Orleans escrita por MarianaCamara


Capítulo 2
Capítulo 2 - Hero




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Não, não, não. Mil vezes não! Ou ao menos foi o que passou pela minha mente incontáveis vezes, tantas que poderiam ser rapidamente colocadas como o trânsito caótico de uma metrópole se fosse possível ver dentro da minha cabeça.

Mas o fato irrefutável disso tudo é que minha boca traiu cada e qualquer movimento do que se passou dentro do meu impotente e ridículo cérebro.

– Claro, pode ser.

– Ótimo. Vai ser um prazer ter companhia na cidade de qualquer forma. Acredito que conheça um pequeno café próximo do seu endereço. Hallow’s Barn.

– Sim.

– Ótimo. Te vejo daqui a pouco.

Caso o acontecido tenha ficado ligeiramente confuso, não perca sua calma. Vou explicar tudo aos poucos, pois assim quem sabe eu mesma me convença da idiotice que tinha acabado de cometer.

Bruce Campbell, herdeiro da família Campbell pelo meu conhecimento, me ligou no fim do domingo mais tenebroso do meu ano: meu aniversário. E caso tenha notado, não sou uma amante de parabenizações, confraternizações ou qualquer coisa que envolva bolos confeitados, chapéus ridículos ou músicas tradicionalistas. E isso inclui festas com quadrilha, casamentos e bailes.

O problema é que além de fazer uma ligação tarde da noite, ele ainda teve a clara e maravilhosa ideia de me convidar para um café. O convite tinha vários pontos negativos e o primeiro deles é que eu tinha um copo grande de Mochaccino que fazia parte do meu kit de aniversariante, trazido diretamente de algum dos milhares de Starbucks que existiam no caminho de qualquer lugar até a minha casa no porão da Sra. Fighbright. O segundo ponto é que eu não deveria, de forma alguma, confraternizar com o inimigo.

Bruce Campbell era definitivamente o inimigo.

A primeira coisa que fiz assim que desliguei o celular, foi enviar uma mensagem de texto para minha mãe. Algo agradável e que continha as palavras “doida”, “insana”, “endereço” e “telefone” na mesma frase. Depois voltei ao meu ritual de tomar um bom banho quente e me permiti esquecer tudo debaixo da ducha. Quem sabe no momento em que meu pé saísse do box uma mágica poderia acontecer e nada daquilo seria verdade?

Mas sejamos razoáveis. Eu havia aceitado aquele convite bobo para um café com o Sr. Campbell porque me sentia tremenda e terrivelmente sozinha. Mesmo com todos os meus problemas quanto a aniversários e parentescos, ainda desejava que miraculosamente alguém aparecesse com um bolo e meu nome escrito em glacê colorido e cafona, talvez até com algum erro de ortografia gritante ou aquelas flores de açúcar que ninguém quer comer.

Eu queria ser lembrada. Queria que em algum lugar embaixo daquela chuva torrencial de Nova Iorque, alguém notasse que o domingo está terminando e que aquele era meu dia. E o dia da Kate era especial demais para ser esquecido.

Mas da mesma forma que meu sonho de ter peitos era um tremendo fiasco, imaginar alguém tendo uma súbita epifania sobre mim, era pedir que a fada madrinha descesse dos céus para encantar alguma abóbora pelo caminho. Não ia acontecer.

Me resignei a vestir um jeans e um moletom com capuz dos Yankees com um par de galochas amarelas – que eu adorava usar, pentear os cabelos e apanhar meu guarda chuva transparente. Não estava linda, nem radiante. Mais parecia que tinha acabado de sobreviver a qualquer desastre natural ou coisa parecida. Mas se Bruce Campbell queria me conhecer, aquilo era o melhor que eu tinha para oferecer.

Não, eu não ia me oferecer. Longe disso.

Estava apenas sendo uma adulta razoável e aceitando um convite educado para conhecer um homem que ao que parece, tem a minha mão em casamento. Parecia romântico? Ele ia mudar de ideia assim que visse todo o meu cuidado e vaidade.

Fiz um cafuné no arredio Tabby, que correu logo pra baixo da cama e enchi meus bolsos com alguns trocados – não ia deixar o cara pagar pelo meu café, não é?

O Hallow’s Barn não era mesmo distante do porão da Sra. Fighbright. Apenas duas quadras e o lugarzinho aconchegante e que cheirava constantemente à torta de maçã e canela, já estava à vista. Com a chuva eles tinham recolhido as lindas mesinhas verdes que ficavam na calçada, mas era possível vê-las na varanda do primeiro andar, cobertas por uma lona branca descuidada e que balançava com o vento frio daquela noite.

Empurrei a porta da frente e um sininho anunciou que eu estava chegando. Deixei o guarda chuva em um canto atrás da porta e sorri para a garçonete do outro lado do balcão, sinalizando que ia me sentar em uma daquelas mesas.

Nunca havia notado que o Hallow’s funcionava 24 horas. Não sei se acho isso uma pena e choramingo por todas as vezes que minha madrugada poderia ter sido mais agradável em uma caminhada até o café ou se fico feliz por não ter me tornado uma viciada em altas doses de cafeína noite adentro. Acredito que um pouco dos dois.

Fiquei observando o balcão de vidro onde algumas delícias estavam expostas: bolo, alguns folhados quebradiços, sanduiches naturais e a linda torta de maçã, quase no final.

A garçonete se aproximou da mesa e deixou um cardápio. Era uma garota magrela e franzina que lembrava muito a mim mesma naquela idade. Os cabelos eram loiros em contrapartida, enfiados por baixo de um boné verde folha com o logotipo do Hallow’s. Ela parecia cansada, mas mesmo assim sorriu e tirou o bloco de anotações de dentro do avental.

– O que vai querer?

– Bom... Eu estou esperando alguém, não sei se deveria pedir pelo café antes dessa pessoa chegar. Não me parece muito educado, não é? – consultei a garota, tentando quebrar o gelo entre mim e ela. Não que isso fosse importante, mas estava tentando me apegar a qualquer breve deslize de demonstração humana.

– A senhora quem sabe.

– Senhora? Não, não. – tentei rir, mas tenho certeza de que fiz uma careta que faria uma criancinha sair correndo gritando pela mãe. – Senhorita.

– A senhorita é quem sabe.

– Ok... – revirei os olhos. Era melhor prestar atenção no cardápio e excluir terminantemente o meu diálogo para estabelecer contato. – Uma água com gás, por favor.

– Tá bem.

