei o restante das qualidades óbvias que Bruce tinha demonstrado em um único encontro desengonçado. Adria escutou cada detalhe daquele café noturno e quase não percebeu quando seu macarrão acabou e ficou com os hashis pendurados nos dedos sem nada entre eles. Quando terminei toda a narrativa, foi a vez dela dar um suspiro longo e dolorido, quase sonhador.

– Sabe mesmo se estivesse solteira quando papai me fez essa proposta doida de casamento arranjado, eu jamais aceitaria, exatamente como você. Eu sei que ele vai aguentar um problema e tanto com o restante da família, mas não se pode forçar os filhos a aceitar uma tradição absurda como essa nos dias de hoje.

– Aida disse que se negasse o casamento não teria um tostão da família. Eu não preciso do dinheiro deles. Não estou à venda, Adria.

– Claro que não, princesa. Mas você não ia ficar com dinheiro nenhum mesmo. Depois de casada, a família do seu marido é que sustentaria a sua vida.

– Então somos apenas moedas de troca?

– Ora, Kate. Papai não te contou nada?

Minha expressão de “note bem minha cara de bem informada”, falou por mim. Estava bem claro que o Sr. Kennedy Dalton estava escondendo uma carta ou duas na manga e eu estava cega no jogo que estavam jogando. Mesmo com meus 28 anos, todos continuavam me tratando como no dia anterior ao meu aniversário de 12 anos - exatamente uma criança que não compreenderia nada.

Adria se acomodou no sofá e deitei minha cabeça no colo dela. Sempre fazíamos isso desde pequenas e eu adorava a sensação segura de estar perto da pessoa em que mais confiava naquele mundo. Com cuidado ela desembaraçava meus cabelos com os dedos e fazia algumas trançinhas.

– Quando um Dalton possuí apenas filhas, ele tem que casá-las até os 25 anos para garantir que a herança permaneça na família. Assim, nosso pai receberá a herança da nossa avó e nós receberíamos dele, se tivéssemos casadas com uma família entre acordo. Como não estamos, a herança permanece com nossa adorável avó e morre com ela; coisa que não vai demorar muito. A última vez que coloquei meus olhos nela já estava muito parecida com uma daquelas múmias que ficam expostas no museu de arte natural.

Rimos, mas aquela tradição começou a fazer sentido pra mim. Se meu pai não casasse nenhuma das filhas com um rapaz de família tradicional, perderia tudo, inclusive o que havia construído na empresa da família. Kennedy Dalton estava vendendo as filhas para manter-se em sua posição dentro da linhagem familiar e claro, seu posto dentro dos ganhos da família.

– Mas papai ainda tem tempo pra conseguir outro emprego até nossa avó resolver tirar férias definitivas ao lado do criador, não é?

– Você acha mesmo que ele sabe fazer outra coisa na vida, Kate? Papai trabalha naquele lugar desde pequeno, ele já nos cansou com aquelas histórias de como tinha apenas…

– Dez anos e já comandava uma equipe de dez homens na lavoura. Eu me lembro.

– Talvez vovó compreenda a situação e deixe que ele continue na empresa ao menos. Ela não pode ser tão cruel assim.

– Pra uma mulher que ainda acredita que os negros deveriam trabalhar com correntes? Tenho minhas dúvidas.

– Vamos esperar pra ver, princesa. Mas não se preocupe com isso. Você tomou a decisão certa. - Adria beijou minha testa. - Um dia essa tradição teria que terminar, não é?

Fiquei quieta. Não sei se haveria uma resposta certa para aquela pergunta. Um monte de “e se” criaram forma nos meus pensamentos, atormentando um pouco mais da minha paz até me sentir sonolenta.

E se meu pai perdesse tudo que batalhou tanto pra conseguir?

E se tudo acontecesse por minha culpa?

E se eu voltasse atrás?

E se aceitasse o noivado com Bruce Campbell?

Como não havia respostas, acabei dormindo.

******

Acordei antes do despertador e já estava claro lá fora. Adria estava dormindo na minha cama, esparramada como um saco de batatas. De certo foi um trabalho e tanto conseguir me tirar de cima das suas pernas pra poder dormir confortável, tanto que não trocou sequer as roupas escandalosas da noite anterior e parecia com um edredom africano jogado de lado, quase caindo do colchão.

Tabby ergueu as orelhas no canto livre da cama assim que me viu atravessar para o banheiro. Me seguiu com miadinhos e descobri - horrorizada! - que tinha esquecido de deixar comida para ele durante a noite. O pobrezinho estava faminto e quase atacou meu dedo enquanto despejava um sachê de patê de frango em seu pote. Nem se incomodou com alguns afagos a mais enquanto comia.

Mesmo lembrando que Lex havia dito que eu não precisava trabalhar naquela quinta, para me recuperar do susto passado, decidi que não seria nada bom ficar dentro de casa. Acabaria ficando paranoica e imaginando se aquele homem entraria pela minha única janela e acabaria com a minha vida como vingança por um livro arremessado em sua nuca. Não, a última coisa de que precisava era mais um problema para ficar remoendo.

Sabia que o dia estava um pouco frio e agradeci internamente por ter aquele cardigã no armário. Sapatilhas fofas, um recado para Adria não se preocupar comigo e logo estava tomando meu caminho para a livraria.

Decidi que não pegaria um táxi ou qualquer ônibus. Era uma caminhada que precisava fazer para encaixar as coisas na minha cabeça pela manhã e aproveitar para comprar um café numa daquelas lojas que não fechavam nunca e pipocavam em qualquer esquina. Pedi um expresso duplo e a atendente me olhou com pena. Mal conseguia imaginar qual era a minha real situação para as pessoas me olharem com aquela expressão de que estava prestes a me dar um abraço.

– Ei, você devia estar descansando hoje, mocinha! - Samantha já gritou dentre suas prateleiras assim que me viu chegar. - Lex não vai gostar nada de te ver por aqui, Kate.

– O que ele vai fazer? Me despedir? - mandei um beijo pra ela e pisquei, entrando pela porta de funcionários para me vestir. A recepção dos outros foi a mesma de Sam: todos queriam saber o motivo de ter deixado uma folga de lado para poder trabalhar. Será que ninguém imaginava que eu não queria ter um tempo comigo mesma? Queria outro barulho na minha cabeça que não fosse Adria se preocupando comigo ou qualquer outra pessoa naquela maré de piedade.

Mas estava errada. A maré tinha apenas começado.

Primeiramente Lex veio conversar comigo. Claro que ele estava preocupado e queria que eu fosse para casa, mas também queria me avisar de que o superintendente da loja viria falar comigo ainda naquela semana para se certificar de que eu estava bem e saber detalhes do acontecimento. Eles prezavam muito por seus funcionários e não desejavam que eu me sentisse desprotegida ou ameaçada dentro de uma de suas lojas. Depois veio Samantha e com ela a conversa foi muito melhor. Demos algumas risadas em lembrar as roupas de Adria na noite anterior e como o taxista tinha dificuldades em compreender os caminhos que deveriam levar meia hora e tomaram mais de uma.

