Orleans escrita por MarianaCamara


Capítulo 4
Capítulo 4 - Beside You




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Há um ponto próximo da Quinta avenida, exatamente depois da Biblioteca municipal e seus lindos leões de pedra, que havia se transformado em uma parada obrigatória todas as vezes que caminhava até a livraria. Era apenas mais um prédio bagunçado e repleto de lojas de comida rápida e souvenires da cidade bem no térreo, mas para mim era uma lembrança. Melhor dizendo, uma promessa.

Se subisse pela porta que ficava exatamente entre o restaurante tailandês e a loja de eletrônicos, bem no terceiro andar, na quarta porta à direita; ficava o primeiro apartamento que decididamente cobicei em vida. Não que não tivesse desejado mais nada na minha breve existência mortal, mas aquele conjunto de janelas sujas de cinza e uma escada de incêndio decadente eram exatamente o que perturbava minha mente todas as manhãs quando passava por ali.

Estava entrando no segundo ano de faculdade quando viajei para Nova Iorque com meu pai. Era apenas uma daquelas saídas que fazíamos para estreitar nossos laços de pai e filha nos poucos feriados em que ele dispunha de um tempo livre para tentar compensar a ausência. Ele se esforçava, como sempre, me levando a lugares que considerava muito chatos, como musicais e museus, comprando dezenas daquelas quinquilharias para turistas e escutando meus gritinhos animados com qualquer coisa.

Quando disse que um dia moraria na Grande Maçã, o Sr. Dalton começou a rir e questionar se eu conseguiria sobreviver naquela selva de pedra por mais do que alguns dias. Tudo bem que ele estava certo na maioria daquelas coisas – e eu comprovei tudo veridicamente – mas naquela altura da vida eu só queria provar para mim mesma de que era capaz de fazer alguém se orgulhar da minha força. Ou da minha falta de juízo.

Tínhamos acabado de sair da biblioteca e comprado um par de scones quando ele enxergou uma placa de aluga-se. Não parecia o melhor lugar do mundo, mas ele quis dar uma olhada, brincando que ali poderia ser a minha casa quando me mudasse.

Bastou pegar as chaves na apertada recepção do prédio e subir os lances de escada para um corredor iluminado e com cheiro de cera nova. As portas brancas acabavam de receber números novos e o número 9 estava brilhante bem acima daquele ponto do olho mágico. Demorou um pouco para conseguirmos encontrar a chave certa naquele molho de cinco chaves, mas foi incrível quando entramos.

O lugar todo era voltado para a avenida, com janelas cobertas por persianas beges. Uma sala conjugada com a pequena cozinha, um charmoso balcão de formica separando o ambiente com algumas banquetas altas. Na parede esquerda a primeira porta levava para um banheiro médio, bem maior do que o do meu porão atual e com uma banheira velha que ficaria linda depois de algumas escovadelas. E na segunda porta o quarto, nada gigantesco, mas que comportaria minha cama com uma boa folga para uma escrivaninha virada para a Quinta e perfeita para começar o primeiro rascunho do meu futuro livro. Aquele que um dia vou escrever e se tornar um best seller internacional – se escrevê-lo, claro.

Conseguia me imaginar perfeitamente sentada naquele parapeito largo, folheando as páginas da primeira edição com cheiro de papel novo, reescrevendo tudo dentro da minha cabeça e me criticando por não ter escrito uma coisa diferente ou maior. Talvez uma série. Uma trilogia estava na moda, mas nunca conseguiria criar algo que desenrolasse mais do que duas centenas de páginas e que não matasse os pobres leitores de tédio. Coma literário.

Mas ainda me lembrava daquele chaveiro com a cabeça de Edgar Alan Poe e da notícia de sentir aquelas chaves no meu aniversário de 27. Mas aceitar o apartamento era assinar meus votos matrimoniais e isso estava completamente fora de questão. Ou quase.

O que estava martelando na minha cabeça era justamente a ideia de que naquela noite Bruce Campbell, meu suposto noivo, estaria me aguardando para um concerto. Não qualquer concerto, daqueles que se encontra pela cidade num bom dia de sol, mas o concerto do espevitado Luke; que poderia ser qualquer garoto legal no mundo, mas teve o azar de nascer como irmão do meu Carma. “Próspero”.

Se fechar os olhos consigo visualizar perfeitamente como Próspero estava desagradado na noite passada. Parecia prestes a saltar na jugular de Bruce e rasga-lo como um daqueles leões nos especiais da National Geographic. Imagino o narrador:

“O predador observa em silêncio. Notem seus olhos, como seus músculos estão tensos. Esta máquina de matar pode enganar a primeira vista, mas foi projetada para este momento. Vejam como se move, silencioso, olhos fixos na presa desavisada; o Britanicus Raptores em sua melhor forma”.

Tudo bem, eu sei que ele não tinha nenhuma forma física capaz de rasgar o pescoço de Bruce ou por via das dúvidas, acertar um bom soco em seu nariz, mas estava cogitando seriamente que aquilo estava passando pela mente dele.

Mesmo assim, eles se despediram como cavalheiros e fiquei parada na calçada com Adria rindo baixinho, ansiosa por saber cada detalhe da minha saída para o chá e todos os motivos que me impediam de dar um enorme sim para o casamento forçado – já que agora ela considerava o Sr. Campbell o melhor partido que eu poderia encontrar em todo o mundo conhecido e povoado pelos seres humanos.

E naquela manhã, bocejando longamente e curvando o guarda-chuva para não esbarrar nos olhos de nenhum outro pedestre, atravessei a rua correndo para alcançar as portas duplas da Barnes & Noble. Dei dois passos para dentro, colocando o guarda-chuva no embalador e fui recebida com um grito furioso.

— Katerina Dalton! Sua branquela tratante!

Samanta irrompeu de um dos corredores apenas para me apanhar pela manga da capa de chuva e arrastar com ela para o fundo dos títulos promocionais da Penguim. Mal consegui sorrir para uma senhora que ajustou os óculos para tentar entender o que estava acontecendo e tenho certeza de que derrubei uma pilha de destaques quando minhas galochas bateram em algo no caminho.

— Eu confesso! Juro que confesso! — ria alto até ser posta numa das poltronas de leitura no canto direito da loja e receber o indicador de Sam bem no alto da testa.

— Vai contando tudo — ela vinha com aquele sotaque italiano de filme mafioso — Espero que seja bom porque eu fiquei te esperando por meia hora pra tomar aquele chocolate quente cremoso. Você sabe o quanto um chocolate quente daqueles fica realmente cremoso quando começa a esfriar? É quase como tomar uma barra de chocolate dentro do copo, Branquela!

Dava pra perceber como Sam estava tentando não rir, mas ela adorava falar daquele jeito rouco como se tivesse saído de uma reunião com o próprio Corleone.

— Fui abduzida por alienígenas.

— Ah, fala sério Kate. Você consegue inventar algo melhor do que isso — depois de empurrar alguns livros de uma mesinha, Sam se sentou perto com um sorriso extremamente curioso. Acomodou os peitos dentro da blusa justa coberta por um cardigã verde, cruzou as pernas roliças e me deu total atenção.

— Lex me disse que mandou você embora pra casa e por um acaso, adiantou que tinha dois caras querendo te levar pra tomar um café, danadinha. Mas agora você precisa me esclarecer de que ele pirou quando descreveu um desses caras como aquele nariz empinado das quartas...

— Bem... — revirei os olhos.

— Oh. Meu. Deus.

— Não foi ele que me convidou, foi o irmão dele. O outro cara. Você o conheceu, o ruivinho que estava passando uma pilha de livros pela pré venda. Falando pelos cotovelos, se lembra?

— Lucas? Lucky? Luke! Isso, o menino hiperativo cheio de sardas. Irmão daquela raiz de alcaçuz ambulante? Pobre criança. — Sam soltou um suspiro longamente dolorido, até convencia de que estava mesmo ressentida por Luke ser familiar de Próspero.

— Ele me convidou para tomar um chá porque estava convencido de que eu precisava relaxar ao invés de continuar trabalhando. Claro que eu tentei negar, até pedi sua ajuda, mas você não veio ao meu auxílio com sua armadura prateada!

A gargalhada de Samantha me fez rir também, era contagiante e quando conseguiu recuperar um pouco do próprio fôlego, empurrou os cabelos trançados para trás.

— Então era disso que aquele “Help” tratava? Você tem que aprender a ser mais específica, Kate. Precisamos criar um código pra momentos de aperto como esse. Mas agora me conta como foi o tal chá? Você morreu de tédio, aposto.

A memória da cafeteria Red Velvet e daquele café, ou melhor, chá dividido com os dois improváveis irmãos, me causou um calafrio inesperado. Minhas reações em lembrar o Carma, de como aqueles olhos frios tinham desejado secretamente me matar com um garfo de bolo, não criavam o tipo de sensação que eu esperava.

Claro que eu tinha minhas próprias expectativas com relação as minhas sensações comuns. Um cara detestável e ranzinza como Próspero não poderia me causar um calafrio como aquele em lembrar seu sotaque carregado declamando Shakespeare, mas tinha por obrigação me girar o estômago como se tivesse comido um sanduiche de queijo feito há dois dias e estive prestes a vomitar. Mas a ânsia não veio e antes que pudesse abrir a boca pra descrever todos os defeitos que aquele homem tinha, apanhei Sam rindo da minha cara.

— Que foi?

— Você precisava se ver num espelho — ela continuava rindo enquanto arrumava os livros sobre a mesinha outra vez.

— Por quê? Tem alguma coisa na minha cara?

— Tem sim. Você estava vagando dentro da sua cabeça oca, muda como uma porta e mordendo a boca assim — ela mordia o lábio inferior e se levantava, batendo a mão no topo da minha cabeça pra derrubar o capuz da capa de chuva. – Agora vamos trabalhar que na hora do almoço eu quero saber tudo dessa história. Cada detalhezinho, entendeu?

Quando Samantha diz que quer saber todos os detalhes, até os minúsculos sobre qualquer coisa, saiba que ela fala muito sério. Mesmo separadas por aquele número conhecido de prateleiras e expositores, bastava um minuto de calmaria para Sam simplesmente brotar ao meu lado com aquele sorriso curioso, enchendo de perguntas sobre todos os como, onde e porquês possíveis.

Esperava que na hora do almoço o assunto já tivesse terminado, mas não foi bem assim.

Descemos a Quinta em busca de um restaurante chinês que Lex costumava indicar sempre que se precisava de uma comida boa e rápida — além de muito barata — tropeçando em turistas e uma profusão comum de pessoas pelas calçadas largas, todos bem animados com o fato de ser uma sexta-feira rumando para o final. Quero dizer, todos menos eu.