Foi a vez de a garota revirar os olhos e me contive em não mostrar a língua para ela. Sério, o que aqueles adolescentes tinham? Seria algum problema em toda a série lançada nos últimos anos? Alguém deveria reclamar com as montadoras e pedir um recall completo. O mundo agradeceria.

– Katerina?

Eu estava observando aquela garota trabalhar e meu pensamento estava tão focado na destruição em massa de pessoas abaixo dos 18 anos, que não notei a sutileza daquele tom de voz. Mas juro que demorei pra notar qualquer coisa depois que me virei para atender.

Lá estava ele, o Sr. Campbell.

Esperava por um homem completamente feito para um casamento arranjado. O tipo de cara barrigudo e com o peito peludo a mostra pelos botões da camisa, sapatos opacos e uma camisa amarrotada. Talvez careca ou com um cabelo tão ruim que o casamento fosse um ato desesperado de encontrar alguém que lhe fizesse um cafuné digno.

Mas a única coisa que se passou pelo meu cérebro após o comando “ficar boquiaberta”, foi que Bruce Campbell devia ter o mundo embaixo de seus pés. Por todos os bons antepassados creole... Alguém me belisque!

Ele sorriu timidamente – e definitivamente deviam proibi-lo de sorrir em público, pois ele ainda mataria alguma garota desavisada com aquilo – e estendeu a mão pra mim. Estava usando uma reles camisa azul amarrotada e jeans escuros, tênis de corrida, os cabelos castanhos empurrados para trás e molhados de chuva.

– Me perdoe, eu errei uma rua e para conseguir chegar aqui de novo – soltou um suspiro – o trânsito foi um sufoco com essa chuva.

– Tudo bem - respondi no automático e ainda balançando sua mão que apertava a minha.

– Você já pediu alguma coisa? – ele riu, nós rimos e afastamos as mãos.

– Uma água com gás. Eu não sabia o que pedir e a garçonete é uma simpatia. Oh, por favor, sente.

A cadeira fez um barulho alto naquele café vazio e isso fez Bruce sorrir de novo, passando uma das mãos pelo cabelo úmido. Puxou o cardápio para olhar as opções do Hallow’s e naquele momento constrangedor e silencioso entre nós, fiquei observando como seus olhos azuis perfeitamente claros como sua camisa, corriam pelas letras do menu.

– Pela madrugada! – ele riu, como se tivesse feito uma descoberta e se endireitou com uma discreta tosse de lado, voltando a esticar a mão para mim.

Quem em sã consciência ainda fala “pela madrugada” nos tempos de hoje?

– Olá, sou Bruce Campbell. – e devia adicionar que sim, usa “pela madrugada” como expressão.

– Katerina Dalton. – ri, apertando a mão dele novamente. Era morna e estava úmida como ele todo com aquela chuva. – Kate.

– É um prazer te conhecer, Kate.

Adoraria dizer o mesmo, mas não podia perder o foco. Aquele era o inimigo!

– Igualmente. – Merda, Kate! Ele é o inimigo!

– Espero que não tenha ficado zangada por sua mãe ter me dado seu telefone e endereço. Já faz meses que estou tentando falar com você, mas no meu último encontro com o seu pai, ele me disse que seu aniversário estava se aproximando e eu...

– Você tem se encontrado com meu pai?

– Negócios. Nossas indústrias estão negociando uma fusão.

– Oh. – Aquilo explicava muita coisa. Fundir indústrias e casar filhos. Que clichê.

– Você quer pedir alguma coisa? – Bruce mudou de assunto tão rápido quanto ergueu a mão para chamar a atenção da garçonete entediada.

– Um cappuccino.

– Um expresso e um cappuccino. – repetiu para a garçonete. – E uma fatia daquela torta.

– Duas fatias. – adicionei.

O silêncio voltou assim que a garota se afastou da mesa e era facílimo escutar o ruído das xicaras e da máquina de café funcionando atrás do balcão.

– Você sabe que eu não aceitei esse casamento doido, não é? – perguntei apenas para me certificar. Ele era lindo, mas isso não significava que ia estender a mão, esperar ele colocar uma aliança e sairmos pelo mundo procurando caminhos de tijolos amarelos. Estava fora de questão.

– Não esperava que aceitasse. Era óbvio que uma garota decidida e inteligente acharia isso tudo uma tremenda besteira. Tradicionalismos.

– Não acho que as tradições sejam uma besteira. Apenas uma besteira tentar me casar com um completo estranho. Sem querer ofender.

– Ofensa não recebida.

– Era meu aniversário. Ele te contou isso? – se Bruce e o Sr. Dalton eram amigos, com certeza ele deveria saber que meu pai usou o critério feliz de escolher uma data especial para me informar do noivado.

– Sim, ele me disse.

– Como ele achou que eu me sentiria? Feliz?

– Hm... Talvez. As mulheres costumavam gostar de casamentos.

– Quando elas querem se casar. Não um casamento arranjado como se eu fizesse parte de um maldito romance de Jane Austen. Céus, nem mesmo lá as mulheres casavam por arranjos!

– Casavam por dinheiro. – Cheque. Bruce tinha ganhado aquele set e eu tive de rir. Os cafés chegaram em seguida, acompanhados daquele aroma delicioso de canela que se desgrudava dos pedaços de torta fumegante.

– Eu não vou me casar por dinheiro. – achei relevante afirmar mais uma vez. Podia estar sem nenhuma perspectiva de um futuro sólido adiante, mas não me renderia a um casamento apenas por dinheiro ou uma herança de família besta. Não estava a venda.

– Você é daquelas garotas que acreditam em amor?

– Claro que sim. Amor, mas não finais felizes. Esses são apenas para as princesas da Disney e personagens de comédias românticas estreladas pela Julia Roberts, Sandra Bullock, Meg Ryan...

Meu comentário fez Bruce rir por trás da sua xícara de expresso fervente fazendo dois vincos adoráveis em suas bochechas.

– Katerina Dalton é uma mulher durona.

– Realista – adicionei quase enfiando o nariz dentro da caneca de cappuccino, ficando uma dúvida: ele estava rindo de mim ou para mim? – E com uma opinião bem simples. Mulheres não são objetos, senhor Campbell.

– Decerto não são. Mas na época de nossos antepassados rígidos e levados por outros costumes, uma mulher possuía outra visão do mundo. Um casamento arranjado era um favor para seu futuro e o da sua família, não uma prisão perpétua.

– Eu não diria prisão perpétua.

– É mesmo?

– Claro que não. Cadeira elétrica, talvez.