No horário do almoço as coisas estavam normalizadas. Os atendimentos corriam bem, o friozinho convidava os clientes e se aninharem nas poltronas com alguns livros e todos pareciam mais amigáveis depois daquele incidente. Alguns males vêm para o bem. Almoçamos um sanduíche grego a meia quadra da avenida e aproveitamos o tempo para conseguir alguns helados de coco, eu adorava aquilo, não importava o clima da cidade.

Mal chegamos à livraria e Lex pediu que Samantha atualizasse os cadastros de algumas obras que tinham acabado de chegar, nem tivemos tempo de trocar mais algumas palavras, mas ainda estávamos trocando risadas mesmo separadas pelas prateleiras. Foquei minha atenção na organização do meu setor e naquele pequeno tempo, escutando o cd que tocava no ambiente da loja, não notei que estava cantarolando.

Tonight we’ll dance, I’ll be yours and you’ll be mine… Oh-oh-oh… She needs a wildheart, she needs a wildheart…

I got a wildheart. - alguém completou a música e meu coração disparou. Primeiro de vergonha. O que pensariam de uma atendente que canta sozinha no meio do serviço? Depois dei um pulinho, ajeitando o avental do uniforme e meu crachá que quase parou no ombro. Quando olhei o cliente que tinha completado o refrão da música, era apenas um garoto ruivo e sorridente.

– Você canta bem. - ele elogiou, encostando-se à prateleira e apanhando um dos livros a esmo para folhear. Tinha sardas pelo nariz e as bochechas, olhos claros e cabelos bagunçados, completamente desalinhados. Não devia ter mais do que dezoito anos, mas sua altura era claramente maior do que a minha.

– Obrigada. - sorri, afinal não seria a primeira vez que um moleque tentava ser simpático comigo. - Posso te ajudar com alguma coisa?

– Na verdade, pode.

Quase suspirei aliviada. Não queria mais um atendimento desastroso como do dia anterior.

– Estou procurando por algumas partituras, mas não encontrei a sessão de música. É a primeira vez que entro numa livraria desse tamanho, estou um pouco perdido. - ele coçou a nuca e deu uma risada engraçada, que repuxava a ponta do seu nariz arrebitado.

– Ora, eu te levo até lá. - dei um sorriso e segui na frente, escutando quando ele devolveu o livro na prateleira e andou logo atrás de mim, mãos enfiadas nos bolsos. - Primeira vez em Nova Iorque?

– Pois é. Fica bem evidente, não é?

– Isso é normal. Atendo muitos turistas, viajantes, recém-chegados. Logo você não se sente tão deslocado, vai ver só.

– Todo mundo diz isso por aqui ou só atendentes cantoras da Barnes & Noble?

– Principalmente as cantoras. - parei ao lado da prateleira de publicações dedicadas à música e estiquei os braços como se fizesse uma apresentação honrosa do conteúdo. Aquilo arrancou outra risada do garoto e ele agradeceu, deixando bem claro que seu sotaque não era mesmo americano. Ficaria à disposição dele se precisasse de qualquer coisa, mas indiquei o atendente do setor que poderia tirar dúvidas sobre o assunto muito mais claramente do que eu - que nunca toquei nada na minha vida imagine só se saberia ler uma partitura.

Não foi por falta de tentativas. Quando criança minha mãe matriculou as adoradas filhas em aulas de piano, violino e flauta, mas o que conseguiu foi uma tremenda dor de cabeça, um piano pegando pó no centro da sala e algumas contas a mais por alguns meses. Isso sem contar uma briga que arranjou com a vizinhança quando decidimos fazer um recital para nossas amigas. Adria cantando e eu desastrosamente tocando piano.

Diversos compositores geniais reviraram no túmulo aquele dia. Pobrezinhos.

Fiz o caminho de volta para minhas prateleiras murmurando ainda um trecho da música que já havia acabado. Havia alguns clientes observando as obras, mas não incomodei nenhum deles, passei com um sorriso e os olhos focando as cestas vazias que estavam deixadas perto de um expositor central. Quando apanhei todas elas e coloquei no carrinho de reposição, notei que um cliente estava parado ao meu lado, um livro estendido na altura dos meus olhos.

– Vou levar este.

– Está bem, vou fazer a pré venda. - apanhei o livro, um exemplar pesado e que reconheci depois de breves segundos.

“Obra completa e Dramas para Palco – Peças de William Shakespeare”.

Meu estômago revirou. O helado de coco tinha se transformado numa revoada de pássaros raivosos dentro de mim, o ar se concentrou numa inspiração só, que consegui fazer antes de focalizar o rosto daquele cliente. Quando consegui olhar, decididamente tive vontade de bater na minha cara por ser tão completamente idiota. Um senhor de bigode e óculos de tartaruga sorriu estranhamente para mim, sua boca fina comprimida naquela tentativa de ser legal com a atendente.

Digitei o código rapidamente, retirei o comprovante e entreguei para ele.

– Obrigada. O senhor pode passar pelo caixa, por favor.

– Obrigado.

Respirei fundo, as mãos apoiadas na ilha de atendimento. Comecei a rir sozinha, aquela era uma situação ridícula demais para se contar a qualquer pessoa no mundo.

Endireitei as costas, joguei o cabelo para trás e voltei para o carrinho de reposição antes que qualquer outra surpresa resolvesse decididamente me tirar do eixo naquele dia. Passei novamente entre os clientes e foi preciso apenas dois passos longe da minha prateleira principal para escutar quando alguém ergueu a voz na minha direção, o sotaque tão nitidamente inglês que seria capaz de arrepiar minha nuca mesmo se estivesse há um quilômetro dali.

– Seria de muito bom tom se me atendesse, senhorita Dalton. Afinal, é para isso que recebe, não é?

Não posso omitir isso, simplesmente paralisei. Alguma coisa nos joelhos parou de funcionar quando toda aquela autoconfiança atingiu meus ouvidos. Demorei a conseguir fazer um giro nos calcanhares e foi um movimento bem trabalhoso, quase impossível. Era inacreditável, mas estava ali em toda sua pompa e arrogância, parado a alguns passos de onde havia acabado de atender aquele homem de bigode. “Próspero”.

– Se puder esperar um minuto, já volto para atendê-lo.

– Um minuto é o suficiente para me atender, não acha? - ele balançou um livro que estava segurando, um daqueles encadernados antigos que apenas alguém como ele encontraria entre as prateleiras.

– Aposto que pode aguardar. Se quiser, vai encontrar outro atendente depois de duas prateleiras. - Sorri pra ele. Com que forças não sei, mas dei as costas e empurrei o carrinho de reposição até os balcões e tenho certeza de que estava pálida como uma vela num funeral. Meu funeral, inevitavelmente.

Despejei as cestas na pilha e não notei que estava esfregando as pernas e estalando os dedos, ansiosa e nervosa. Diabos, ele não ia criar dentes e me devorar como se fosse algum monstro pré-histórico britânico. Iria? Tinha de me convencer de que não, isso não aconteceria. Só precisava esquecer tudo que havia acontecido no dia anterior e…

Espere um minuto. Próspero. ‘“O Próspero”, estava na loja em plena quinta-feira, exatamente às duas e dezessete da tarde, sem usar casaco de tweed e pedindo que eu o atendesse? Ou o trauma tinha transtornado violentamente minha mente, ou aquilo estava muito errado.