— Então eles te deixaram na porta de casa e Bruce Campbell estava lá? — Sam falava com a mão tampando a boca para não cuspir uma dúzia de farelos dos biscoitos cracker que petiscava.

— Estava. O mais engraçado nisso tudo é que eles se conhecem. Pensa nisso, Sam. Qual a probabilidade do meu futuro-ex-noivo conhecer exatamente o meu Carma?

— Destino — Sam alfinetou.

— Maldição do Universo.

— Ou uma baita coincidência. Acaso. Mundo pequeno. Minha vó sempre dizia que o mundo é como uma cidade pequena, basta você arrotar fora da janela que alguém sempre vai estar vendo.

— Ah, que nojo Sam!

— É a mais pura verdade.

Entramos no restaurante apertado entre dois magazines e garimpamos duas banquetas junto do balcão. Um chinês antipático jogou o cardápio na nossa frente e nem precisamos ler, faríamos o nosso pedido tradicional de comida chinesa: yakissoba. Era assim que medíamos a capacidade de um restaurante oriental, pedindo sempre o mesmo prato e avaliando o sabor. Era difícil ludibriar o nosso paladar apurado.

— E foi aí que o ruivinho te convidou pro tal concerto? — Samantha não desistia do assunto.

— Foi antes, no café. Eu já te contei toda essa parte, lembra? Eles ficaram se encarando na frente de casa, prontos para uma luta livre e no final Bruce disse que me levaria para ver a sinfonia esta noite. Fim da história.

— Eu adoraria ver alguém socar a fuça do seu Carma, Kate... O que diacho é uma galinha Kung Pao? — apontava o nome do prato no cardápio, rindo e saindo do assunto.

Embora o lugar fosse feio, velho e com aspecto de sujo, Lex estava certo. Era o melhor yakissoba que tínhamos provado desde que começamos com nossas avaliações de comida chinesa. Sam precisou pedir a galinha Kung Pao e por pouco não conseguiu comer toda aquela generosa porção de frango. Na saída ganhamos nossos tradicionais biscoitos da sorte e apanhamos nossos guarda-chuvas, pois um chuvisqueiro não dava tréguas.

Voltamos para a Barnes & Noble com um sorriso no rosto. A temperatura dentro da loja estava perfeita e bem longe daquela água toda que ia tornando a cidade cada vez mais fria e pronta para receber o inverno. Tudo indicava que a tarde seguiria tranquila e seria um dia de trabalho rotineiro, mas porque eu nunca me surpreendo com as coisas que acontecem comigo?

Lena era uma garota ruiva que cuidava da sessão infantil entre as estantes 12 e 22. Na verdade ela não era ruiva como Luke, com aqueles cabelos enferrujados, mas aquela cor radiante tinha saído de uma daquelas caixinhas de tinta de farmácia e pelo menos uma vez por mês ela chegava ao trabalho com as orelhas manchadas de vermelho. Era fácil trombar com ela nos vestiários, sempre ansiosa para sair e fumar um cigarro de menta enquanto sua companheira de setor entretinha as crianças com o horário de leitura.

Estranhei quando a cabeça vermelha de Lena apontou no corredor do estoque logo atrás de mim, coberta por uma bandana verde com bolinhas brancas que a deixava estranhamente parecida com uma atendente do Starbucks. Ela limpou as mãos no avental de trabalho, acomodou o crachá e pigarreou.

— Katerina? Oi, posso falar com você? — ela ainda esfregava as mãos nervosamente e não posso mentir que aquele gesto deixava a garota com um olhar psicótico.

— Claro, Lena. Posso te ajudar?

— Eu vim te dizer que se você precisar de qualquer ajuda, de alguém pra cobrir a sua área por algum tempo para você resolver seus problemas particulares, eu posso ficar lá pra você. Não é nenhum sacrifício, sabe? Eu também gosto muito de literatura inglesa e entendo uma coisa ou outra, posso realmente te ajudar.

Quando ela começou aquela conversa eu estava sorrindo. No final daquela enxurrada de informação sem nexo e completamente estranha a minha boca fazia um arco tão comprido quanto minhas sobrancelhas, e eu poderia jurar que Lena estava prestes a me convidar para o “Clube–secreto-das–atendentes–unidas”.

— Desculpa... Não estou entendendo, Lena — a tentativa de sorrisinho voltou pra minha boca, um desastre completo.

— Bom... — tive um péssimo pressentimento sobre a pausa dela e o modo com que ela enrolou uma mecha dos cabelos no indicador — Ontem você saiu correndo e sabe, do meu setor eu consigo ver bem as suas prateleiras e achei que estava resolvendo algumas coisas com aqueles dois clientes. O cara alto e o menino ruivo.

— Eram apenas clientes, Lena. O homem que você viu...

— Foi o cara que te salvou do bandido, eu sei! — Lena abriu um sorriso tão grande que só então notei que ela usava aparelho por trás daqueles lábios finos (e ela realmente precisava deles!).

— Sim, era ele, mas isso não tem nada a ver com...

— Ele está lá no seu setor de novo, sabia? Perguntou por você.

Como é que é?

As mãozinhas de Lena sumiram no tecido do avental e eu estava com a boca aberta na minha melhor expressão abobalhada.

— É por isso que eu vim te dizer que se você precisar sair por qualquer motivo, pode contar comigo — ela cochichou e finalizou com uma piscadinha quase íntima.

— Ah... - foi o som que saiu da minha boca.

— Temos que ser unidas, Katerina.

Num pulo Lena apanhou minhas mãos e me encarou com olhos sérios. Aquilo era tão surreal quanto ficar observando um daqueles quadros com o icônico Tio Sam apontando para o seu nariz com um bordão de “O país precisa de você”.

— O.K.

Foi meu melhor balbucio e ela ficou satisfeita, soltando as minhas mãos e apontando para a porta do estoque, gesticulando uma frase qualquer que eu nem entendi. Tinha muito barulho na minha cabeça pra compartilhar daquele momento mágico entre mim e a atendente da área infantil que certamente lia muitos livros do gênero.

Aquele homem estava na loja... O Carma que perguntou por mim. Próspero estava no meu setor usando seu casaco randômico das sextas-feiras e citando o meu nome em vão. Eu tinha que ir até lá.

Na verdade estava abrindo a porta do depósito e sentindo o ar bom do climatizador da loja quando a verdade me bateu na cara. Era tão claro, como não havia pensado nisso antes? Ele deveria estar ali para desmarcar aquele concerto, com certeza se desculpar pela loucura do irmão mais novo e - se os bons ventos soprassem por aquelas portas — nunca mais voltar na livraria por vergonha da atitude impensada do ruivinho.

Estava convencida de que não havia outra desculpa para Próspero voltar na Barnes & Noble pelo terceiro dia consequente, nem mesmo se houvesse uma liquidação fantástica dos livros do setor Inglês. Ajeitei meu avental, o crachá, o cabelo (que ainda não sei por que arrumei), apanhei minha pilha de reposições e rumei por entre as prateleiras de eletrônicos e os expositores de celular na direção certa das minhas amadas estantes de livros.

Samantha estava pendurada num dos corredores e tentou gesticular de um jeito engraçado, puxando a ponta do nariz para cima e apontando as minhas prateleiras, apenas alguns metros para o lado. Mas Sam estava atrasada, eu já sabia o que o destino estava aprontando pra mim e que o “nariz-empinado” me aguardava.

E lá estava ele, com toda sua pompa e nobreza, observando os livros dos autores listados na letra H até o M. Sua altura impunha respeito e os ares da Europa pareciam impregnados naqueles olhos indiferentes que liam as lombadas sem precisar virar a cabeça. Eu sempre entortava a cabeça para enxergar qualquer coisa nas prateleiras.

Fiquei parada a alguns passos dele, apertando os livros contra o peito e analisando aquele homem tão misterioso e ranzinza. Seus dedos tamborilavam e se esticavam como de costume, sempre parecendo ansioso pela busca que fazia entre os livros, a boca mordida no canto, a sobrancelha vagamente erguida. Não estava usando tweed, nem Oxford, mas um tecido grosso e misto de um casaco longo e aberto, escuro e que parecia bem quente. Como se eu me importasse se ele morresse subitamente de uma pneumonia cavalgante e rara, diagnosticada em fase terminal.

Passei pelas costas dele com mais alguns passos e bati os livros com força na ilha de atendimento, apenas para chamar sua atenção. Missão completa.

— Olá, Senhorita Dalton — consultou com o canto dos olhos como se minha chegada não fosse nem um pouco surpreendente pra ele.

— Senhor D’Valois — imaginei quando começaríamos a fazer as mesuras vitorianas; vocês sabem, se curvar e toda aquela parafernália que se vê em filmes de época.

— Estava a sua espera, como deve saber.

— Estava? — tentei parecer surpresa.

Até então estava tranquila, empilhando os livros que vieram do estoque como se meu trabalho continuasse basicamente alheio à presença do Carma bem atrás de mim. Mas bastou a minha pergunta irônica para ele contornar o pequeno balcão e encontrar seus olhos com os meus, intimidador, apanhando alguns panfletos com indicações de obras sobre arte.

— Precisa de alguma coisa?

— Não exatamente — ele coçou o queixo.

— Então se não se importa, vou continuar com o que estava fazendo, está bem? Se o senhor precisar de ajuda, pode me chamar.

— Fique à vontade, senhorita Dalton.

Direi uma coisa: eu tentei. Tentei continuar agindo normalmente enquanto aquele presunçoso inglês me observava trabalhar.

Braços cruzados, calça social bem passada (e com vincos. Deus sabe o quanto é difícil passar um vinco!), sapatos limpos em que possivelmente meu rosto ficaria refletido se olhasse bem para eles. Ele estava em silêncio, uma quietude tão longa e tão incômoda que me peguei pensando no que estaria acontecendo dentro daquela cabeça. O que diabos estaria maquinando por tanto tempo? Já fazia um minuto que ele só observava.

— Seu silêncio está me perturbando.

— O silêncio é uma benção — ele obviamente retrucou.

— Qual o problema? O senhor não disse uma palavra conexa desde que chegou. Quer alguma coisa? Posso ajudar? Sei lá, estou ficando sem opções.

— Estas galochas — apontou para minhas botas de borracha e suas sobrancelhas estavam claramente franzidas, as duas, numa expressão de desgosto.

— Qual o problema com elas?

— São horríveis. Como autorizam sua entrada com isso?

— Oh, desculpe se ofendem o seu gosto pessoal. Pra mim elas parecem ótimas. — bati os calcanhares como se estivesse usando as sapatilhas de Dorothy, mas nenhuma bruxa boazinha apareceu pra me levar pra casa. Azar.