Ele voltou a rir e sua atenção divagou um pouco com a torta e uma generosa quantidade de chantilly que a garçonete tinha espalhado sobre o pedaço. Depois olhou para mim e meus poucos modos de me lambuzar com a crosta crocante da torta antes de comer o recheio.

– O que foi? – ele estava me encarando, era melhor perguntar.

– Você é exatamente como seu pai a descreveu. Mas ele não mencionou as botas de borracha amarela. – indicou minhas galochas com o queixo. – São charmosas.

Bruce Campbell achava minhas galochas amarelas charmosas. Será que eu tinha perdido algum detalhe importante do manual de “como não ficar atraente para nenhum homem na face da terra”? Tenho minhas dúvidas.

– O Sr. Dalton deve ter perdido bastante tempo falando sobre mim pelo que dá pra perceber...

– Oh, não. Ele apenas disse: Minha filha é uma boneca por fora, mas uma fera por dentro, Bruce. Tem ideais mais fortes do que as paredes de um cofre.

Meu pai sempre soube com quem estava lidando.

Dei um sorriso qualquer, vitorioso, já que o senhor Campbell não chegaria a lugar nenhum tentando me elogiar. Ele era educado, gentil e tomava o expresso com uma expressão de quem está realmente acostumado com altas doses de café, mas não era o bastante.

Demorou apenas mais algumas garfadas dos pedaços de maçã para que a minha curiosidade falasse bem mais alto do que toda aquela crise de adulta responsável e admirada por um homem tão bonito como Bruce.

–Eu preciso perguntar. Por que esse convite pra um café no meio da noite? Por que eu acho bem incomum alguém se deslocar até Nova Iorque apenas para encontrar uma mulher com galochas amarelas no meio de uma tempestade.

– É seu aniversário.

– Era. – Consultei o relógio na parede do Hallow’s e estava correta; o domingo já tinha terminado e aquela era uma madrugada chuvosa de segunda-feira.

–Ainda estava valendo quando te liguei. E além do mais eu estava na cidade e minha curiosidade sobre a minha possível noiva arranjada estava me corroendo.

Não consegui evitar erguer as sobrancelhas. Só não sei dizer se era de surpresa ou de dúvida. Um mistura das duas coisas, provavelmente. Se Bruce Campbell estava tentando ser galanteador, sinto dizer que estava conseguindo.

Tudo culpa daqueles olhos azuis. Malditos.

– Eu não vou ser sua noiva, Bruce. Sinto muito noticiar. – ri pra amenizar a frieza da verdade naquela afirmação. Ele era o inimigo! O Inimigo!

– Mas posso ser seu amigo, não posso? Eu venho uma vez ao mês pra Nova Iorque para participar das reuniões da empresa e manter os olhos em tudo, podemos nos encontrar para outro café. O que você acha?

Ele fez aqueles olhos de filhotinho. Juro. Parecia um deja vu estranho de um Gato de Botas alto e sem o sotaque espanhol. Minha capacidade cognitiva se perdeu por um momento, tudo culpa dos hormônios e do excesso de açúcar naquela torta de maçã.

– Talvez.

– Já é uma boa chance. Olha só...

Bruce fez um gesto com a mão, deixou sua xícara na mesa e apanhou sua carteira no bolso de trás do jeans. Um dedilhar e estava com um cartão de visitas bem na frente do meu nariz, com o logotipo de sua empresa bem clara no centro do retângulo de papel azul marinho.

–... Estarei na cidade até à tarde de terça. Podemos almoçar perto do seu trabalho. Eu conheço uma cantina com uns preços muito bons durante a semana e uma lasanha fenomenal.

– Eu realmente não sei. – Passei os olhos pelo cartão. Lá estava o nome dele, bem sucinto e com um único número de celular logo embaixo.

– Me liga se estiver disponível. Vamos sentar, conversar com calma. Quero saber mais sobre a rebelde dos Dalton e suas galochas amarelas. – acenou para a garçonete distraída e pediu a conta. Num minuto a garota estava ali, parada e com um sorriso majestoso, pronta para atender o bonitão.

Ele tirou a carteira novamente para pagar a conta, uma ninharia pela torta e o café, mas bati a mão sobre a mesa antes que isso acontecesse.

– Eu vou pagar a minha parte.

– Não, eu insisto.

– Vou pagar a minha parte. – deixei os trocados sobre a mesa e troquei um olhar com ele e depois com a garçonete. Estava bem claro que não ia mudar de ideia. – Você pode pagar numa próxima ocasião.

– Tsc. Essas mulheres de hoje em dia. – Bruce suspirou e completou o valor, agradecendo a garota extasiada com seu sorriso (não posso culpa-la) e caminhando comigo até a porta do Hallow’s Barn.

A chuvinha estava insistente lá fora, mas eu estava armada com meu guarda chuva transparente e minhas adoráveis botas, que foram alvo daquele encontro.

– Quer uma carona? Eu te deixo em casa.

– Não, obrigada. É bem perto daqui, eu gosto de caminhar.

– Quer companhia então?

– Sr. Campbell... – respirei fundo.

Talvez a minha primeira alternativa fosse aceitar aquele convite e quem sabe acordar na manhã de segunda enrolada em um lençol amarotado e cheirando a perfume caro de um homem rico e atencioso. A segunda alternativa seria possivelmente ter companhia por algumas horas, algum contato físico e acabar me rendendo aos visíveis encantos daquele herdeiro sulista.

Mas eu, Katerina Emily Dalton, escolhi a terceira opção.

–... A gente se vê por aí. Obrigada pelo café.

**********

Foi logo no horário do almoço que consegui algum tempo para respirar e me sentar em uma lanchonete há três quadras do trabalho e suspirar com toda a força dos meus pulmões, alto o suficiente para Samanta revirar os olhos entre as mordidas no seu cachorro quente transbordando vinagrete e mostarda.

– A Branquela tem um problema. Pare de girar, Mundo! Kate vai se pronunciar!

Os clientes olhavam em nossa direção, mas Sam só ria, limpando a boca carnuda em um guardanapo de papel duvidoso.

– Fala Branquinha do meu coração. O que está amargurando o seu peito nessa linda segunda de chuva?

Era uma segunda deprimente. Todas as segundas eram deprimentes, mas aquela parecia com um potencial perigoso para qualquer pessoa com tendências suicidas – o que por sorte nunca foi meu caso – sou muito apegada à minha vida.

– Eu aceitei um convite ontem à noite. Para um café.