Voltei para o topo do corredor onde estavam as prateleiras 36 a 40 e lá estava ele, braços cruzados, o livro escolhido deixado ao alcance da mão, a sobrancelha esquerda erguida para mim. Não deixei que ele falasse absolutamente nada, fui logo apontando o indicador na altura do seu peito.

– Você não devia estar aqui.

– Não devia? - ele pareceu surpreso, fazendo um arco ainda mais profundo com aquela sobrancelha que deixava seu olhar tão forte. - E posso saber qual a implicação que me impede de frequentar este recinto?

– Quinta-feira. Hoje é quinta-feira.

– Maravilhosa observação, senhorita Dalton.

– Você… O senhor… Nunca vem até a livraria nas quintas. São às quartas-feiras. Ontem você estava aqui, consequentemente não devia estar aqui hoje. - soltei as mãos ao lado do corpo, liberando o ar que estava preso nos pulmões. Era uma coisa muito lógica. Próspero era o meu cliente Carma e como tal, conhecido por sua pontualidade britânica, seu casaco de tweed e o gosto por Shakespeare.

– Outra observação perspicaz. Sim, eu estava nesta livraria ontem, uma quarta-feira e como pôde notar tão astutamente de sua parte, estou aqui hoje. Quinta-feira. E isso não quer dizer que alguma coisa nas quintas me impeça de entrar pela porta da loja, senhorita Dalton.

– Não, não quer dizer, mas o senhor só faz compras as quartas, as duas e quarenta e cinco, com o casaco de tweed e nestas prateleiras. Estou certa? E hoje é quinta-feira, não são nem duas e meia da tarde e o senhor está usando um blazer de… Que tecido é esse? Oxford?

Claro que eu estava certa! E consegui um longo momento de silêncio partindo dele exatamente por estar tão correta no que tinha acabado de dizer. Para um homem sistemático como Próspero parecia ser, sair de uma rotina deveria significar alguma coisa bem importante e esperava que isso não incluísse me deixar maluca com sua arrogância.

– Oxford. É o que uso nas quintas, senhorita Dalton.

– Você escolhe o que usa de acordo com o dia da semana? - minhas sobrancelhas é que fizeram um arco.

– É muito prático.

– É um transtorno obsessivo compulsivo, você quer dizer.

– Gravíssimo, devo acrescentar.

Com um revirar de olhos e um suspiro, ele apanhou o livro escolhido e esticou na minha direção. Era um exemplar antigo, capa dura com encadernação original, um daqueles importados que pouca gente procurava. Mas não era Shakespeare.

– Não é Shakespeare…

– Não, senhorita Dalton. É Keats. Importa-se de pararmos de discutir sobre a minha rotina e sua mania de observação e fazer minha pré-venda?

– Nunca pediu para fazer uma pré-venda antes. - abracei o livro contra o peito, abismada. Era uma mudança muito brusca.

Levei o volume até a ilha de atendimento e passei a capa contra o visor, mal escutando o bipe do computador anunciando o reconhecimento do exemplar. Apertei as teclas com uma mecânica invejável e coloquei o comprovante junto do livro antes de entregá-lo.

– Aqui está.

– Obrigado, senhorita Dalton. Precisa de mais algum detalhe minucioso da minha vida para que eu possa concluir minha compra no caixa como um cliente normal? - ele ajeitou o blazer puxando o tecido pela lapela e erguendo o queixo. Aquele maldito nariz empinado.

– O que o senhor usa às sextas? Algodão? Veludo? - minha vez de erguer minha sobrancelha, a direita apenas para ser contrária.

– Depende do clima.

– Oh, as sextas existe uma variável! Deve ser um dia bem emocionante.

– Eletrizante, senhorita Dalton. Memoráveis são as sextas!

Próspero sacudiu o livro como um aceno ao que respondeu, já havia dado as costas para mim e as prateleiras, andando com aquele passo firme na direção dos caixas. Quando sumiu da vista, tive um acesso de riso. Deus, eu havia confrontado meu Carma! Merecia uma bebida mais forte naquela noite, apenas pra comemorar a minha capacidade e superação.

Tudo bem, minhas mãos ainda tremiam, meu rosto estava queimando, mas Próspero não era um trauma a ser superado.

Como sempre, não o vi sair da loja. Estava tão ocupada com um jovem casalzinho procurando por poemas para decorarem a nova casa, que não prestei atenção. De qualquer forma, um terceiro cliente estava esperando por mim quando o casal terminou sua busca: o garoto ruivo e sardento, com aquele sorriso aberto e alguns livros nos braços.

– Oi de novo, atendente-cantora. Encontrei muita coisa interessante por aqui.

– Estou vendo. Quer ajuda com eles? Posso conseguir uma cesta pra carregar tudo isso.

– Pode? Seria ótimo!

Apanhei uma cesta da loja e acomodei os livros lá dentro para ele. Era curioso como o nariz e o olhar daquele garoto me lembravam de alguém, possivelmente alguma pessoa com traços fortes, porque sou uma tremenda negação com fisionomias. Mas aquilo não me incomodou, era apenas uma vaga impressão.

– Obrigado… - ele apertou os olhos pra ler meu crachá. - Katerina. Nome legal.

– Obrigada.

– Sou Lucas. - equilibrou a cesta em uma mão para me oferecer um cumprimento. - Pode me chamar de Luke.

– Luke, prazer em te conhecer.

– Violinista. Sou violinista. - ele foi logo arremetendo e ergueu o rosto pra mostrar uma mancha avermelhada, quase uma cicatriz entre o queixo e o pescoço. - Viu só? Cicatriz de violino, é como chamam.

– Poxa. - comecei a rir, o garoto era adorável. - Não sabia que violinistas tinham esse tipo de coisa. Imaginei que só acontecesse com pianistas e guitarristas.

– Não, marca de violino é uma honra muito grande.

– Então, Luke - o violinista. Quer que eu faça sua pré-venda ou te leve até o caixa?

– Claro Katerina. - de repente o rosto dele ficou fixo no meu crachá, tão empenhado em ler as letras que eu mesma puxei minha blusa para ver o que estava errado.

– O que houve?

– Katerina é um nome muito comprido. Vou te chamar de Kate, tá legal?

– Okay. Todos me chamam de Kate.

– Então você devia ter dito! Quando se apresentou, exatamente como eu fiz. Olhe, vamos começar de novo.

Luke ajeitou a cesta e sumiu pelo corredor. Depois voltou por ele, fingindo observar os livros e esbarrar no meu ombro.

– Oh, desculpe! Pode passar estes livros na pré-venda pra mim, senhorita…

– Katerina. Mas pode chamar de Kate. - pisquei para ele, fazendo parte do teatro.

– Muito prazer Kate. Sou Lucas, mas pode chamar de Luke. - era a vez de ele gargalhar e seu riso era contagiante. - Viu só, muito mais fácil assim, Kate!