— Ótimas? Talvez sejam se você frequentar o jardim da infância. Mas para uma mulher da sua idade, senhorita Dalton, são simplesmente inaceitáveis.

— É mesmo? — cruzei os braços, sentindo que estava prestes a herdar aquela veia saltada na testa como minha mãe possuía em suas crises nervosas. — Não me lembro de ter pedido conselho algum sobre meus sapatos, senhor D’Valois.

— Não foi um conselho, foi uma observação. E se tivesse um mínimo de bom senso, saberia assumir que estou incomensuravelmente correto.

Com os papéis em mãos, ele moveu aquela sobrancelha irritante antes de me deixar sozinha no corredor. Era um xeque-mate. Próspero parecia conhecer exatamente o momento de deixar o palco, sempre com a palavra final sobre qualquer assunto que se dignava a ter comigo. Não tinha como ele ser um pouco menos irritante?

Porém uma coisa me incomodou mais dolorosamente do que o pensamento de que alguém tinha a capacidade de odiar minhas galochas: as palavras de Samantha, alguns dias atrás:

“Kate querida, quando você achar um cara que realmente goste de você, ele vai odiar aquelas galochas feias.”

Céus, eu não merecia. Não ele! E aquilo não era uma observação carinhosa de alguém que se importa com seu bem estar – e estilo – acima de tudo. Era uma alfinetada clássica, quase digna de um personagem Byroniano prestes a me humilhar publicamente pela minha confortável escolha para trabalhar em um dia de chuva.

Eu não podia deixar aquilo passar tão facilmente.

— Senhor D’Valois! — disparei atrás dele pelo corredor, quase curvada como um cartum soltando fumacinhas pelas narinas. Ao contrário é claro, do porte tranquilamente firme e sem hesitação com que o Carma caminhava entre as prateleiras lendo seus panfletos.

— Sim, senhorita Dalton — ele sequer parou pra me atender. Maldito.

— Eu estou muito enganada ou o senhor disse que estava esperando por mim e depois, sem aviso algum, saiu andando como se não tivesse dito absolutamente nada?

— Mas eu disse algo. Sobre suas galochas horripilantes, senhorita Dalton. Está sofrendo de perda de memória recente?

— Não, — tive que encurtar o passo e desviar de alguns clientes para acompanha-lo — Mas se o senhor estava esperando por mim, era por um motivo que não envolvia as minhas galochas que, aliás, o senhor sequer conhecia até hoje.

— Graças às boas musas — suspirou num revirar de olhos.

— Então, posso considerar que existe outro motivo para o senhor estar na livraria em uma sexta-feira, concorda?

Sabia que questionar a ida dele até a loja traria alguma reação, como no dia anterior com toda a conversa sobre blazers e horários para compra. E bingo! Lá estava.

Próspero parou de dar seus largos passos e se deu ao imenso trabalho de virar o rosto na minha direção. Agora eu era digna da atenção dele e nos desafiamos em silêncio, embora eu estivesse bem mais preocupada em não parecer sem fôlego de ficar perseguindo-o pelos corredores. Sua sobrancelha deu o tom de inicio do nosso debate.

— Sua atitude, senhorita Dalton, me leva a crer que a minha presença neste estabelecimento só será tolerada no dia e horário que a senhorita considerar mais adequado. E com o agravante de que só poderei usar as roupas que forem do seu consentimento também. Correto?

— Corretíssimo. Todas as quartas, às duas e quarenta e cinco da tarde, o casaco de tweed e caminhando diretamente para a prateleira número 36, senhor D’Valois.

— Caso contrário...

— Em caso contrário o senhor estará completamente deslocado e não poderá ser atendido por mim, o que também significa que ninguém mais, em toda esta belíssima loja, irá atendê-lo com o conhecimento necessário para as suas compras. Veja o simples exemplo...

Num gesto, tirei os panfletos das mãos dele e deixei bem na altura de seus olhos, apontando para o título na capa.

— Este é um catálogo de títulos voltados para as artes plásticas. Não tem absolutamente nada com literatura Inglesa, muito menos com Keats ou Shakespeare. Ou seja, o senhor está apanhando coisas incomuns por que está fugindo da lógica das suas visitas na loja. Consegue acompanhar a minha teoria do caos, senhor D’Valois?

Próspero ficou em silêncio e não havia sinal nenhum de sua sobrancelha aterradora ou do grau de altíssimo desejo em me matar com qualquer objeto perfurante no alcance de suas mãos. Por um momento imaginei que ele estava prestes a dar as costas e ir embora, resignado a minha tentativa de irritá-lo, mas ele ergueu os ombros para dar um longo suspiro e fechar os olhos, passando os dedos pelos cabelos loiros escuros.

— Para começar, senhorita Dalton, meu sobrenome é Valois, não D’Valois. Coisa que certamente não aprendeu imitando a dicção falha do Senhor Campbell. Em segunda instância, como pode prever se não gostaria de adquirir um exemplar de artes plásticas? — arrancou o panfleto das minhas mãos com tanta rapidez que tive que ficar com a boca um pouco aberta. Era um insulto.

— Minha dicção não tem nada a ver com o senhor Campbell, senhor D’... Senhor Valois! E conhecendo o seu gosto, baseado em todas as suas compras há bastante tempo, eu sei que comprar um exemplar de artes plásticas está completamente fora de questão.

— Então, não bastando suas exigências para a minha permanência nesta loja, ainda devo comprar apenas exemplares que sigam o estrito gosto que a senhorita me atribuiu? Isso é um ultraje sem tamanho, senhorita Dalton! Sem contar seu gosto adquirido por vigiar as minhas compras, minhas roupas e minha rotina.

Próspero esticou o indicador na minha direção e ao invés de me fazer recuar, só arrancou um revoltado resfolego da minha parte. Eu poderia pular no pescoço dele a qualquer momento, sem titubear. Imagino a cena toda, as prateleiras derrubadas, os livros arremessados, o começo da terceira guerra mundial.

Faltava apenas uma faísca para a minha irritação com a simples presença dele se tornar uma tocha digna das olimpíadas, quando uma voz veio pelo corredor. Primeiro era um riso, mas foi ficando mais alta até que brotou logo atrás de Próspero como uma mancha cor de ferrugem.

— Pelo jeito vocês já se cumprimentaram, né? — aquele emaranhado de cabelos ruivos surgiu num pulinho por trás dos ombros do Carma. O sorriso largo e exagerado de Luke era tão bem vindo quanto um socorro das Nações Unidas.

— Oi Kate! — acenou.

— Oi Luke — retribuí.

— Viemos trazer os seus convites. Mas aposto que o Leo já te disse isso, não é?

Achei graça na forma com que Luke contornou o irmão mais velho, consultando-o só com o canto dos olhos, prontíssimo para qualquer movimento em falso do Carma. Então apanhou as minhas mãos e as beijou como um verdadeiro cavalheiro, causando aquele revirar de olhos que já fazia parte do “pacote insuportável” de Próspero.

— Não, ninguém me avisou nada. – cutuquei.

— Verdade? — o ruivinho olhou para o mais velho e só ganhou um erguer de ombros — Tudo bem, eu vim te salvar das garras do meu terrível irmão malvado. En gard, Leo!

Luke tirou o panfleto das mãos de Próspero e enrolou-o como um tubo, batendo nos braços do irmão como se estivesse realmente duelando com ele. Mas ao contrário de sua animação, o Carma apenas cruzou os braços, retirando seus olhos frios de mim para revirá-los num muxoxo.

— Vamos, Leo! Eu sei que você faz melhor do que isso! — Luke bateu nele mais algumas vezes, fazendo sons animados de uma espada, rindo e me fazendo rir baixinho. Então quando estocou o ombro do irmão pela terceira vez, a reação de Próspero foi mais ligeira do que qualquer um de nós esperávamos.

Seu pulso girou perfeitamente e apanhou o tubo de papel, retirando-o das mãos de Luke e apontando diretamente para entre seus olhos. O garoto estacou no mesmo instante, como se os panfletos fossem realmente uma espada prestes a passar por seu crânio. As risadas pararam e o corredor ficou silencioso demais, ou era essa a minha impressão.

Touché, Lucas.

Ficamos todos suspensos naquele instante que não durou muito, pois Luke começou a rir sem parar, abraçando o irmão e chacoalhando-o pelos ombros.

— Muito bom, Leo! Você não está tão enferrujado assim, nem parece que seu pulso estava aberto até ontem!

O Carma já havia baixado o panfleto de Artes e agora escutava todos os elogios do espevitado Lucas com um silêncio obscuro, observando um ponto qualquer que ficava um pouco para cima do meu ombro. Tive até que consultar se não havia nada digno de mais alguma crítica nele, mas estava tudo no exato lugar.

— Os convites estão com você? — Luke bateu as mãos pelos bolsos do casaco do mais velho, tentando em vão fazê-lo dar um sorriso ou coisa parecida. Alguém devia avisar o menino de que o irmão dele era um crápula cujo coração devia ficar estocado dentro de uma caixa de gelo.

— Estão com Collins.

— E onde o velho Collins se enfiou? — num suspiro, o ruivinho passou a olhar pelos lados como se a tal pessoa fosse brotar do nada, surgir de um portal espaço-tempo. Nada satisfeito em não encontrar nada, Luke apanhou minha mão e deu seu mais largo sorriso acompanhado com os olhos de filhotinho. Golpe baixo.

— Me ajuda a encontrar o Collins, Kate? Ele está com os seus ingressos.

— Ah... Eu...

— Oras, Lucas. A senhorita Dalton está trabalhando. Collins disse que ia estacionar, não deve demorar em encontrar uma livraria deste tamanho — o mais velho ironizou, tornando a ajeitar o panfleto em suas mãos.

Luke começou a resmungar com o irmão, enumerando todas as boas razões para fundar um grupo de busca e resgate atrás do tal Collins, mas não levou menos de um minuto para os irmãos serem interrompidos por um senhor que apareceu dentre as prateleiras de best-sellers.

Era um tipo muito simpático, grisalho e de barba cerrada, olhos pequenos e óculos equilibrados na ponta de um nariz redondo. Era fácil de ver que se tratava de uma pessoa confiável, pelo jeito dele andar até aqueles dois e respirar fundo, nem precisando abrir a boca para sua presença ser notada.

— Collins! — Luke o abraçou e rapidamente veio puxando o homem até a minha frente — Essa é Kate, a donzela que Leo salvou outro dia. Kate, esse é o Collins.

O homem não foi discreto em me olhar de cima até embaixo e fazer um biquinho com os lábios. Parecia indeciso se me achava um caso perdido ou um achado, mas acabou esticando a mão para me cumprimentar já que não se decidia. Acho que caso perdido sempre caberia bem em mim.