– Nossa quanto mistério. E pelo jeito foi uma porcaria de café pra você estar com essa cara de Dia de Finados, não é?

– Até que foi bom.

– Então qual o motivo dos suspiros todos?

– Bruce Campbell me convidou pra tomar um café de madrugada no Hallow’s Barn e eu aceitei.

– Bruce Campbell. Bruce Campbell. – Sam estava acessando aquele recanto sórdido e mais abandonado de seu enorme arquivo cerebral: a lista de contatos. Eliminando todas as pessoas que ela conhecia e que provavelmente não se encaixavam naquele nome, ela voltou a olhar pra mim e erguer os grandes ombros. – Não tenho ideia de quem seja. Ilumine a minha mente.

– O senhor Campbell é o meu noivo, Sam. Aquele do tradicionalismo de família.

Samanta Russell dificilmente ficava boquiaberta com alguma coisa, mas eu conseguia contar todos seus dentes e ver todos os vestígios de salsicha que ainda estavam na sua língua. Nojento.

– Você enlouqueceu? Passou os últimos meses xingando o mundo todo por essa doideira da sua família em insistir em casamento arranjado e concorda em tomar café com o cara? Você deve estar muito carente pra aceitar um convite desses.

– Esse é o problema. E pra piorar, ele é educado, lindo e gostou das minhas galochas.

– Galochas? Aquelas botas amarelo ovo?

– As próprias.

Sam tornou a revirar os olhos e suspirar, deixando o cachorro quente no balcão pra me dar atenção completa.

– Ele quer te levar pra cama.

– Para com isso! Ele foi super educado. Mas eu não consegui ser tão gentil assim, Sam. Só de pensar que ele e meu pai estavam combinando tudo pelas minhas costas, já me dava calafrios.

– Parabéns. Você fez exatamente o que deveria ter feito. Kate, esse homem deve ter tanta pressão da família dele pra que esse casamento funcione, tanto quanto você. E tem dinheiro envolvido. Sai dessa, Branquela!

– E por isso eu tenho que ser sem educação com ele? Estamos no mesmo barco. Meu pai é que deveria escutar umas boas verdades.

– Só que você está nadando contra a maré e ele está no barquinho, Honey. Seu pai só está seguindo o que ensinaram pra ele.

– Eu posso ficar solteira o resto da vida. Essa pode ser minha última chance de ter alguém que goste de mim e das minhas galochas... – ri alto.

– Kate. Querida. – Sam respirou bem fundo e passou um braço ao redor do meu pescoço. – Quando você achar um cara que realmente goste de você, ele vai odiar aquelas galochas feias. Acredite em mim.

Comecei a rir ainda mais. Era isso, estava carente e sozinha demais até para começar a cogitar gostar da ideia da aproximação do Sr. Campbell. Só precisava de uma boa dose de realismo que Sam conseguia sempre trazer com risadas.

No caminho de volta para a livraria, contei para Sam sobre o convite para o almoço na terça e dei todos os detalhes sobre o Sr. Campbell e seus olhos azuis claros, o sorriso maravilhoso. Ela chegou a ficar muito interessada em conhecer pessoalmente o partido, mas então engrenou um discurso sobre escravos no sul do país e como as famílias creole estavam ligadas com essa tradição também – foi o mínimo necessário para Bruce entrar na lista de pessoas mais odiadas por ela.

Sam era muito radical quando se tratava de falar dos antepassados.

O restante daquela segunda passou arrastado, a chuva não trazia muito movimento, mas era um bom dia para memorizar as posições dos autores nas prateleiras e ajudar os atendentes mais novos com a organização dos títulos.

Quando tinha algum tempinho livre, repensava sobre aquela ideia doida de um dia escrever alguma coisa. Um livro, da minha autoria, que fosse exatamente como deveria ser: um romance de verdade, sem aquelas falsas ideias que enchiam as prateleiras da Barnes & Noble do cheiro doce da ilusão amorosa.

Venderia milhares de cópias, tenho certeza. O mundo estava cheio de pessoas mal amadas e solitárias que adorariam uma parcela de realismo que fosse idêntico com suas vidas. Nada de decepção em passar horas criando aquela falsa expectativa com príncipes encantados que não existiam.

Nunca esperei por um príncipe.

Quando mais nova esperava pelo Papai Noel, acreditei na Fada dos Dentes por algum tempo – ou até minha mãe esquecer-se de colocar a moeda embaixo do travesseiro e substituir por um cupom de descontos. Mas nunca fui uma garota que alimentou a falsa esperança de encontrar alguém perfeito.

Aos quinze anos a maioria das minhas amigas de colégio já haviam dado seus primeiros beijos, andavam pelos corredores da escola de mãos dadas com seus pares perfeitos e exibiam sorrisos apaixonados. Eu? Eu escrevia.

Lembro perfeitamente de me sentar na última carteira ao lado da janela e passar metade das aulas rabiscando as últimas folhas do meu caderno com personagens fantásticos e contos de mundos distantes. Se havia algo com que eu sonhava era ver um dragão de verdade, enfrentar aventuras ao lado de uma trupe de ladrões, navegar pelos mares e conhecer criaturas incríveis.

Claro que eu gostava de garotos. Na verdade apenas de um deles, o único que conseguia atrair a minha atenção e que obviamente não sabia sequer da minha existência no mesmo metro quadrado que ele.

Colin Green era um típico garoto que atraí olhares. Mais alto do que a maioria da classe, cabelos arrepiados e sempre com um skate embaixo do braço, era a sensação nas aulas de educação física.

Algumas garotas suspiravam por ele, mas eu não ligava. Quando nossos olhos se encontravam ele sorria e aquilo alimentava uma esperança dolorida. Eu não era o tipo de garota com quem garotos como Colin costumavam sair. Eu usava óculos de aros grossos e meias até perto dos joelhos, vivia metida na biblioteca e tirava notas altas: uma verdadeira pária da sociedade.

Quando a classe toda se reuniu na festa de aniversário de uma das garotas populares do colégio, ele estava lá e por uma infeliz coincidência, esbarrou em mim. Trocamos um cumprimento, ele me ofereceu uma bebida e depois sumiu, deixando seu amigo ao meu lado por uma interminável hora.

Trevor Williams era bonitinho e tinha um ótimo humor. Nós já tínhamos conversado antes nas raras ocasiões em que ele se sentava na mesma mesa de refeitório que eu costumava ficar. Mas eu não esperava que ele fosse meu primeiro beijo. Não estava preparada. Eu não queria!