– Concordo, Luke. Agora, posso ver seus livros?

– Claro.

Comecei a passar as compras de Luke pelo atendimento enquanto ele assoviava junto com a canção que saía pelos autos falantes da livraria. Dava pra notar como os dedos dele não paravam, agitados e tamborilando as pernas. Fiquei imaginando se aquilo era uma mania de violinistas, nunca parar com os dedos quietos.

– Está em Nova Iorque à passeio, Luke? - pensei em puxar um assunto breve enquanto cadastrava um código de desconto para um dos livros que ele escolheu.

– À passeio e trabalho. Um pouco das duas coisas. - sem rodeios ele debruçou ao lado do computador, olhando pra mim com curiosidade.

– Trabalhando? E no que você trabalha? Dá aulas de música?

– Estou participando da turnê da Filarmônica de Londres. Sou solista.

– Oh. Parece importante. - Obviamente era importante e também desanimador. Um garoto que mal tinha deixado as fraldas tinha mais capacidade do que uma adulta beirando os trinta. Ele fazia turnês pelo mundo tocando violino e eu digitava códigos promocionais e dormia num porão. A vida é mesmo linda.

– Meu primeiro concerto vai ser amanhã! Estou tão animado!

Nem dava pra notar.

– Te desejo muita sorte, Luke! Olhe, aqui estão seus livros. Qual vai ser sua forma de pagamento? Com esse valor, você pode parcelar se quiser.

– Acho que vamos pagar no cartão. - ele pareceu em dúvida, procurando por alguma coisa ao redor. - Posso deixar os livros aqui um minuto, Kate? Preciso encontrar meu “contador”.

–Claro, fique à vontade.

Não entendi porque Luke usou aspas quando falou sobre “contador”, mas achei engraçadinho. Ele era um garoto vivaz e alegre, as garotas da idade dele deviam pirar naquele papo tranquilo e bem humorado. Imagine só se ele tocasse uma meia dúzia de acordes num violino? Os hormônios das meninas derreteriam como manteiga na chapa.

Um pão quentinho com manteiga e um copo de chocolate quente viriam a calhar com o ventinho frio que espiralou dentro da loja naquele momento.

Como se lesse meus pensamentos, Samantha surgiu do outro lado do computador com um sorriso comprido e cílios batendo.

– Vim te fazer um convite indiscreto.

– Hm, sabia que você tinha uma quedinha por mim, Sam. Mas desculpa, não é minha praia. - levei um tapa no ombro no mesmo instante.

– Vira essa boca pra lá, Branquela! Meu convite não parte pra obscenidade. Se bem que uma bebida bem quente, espumante e acompanhada de qualquer coisa cheia de massa doce, seria uma perdição bem melhor que muito homem que já me conquistou por aí.

– Estava pensando num chocolate quente.

– Então está combinado. Chocolate quente na saída. - trocamos um riso de cumplicidade e fomos interrompidas quando o furacão-ruivo-Luke se debruçou no pequeno balcão da ilha de atendimento, ofegante. Pelo visto tinha saído correndo de algum ponto bem distante da loja até chegar ali.

– Encontrou seu “contador”? - imitei as aspas.

– Vamos passar no cartão. - ele passeou os olhos por Samantha e não titubeou em esticar a mão para ela. - Oi, sou Lucas. Pode chamar de Luke.

– Ahn… - Sam ficou arredia, olhando pra mão do garoto. Apertou com força e assumiu aquele olhar de empregada exemplar. - Oi Luke. Sou Samantha, mas chame de Sam. Se quiser.

– Gostei. Achei que Sam fosse um nome masculino.

– É apenas um apelido. Mas soa bem. - ela bateu no meu ombro e indicou para onde estava indo. - Vou voltar pro meu habitat. Bom te conhecer, Luke.

– Igualmente, Sam.

Finalizei as compras de Luke enquanto ele e Sam se cumprimentavam, mas faltava um detalhe para o ruivinho conhecer as filas do caixa:

– Em quantas parcelas vai passar, Luke?

O garoto coçou o queixo e antes que eu pudesse repetir a pergunta ou instruí-lo, alguém o segurou pelo ombro e trouxe toda atenção para sua presença.

– Vamos pagar à vista, senhorita Dalton.

A surpresa de Luke jamais se igualaria à expressão ridícula que estava certamente estampada em mim. Com certeza minha boca estava meio aberta, meus olhos demorando a acreditar que estavam de novo encarando aquele homem. Definitivamente a palavra carma tomava novos rumos na minha vida.

Ali estava a explicação sobre aquela sensação de conhecer o rosto de Lucas de algum lugar: com Próspero parado ali, logo ao seu lado, tão alto quanto ele, os rostos próximos, não era possível negar que tinham um parentesco. A mesma forma do nariz, a cor dos olhos, a semelhança do queixo. Luke tinha olhos mais mansos e sobrancelhas esparsas, ruivas como seus cabelos; Próspero com suas pupilas afiadas e as sobrancelhas curvas de vilão diferenciava-os um pouco.

– Você já conhecia a Kate? - Luke abanaria o rabo se fosse um cãozinho, tenho certeza. Sua animação com coisas pequenas era palpável.

– A senhorita Dalton - Próspero iniciou e lá estávamos nos encarando novamente, o frio subindo pela minha espinha. - Passou por um episódio complexo na tarde de ontem, Lucas. Não nos conhecemos propriamente, mas ouso dizer que ela me conhece mais do que deve dizer.

– Ora, eu…

– Caramba! Você foi a refém do assalto de ontem, Kate? - Luke apanhou minhas mãos de chofre, me tirando da linha dos olhos de Próspero. Mas sentia aquele olhar por trás dos ombros do garoto, uma lança de gelo. - Leo me contou tudo, que situação vocês passaram! E você está bem depois disso tudo? Ela devia estar trabalhando? - Luke consultou o olhar de seu “contador”, mas ele ergueu os ombros.

– Eu estou ótima, não posso deixar de trabalhar por uma bobagem daquelas, não é?

– Colocaram uma arma na sua cabeça! - o garoto não parecia acreditar realmente que a situação toda era uma bobagem e olhava fundo nos meus olhos, tentando extrair alguma faísca de mentira.

Sinto muito, Luke. Sou ótima na brincadeira de não piscar.

– Por certo a senhorita Dalton ficará muito bem, Lucas. Caso algum desequilíbrio emocional ocorra, certamente a encaminharão para casa. Não é mesmo, senhorita Dalton?

Engasguei, não tinha uma resposta. A saliva raspou minha garganta quando engoli e esbocei aquele sorriso torto esquisito que assustava criancinhas.

– Estou ótima. Obrigada pela preocupação.

– Viu Lucas. Sem preocupação. Agora pegue seus livros e aqui está o cartão. - perdi o momento em que Próspero tirou qualquer carteira do bolso. Ali estava o cartão entre seus dedos, apenas para o ruivinho apanhar e realizar seus desejos consumistas de turista.

– Você não parece muito legal… - Luke sussurrou, apanhando os livros do balcão antes de claramente ter um estalo de ideia. - Já sei! Você precisa de um chá quente e sair um pouco desta loja.