— É um prazer conhecê-la. Collins. Mordomo, tutor, motorista, cozinheiro, bibliotecário e babá nas horas vagas.

— Minha nossa — ri.

— Ele é o nosso faz tudo. Quase uma mãe — Luke dava tapinhas no ombro de Collins, deslocando as gotas de água que estavam no casaco dele.

Com um sorriso tranquilo, Collins apalpou o bolso interno do casaco fechado e abriu dois botões para alcançar o que estava guardado lá. Esticou pra mim dois retângulos de papel brilhante repleto de letrinhas, os ingressos para o concerto daquela noite.

— Aqui estão, senhorita. Perdão pela demora.

— Demora nenhuma — fui educada, mesmo controlando a vontade interna de sair correndo e gritando pelo corredor e desejando que os ingressos se transformassem magicamente em barras de chocolate meio amargo, que seriam muito mais bem aproveitadas naquele instante.

— Agora, se os dois senhores já finalizaram seus negócios, ainda temos muito a fazer para cumprir o cronograma do dia. Foi um prazer, senhorita Kate.

Collins fez um meneio respeitoso que parecia saltar de alguma página perdida dos romances de Austen e com o sorriso macio, gesticulou para os irmãos Valois que já era tempo de irem embora. Tive que conter um suspiro muito aliviado quando Luke acenou entusiasticamente pela partida e ansiedade em me ver no concerto da noite – pena que eu não estava tão entusiasmada assim.

Bastou o trio sumir pelos corredores e Sam já estava ali, debruçada sobre o balcão de pré-atendimento, o sorriso quase amarrado nas orelhas, aguardando ansiosa por saber detalhes e mais detalhes do que havia terminado de ocorrer. Claro que eu poupei alguns (principalmente sobre as galochas) e aguentei Samantha rindo da minha cara pelo restante da tarde. Ela estava se deliciando com cada tentativa minha de transformar o Carma em um monstro gigante destruidor de cidades, uma espécie de Godzilla britânico, mal humorado e arrasador de sextas-feiras.

— Então, Branquela. Já arrumou algo chique pra vestir essa noite? Precisa arrasar Nova Iorque, baby! – Sam sacudia os ombros enquanto vestia um casaco na porta da livraria no final do expediente.

— Só queria arrasar Nova Iorque diretamente da minha cama, embaixo das minhas cobertas e acompanhada apenas pelo Tabby — resmunguei, abrindo o guarda-chuva pra me proteger daquela chuvinha chata e fria. Sim, minhas crises de mau humor tornam até um chuvisqueiro perfeito em uma maldição dos deuses.

— Para de reclamar, Kate. Você vai se divertir e ter boa companhia, mesmo que seja estranho ter a companhia de um futuro-ex-noivo — gargalhava — Qualquer coisa você me liga e eu te resgato dos vilões pra gente comer um cachorro quente e falar mal do mundo, certo?

— Meu herói! – abraçava Sam pelos ombros e dava um beijo na sua bochecha rechonchuda, fazendo-a rir ainda mais antes de fazer sinal para um taxi.

— Não se empolga, Branquela, guarda seu amor pro senhor Campbell — Sam fazia um biquinho apenas para irritar e logo estava saltando para dentro do taxi que tinha acabado de encostar uma das rodas no meio fio — Tô falando sério. Se o clima ficar ruim, você tem meu número. Me liga, tá?

— Obrigada, Sam.

— Divirta-se!

Fiquei parada na calçada na frente da livraria, tomando um pouco do chuvisqueiro por não ter preso a trava do guarda-chuva e olhando as luzes dos faróis de todos aqueles carros da hora do rush nova iorquino, se misturando e embaçando com a água fria da estação. Suspirei longamente e dei meia volta, pegando o caminho do meu porão e assoviando discretamente um trechinho de Dancing in the Rain. Era muito bom ter uma amiga pra confiar.

******

Adria estava dando voltas ao meu redor como uma fada madrinha doida por quase vinte e três minutos corridos. Seus lábios comprimidos em alguns alfinetes coloridos, os olhos apertados atrás das lentes de seus óculos de trabalho – como ela adorava dizer, para não soar que estava ficando velha e sua visão já não era digna de uma ave de rapina – analisavam cada aspecto milimétrico (e invisível) do vestido que tinha comprado para mim naquela tarde.

Eu nunca comprei vestidos. Todos os que estavam empilhados em uma caixa no fundo do guarda roupa eram presentes das minhas tias, costuras da minha avó ou regalos que Adria trazia de suas incursões de moda pelo mundo. Raramente os pobres exemplares viam a luz do sol ou o luar, alguns nunca saíram de seus plásticos originais e ainda tinham as etiquetas de fábrica.

O modelo que Adria havia escolhido para a ocasião era (graças a todos os deuses do sagrado panteão oculto dos estilistas) discreto e delicado. Nada comparado ao meu vestido azul marinho sem graça e que eu costumava escolher para qualquer saída que envolvesse trajes melhores. Havia um gracioso tom de rosa pálido e camadas pela saia e nos ombros, junto de uma echarpe que particularmente, adoraria morder pela semelhança com uma fatia de doce.

Os sapatos não eram altos, foi uma exigência pessoal. Não bastava minha insegurança com toda a programação, envolver saltos finos e minha ligeira falta de coordenação seria um risco para a humanidade presente no evento. Mantemos então um modelo confortável e com um discreto salto para “alongar minhas pernas brancas”, um peep toe perfeito; mais uma vez de acordo com as convicções da minha irmã.

Cuidamos de uma maquiagem leve, exigi que meus cabelos ficassem soltos – muito obrigada – e voilá. Tudo levava a crer que estava pronta. Katerina Dalton estava prestes a arrasar Nova Iorque e tentar voltar viva para contar sua experiência.

Já eram pontualmente sete e meia quando meu celular tocou.

— Ok, estou saindo — foi só o que anunciei para o senhor Campbell quando ele disse que estava parado diante do portão do porão da Sra. Fighbright. Meu estômago revirou quando apanhei a pequena bolsa de mão onde estavam os convites.

— Você está linda, princesa. Divirta-se, dê alguns beijos para variar e use camisinha.

— Adria! Trata-se do meu futuro-ex-noivo, esqueceu?

— Oras, você precisa curtir a vida um pouco, pelo amor de Deus! E se esse homem lindo, educado e rico te der bola... Uma noite só não vai arrancar pedaço, Kate.

Estava prestes a discursar para Adria todas as minhas 230 razões para não me deixar envolver pelo sorriso lindo e olhos brilhantes do Sr. Campbell, mas recebi um tapa na bunda e um olhar para me apressar enquanto ela abria a porta.

E lá estava ele, Bruce Campbell, parado na calçada e apoiado no carro, o rosto vagamente iluminado pelo visor do celular. Ele ergueu o olhar na minha direção quando subi os degraus, três para ser bem exata, e abriu aquele sorriso que seria capaz de fazer os joelhos de moças mais fracas irem ao chão.

— Katerina, você está linda — ele afastou os cabelos e guardou o celular antes de estender a mão para mim e me fazer dar uma volta em sua frente. Juro que aceitei fazer isso com a felicidade de uma garotinha.

— Obrigada, Sr. Campbell.

Bruce abriu a porta do carro, um modelo esporte que eu nem me arrisco a dizer qual era, dando a volta rapidamente para entrar e dar a partida. O interior todo cheirava a carro novo e couro, algo muito bom e que se misturava com o cheiro do perfume dele, amadeirado. Tudo lembrava um daqueles comerciais de bebidas caras: o homem de terno, camisa social impecável e sorriso perfeito, dirigindo pela cidade iluminada em direção a um concerto chique. Claro que a garota deslocada e que mal sabia como manter as pernas juntas dentro do vestido, estava em desacordo com o clima. Viva eu.

Durante o percurso conversamos simplesmente sobre o que havia acontecido no dia do assalto na livraria. Bruce estava indignado com o risco que corri, visivelmente preocupado com o meu bem estar e acho que gargalhou por quase dois minutos quando narrei o ato heroico do Sr. Valois com seu livro de Shakespeare. E isso me incomodou um pouco.

— D’Valois, salvando uma donzela em apuros... Pela madrugada, isso é uma história e tanto, Katerina.

— Então, vocês se conhecem.

— Sim, há um bom tempo. D’Valois estudou comigo grande parte do colégio e nossas famílias sempre se encontravam no verão. Meus pais fizeram questão de que eu tivesse uma educação europeia e por isso nossos caminhos se cruzaram. Tivemos algumas... Desavenças antes e durante a faculdade, imaturidades da época.

— Acho que ele ainda guarda algum rancor de você — Acho. Mas só porque ele estava prestes a pular na sua jugular, opinião minha, lógico.

— D’Valois é um homem rancoroso. Brilhante, inteligente, mas parou de viver a própria vida e agora se dedica apenas aos seus estudos e ao genial Lucas. Quando encontrava um violino...

— Luke?

— Não, D’Valois em pessoa. Era o melhor violinista que já vi. Transformava Shakespeare em notas e conseguia encantar qualquer um que o escutava. Tinha um futuro brilhante pela frente, mas uma cirurgia restringiu o movimento de seus dedos, então agora ele vive o próprio sonho através do irmão. É triste.

Não consegui fazer nenhum comentário. Sentia uma espinha de peixe atravessada na garganta agora que compreendia um pouco do humor tempestuoso de Próspero e posso dizer que aquele amargor no topo da minha língua era uma parcela de culpa. Aquilo explicava o tamborilar de seus dedos quando ele se concentrava na frente das prateleiras da livraria, procurando pelos títulos que desejava — definitivamente uma mania de violinista: nunca parar com os dedos quietos.

Embora Bruce tenha mudado de assunto enquanto esperávamos o trânsito andar para chegar ao teatro, não me sentia mais a vontade dentro do carro. Um aperto no peito me acompanhava, um sentimento ruim. Só podia torcer para que não fosse uma premonição do que me aguardava naquela noite.

Paramos o carro diante das portas do teatro e o manobrista aceitou as chaves logo que fechamos as portas. Bruce ainda se demorou a pegar os tickets do estacionamento e me deu algum tempo de observar todas aquelas pessoas bem vestidas e sorridentes que subiam as escadas para as portas de vidro do lugar.

Subi dois degraus, admirando as estátuas de mármore que seguravam os pilares ao lado das portas, iluminadas de dourado lado a lado com os cartazes que anunciavam a apresentação daquela noite, com um aviso de que todos os ingressos estavam vendidos. Estava imaginando o quanto aquele ambiente era suntuoso, como aquelas pessoas pareciam acostumadas a eventos daquele, sabendo exatamente como se portar enquanto eu estava fazendo jus ao meu apelido de “ratinha”, perdida naquela multidão.