Me tranquei no banheiro pelo restante da festa e só sai dali quando meu pai apareceu para me arrancar lá de dentro. Um vexame sem fim. Mas não foi o fim do mundo.

O fato é que nunca fui romântica. Não faço parte do grupo de garotas que planejam vestidos de noiva, viagem de lua de mel, quantos filhos terão e como terminará a vida. Sou uma mera expectadora destas fases na vida das outras pessoas.

**********

A terça feira passou muito rápido.

No horário do almoço me lembrei do convite de Bruce para almoçarmos juntos e não vou negar que pensei naquele cartão de visitas que deixei jogado na estante junto com meus livros. Se Tabby não comesse o pobre pedaço de papel por algum acaso, o celular dele ainda estaria lá, marcado e esperando por uma ligação sequer que confirmasse a ida até a tal cantina com boa lasanha.

Eu adoro massas. Aposto que meu pai contou isso pra ele.

Sam decidiu que almoçaríamos algo diferente naquele dia. Fomos até um pequeno corredor estreito em uma das paralelas com a quinta em que fazem uma maravilhosa pizza com borda recheada que cabe certinho na palma da mão. Foi delicioso.

No final do expediente meu celular tocou. Estava me trocando para encarar a chuva fina que deixava o clima ainda mais frio e já permitia que eu usasse uma jaqueta mais pesada, mas lá estava o visor piscando e pedindo a minha atenção.

Não reconheci o número logo de cara e hesitei para atender.

– Alô?

– Adivinha quem é a pessoa mais linda dessa linha?

– Adria! – minha barra de humor se preencheu instantaneamente.

Minha irmã tinha sua vida, seus compromissos e rotina que ninguém conseguia acompanhar – além daqueles peitos lindos – e era a pessoa que eu mais confiava na minha família. Ela ocupava o pódio com meu pai, mas o Sr. Dalton estava despencando nas pesquisas naqueles últimos dias.

– Como você está, princesa? Passando frio nessa terra de ninguém?

– Um pouco. A chuva não dá trégua. Mas como você está? Não tenho notícias suas já faz tempo!

– Eu sei, eu sei. Mas a filial em Milão está sugando a vida das minhas veias, Kate. Estou trabalhando como uma louca! Você acredita que eu até emagreci?

Claro, agora Adria passaria pelo buraco de uma agulha. Viva.

– Exagerada.

–Você vai ver! Eu vou estar aí pela sua vizinhança amanhã e quero te dar um abraço mega apertado! Pode ser? Não vou te atrapalhar?

– Você nunca atrapalha.

– Sério? – Adria soltou um muxoxo do outro lado da linha – Isso quer dizer que você ainda está enfiada naquela quitinete sozinha?

– Sim. Mas eu gosto daquela quitinete. É minha toca hobbit.

– Kate! Pelo amor de Deus, princesa, você está precisando mesmo da minha visita para dar um up na sua vida.

– Eu estou bem, Adria.

– Claro. Pff!. – dava pra escutar o salto dela batendo no chão de onde estava, andando de um lado pro outro. Adria sempre foi ansiosa e falava pelos cotovelos, ainda mais quando tinha a oportunidade de querer resolver os problemas de alguém (ainda mais se este alguém fosse eu).

– Deixa que eu decida as coisas quando chegar ai. Tenho tantas coisas pra te contar, novidades, presentinhos. Mas agora tenho que desligar, lindeza. Promete pra mim que vai guardar todo o seu tempo livre para sua amada irmã amanhã?

– Prometo, Adria. – Tinha que rir, quase conseguia enxergar aquele jeito que Adria tinha de falar fazendo beicinho, como se eu fosse uma criança ou um cachorrinho que merecesse aquele tom de voz.

– Essa é a minha irmãzinha. Se cuida, tá? Beijinhos!

A visita de Adria seria bem vinda. Ela sempre bagunçava tudo, virava as coisas de pernas pro ar, mas era como um vento fresco na vida dos outros.

Já imaginava a reação dela quando soubesse daquela história de café na madrugada com o noivo arranjado. Era bom ela trazer os calmantes.

O despertador nem tinha tocado na quarta e eu duvidava que o sol tivesse saído em algum lugar que não fosse no Japão, quando bateram na porta de casa. Não era uma batida delicada, estava mais para um elefante desengonçado tentando arrombar a frente do porão.

Tabby levantou assustado do cantinho que tinha elegido como seu pedaço da cama e correu pra baixo da estante, espiando meus cambaleios até o olho mágico. Não dava pra abrir a porta pra qualquer um numa hora daquelas, eram apenas seis da manhã!

Demorei para focalizar alguma coisa naquela lente embaçada e nem precisei me esforçar muito. Uma voz esganiçada brotou de trás da porta, batendo mais uma vez – como se todas as outras não fossem suficientes.

– Kate! Kate!

– Você sabe que horas são?

Destranquei a maçaneta e Adria entrou pela quitinete afora num turbilhão vestido com uma calça colada de couro, um casaco bege e um enorme lenço estampado de leopardo. Seus olhos estavam escondidos com uns óculos de sol e suas malas despencaram para dentro do porão num barulhão que fez Tabby desaparecer pela casa.

– Bom dia Princesa! – ela me apertou num abraço tão forte que uma das minhas omoplatas estralou.

– Bom dia... Adria...

– Eu tentei te ligar, mas seu celular está desligado. Mas que belezinha de lugar, Kate. Achei que era mais apertado. – já saiu em reconhecimento pela casa enquanto eu puxava as malas dela para dentro e fechava a porta. Aposto que a senhora Fighbright estava espiando pela janela, mas era só um palpite.

– Você não disse que vinha cedo.

– Fuso horário, lindinha. Eu esqueci completamente de mencionar isso quando te liguei. Mas vejamos o lado bom: vamos tomar café da manhã juntas!

Cocei meus cabelos desarrumados, bocejei e fiquei sentada na beirada da cama, caindo entre o limite do sono e do despertar. Não sei o quanto estava conseguindo absorver do que Adria falava conforme ia se acomodando dentro da casa, abrindo geladeira, trocando de roupa. Só me dei conta quando ela parou na minha frente e ficou em silêncio, medindo.

– Acorda princesa! Vamos, troca esse pijama tenebroso e vamos sair pra vida da cidade! Vou te levar pra tomar um café reforçado e seu dia vai ser ma-ra-vi-lho-so!