– O que?! -a pergunta partiu com um eco. Minha voz e a do carma saíram ao mesmo tempo, talvez tínhamos compartilhado de um pensamento de absurdo no que escutamos.

– Isso mesmo. Tudo que Kate precisa é de uma boa xícara de chá, algumas bolachas e um ambiente diferente. Vamos levá-la para tomar chá com a gente, Leo.

O garoto o chamou de Leo? Próspero tinha um nome? Incrível que alguém com uma pedra no lugar do peito pudesse ter um nome de batismo. Consigo imaginar o desgosto desta pobre mãe.

– Só pode ser mais uma das suas brincadeiras sem fundamento, Lucas. - e lá estava a sobrancelha mais uma vez, subordinada ao temperamento dele.

– Não é brincadeira nenhuma. Vou falar com o gerente, eu aposto que ele não vai negar se Kate sair mais cedo hoje, depois de tudo o que ela passou ontem. A tensão, a dor, o sentimento da morte eminente… Vai ser perfeito, Leo! Você a salvou, agora vão tomar um chá e conversar, Kate quer conhecer seu salvador.

Lucas dobrou o braço sobre a testa num gesto tenso e dramático, como se alguma flecha tivesse acertado seu peito e o anjo da morte fosse debruçado nos seus ombros. Mas ele não tinha ideia do que estava falando. Conhecer Próspero, meu detestável herói? Não, eu preferia continuar por ali, muito obrigada.

– Espere, eu não… - tentei começar uma desculpa, mas estava bem claro que todos tinham um infinito prazer em me atrapalhar.

– Pelos céus, a senhorita Dalton não quer tomar chá, Lucas. Menos ainda com uma desculpa tão desastrosa como essa.

– É perfeita! Vamos, não façam desfeita. Estou pedindo, Leo… Kate, aceita tomar chá conosco? - Luke fez um meneio pomposo que tornou impossível não rir.

– Luke, eu não posso sair do trabalho agora. Só termino meu turno no fim da tarde.

– Leo vai falar com o seu gerente. Onde ele está? Você vai pedir, não é Leo?

Ao invés de dialogar com o garoto, tudo que Próspero - ou Leo - fez, foi ignorar a nossa presença e caminhar pelo corredor. Lucas correu atrás dele, pendurando-se no seu ombro e gesticulando muito para possivelmente, convencer o mais velho.

Tudo que eu consegui fazer, o que passou pela minha cabeça, foi me esgueirar rapidamente entre os clientes da loja e procurar por Samantha. Ela tinha que me salvar de alguma forma! Escrevi rapidamente no verso de uma folha de recolhimento que estava por baixo do teclado e ergui a mensagem assim que Samantha apontou entre as prateleiras. Ela apertou os olhos e franziu o nariz pra conseguir ler e caiu na gargalhada quando enxergou o enorme “HELP!” que tinha escrito na folha.

Pelo visto estava sozinha. Sam ergueu as mãos e sinalizou uma mulher que estava falando pelos cotovelos logo ao seu lado, apanhando uma coleção de capas coloridas do setor e isso determinava que minha amiga não poderia atravessar as três prateleiras, dois sofás e quatro estandes que nos separavam, para se salvar do destino. Mas os dados não pareciam dispostos a me livrar daquela situação e tudo só terminou de ficar completamente de ponta cabeça quando Lex me chamou, tocando meu ombro.

– Kate? Posso ter uma palavrinha com você?

Lex estava ansioso, dava pra notar pelo modo de brincar com a língua no piercing de boca conforme andamos para um canto menos movimentado da loja.

– Olhe, eu sei que você quer muito trabalhar, mas o superintendente da loja me ligou e insistiu. Muito. Pra você ir para casa. Eles não querem nenhuma complicação, Kate e ele não poderá vir falar com você hoje, então me orientou a te dispensar pelo restante da tarde.

– Não não não não… Lex, você não pode me mandar pra casa. - segurei os pulsos dele. Dava pra perceber meu desespero.

– Kate, é sério. Meu pescoço vai ficar na forca se você trabalhar até o final do turno. Eu chamo um táxi e você vai descansar. Vai te fazer bem, acredite.

– Ali está ela! - Luke simplesmente aparatou perto de nós, apontando como um cão de caça. - Kate, você vai aceitar o convite, não é? Por favor, um agrado para um pobre rapaz recém-chegado à América…

Passei um olhar entre Lex e Luke. Eles pareciam confusos um com a presença do outro, mas o ruivinho era irredutível e não demorou em estar apertando mão com meu gerente e fazendo sua apresentação animada.

– Você se chama Lex? Mesmo? Cara, isso é muito maneiro!

– Alexander, mas minha mãe achou interessante me apelidar assim.

– Sou fã dela, com certeza. - eles deram risada e eu, muda e acuada, ficava rezando para um meteorito de Kripton cair na minha cabeça por alguma sorte.

– Então, Luke, você estava convidando a Kate para…

– Tomar um chá com a gente. Você é o gerente, não é Lex? Ela pode ir?

– Claro que ela vai. - Lex me empurrou.

– Gente, em que parte desta conversa vocês estão levando minha vontade em consideração?

– Nenhuma. Você vai pra casa ou vou te redigir uma advertência, Dalton. - quando Lex - o gerente com a cabeça cheia de dreadlocks te chama pelo sobrenome, você vai se encrencar.

Existem momentos na vida que não há muito que se fazer. Era uma questão de mapa astral, carma, destino, reencarnação, o infinito pagamento de dívidas com o universo; conspirando contra o meu bem estar mental e físico. Se aquele convite envolvesse apenas um divertido chá da tarde na companhia do animado Lucas, eu não negaria. Seria legal, como ter um irmão mais novo uma vez na vida e dar muita risada quando ele cumprimentasse as pessoas estranhas na cafeteria com aquele sorriso enorme, aproveitando daqueles olhinhos de filhote perdido. O detalhe que martelava dentro de mim era exatamente como aquelas letras miúdas no final de um contrato de compra, daqueles que precisa de uma lupa para enxergar que se sua assinatura estiver no papel, sua alma pertencerá ao diabo.

Lá estava Lúcifer no fim do corredor, braços cruzados e sacolas de livros em mãos, observando de esguelho a minha completa e total decadência com aquele olhar invernal. Não conseguiria imaginar o que se passava pela mente daquele inglês naquele instante, talvez sua repulsa por mim fosse tão gigantesca que também estivesse orando por um meteorito de Kripton acertá-lo na cabeça. Eu prefiro mil vezes que os kriptonianos atendam aos pedidos dele… A não ser que ele deseje que caísse na minha cabeça!

Com minhas opções tão reduzidas, aceitei o pedido de Lex para que fosse para casa, mas não confirmei o convite de Luke. Foi minha chance de sair dali e daquela berlinda.

Ajeitei minhas coisas, entreguei meu crachá na sala de funcionários, assinei minha dispensa de turno e troquei o uniforme. Foi prazeroso sair pela porta e não haver ninguém esperando por mim. Nada de Luke, Próspero, Lex ou Samantha. Ah, uma lufada de sorte estava soprando na minha direção. Tinha que apanhar a chance com as duas mãos e sair dali rapidinho!