Conseguia escutar a voz de Bruce vindo de uma conversa entre dois senhores que acabavam de deixar suas chaves com outro manobrista e busquei-o com o olhar. Começava a me sentir bem sozinha ali e mal notava as pessoas que quase chegavam a esbarrar em mim.

— Devo salientar que servir de obstáculo em uma escadaria, não lhe cai bem, senhorita Dalton.

Sim, senhoras e senhores, meu estômago fez um número de trapézio completo com direito a salto mortal sem rede de proteção quando escutou aquele sotaque britânico perto da minha orelha esquerda. E muito por pouco meu reflexo não foi atacar o dito homem com a minha bolsa. Na verdade, meu reflexo foi bem pior quanto me virei e encontrei os olhos frios daquele nariz empinado me fitando tão de perto.

— Próspero!

Oh, Deus. Eu devia ter usado a bolsa. Onde eu estava com a cabeça de chama-lo assim?

— “Próspero?” — não preciso dizer como as sobrancelhas dele se ergueram, não é? Dá pra imaginar. Rápido, Katerina, diga que não tomou seus remédios hoje. Diga que toma remédios!

— Lhe cabe muito bem.

Não! Os remédios, Katerina. Faça cara de desentendida. Finja um desmaio, rápido!

— A senhorita abusa da sorte — ele cruzou os braços parecendo sério, mas jurava ter visto uma ponta de sorriso no canto daquela boca — Próspero... Como em “A Tempestade”?

— Exatamente – foi a minha vez de cruzar os braços, erguendo o queixo para parecer mais alta, já que de perto o Carma era mais alto do que eu havia notado. Ou seria aquele blazer preto e todo o resto do traje impecavelmente social que o deixava maior, como uma espécie de soberba salientada? Não dava pra saber.

— E de onde, se posso perguntar, surgiu esse súbito renome?

— O senhor gosta de livros e de Shakespeare. Sei que é uma coisa muito óbvia, mas me pareceu perfeito para o senhor. Exatamente como o personagem apegado aos livros na obra.

— Não imaginei que a senhorita gostasse de Shakespeare. Não imaginei que gostasse de nada, talvez apenas de suas terríveis botas de plástico amarelo – ele precisava alfinetar, estava quase desacreditando que seria uma conversa comum.

— Galochas. Borracha. Elas são lindas. Se não fosse pela intervenção familiar, eu certamente estaria as usando hoje, Sr. Valois.

— Talvez alguma deidade esquecida, protetora da música e dos bens culturais, tenha intercedido para que não cometesse essa atrocidade, senhorita Dalton.

Uma voz se ergueu no meio das pessoas e o Carma virou na sua direção, para Colins, que estava no topo das escadas e indicava discretamente a direção de seu relógio de pulso. O mordomo estava certo, já estava na hora de entrar e não de ficarmos naquela disputa infantil sobre as minhas botas e menos ainda dando explicações sobre um apelido. Tinha que agradecer Colins pelo salvamento perfeito.

— Agora eu devo ir, espero que aproveite o concerto, senhorita Dalton.

— Obrigada, senhor Valois — deveria fazer uma mesura agora?

Fiquei observando ele subir as escadas, na verdade apenas mais quatro degraus até olhar sobre o ombro e diretamente para mim.

— Vou encontrar um renome que lhe caiba, senhorita Dalton. Quem sabe as musas me dão alguma inspiração durante a apresentação?

— Oh, eu espero que elas se ocupem apenas da música.

— Veremos.

Próspero sumiu junto de Colins pelas portas do teatro e eu estava rindo quando Bruce tocou meu ombro, colocando o echarpe sobre mim.

— Você esqueceu no carro.

— Obrigada — dei um largo sorriso, mas sabia que metade dele ainda era por conta daquela mera discussão com o Carma. Agora ele sabia que era o “Próspero” e mesmo que tenha sentido um desespero absurdo no primeiro momento, tinha algo quente e agradável em meu peito depois de vê-lo, como se aquele quase sorriso dele fosse um alívio após o assunto sombrio dentro do carro.

Subimos as escadas junto do fluxo de espectadores e Bruce seguiu comentando sobre quem eram os homens que havia encontrado logo na chegada, pessoas influentes que eu nunca reconheceria se estivesse sozinha. Ele cumprimentava diversas pessoas conforme entrávamos no saguão do teatro, homens e mulheres que abriam sorrisos amplos — e claramente artificiais — a cada metro quadrado. Pelo visto o Sr. Campbell era um homem solteiro bem disputado nas rodas sociais e eu conseguia sentir o olhar das pessoas me julgando por estar com ele.

Quase podia escutar a voz de Samantha dizendo “Tirem o olho, ele está comigo!”. Sim, Sam saberia bem como se portar num lugar daqueles.

Entregamos os convites para um atendente nas enormes portas de madeira que levavam para o interior do teatro e fomos encaminhados para um corredor na lateral, coberto por carpete vermelho, paredes de madeira e luz dourada. Nossas cadeiras ficavam em uma frisa particular do lado direito do palco, um lugar bem privilegiado.

Sentamos diante do balcão e dali conseguia ver o teatro todo, a movimentação dos espectadores que arrumavam seus lugares, a afinação da orquestra. Minha expressão deixava bem claro o encantamento que tinha por lugares assim, pelo ambiente todo, por aquela mágica que antecede o espetáculo.

— Feliz? — Bruce sorriu, estendendo o programa da apresentação para mim.

— Sim. Faz muitos anos que não venho a um teatro, ainda mais como esse.

— Lucas foi muito gentil em te dar lugares tão bons. Temos que agradecer depois do concerto. O que acha? Podemos ir até os bastidores para cumprimenta-lo e dizer obrigado.

— Podemos ir? — sim, meus olhos estavam brilhando como uma formiga diante de um cubo de açúcar. Oh, Bruce, você sabe como mimar uma garota que gosta de teatros. Ponto pra você.

— Não vejo motivo para não irmos. Talvez eu consiga isso no intervalo.

Ele apanhou a minha mão e beijou o topo dos dedos, como um cavalheiro legítimo, daqueles que se pode comprar em romances da Harlequim e sempre estão nas capas com o peitoral a mostra.

— Tentando me conquistar, Sr. Campbell? — Ponto pra mim. Ele é o inimigo!

— Talvez.

Nossos olhares ficaram presos por alguns segundos e isso me causou um comichão, um arrepio na nuca. Aqueles olhos cristalinos, o sorriso, o modo com que os cabelos dele estavam perfeitamente penteados para trás e combinavam tão bem em emoldurar o rosto anguloso e a barba bem feita. Definitivamente ficar em um lugar a sós com Bruce era um perigo para a saúde.

O ruído da porta da frisa foi o que quebrou aquele olhar suspenso entre nós (graças aos deuses...) e mesmo que não houvesse nenhum ruído, apenas o comentário que se seguiu já seria o suficiente pra que eu desejasse me atirar pelo balcão e morrer, com um golpe de sorte, no carpete vermelho do teatro. Trágico, mas cabia bem na minha situação.

— Estamos atrapalhando?

O disparate do tom da voz de Próspero, sua chegada suave que pareceu imensamente brusca pra mim, tornou a mexer com meu estômago. Ainda bem que não tinha comido nada antes de sair de casa. Era a vez dele ostentar um sorriso sarcástico, quase dolorido de se assistir, enquanto trocava um olhar com Bruce e se acomodava em uma das cadeiras, na realidade exatamente a que estava atrás de mim; acompanhado por Colins.

— Senhorita Dalton, senhor Campbell — o mordomo cumprimentou antes de se sentar e começar a ler a programação como se aquele clima tenso simplesmente não existisse. Colins, conte-me seu segredo!

Será que só eu conseguia sentir que aqueles dois homens poderiam se matar em questão de segundos se ficassem respirando o mesmo ar daquela frisa?

— D’Valois. Que prazer vê-lo novamente. E Colins, há quanto tempo não vejo você...

— Cinco anos, Sr. Campbell — Colins esmiuçou os olhos atrás de seus óculos, mas sorriu. Talvez sua posição não permitisse que expressasse nada do que pensava. Ou pelo menos era isso que eu imaginava naquele momento.

— Os lugares estão satisfatórios? — quase acreditava que o Carma estava preocupado com a nossa satisfação, mas ao me virar para vê-lo encontrei seus olhos mais entretidos em ler o programa da noite do que em continuar o diálogo.

— São maravilhosos, Sr. Valois. Eu gostaria de agradecer o seu irmão pelo convite. Se não for incômodo — isso, eu tinha de me portar no meio daqueles dois.

— Eu estava dizendo para Katerina que a levarei até os bastidores para cumprimentar o seu irmão após o concerto. Fazemos questão.

— É mesmo? — Próspero ergueu brevemente os olhos por trás da programação e consultou primeiro a minha cara de perdida e depois o rosto confiante de Bruce.

Não precisamos responder. Uma campainha de aviso para o início da apresentação servia como um sino de ringue, avisando o final do round. Respirei nitidamente aliviada quando as luzes começaram a diminuir e pude olhar somente para frente.

O maestro subiu ao palco e todos aplaudiram, os músicos agradeceram a ovação e permaneceram em pé enquanto o nome de Lucas Valois D’Orleans (caramba, que nome pomposo) era anunciado ao palco como um dos solistas convidados daquela noite.

Foi como uma brisa fresca poder ver aqueles cabelos enferrujados de Luke entrando pelo palco, seu sorriso confiante, todo arrumado dentro de um terno bem cortado e uma gravata verde que saltava no conjunto todo. Ele trazia um violino avermelhado lustroso e agradeceu aos aplausos antes de se posicionar e aguardar o maestro reger o início da peça.

A orquestra se movimentou e em um segundo, esqueci que estava ao lado do meu noivo prometido ou exatamente a frente do meu cliente Carma. A música tomou meus pensamentos nos quarenta minutos que passaram voando. Luke tocava o violino como um anjo, levando os meus pensamentos e claramente de toda a plateia a lugares que apenas a música poderia levar.

Ás vezes podia vê-lo esticar os olhos para a frisa e sorrir. Não sei se as luzes do palco permitiam que ele nos visse, mas eu sorria de volta, feito uma fã babona que acaba de descobrir um novo ídolo.

Foi dado então um pequeno sinal para um intervalo de alguns minutos. A apresentação contaria com mais um solista na segunda parte, uma pianista que teve o nome muito aplaudido por todos quando brevemente anunciada. Claro que eu não fazia a mínima ideia de quem se tratava, mas bati palmas da mesma forma.