Não sei de onde Adria conseguia tanta energia depois de uma viagem cansativa e ignorando o jetlag. Ela ajudou a escolher as roupas que eu usaria naquela manhã e me convenceu a usar uma saia que eu nem me lembrava de ter, combinando com uma meia calça escura e sapatilhas baixas. Era um modelo fofo e eu gostei de como ficou já que normalmente não era a pessoa mais preocupada com combinação de peças.

Deixei comida para o pobre e assustado Tabby e parti com Adria de braços dados comigo, quase me arrastando pelas calçadas de Nova Iorque. Ela conhecia a cidade com uma capacidade invejável de memorizar a direção dos lugares. Acho que apenas eu não herdei as coisas boas da família.

Paramos para tomar um café em um bistrô tranquilo nas imediações do Central Park. A chuva deixou a cidade fria e poder enroscar as mãos ao redor de uma caneca de qualquer coisa quente era uma dádiva!

Adria falou o tempo todo, permitindo alguns comentários sobre coisas amenas como seu trabalho e o namorado novo: um modelo que tinha 24 anos e um corpo de dar inveja às estátuas greco-romanas. Apenas fofocamos e demos longas risadas com as histórias que pude contar sobre Sam e seu pavio curto, o trabalho e as vezes em que me perdi no simples trajeto para casa.

Escolhemos caminhar até a livraria, aproveitando que a chuva tinha dado uma trégua e um sol tímido espiava atrás daquele céu cinza de nuvens. Ficamos num longo silêncio por um tempo, apreciando a companhia uma da outra, até que Adria olhou para mim com o canto de seus olhos realçados com a maquiagem.

– Você tem tido notícias do papai e da mamãe?

Sacudi a cabeça e revirei os olhos. Aquele não era meu assunto preferido.

– Prefiro nem ter. O pouco que sei nunca é agradável.

– Tia May me mandou um email dizendo que eles provavelmente vão reatar. Ridículo. Como se um casamento fosse como um namoro de crianças: basta se desculparem, trocarem beijinhos e tudo está consertado. – Adria puxou a bolsa pra perto do peito e começou a revirar os bolsos internos. Eu já sabia que ela estava procurando um cigarro.

– Não é surpresa nenhuma. Já faz um ano que nossa mãe estava preparando o bote, desde o meu aniversário... – achei melhor não tocar no assunto. Por sorte estávamos perto da porta da livraria e me aprumei para entrar. – Tome. Fique com a chave de casa, assim você pode descansar um pouco, tomar um banho. Eu chego às 19 horas.

– Eu venho te buscar e vamos jantar juntas. Frutos do mar, o que você acha? – Adria prendeu um cigarro entre os lábios pintados de vermelho, guardou as chaves na bolsa e se curvou pra me dar um beijo na bochecha. Os saltos a deixavam muito alta.

– Legal. Mas nada que esteja vivo e que seja melequento, está bem?

– Combinado princesa. Bom trabalho.

Samantha bateu o ombro comigo no corredor de infanto-juvenis quando eram exatamente 13 e 30 da tarde. Estava chuviscando e a vitrine da livraria estava cheia de gotinhas de água que as crianças tentavam bater pelo lado de dentro, ansiosas pelo horário em que poderiam escutar alguns contos de fadas pelo restante da tarde. A monitora estava reunindo os livros preferidos do grupinho enquanto minha treinadora fez um cochicho na minha orelha direita, exatamente a que me dá mais cócegas.

– Adivinhe quem acabou de chegar?

– Al Paccino? – ergui os ombros pra fugir daquele cochicho que me arrepiava o pescoço, rindo.

– Não. Passou longe Ragazza. – Sam indicou o garoto magrelo com o notebook de caveiras mexicanas, esticando o pescoço para encontrar alguma coisa na sessão de internacionais. – Carma número um.

Começamos a rir baixinho. O garoto adorava Sam e ela se divertia em atendê-lo, mesmo com aquele gosto peculiar por literatura indiana.

– Vou indicar “aquele” livro pra ele. – ela fez as aspas com os dedos.

– Você não vai. Não teria coragem. – olhei pros lados. Parecíamos duas traficantes escondidas atrás das prateleiras e espiando entre as coleções de Harry Potter e Percy Jackson.

– Eu vou. O que pode acontecer?

Samantha nem me deixou respirar. Ajeitou os seios no uniforme (porque eles eram enormes e o uniforme não era), aprumou as costas e seguiu com seu sorriso aberto até o rapaz que a reconhecia basicamente pelo cheiro, virando na direção dela como um perdigueiro.

Fiquei assistindo enquanto ela caminhava com ele pelas prateleiras e indicava diversas obras religiosas antigas e outras mais atuais, sempre com o mesmíssimo tema. Ele passou a empilhar os livros interessantes sobre uma das poltronas que estavam no setor e alegremente aceitou a indicação de Sam.

Tive que me segurar para não ter uma crise de riso bem ali, mas na verdade não pude ficar para ver o desfecho daquela feliz indicação de um novíssimo kama sutra para o rapaz. Alguns leitores animados esperavam por mim nas prateleiras.

Depois de algum tempo Sam voltou para perto de mim para consultar alguns títulos no computador e trocamos um riso quase combinado.

– Então, como foi?

– Ele adorou. Disse que precisava mesmo de uma edição mais nova por que a dele era muito antiga e bilíngue, acredita?

– Então ele não tem uma vida tão monótona assim, Sam. –bufei pra conter uma risada mais alta.

– E o pior disso tudo é que agora ele oficialmente me ama. Ganhou o posto de Carma número 0.

Estávamos entre outra crise de risinhos baixos quando Sam me cutucou nas costelas, o que me dobrou pro lado na mesma hora.

– Não faz isso!

– Psiu! – ela chamou minha atenção e minha blusa, tudo ao mesmo tempo. – Dá uma olhadinha para o lado, Branquela. É sua vez de cumprir com a palavra. Vai lá.

Não tinha me lembrado de que era quarta-feira, nem que já eram duas e quarenta e cinco da tarde.

Ali estava ele, atravessando os corredores de prateleiras e nichos de leitura como se nada no mundo existisse além do caminho predeterminado até a prateleira número 36, onde ficavam imaculadamente os exemplares de Sir William Shakespeare.

Seus cabelos tinham um tom loiro escuro cheio de gotas de chuva, os ombros do casaco de tweed marcados de água e um rastro abaixo dos seus sapatos. Seus olhos, aqueles azuis profundos e diferentes, encontraram os meus por um breve segundo, um deslize qualquer no meio de tantas outras pessoas que estavam ali naquela tarde. Mas senti um calafrio, uma coisa que revirou no meu estômago.