Atravessei a calçada e abanei os braços na esperança de que um táxi me visse e rapidamente um carro manobrou para minha frente. Sorte! Sorte! Sorte! Abri a porta e pulei para dentro, antes de formular o endereço da Sra.Fighbrigth e já me pegar imaginando como minha cama seria bem vinda depois de toda aquela movimentação.

– Você prefere café ou chá? - o rosto de Luke surgiu debruçado sobre o banco do passageiro e rindo. Eu gritei. Gritei bem alto. Sorte não ser cardíaca.

********

Foi complicado me acalmar. Gritei por quase três minutos, exigindo que parassem o carro e me deixassem sair. Aquilo parecia um maldito sequestro, tentei abrir a vidraça e gritar para um guarda antes de sairmos da quinta avenida, mas o veículo possuía travas para crianças. Teria que passar sobre a cabeça daqueles dois ingleses doidos antes de conseguir pular no asfalto. E como não era uma opção nada saudável, tratei de me acalmar.

Paramos em uma quadra anterior ao Central Park e Luke abriu a porta pra mim. Não escutei a voz de Próspero por todo o trajeto, nem enquanto o garoto tentou se desculpar milhões de vezes por todo aquele atrevimento ou pediu uma opinião sobre uma cafeteria para tomarem o chá. Algumas vezes conseguia ver os olhos azuis do carma pelo retrovisor, sérios, concentrados no trânsito caótico e no caminho, sem dar nenhum sinal de que minha presença no carro importava de alguma coisa.

Teria indicado uma Starbucks qualquer dos milhares que existiam pelas ruas da cidade, mas a escolha de Próspero era muito peculiar. Uma cafeteria pequena, apenas uma porta vermelha de madeira antiga que surgia numa esquina com uma tabuleta sobre o umbral, The Red Velvet.

Ele abriu a porta para que entrássemos primeiro e Luke foi logo se oferecendo para segurar meu cardigã quando sentiu o ambiente gostoso pelo aquecedor. A entrada levava diretamente à um lance de escadas pintadas de vermelho e paredes repletas de quadros clássicos vitorianos, talvez uma dica do motivo da escolha pessoal daquele café. Toda área de atendimento era no andar de cima, um salão único decorado com papel de parede sóbrio, mesas de madeira e cadeiras de estofado rubro, lustres que teriam saltado de um catálogo chique de decoração. Era impossível não se sentir confortável, mas intimidada ao mesmo tempo.

Um garçom veio nos recepcionar no último degrau e indicou uma mesa diante das imensas vidraças que formavam as paredes do salão, podia-se ver toda a vista das ruas iluminadas e aquela mancha verde do parque adiante. Era lindo, admito. Lindo demais para apenas um café, era digno de um acontecimento.

Luke ficou eufórico com um pote colorido repleto de chicletes que estavam decorando o caixa perto da entrada, mas se comportou e entregou sua jaqueta e meu cardigã para o garçom, como Próspero também fez com seu blazer de Oxford. Sentamos naquela mesa quadrada, Lucas ao meu lado direto e meu algoz - aquele carma que me perseguia pelo segundo dia consequente - bem na minha frente. Imediatamente encolhi as pernas para que não acontecesse um deslize inconsciente de bater os pés com os dele.

Quando o garçom se aproximou novamente estávamos em um silêncio incômodo, cada um lendo seu próprio cardápio, mesmo que Luke espiasse os rostos por cima do cartonado do menu, esperando para começar a rir da situação.

– Prontos para fazer o pedido? Senhorita. - o atendente sorriu, as damas primeiro.

– Um Submarine, por favor. Ah, uma fatia do Red Velvet Home também seria ótimo. - ao menos a foto daquela fatia gorda de bolo vermelho, recheado em três camadas de creme de baunilha e acompanhado com uma bola de sorvete com hortelãs, era muito convidativa.

– Vou querer o mesmo! - Lucas disparou, fechando o cardápio decidido e dando o braço comigo, como se fôssemos um casal desengonçado. Caímos na risada, mas não durou muito. O olhar que Próspero deu em nossa direção seria capaz de fazer uma planta morrer em segundos e ganhou nosso silêncio imediatamente.

– E o senhor? - O garçom questionou, recolhendo os cardápios.

– Earl Grey, leite, três cubos de açúcar. Uma fatia de bolo de maçã.

– Trarei em alguns minutos. Fiquem à vontade.

Juro que escutei um cacto rolar entre nós bastando apenas que empunhássemos nossas pistolas como num faroeste. Um clima estranho, um lembrete claro de que éramos todos estranhos numa mesma mesa. Foi Luke quem recomeçou a conversa.

– Então Kate, me conta como aconteceu tudo ontem. Leo me contou, mas ele é muito chato pra colocar emoção na narrativa. - Lucas riu e fez o mais velho revirar os olhos, dirigindo sua atenção para o movimento da cafeteria ao invés do tópico.

– Não sei como aconteceu, estava saindo do banheiro quando o ladrão me rendeu.

– É um fato conhecido que marginais escolhem vítimas distraídas. - Próspero adicionou.

– Claro que eu estava distraída, como esperava que eu saísse do banheiro? Olhando para os lados? Não é a mesma coisa que atravessar uma rua.

– Estava dispersa e foi um alvo fácil.

– Podia ter sido qualquer um.

– Er… Tudo bem, já entendi. - Lucas apaziguou, rindo um pouco e esticando as mãos como se fosse um juiz diante de um jogo de tênis. - Mas você deve ter sentido muito medo, Kate. Uma arma apontada pra você, não é nada fácil.

– Na hora você não liga pra isso, só pensa em sair vivo, Luke. Só prestei atenção nesse detalhe depois que tudo acabou realmente.

– E quem diria, meu irmão bancando o herói. - caiu na gargalhada, dando um tapa no ombro de Próspero que fez com que ele voltasse a atenção para o assunto com o solavanco.

– Não foi heroísmo nenhum, foi tolice.

Ele estava certo. Foi um golpe de sorte e dava pra ver seu pulso direito por baixo do punho da camisa cinza que usava, ainda estava protegido com uma munhequeira que ilustrava o quanto aquela coragem poderia ter tido consequências graves. O ladrão poderia ter atirado e então não estaria ali vendo o garçom trazer nosso pedido para mesa.

– Eu poderia me defender muito bem se ele não tivesse me apertado tão forte. - pisquei para Luke, apenas para entretê-lo um pouco. O garoto riu, mas sua atenção ficou dispersa pelo maravilhoso pedaço de bolo diante de nós.

– Não poderia ter feito nada naquela situação, senhorita Dalton. Era apenas uma vítima. A donzela em perigo. - Próspero agradecia o garçom com um gesto e se dedicava a me alfinetar durante sua meticulosa exibição da dosagem de leite derramada em sua xícara de louça, misturando branco com o chá escuro e nada apetitoso.

– Eu nunca fui uma donzela em perigo. Isso é ridículo.