As luzes se acenderam e respirei fundo, ainda extasiada antes de sentir a mão de Bruce apanhando a minha.

— Maravilhoso, não foi?

— Sim, Lucas tocou maravilhosamente. O senhor deve estar muito orgulhoso, senhor... Onde ele está? —Me virei para trás e não encontrei Próspero ou Colins ali para escutar o meu elogio. Nem tinha visto quando ele saiu da frisa, nem escutado as portas. Fiquei com uma pontada de decepção, confesso.

— Não ligue pra isso. Vamos aproveitar o intervalo e tentar as credenciais para os bastidores, está bem?

Concordei como se estivesse ligada no automático e saímos da frisa para o corredor, Bruce sempre cumprimentando algumas pessoas e sorrindo enquanto eu tentava sorrir de uma forma que não parecesse recém-saída de um filme de terror. Definitivamente sofria de grave fobia social.

Descemos as escadarias para um amplo saguão com uma Bomboniere, exatamente ao lado da Chapelaria, onde o absurdamente social Sr. Campbell passou a erguer o rosto para encontrar alguém no meio de tantas pessoas que estavam ali esticando as pernas e conversando.

— Acho que sei exatamente quem poderá conseguir essa passagem para nós, Katerina. Você se importa de me aguardar por aqui? Eu não demoro nada.

— Claro, fique tranquilo.

Acomodei minha echarpe sobre os ombros e sozinha no meio daqueles pequenos grupos de pessoas de classe média alta de Nova Iorque, me senti deslocada mais uma vez. Minha salvação: a vitrine colorida da Bomboniere.

Puxei um dos bancos altos e estofados que ficavam virados para o balcão e me senti ali como um naufrago que se apega a um pedaço de madeira no oceano. Ao menos estaria sã e salva dos olhares e gente estranha até Bruce retornar triunfante com as credenciais. Era óbvio que ele conseguiria facilmente, afinal ele era bem popular – sem contar que derrubaria um rinoceronte com aquele sorriso vendedor de pasta de dente.

Decidi então passar meus longos minutos longe de meu futuro-ex-noivo com algo mais edificante: café. A Bomboniere exalava o perfume de expresso fresco e vinha diretamente de uma daquelas máquinas baristas complicadas e repletas de vapor, bem perto do espelho ao fundo do balcão. Fiz logo o meu pedido.

A xícara chegou ao exato segundo em que uma mulher se sentou do meu lado. Não prestei atenção logo de começo, só via que estava usando um vestido longo e tinha cabelos castanhos presos.

— Seu vestido é lindo — ela lançou depois de algum tempo, precisamente após seu pedido ser atendido. Chocolate quente.

Olhei para ela esperando encontrar algum rosto conhecido, mas nunca tinha cruzado com aquela estranha antes. Era um tipo fácil de lembrar, o corpo curvilíneo, cabelos num castanho escuro e olhos penetrantes. O vestido era aveludado, um azul sóbrio e chique, acompanhado apenas por um par de brincos de pérolas.

— Obrigada.

— Burberry, não é? Faz muito tempo que não vejo nessa cor. Rosa ficou ótimo em você.

— Burberry? — estávamos falando de frutas agora?

— A grife do seu vestido.

Ah, que falta Adria estava fazendo naquele momento. Nem quis olhar meu reflexo no espelho do balcão para não certificar a minha cara vermelha ou aquele sentimento de humilhação. Sabe o nível de importância que grifes fazem na minha vida? Zero.

— Você é a namorada do Sr. Campbell?

Quase cuspi o café e precisei de um guardanapo.

— Namorada? Não, não... Somos conhecidos. Nossas famílias estão completando uma fusão de posses — resumindo, querida: estavam casando os filhos para ficarem mais ricos. Uma coisa linda.

— Oh. Desculpe. Pensei que fosse a nova namorada. Ouvi comentários de que ele já estava noivo, imaginei que fosse você.

Ela se levantou do banco e ajeitou o vestido antes de pegar a xícara e bebericar um pouco. Não deixei de perceber que ela deixava o dedo mindinho curvado, quase outra asa da xícara, apontada para fora.

— São amigos.

— Claro. Ele está me acompanhando ao concerto. Recebi os ingressos diretamente do solista da noite — eu tinha um motivo para me gabar, não é?

— Lucas? Você conhece Lucas D’Orleans? — ela pareceu surpresa. Na verdade, surpresa demais pro meu gosto.

— Sim...

— Qual é mesmo o seu nome? Eu não me lembro de você ter dito.

Seria porque você também não se apresentou?

— Katerina Dalton.

— Dalton. É um prazer, sou...

— Beatrice!

Nós duas olhamos para o mesmo ponto no amontoado de pessoas quando a voz de Bruce sobressaiu ao barulho todo. Lá estava ele com aquele sorriso largo, os braços estendidos e uma expressão surpresa ao se aproximar de nós e abraçar a moça com uma intimidade enorme.

— Que bom ver você. Como está linda! Seus pais estão no concerto?

— Bruce, seu galanteador... Não, eu estou sozinha essa noite. Que milagre trouxe você para Nova Iorque nesta época do ano?

— Katerina — Bruce esticou o rosto na minha direção e juro que quase entrei na xícara de café.

Beatrice pareceu mais surpresa agora do que quando citei o nome de Luke. Na verdade ela pareceu uma réplica feminina daquele olhar predador sedento por jugulares que Próspero apresentou naquela noite em frente ao porão da Sra. Fighbright.

— Eu já tive o prazer de conhecer a senhorita Dalton.

— É mesmo? Então me deixe apresentar você — Bruce apoiou a mão sobre o ombro da moça e com a outra me trouxe para perto deles. Quase derramei o café quando desci da cadeira. — Kate, essa é Beatrice Fontaine, uma velha amiga.

— É um prazer.

Sabe quando você está assistindo um filme e a câmera fica naquele slowmotion interminável, mostrando a cena por ângulos que seus olhos mortais jamais veriam de outra forma? Foi assim que me senti.

Beatrice desenhou um sorriso naquela boca carnuda e pintada de vermelho, se curvando para me dar um beijo no rosto como mandava o figurino (mesmo que alguma coisa dentro de mim dissesse claramente que ela não me via como uma futura amiguinha) e num segundo, sua mão com a xícara bateu contra a minha, derramando todo o chocolate e café, manchando nitidamente o meu vestido.

Dei um pulo para trás quando as xícaras caíram no piso e atraíram a atenção de todos que estavam por perto. As bebidas estavam quentes, por isso puxei o tecido do vestido para não me queimar, descosturando um pedaço do babado no ombro.

— Meu vestido! — Beatrice gritou ofendida, puxando a longa saia — Você está louca, Dalton? Isso está quente!

— Foi... Um acidente. Sua mão bateu na minha... — foi o que consegui explicar, apanhando o pote de guardanapos para tentar me limpar e ajudar Beatrice.

— Calma, não foi de propósito — escutei Bruce apaziguar, mas não foi comigo que ele se preocupou. O Sr. Campbell ficou ocupado rapidamente em tirar os guardanapos de papel e passar por todos os lugares em que possivelmente havia respingos na pele da quase soluçante senhorita Fontaine.

Será que ele não enxergou que todo o meu colo e parte das camadas do vestido estavam tingidos de leite e café? Não percebeu os lugares em que a minha pele ficou vermelha pelo calor? Bom, ele não viu e a opressão dos olhares ao redor, combinados com a total e completa humilhação da minha imagem não fizeram maravilhas para o meu raciocínio.

Apanhei minha bolsa sobre o balcão, deixei as moedas para pagar o café e passei entre Bruce e Beatrice de uma forma que fosse rude o suficiente para confirmar o que ela quisesse pensar sobre mim e para alertar o Sr. Campbell de que sua acompanhante estava saindo.

— Kate, espera — ele tentou segurar meu braço, mas desviei. Sentia meus olhos em brasa, meu estômago tão revirado de nervoso que nem sentia se alguma queimadura tinha sido séria. Bruce era decididamente o inimigo e eu uma tremenda idiota em ter confiado nele.

Apertei o passo e abaixei a cabeça para passar no meio daquelas pessoas. Escutei a campainha tocar duas vezes para anunciar o fim do intervalo e o recomeço do concerto, mas nem me importava mais. Queria sair do teatro, pegar meu celular para gritar pelo socorro de Samantha e ir chorando para casa, mesmo que ela me xingasse por não ter revidado a cena dramática da senhorita Fontaine.

Faltavam poucos metros para as escadarias de saída, os mesmos largos degraus que acabavam nas portas de vidro. Estava contando meus passos, sentindo meu coração batendo dolorido na garganta, querendo mais do que tudo me livrar daquela situação constrangedora. A saída estava fechada como de praxe depois que o espetáculo havia começado e fui rapidamente erguendo a mão para alcançar o braço de um dos seguranças, sem enxergar nada que não fosse a luz dos carros do lado de fora — a redenção que me esperava depois daquela noite imbecil.

Por favor, me deixem sair... — resmunguei comigo mesma, prestes a chorar.

— Senhorita Dalton?

Um toque pesado no meu ombro me fez girar diretamente na direção contrária da saída e encontrar mais uma vez o rosto daquele inglês detestável. Próspero parecia perplexo, sua mão tão firme em mim que não sentia como se fosse capaz de me livrar dele como havia feito com Bruce. Ele carregava dois casacos não outro braço e mesmo assim, pela primeira vez, não quis fugir dele ou ataca-lo mesmo que parecesse fácil de fazê-lo.

Estava claro para mim o quê ele estava pensando enquanto me via daquela forma, toda suja e cheirando a café, o ombro do vestido deixando tudo torto sobre mim, meus olhos prontos a chorar. Só esperava que ele começasse com alguma frase sarcástica ou me atacasse falando qualquer coisa sobre minhas companhias ou a escolha do meu vestido.

— O que fizeram com você?

Suspirei, sem esperar que ele completasse o raciocínio com qualquer acidez de sua parte.

— De todas as pessoas no mundo, o senhor é uma das que eu menos devo explicações hoje, Sr. Valois. Por favor, eu não preciso disso para completar a minha noite, eu só preciso ir embora...

As lágrimas fugiram do meu controle e tentei contê-las de qualquer jeito. No mesmo instante a mão de Próspero foi substituída por algo mais leve e quente: um dos casacos que estava com ele, jogado sobre os meus ombros. Depois ele segurou a lapela do tecido e ajeitou sobre mim. Tinha um perfume bom e masculino, algo que se soltou do corte reto de lã que chegava quase nos meus joelhos.