Engoli em seco. Não queria ir falar com ele.

“Próspero” sempre levava em torno de cinco minutos para escolher o exemplar da semana, coloca-lo embaixo do braço e desaparecer para os caixas. Nunca escutei sua voz, nem sei se ele procura por outra coisa qualquer que não o dramaturgo. Nem podia qualifica-lo como cliente carma, agora que parei para pensar nisso.

– Não dá. Eu não vou lá falar com ele. – voltei a cadastrar os títulos no terminal de consultas.

– Ah não, nem me venha com essa Katerina. – Sam franziu a testa e me virou com facilidade naquela outra direção, segurando meus ombros. – Como sua superior, estou mandando que você atenda aquele cliente. Agora vai lá e faça um bom trabalho.

A saliva ficou presa na minha boca enquanto me afastei dela, olhando pra trás e assistindo Sam rir e fazer sinais para que eu continuasse a andar. De onde estava conseguia ver que ele estava em um daqueles dias indecisos, tamborilando os dedos sobre a perna direita, desviando os olhos sobre as capas dos livros novos e velhos, remoendo talvez uma lista interna em sua memória.

Acomodei meu crachá no peito – que parecia apertado – e parei a alguns passos dele, desenhando um sorriso que devia estar horrível na minha cara.

–Bo-boa tarde. Posso ajuda-lo com algum título?

Minha voz pareceu bater numa parede e voltar. Não ocorreu nenhuma reação nele. Pensei que seria o momento perfeito para dar as costas e assumir que não tinha a coragem de Sam, mas “Próspero” se moveu, curvando-se para apanhar um título na prateleira mais baixa.

– Posso ajuda-lo? – repeti sem o entusiasmo da primeira tentativa, mas era alguma coisa.

O exemplar que ele tirou da prateleira era um dos mais velhos, um apanhado de peças que tinha tranquilamente o tamanho de uma das maiores enciclopédias que estavam disponíveis na loja. A “Obra completa e Dramas para Palco – Peças de William Shakespeare” estava com a capa um pouco danificada e me esforcei para encontrar rapidamente um exemplar mais novo do título, puxá-lo de lado, equilibrá-lo contra o braço e esticar na direção dele.

– Este aqui está em condições bem melhores, senhor... – fiquei esperando ele completar. Fiquei esperando um sorriso gentil e um agradecimento.

É. Eu fiquei esperando mesmo.

– Desculpe? – ele finalmente me notou, mas seu olhar não parecia agradecido. Bem ao contrário, ele analisou o título e depois o meu rosto antes de se endireitar com o seu próprio exemplar amassado em mãos.

– Este exemplar. Está bem melhor do que este mais velho que o senhor está levando.

– E o que a leva a pensar desta forma?

“Próspero” tinha uma voz forte, um tom aveludado e com um sotaque pesado britânico que só me deixava com mais calafrios. Entendi naquela hora porque achava os olhos dele diferentes – eram frios.

– A capa desse título está danificada, vê? – sorri e indiquei o amassadinho nas pontas do livro. – Este está em melhores condições e é uma edição mais nova. Confie em mim, vai ficar mais satisfeito com este aqui.

– E a senhorita é, de fato, uma entendida em exemplares antigos. – notei o tom do sarcasmo.

– Não uma entendida... – sorri, mas era de nervoso. Tinha uma insistente intuição de que aquilo não terminaria bem. – Mas se a loja pode oferecer um exemplar em melhores condições para um cliente assíduo, eu tenho que auxiliar no que for necessário.

Ele ergueu uma das sobrancelhas. Apenas uma a esquerda para ser bem exata e que ficava pontiaguda, irônica e ameaçadora no rosto dele. Com um passo ele estendeu a mão, acomodando o livro no outro braço.

– Não me lembro de ter requisitado qualquer auxílio da sua parte, senhorita... – ele se curvou e puxou meu crachá sem autorização nenhuma, deixando-o de lado com o mesmo desdém com que o pegou. -... Dalton.

– Perdão? – disfarcei minha indignação com um sorriso, torto o bastante para permitir que eu arrebitasse um pouco o nariz para enfrentar aquele homem petulante. Não me surpreenderia em imaginá-lo como um velho sozinho e rodeado de gatos e livros podres em algumas décadas.

Mas eu estaria sendo malvada.

Com os gatos, claro. Ninguém aceitaria um prato de leite pela companhia de um homem como Próspero, nem mesmo numa situação de desespero.

Naquele momento uma lembrança fez sentido: meu cliente carma.

Era isso, um pagamento de dívida que eu possuía com o universo estava ali, diante de mim na forma de um homem alto, ranzinza e desagradável que se recusava a aceitar indicações sobre livros.

O que eu fiz para merecer uma cobrança tão grande assim?

Será que existe alguma mera possibilidade de eu ter sido nazista na outra vida?

– Exatamente, Senhorita Dalton. – ele completou. – Quando precisar de sua opinião, indicação ou auxílio, com certeza me lembrarei de tê-lo feito. Caso contrário agradeceria imensamente se me deixasse decidir sozinho sobre qual exemplar vou levar e permanecesse exatamente onde costuma ficar todas as quartas: parada no início das prateleiras. – indicou o ponto de onde eu fazia os atendimentos.

Abri a boca, mas o som não saiu. O pobre coitado ficou preso em algum lugar entre meu estômago e minha língua, sem saber pra que lado correr, mais perdido do que sua dona. Antes que conseguisse formular alguma coisa para responder, Próspero juntou seu livro e naquele comum passo firme pela livraria, caminho para a direção dos caixas.

Sam correu na minha direção assim que viu ele se afastar e me segurou pelo ombro com um enorme sorriso de quem está ansiosa para ouvir novidades.

– E então, Bran... Kate, que cara de choro é essa?

Juntei a saliva na boca antes de olhar para ela. Ainda estava atônita.

Quando notei as primeiras vezes a presença daquele homem num horário tão meticuloso dentro da livraria, ele chamou minha atenção. Sua paixão por Shakespeare, seus modos tão decididos e a forma com que devia acumular títulos do dramaturgo foram os motivos de chama-lo assim: “Próspero” – como o nome de um dos personagens mais ilustres de uma das peças do escritor: A Tempestade.

Mas alguma coisa em mim ficou imensamente chateada com o que tinha acontecido. Não imaginava de forma alguma que aquele homem fosse tão rude e tão, tão...