– Era exatamente o que parecia naquela ocasião. O pânico estampado em seu rosto, a pele pálida, o corpo tenso. Não havia nenhum objeto que pudesse usar para se defender. Então, como é uma senhorita e estava numa situação perigosa…

Senti uma pontada. A forma de ele mover as sobrancelhas e quase esboçar um sorriso vitorioso nos lábios, me irritava profundamente. Cortei um pedaço do bolo e depois de mastigar aquele cantinho do céu, fixei os olhos no garfo.

– Eu poderia matá-lo. Seria fácil, acredite.

– É mesmo? - ele tornou a erguer a sobrancelha esquerda ironicamente e pender o rosto de lado antes de cruzar os braços.

– Não duvide dos meus talentos com um garfo de bolo. É uma arma letal.

– Somente se o alvo for um pedaço de bolo. Não era justamente o caso.

– É o caso agora. - apontei o talher para ele e Lucas disparou uma gargalhada que tentava conter o bolo dentro da boca, mas parecia impossível, já que as migalhas caiam na toalha de mesa.

– Vocês são hilários mesmo! Kate, gosto cada vez mais de você, sabia? Não é todo mundo que consegue ter paciência com o Leo.

– É mesmo? Porque será? - ironizei.

– Poucos conseguem tolerar a verdade nas palavras. Preferem se esconder dentro de sorrisos falsos e comentários vagos sobre as coisas do dia a dia. - Próspero desfiou calmamente, bebendo um gole de sua xícara.

– Como o blazer para se usar na sexta-feira? - não olhei para ele naquele momento, mas conseguia ver sua expressão com o canto dos olhos enquanto parecia concentrada em misturar a barra de chocolate dentro da bebida quente á minha frente.

– Touché. - Lucas sorriu, erguendo seu garfo de bolo.

– Você concorda com ela? - Próspero consultou o ruivo, curvando-se um pouco sobre a mesa e batendo de leve a colher na lateral da xícara.

– Conversar sobre blazers? Oh sim, eu concordo com a Kate. Isso é chato demais.

– Um motim. Em minha própria família.

Quando se viu confrontado, suspirou tão profundamente que por um segundo quase pensei que estivesse realmente machucado. Olhou para Lucas longamente, depois para mim. Sorveu mais um gole daquele chá preto horroroso e como se fosse a coisa mais comum do mundo, declamou com seu sotaque inglês impecável:

“Tenho dois amores que me consolam e desesperam

Que, como dois espíritos, me inflamam;

O anjo bom é homem belo e justo, - Sua sobrancelha pendeu para Lucas.

O mau, uma mulher mal-intencionada”.

– O que? - era de mim que ele estava falando?

“Para arrastar-me ao inferno, meu lado feminino tenta meu anjo bom e companheiro,

Querendo de santo transformá-lo em demo,

Seduzindo sua pureza com soberba.

E se meu anjo se tornar vil, suspeito, embora não consiga dizê-lo;

Mas, sendo ambos meus,

Ambos meus amigos,

Creio que um anjo seja o inferno do outro.

Mesmo que eu nunca saiba e viva em dúvida,

Até que meu anjo mau se livre do meu anjo bom”.

Ficamos mudos. Lucas estava claramente contendo uma risada e pro minha vez, estava pasmada. Nunca vi ninguém declamar Shakespeare com tamanha fluência, menos ainda de uma forma com que as palavras pareciam simplesmente escorregar por ele. Se não soubesse que era um soneto do poeta, juraria que Próspero havia realmente encarnado seu personagem e de acordo com o cérebro de seu criador, tomava vida e gorjeava as palavras diante de nós. O ato tinha prendido minha atenção e nem me importei de ser a “mulher mal-intencionada” de que claramente havia me rotulado.

– Homem belo e justo. Gostei disso, Leo. - Luke sorriu gentilmente ao irmão mais velho e Próspero por sua vez apenas ergueu a xícara, aceitando o pequeno elogio.

– Foi… impressionante. Arrogante e impressionante.

– Leo faz isso o tempo todo. Sempre citando “o homem”. - Lucas comentou, cobrindo a boca que ainda estava cheia.

– O Homem?

– Sir. William Shakespeare. O Homem. Leo está sempre citando seus trechos, faz mais isso do que eu consigo imitar qualquer bom compositor.

O ruivo deu um suspiro satisfeito quando terminou seu bolo e sorvete, soltando os ombros na cadeira enquanto nós ainda comíamos. Ele trocou olhares com todos na mesa e com um sorriso maroto, aprontando alguma coisa dentro da própria cabeça de cabelos enferrujados, passou o braço sobre os meus ombros.

– Kate, você gostaria de ir à minha sinfonia amanhã?

Próspero tossiu e me assustei mais com ele engasgando do que com o outro convite que recebia de Lucas. Não soube para onde olhar e descansei minha caneca na mesa para ficar gaguejando em busca de uma resposta.

Adorava sinfonias, música clássica alimentava a alma, ou era isso que o senhor Kennedy Dalton costumava dizer. Assistir a algo assim ao vivo, seria magnífico. Mas era um convite completamente descabido, eu tinha conhecido Lucas naquela tarde e o garoto era irmão da pessoa mais detestável e claramente contra qualquer existência minha na face da Terra e no restante do universo conhecido e desconhecido pelo homem.

Era um sentimento recíproco.

– Não sei, Luke… Minha irmã está na cidade, aceitar um convite assim seria…

– Ela pode ir com você. Eu tenho alguns convites e não seria problema nenhum dar dois para vocês.

– Lucas. - Próspero pigarreou.

– Será amanhã, às oito da noite. Podemos pegar vocês antes do concerto, não seria problema nenhum, não é Leo?

Próspero estava quieto. Tão silencioso e imóvel que quase escutava seu pensamento ecoando pela mesa. Parecia que Lucas agia como uma criança impetuosa e que logo levaria uma bronca do irmão mais velho e responsável, careta, chato e implicante. Lembrava-me um pouco da minha própria vida, de todas as vezes que minha alegria era restrita por não me encaixar nos moldes que minha amada mãe esperava de mim, fossem nos modos, nas roupas, no palavreado.

Aquela lembrança desencadeou um sentimento dentro de mim. Uma coisa fervente como uma necessidade de justiça. Respirei profundamente e não pesei prós e contras, nem imaginei se Adria gostaria de ir à um concerto da filarmônica; somente abri a boca de ímpeto e apanhei a mão de Lucas, mesmo que meu olhar fosse diretamente para Próspero, procurando acertá-lo, esbofeteá-lo com a minha falsa certeza.-

– Eu vou. Vai ser um enorme prazer.

Eu disse sim. E se minha vida fosse um seriado barato com certeza haveria um gancho neste trecho, só para causar suspense. Com música de fundo, obviamente. Mas minha vida não era para as câmeras de tevê e não havia nada além da música ambiente da cafeteria para embalar aquela cena.

Lá estava eu, estática, a boca um pouco aberta pela frase que tinha acabado de formular e encarando aquele par de olhos do outro lado da mesa. Por um momento estávamos apenas nós dois ali, decidindo silenciosamente quem mataria quem com aquele garfo de bolo.