— Está chovendo lá fora. Se for sair pela rua como uma maluca, pelo menos se cubra, senhorita Dalton.

Fiquei muda sem nem mesmo conseguir terminar de chorar. Aqueles olhos azuis frios, o modo das sobrancelhas dele estarem quietas e nada arqueadas como de costume, já serviam de surpresa.

— Eu não posso aceitar.

— Pode sim. E vai aceitar isso também — colocando a mão no bolso do terno, o Carma retirou dois pequenos cartões cor de laranja berrante, duas credenciais para os bastidores da filarmônica.

— Por que está fazendo isso?

— Porque de alguma forma que eu ainda não compreendo, senhorita Dalton, meu irmão gosta particularmente da sua companhia. E eu sei que ele vai gostar de vê-la.

— Mesmo nesse estado, Sr. Valois?

— Particularmente nesse estado.

Olhei para os cartões que agora estavam comigo e estiquei um deles para Próspero. Foi aí que a sobrancelha fatídica atacou novamente, olhando para mim.

— O senhor se importa de me levar até lá? Juro que não vou tomar seu tempo, só quero agradecer Luke pelo convite e parabenizar pela apresentação.

Ele respirou fundo e seus olhos reviraram de mim até as portas de vidro; com certeza seu cérebro aproveitava os segundos para pesar os prós e contras, além de tentar me tolerar por mais alguns minutos. Acabou balançando a cabeça em uma discreta afirmação e indicando o caminho a sua frente com a mão que antes estava no meu ombro.

Eu poderia ter feito qualquer comentário inteligente naquela hora ou alfinetado o Carma para seguirmos o caminho todo até os camarins trocando farpas como começava a parecer um costume, mas não tinha ânimo para tanto e ele pareceu respeitar isso. Foi o silêncio que acompanhou aquela caminhada até as portas que indicavam a entrada dos bastidores, pouco abaixo dos corredores das frisas.

Senti que minha bolsa de mão estava vibrando, meu celular silencioso que chamava e chamava, mas não queria atender. Nem mesmo olhar quem estava chamando.

Próspero falou com um funcionário na porta dos bastidores e estendi as credenciais para ele, vendo as portas se abrirem com boa vontade. E realmente toda aquela imagem quase mágica de um bastidor de teatro, surgiu magicamente diante de mim. Toda a parafernália técnica, pessoas de um lado ao outro, técnicos de som, cabos, caixas; deixavam-me imaginando o quanto deveria ser divertida aquela vida de entreter os outros.

Nos encaminhamos por um corredor muito limpo, até uma série de portas identificadas. Almoxarifados, maquiagem, armários, som... Tudo isso até alcançar as portas com pequenas estrelas decoradas ao lado do suporte para o nome do artista que estivesse se apresentando. A primeira era logicamente do maestro da filarmônica e estava aberta, permitindo que eu espiasse a quantidade absurda de buquês de flores e agrados que estavam ali. E antes que ficasse encantada demais pensando nos rumos da minha vida se eu tivesse o mínimo dom para música, fui chamada para a realidade pelo sotaque britânico a minha frente.

— São flores, senhorita Dalton. Creio que conheça flores, não?

— Algumas. Não especialmente.

Ele fez um gesto, já que seria inútil tentarmos falar naquele instante, pois todo o som da orquestra preencheu o lugar em uma acústica tão absurda e absoluta que era capaz de me sentir enfiada no meio da apresentação. Tudo que o Carma fez foi apontar para cima, exatamente onde estava o palco naquele instante e depois para a porta diretamente ao seu lado, com o nome de Luke ao lado da estrela.

Mal entramos no camarim e fui abraçada com força por aquela tempestade de cabelos ruivos. Luke já estava sem gravata e tinha deixado os sapatos de lado, sua boca lambuzada de chocolate — provavelmente a caixa foi um presente de algum admirador ou patrocinador — e obviamente que sua animação efusiva era muito clara.

— Que bom te ver, Kate! Você gostou? Achou que toquei muito bem?

— Foi magnífico, Luke. Estupendo! E obrigada pelo convite e os lugares — Rimos juntos, enquanto o Carma se limitou a ficar encostado na porta, olhando para fora como se fosse alguma espécie de segurança.

Lucas passou a enumerar todos os pequenos erros que notou na apresentação (e que nem se eu nascesse de novo seria capaz de notar), a contar sobre suas sensações no palco e como seus joelhos estavam tremendo de entusiasmo. Sempre que podia ele pegava as minhas mãos e oferecia seus bombons ao leite. Foi em uma dessas alegres aproximações que ele aquietou e seu rosto todo ficou vagamente sério quando puxou um pouco do casaco dos meus ombros e analisou o estrago no meu vestido.

— Kate, o que aconteceu?

— Nada importante. Sou um pouco desastrada, só isso — tirei o casaco e minha echarpe, aproveitando para olhar a bagunça que tinha me tornado, refletida no espelho do camarim. Me lembrava da cena em que as irmãs malvadas da Cinderela rasgam seu vestido de baile. Estava bem pior do que isso.

— Foi o Leo que fez isso com você? — o ruivinho bufou, lançando um olhar gélido e irritado para o mais velho, que apenas devolveu um erguer da violenta sobrancelha direita como uma resposta silenciosa.

— Não, seu irmão não teve nada com isso. Foi apenas um acidente na Bomboniere.

— E você se machucou, Kate? Olha só, sua pele está vermelha. Será que se queimou muito? Está doendo?

— Por Deus, Lucas, uma pergunta de cada vez. Ninguém consegue acompanhar sua linha de pensamento dessa forma — Próspero suspirou.

Pensei em me desculpar com eles e sair do camarim naquele momento, mas o celular voltou a tocar insistente dentro da bolsa. Tirei o aparelho de lá e conferi o número da chamada, um tipo de ligação privada que eu dificilmente recebia. Senti medo de atender e aquela louca do poço vir me sussurrar “Sete dias”.

Pedi licença para Luke e Próspero antes de atender e saí do camarim para o corredor, tampando o ouvido livre para conseguir escutar melhor a ligação no meio do som abafado da orquestra.

— Alô?

Katerina? Katerina, onde você está? Estou procurando por você em toda a parte! Você está bem? Está machucada? Pela madrugada, Kate... Diga onde você está.

Senti meu lábio estremecer quando a voz de Bruce ficou nitidamente preocupada na linha. Foi confuso sentir raiva dele e ao mesmo tempo esperar que ele surgisse de algum lugar montado num cavalo branco e empunhando uma espada (porque combinava para caramba com alguma coisa que o Sr. Campbell faria, não é?). Nada havia mudado entre nós. Ele ainda era o inimigo jurado da minha existência e o homem que estava barganhando a minha liberdade com meus pais, mas toda sua gentileza e sorrisos tinham causado uma ponta de confiança em mim. Senti as lágrimas voltando.

— Estou bem, não precisa se preocupar. Ainda estou no teatro.

Graças a Deus... Kate, me diga onde você está. Eu vou direto te encontrar.

— Não precisa se incomodar, eu vou pegar um taxi e ir para casa. Aproveite o restante da apresentação por mim, está bem?

De forma alguma. Eu te devo desculpas e vim para te acompanhar. Pelo menos me deixe te levar pra casa, Katerina.

Vacilei para responder e vi quando o Carma puxou Luke para dentro do camarim e fechou a porta, provavelmente depois do ruivinho ter feito algum movimento para interferir na minha conversa.

— Estou nos bastidores, Sr. Campbell. Vim agradecer Lucas pelos convites.

Estarei aí em cinco minutos, Katerina. Por favor, me espere.

Se me perguntarem qual era a minha real vontade naquele segundo em que murmurei um “Está bem” para Bruce Campbell no telefone, eu diria que minha cabeça estava oca. Deveria ter mandado ele para o inferno e ido para casa mesmo que com minhas próprias pernas embaixo daquela chuva torrencial. Mas é claro que a minha burrice envolvia coisas como dar uma segunda chance para o Sr. Campbell se desculpar propriamente pela tremenda merda que fez naquela noite.

Voltei para o camarim e bati na porta. Lucas abriu com um largo sorriso, sem esperar que eu dissesse nada sobre a minha conversa. Só pude sorrir de volta e abraça-lo apertado.

— Vim me despedir, Luke. Estou indo para casa.

— Já? Fique com a gente, Kate. Eu quero comemorar a apresentação e estou tentando convencer o Leo a me levar para jantar — óbvio que a expressão do Carma não deixava dúvidas quanto a sua imensa vontade de sair dali direto para um restaurante. Insira muito sarcasmo nessa frase.

— Eu estou suja, cheirando a café, cansada. Podemos combinar para outra hora?

— Leve o casaco — Próspero quase ordenou, apontando o blazer de lã que antes estava nos meus ombros e agora parecia bem acomodado no braço do sofá branco do camarim.

— Não precisa, o Sr. Campbell vai me deixar em casa.

— Bruce?— Luke suspirou com desgosto aparente quando cruzou os braços como um garotinho mimado se jogando no sofá — Vai trocar o nosso jantar por uma carona com Bruce Campbell?

— Lucas.

Próspero interviu a primeira vez.

— Ora, Leo, você sabe que eu estou certo. Kate não conhece Bruce como nós dois conhecemos e esse cara...

— Lucas — os dedos do Carma tamborilaram perto da perna, como eu já estava acostumada a notar nele em suas incursões na livraria. Em seguida apertou a testa, quando o tom de sua voz aumentou para advertir o mais novo.

— Ele nem se importou em ajuda-la! Olhe pra ela, Leo. Você acha mesmo que depois de tudo, Bruce teria a decência de...

— Lucas!

Lá estava, o Britanicus Raptores em ação.

Próspero bateu a mão aberta sobre a mesa de maquiagem, fazendo um barulho equivalente à irritação que estava estampada em seu rosto. Seus olhos faiscavam, e se eu alguma vez pensei que ele não poderia ter olhos mais gélidos, ali estava a minha prova de que era um pensamento totalmente equivocado.

Agora eu acreditava que aquele inglês nariz empinado poderia realmente acertar um soco bem dado no Sr. Campbell se sua educação permitisse.

O ruivinho respirou fundo, a explosão do mais velho não parecia novidade para ele. Um silêncio estranho pairou dentro do camarim até o som da orquestra terminar em uma ovação entusiasmada dos expectadores no teatro, indicando o final da apresentação.

Katerina? Katerina?

Olhamos na direção da porta e depois nos entreolhamos, o clima pesado ainda estava dentro do camarim. Todos sabiam que Bruce estava ali fora, procurando por mim e que entraria pela porta a qualquer momento. Tinha de evitar isso.

— Obrigada, Luke — fui até ele e beijei sua bochecha, mesmo que ele estivesse chateado e emburrado.