– Nariz empinado. – funguei para Sam e deixei o livro num carrinho de distribuição antes de correr pro banheiro. Ninguém podia me ver com aquela cara deprimente, mas eu nunca soube lidar bem com pessoas difíceis e me sentia acima de tudo, humilhada.

Entrei no sanitário feminino e enchi as mãos de água, lavando o rosto e respirando fundo. Meus olhos estavam brilhantes pelas lágrimas que não derramei, de raiva e frustração. Era por motivos como aquele que não gostava de criar expectativas quanto às pessoas e curiosamente Shakespeare também não, quando escreveu: “Sempre me sinto feliz, sabe por quê? Porque não espero nada de ninguém”...

Shakespeare era um cara esperto.

Fiquei alguns minutos ali dentro, segura enquanto com certeza Próspero pagava seu livro amassado e saía da loja. Nunca mais ficaria no setor quando chegasse o horário dele aparecer. Já que ele se julgava tão superior não seria nenhum incômodo deixa-lo sozinho.

A chuva engrossou lá fora, conseguia ver pela janelinha do banheiro e suspirei longamente, pensando que meu jantar com Adria dependeria de um tempo mais tranquilo e teríamos que remarcar. Mas não em atentei ao silêncio brusco dentro da loja conforme saí do sanitário.

Estava ajeitando o crachá na blusa quando fui puxada para trás. Não como se alguém me chamasse, mas brutalmente, arrastando meus pés no piso enquanto uma mão tampava minha boca.

Tentei olhar para trás e só encontrei olhos recortados em uma máscara de esqui preta, uma voz áspera que disse que eu devia ficar em silêncio.

– A grana! A grana e ninguém se machuca!

O homem gritou perto da minha orelha e me retraí. Em resposta me apertou mais e meu rosto doeu, o barulho da arma engatilhada que ora apontava para mim, ora para os caixas da livraria – era horrível.

O segurança do turno da tarde estava com os braços erguidos, assim como os clientes que se amontoavam num canto e outros na fila, imóveis. Algumas pessoas conseguiram correr para a rua, o que só deixava o assaltante mais nervoso, sem saber para onde olhar primeiro.

Não sei quando ele entrou. Talvez como um cliente comum que aproveitou de um pequeno momento de distração para colocar a máscara de esqui e tirar a arma do bolso. Não me importava. Só queria que dessem o dinheiro para ele me soltar.

Por que é claro, minha maré de sorte estava realmente baixa naquele dia. Não ficaria surpresa em levar um tiro.

– Calma, vamos pegar o dinheiro. – Lex mostrou que ia abrir a gaveta dos caixas para apanhar os valores para o homem e isso fez com que ele se aproximasse um pouco mais, fazendo as pessoas se encolherem como ratinhos pelos cantos.

– Ninguém se mexe, entenderam? Eu estou armado! Estou armado! – Sério? Ninguém percebeu.

Mas além do óbvio ladrão e a tensão dos clientes e atendentes, enxerguei Sam com um olhar de pânico. Tentei estreitar os olhos para mostrar que estava bem, mas não conseguia fazer muito com a força daquele homem me apertando daquele jeito.

Nos filmes a mocinha usaria os cotovelos para golpear o meliante, daria uma cabeçada nele e salvaria o dia. Mas a coisa é um pouco diferente quando se sente o cano frio de uma arma contra o lado do rosto. Muita coisa passa pela sua cabeça e posso afirmar que defesa pessoal estava bem longe dos meus pensamentos.

Só conseguia pensar na minha irmã, dormindo em casa. No desespero do meu pai ao saber que a filha era refém de um assalto. E por que eu não deixei Bruce Campbell me acompanhar até em casa? Minha nossa, alguém teria que cuidar do Tabby pra mim!

Tanta coisa, tão pouco tempo.

Os pensamentos só me deixaram em paz num momento estranho, enquanto o assaltante gritava para os caixas serem mais rápidos e meus olhos encontraram com aquela frieza de Próspero mais uma vez.

Ele estava na fila, a mão segurando com firmeza aquele livro pesado. Seus olhos não encontraram os meus por acaso. Ele estava realmente olhando diretamente para mim, em silêncio, como se eu pudesse ler seus pensamentos.

– Aqui. O dinheiro. – Lex deu um nó em uma sacola onde colocou todas as notas e moedas dos caixas, passou pela portinhola do balcão e esticou o braço para o ladrão.

Então tudo aconteceu tão rápido.

O assaltante me arrastou com ele depressa para pegar o dinheiro e baixou a arma por um momento, apenas isso, um lapso de segundos. E naquele trecho de minuto, algo acertou o homem pelas costas, alguma coisa que produziu um ruído abafado e pesado e que empurrou a cabeça do assaltante para frente suficiente até bater na minha nuca.

Depois sua mão amoleceu e depois ele todo, caindo de joelhos no carpete da loja e deixando o revólver cair de lado.

O segurança correu e rapidamente rendeu o bandido. Mãos me puxaram para longe dali, eu senti pouco antes de uma multidão de vozes me confundir.

– Você está bem, Kate? – Samantha estava ali, eu reconhecia o rosto dela e afirmei em silêncio. Ela me abraçou apertado.

– O que aconteceu? O que fizeram com ele?

– Você tem um Carma e tanto, Branquela...

Sam olhou para a direção daquela bagunça de pessoas e o círculo que se abriu ao redor do segurança e o assaltante caído. A nuca do homem estava sangrando e a principio achei que fosse um tiro. Mas não era...

Os clientes foram se afastando, acalmados pelos atendentes e pelos policiais civis que começavam a chegar agitados através dos corredores de estantes e expositores, então pude enxergar o que estava caído logo atrás do homem tombado: um livro, com a capa amassada em dois pontos, sangue em um deles.

“Obra completa e Dramas para Palco – Peças de William Shakespeare”

Afastei-me de Sam sem pensar, andando devagar até lá. Os policiais pediam uma ambulância para o assaltante e outros perguntavam como tudo ocorreu para os funcionários, e no meio deles estava aquele homem alto, ranzinza e desagradável, massageando o pulso que parecia um pouco inchado. Levantar um livro daqueles e acertar alguém devia ser um esforço e tanto.

Parei diante dele com uma diferença de passos e encarei aqueles olhos profundos e frios. Ele ergueu a sobrancelha esquerda para mim sem nenhum outro esboço de pensamento.

– Senhorita Dalton...

– O Senhor é meu mais improvável herói. E isso é péssimo.

– Sim, eu sei. Eu costumo ser péssimo.


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