– Lucas, queira reconsiderar o seu convite. - Próspero quebrou o silêncio primeiro.

– Reconsiderar por quê? Eu quero convidar a Kate para o concerto e ela já concordou.

– Você acabou de conhecê-la!

– E daí? Ela é legal, eu tenho os convites e decidi convidá-la. Não me venha com aquele seu discurso de irresponsável outra vez. - o garoto deitou a cabeça no meu ombro e consegui ficar ainda mais tensa.

Próspero suspirou. Não, aquilo não era um suspiro, era toda a frustração que cabia dentro dele saindo numa lufada de ar que tinha cheiro de chá earl grey. Primeiro ele consultou a xícara, depois a hora em seu relógio de pulso e acabou se levantando, deixando sobre a mesa algumas notas de dólar para pagar pelo pedido - ou pelo menos eu esperava que fosse pelo chá e não pela inconveniência.

– Vamos Lucas.

– Não ligue pra ele. Essa chatice passa conforme o clima muda. Você precisa ver quando chove! - Lucas deu um beijo na minha bochecha e com aquele monte de cabelos ruivos deu um pulo para fora de sua cadeira.

Então notei que os dois estavam parados, olhando para mim, talvez esperando que eu desse um adeus ou apertássemos as mãos.

– Obrigada pelo chá.

– Agradeça ao Lucas - era apenas um olhar sobre o ombro, mas se seguiu daquela sobrancelha, a fatídica sobrancelha esquerda. - Você não vem?

– O que? - me entreolhei com os dois e Lucas deu uma gargalhada antes de deixar o irmão mais velho para trás e ir apanhar alguns chicletes no caixa.

– Já é tarde, senhorita Dalton. Vou deixá-la em casa.

******

Só precisei explicar o caminho do porão da Sra. Fighbright uma única vez e assistir Próspero dirigir silenciosamente pelo trânsito caótico do horário do rush, o vidro fechado por onde às vezes ele observava o retrovisor. Lucas dissertou sobre as obras que iriam apresentar na sexta, vez ou outra orquestrando um violino imaginário que quase era capaz de tocar perfeitamente contra aquele som contínuo do motor do carro. Era gostoso escutá-lo falar com aquele sotaque pesado e tantas palavras diferentes, ver como ele queria aproveitar cada segundo de sua visita à um país diferente.

A esquina anterior à casa da Sra. Fighbright sempre servia de ponto de referência para qualquer coisa. Era um sobrado amarelo brilhante, em que o dono nunca retirava um papai Noel do teto, uma lembrança contínua de seu feriado preferido - com toda a certeza.

– Ali, no terceiro prédio. - indiquei enquanto soltava o cinto. Mas notei que na frente do portão estava estacionado um carro, coisa muito rara para um conjunto de prédios em que os moradores mal tinham uma bicicleta e preferiam claramente utilizar do serviço publico de transporte. E quanto mais nos aproximávamos, mais claramente conseguia notar que havia um casal conversando diante do portão do porão.

– Adria? - com que aquela maluca tinha feito amizade em menos de dois dias?

Lucas abriu a porta para mim assim que o carro parou e meu estômago voltou a dar loopings dignos de montanha-russa, assim que vi com quem Adria Melissa Dalton estava conversando.

– Kate! - ela acenou entusiasmada quando me viu. - Que bom que você chegou, já estava preocupada! Olhe só quem veio te ver!

– Katerina. - Bruce Campbell estendeu a mão para mim e ajeitei meu cardigã desengonçada, perdida e procurando uma resposta qualquer que fizesse sentido na chegada repentina daquele homem na minha casa.

– Você…

– Vim te ver. Não disse que viria antes do final de semana? Foi o mais rápido que consegui.

– Sim você disse, mas…

– Ligamos no seu celular, mas como estava desligado tentamos contato na livraria e seu gerente disse que você saiu mais cedo. Devia ter avisado. - Adria fez um biquinho de preocupação e esticou o pescoço para olhar sobre meu ombro, para o carro onde Lucas ainda estava do lado de fora, olhando a cena.

– Eu estava tomando um café com dois amigos. Aquele é Luke, ele é violinista.

– Luke? - Bruce só deu atenção para o carro e quem estava dentro dele, quando citei o nome.

Então me tornei uma espectadora da cena. Lucas chegou à calçada e apertou a mão de Bruce, trocavam um olhar tão fixo, tão conhecido. Era impossível não sentir uma estranha tensão dos dois. Antes que os dois trocassem alguma palavra, a porta do carro bateu com força e a imagem de Próspero, seu blazer agitado no vento frio do começo da noite atravessando pela frente dos faróis do carro, pareceu agressiva.

– Ora só. Quem diria. - Bruce suspirou, soltando a mão de Lucas para dar um passo atrás antes do irmão mais velho se colocar entre os dois, um muro protetor claramente desgostoso.

– Sr. Campbell.

– D’Valois. Lucas está enorme, nem parece o mesmo garoto. Passeando pela América? Conseguiram tirar você da concha? - Bruce riu e enfiou as mãos nos bolsos de seu casaco.

– Estou em turnê. - Luke não deixou o irmão responder.

– Violino. Apenas uma temporada. - Próspero estava prestes a se transformar no monstro britânico capaz de devorar alguém, eu conseguia ver no modo com que seus ombros se projetavam para frente e seus pés estavam fixos na calçada. Mas seus dedos estavam tamborilando a perna direita, exatamente como fazia em dúvidas diante das prateleiras da Barnes & Noble. Então passei a me perguntar: ele fazia aquilo quando estava indeciso ou inseguro?

– Incrível. Parabéns, Lucas. Quando começam as apresentações?

– Amanhã. Kate irá assistir, eu a convidei. - Luke sorriu educado.

– Hm… Uma apresentação de violino, que maravilhoso Kate. - Adria massageou meus ombros, devia estar pulando de felicidade com os convites masculinos que estavam chovendo no meu colo ultimamente. Mas ela não conseguia ver que tinha alguma coisa errada com aquela coincidência em todos se conhecerem milagrosamente? Coisas assim nunca acontecem comigo sem que exista um problema gigantesco por trás de tudo, uma engrenagem solta, um buraco logo embaixo do pote de ouro no fim do arco-íris.

– Você aceitou o convite, Kate?

– Aceitei sim. Luke fez questão e eu acho que vai ser uma linda apresentação. Como ele me convidou para o café hoje, só posso aceitar pra retribuir.

Os homens trocaram olhares. Talvez conversassem mentalmente ou estivessem numa briga de esgrima em um plano paralelo digno de um filme de ficção científica do tipo Matrix.

Os olhos se desviaram e Bruce caminhou até perto de mim e Adria, seu sorriso gentil e educado antes de anunciar:

– Ótimo, vai ser um prazer ser seu acompanhante neste concerto, Katerina.

Eu, uma mulher de extremos.

Num dia sozinha com a companhia de um Mochaccino e agora sem saber o que fazer para ficar sozinha com o Mochaccino de novo. Ah, Adeus paz.


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