— Vou cobrar o jantar, viu? — ele mostrou a língua, retomando um pouco de sua habitual forma alegre.

— Pode cobrar. E obrigado pela credencial, Sr. Valois — pensei em acrescentar que Próspero havia sido meu herói improvável mais uma vez, mas não me pareceu sábio no momento.

Deixei aqueles dois irmãos ingleses no camarim e logo encontrei com Bruce no corredor. Ele parecia preocupado e aflito quando correu para pegar minhas mãos e finalmente olhar como eu estava.

— Minha nossa, Kate. Olhe para você. Porque não parou quando pedi para esperar? Procurei por você o resto da noite.

— O senhor me deixou completamente ensopada de café e chocolate quente para socorrer a sua amiga Beatrice! Queria que eu ficasse olhando? Que me debulhasse em lágrimas na frente de toda aquela gente?— tirei minhas mãos das dele e senti toda aquela humilhação voltando para a garganta. Mas ao invés de chorar, estava quase gritando.

— Eu sei, eu errei com você, Katerina. Me perdoe, eu tinha de socorrer uma de vocês por vez...

— Fui humilhada, destratada, diminuída e todos os outros sinônimos que não me passam na cabeça agora porque eu estou brava demais para lembrar, Sr. Campbell!

Bruce silenciou, olhando para mim com clara culpa em seu rosto.

— Não tenho uma desculpa para dar, Katerina. No momento só pensei em ajudar Beatrice por conta dos gritos, não tive tempo de olhar como você estava. Se eu tivesse visto... Por favor, me perdoe, Kate.

— Está tudo bem. O senhor socorreu Beatrice porque ela é uma antiga amiga e eu, sou apenas uma conhecida com quem a sua família pretendia casá-lo, não é?

— Não, Kate. Eu socorri Beatrice porque ela estava próxima de mim e a forma dela gritar me fez acreditar que estava machucada com a bebida quente, não atentei para você, nem vi como tudo caiu sobre você dessa forma... Você está machucada?

— Não.

— Você devia ter esperado. Tentei alcançar você, mas ninguém viu para onde você correu. Jamais deixaria que passasse por uma humilhação, Katerina. Eu a trouxe esta noite para ter uma experiência maravilhosa, não para isso.

— Mas foi isso que aconteceu. Agora, pode me levar para casa?

Ele aquiesceu silencioso. Tirou o casaco e me ofereceu, apoiando as mãos sobre meus ombros para me guiar dali por diante, como se aquilo fosse uma parcela do cuidado que ele gostaria de ter comigo.

Estranhamente, gritar com Bruce Campbell me deixou bem. Não sentia raiva dele, apenas uma reviravolta desagradável no estômago ao lembrar a cena que queria esquecer. Preferia acreditar que ele realmente não teve tempo ou agilidade suficiente para socorrer duas damas em apuros, mesmo com toda sua pompa de príncipe encantado.

Sim, eu preferia acreditar no lado bom das pessoas.

Sim, eu sou uma tremenda idiota.

Bruce me conduziu até o carro que já estava parado frente às escadarias do teatro, com a porta aberta por um dos manobristas que mal se podia enxergar dentro da capa de chuva. Aquela tempestade pesada caía aos cântaros e mesmo o casaco que Bruce colocou sobre os meus ombros ficou molhado na pequena corrida da escadaria até o automóvel.

Seguimos o fluxo do trânsito por algum tempo, uma toada lenta por uma Nova Iorque agitada e sofrendo de eterna insônia, uma cidade que nunca adormecia. Bruce ligou o rádio, procurando por alguma estação interessante, mas sua busca terminou em poucos minutos.

Ele fez alguns comentários sobre o restante do concerto — que eu realmente senti em ter perdido — sobre a beleza da música clássica e como ele também gostaria de ter assistido o restante na minha companhia. Várias vezes ele tornou a se desculpar e dizer que fazia questão de repor meu vestido perdido de alguma forma, mesmo eu negando todas às vezes de que aquilo não era necessário. Adria me mataria, era verdade, mas ainda tinha um pouco de orgulho.

O carro estacionou na frente da casa da senhora Fighbright lentamente, a visibilidade um pouco comprometida pelos vidros embaçados porque Bruce não queria ligar o aquecedor e me matar com um choque térmico quando saísse pela porta. Ficamos quietos por um pequeno momento, ele ainda sentindo o peso da culpa (ou eu esperava que fosse isso) e eu completamente sem jeito de simplesmente abrir a porta e sumir dali.

— Espero que não tenha sido uma noite de todo ruim, Kate.

— O que eu posso dizer? Estava maravilhoso, Sr. Campbell. Foi uma noite e tanto. — juro que suspirei, apenas para agregar um pouco de drama a minha interpretação ruim. Claro que a noite não foi completamente perdida, mas alguma coisa ainda incomodava meu estômago ao rever as cenas mentalmente.

— Sr. Campbell é como costumo chamar meu pai, Kate. Você sabe que pode me chamar de Bruce. Sei que ainda está chateada pelo acontecido da Bomboniere.

— Acontecido? Do que estamos falando? Não aconteceu nada, porque eu ficaria chateada? — Minha discrição ainda me surpreende.

Bruce sorriu e deixou um riso baixo, incrédulo diante da minha melhor interpretação de felicidade. Pequenas manchas coloriam seu rosto, sombras das gotas da chuva pesada que não dava arrego fora do carro e era divertido ver como escorriam da bochecha dele.

— Eu preciso descer — era melhor anunciar, já que as nuvens não fariam uma pausa apenas porque Katerina Dalton estava prestes a sair do carro.

— Ainda está chovendo muito. Não é melhor esperar um pouco mais?

Passei a mão pelo vidro embaçado e consegui enxergar a luz do porão, aquela promessa de um lugar quentinho e confortável que podia chamar de lar. Estava tão perto e ao mesmo tempo tão longe.

— Tudo bem, é apenas uma corrida rápida até o portão. Vou sobreviver.

— Então fique com o casaco. Você me devolve depois.

— Isso me cheira a mais uma desculpa para conseguir a minha companhia, Sr. Campbell — sorri, mesmo estando desconfiada.

— Desculpa? Não, é um motivo muito claro, Katerina. Eu quero te ver mais uma vez e pagar a minha dívida desse fiasco e aquela lasanha. Sem intrometidos ou aparições, eu prometo.

— É mesmo?

— Tem a minha palavra.

Bruce se curvou para ajeitar a gola de seu casaco ao redor do meu pescoço e naquele espaço tão pequeno dentro do carro fechado, o ar pareceu rarefeito. Era culpa daquelas janelas fechadas e do frio que não permitia o ar condicionado ligado, mas no fundo eu sabia que aquele perfume amadeirado e o fator da proximidade ser enorme, eram mais culpados do que as portas do carro.

Tentei focalizar minha atenção no que os dedos dele faziam, deslizando para meu pescoço e entre meus cabelos, mas era inevitável, não consegui fugir daquele par de olhos tão azuis, cristalinos e sedutores.

Estava penteada? Como estava minha maquiagem? O batom ainda estava na minha boca? Aquilo não estava acontecendo, era impossível! Bruce Campbell era o inimigo e eu não podia…

Nossos narizes se tocaram, tudo tão lento, suave e filmado com perfeição na minha mente - eu me lembraria de cada detalhe! - o aroma de menta da respiração dele, o hálito morno e o arrepio que me fez tremer e fechar os olhos devagar, esperando por aquele toque final.

Um beijo… Oh, deus! Eu beijaria Bruce Campbell, meu inimigo jurado? Aquilo era inconcebível até mesmo para alguém com pouquíssima capacidade de reflexos rápidos, por exemplo: eu.

Seus lábios roçaram nos meus e minha respiração parou, meu coração estava suspenso sem bater naquela espera e quando voltasse a funcionar seria como um tambor, tinha certeza. Mas o tambor não veio, nem o beijo, nem o calor.

O que aconteceu foi uma batida no vidro que me assustou tanto que quase dei um pulo direto para o colo de Bruce, olhando para a janela logo atrás de mim, esperando enxergar um assaltante preparado para render o casalzinho surpreendido.

Como não respondemos ou movemos um músculo, a pessoa do lado de fora tornou a bater na janela. Não conseguia ver quem era através do vidro embaçado e da chuva grossa.

— Pela madrugada... — Bruce disparou, suspirando longamente ao se acomodar e abrir uma fresta do vidro. A chuva passou pela abertura, molhando o banco e meu vestido, mas não liguei. Estava com o coração batendo como aquele tambor que citei antes, não pelo quase beijo, mas pelo par de olhos frios que espiaram pelo vão da janela.

— Senhorita Dalton?

— Próspero? — quase gritei. O que ele estava fazendo ali?

— Quem é Próspero? — Bruce franziu a testa sem entender nada, apoiando o braço no volante para tentar enxergar pela janela. Acabou abrindo o vidro todo e revelando um senhor Valois completamente ensopado, vestido com aquele blazer preto e de olhos apertados pela água fria. — D’Valois?

— Campbell — aquilo era um cumprimento. Ou parecia.

Estava boquiaberta demais para conseguir digerir tanta informação. Num minuto estava prestes a beijar Bruce Campbell e no outro estava às voltas com um Carma parado no meio da rua, na chuva, sem motivo aparente.

— Por Deus, D’Valois. O que você está fazendo? Enlouqueceu? — Bruce começou a rir, afinal a situação de Próspero não era das melhores. Seu cabelo estava grudado na testa, desalinhado e escorrendo água pelo queixo como se toda a chuva transbordasse dele. Cheguei a sentir uma pontada de pena.

Sem responder ou dar atenção nenhuma para Bruce, o Carma estendeu o braço num movimento quase robótico (culpa do frio, eu aposto) e balançou diante da janela um tecido rosa que estava preso em seus dedos.

—- Sua echarpe. Você esqueceu, senhorita Dalton.

— O senhor está mesmo louco — desci do carro, usando o casaco de Bruce como um guarda-chuva improvisado pouco funcional — Veio até aqui só para isso?

— E para notifica-la, senhorita Dalton — ele falava alto para sua voz conseguir me atingir no meio do ruído da chuva nas calhas, no carro de Bruce, nos esgotos.

— Notificar de quê?

— Encontrei um renome que me soou perfeito, senhorita Dalton.

— É mesmo? E que renome pretende me dar, Sr. Valois?

— O melhor. Aquele que lhe cabe em descrição.

Tive de rir. Estávamos parados embaixo daquela tempestade, ensopados e trocando berros para nos comunicar, tudo por conta de uma echarpe rosa e um apelido?

— E que seria?

— “Megera”.


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