Belle andava pausadamente enquanto Ruby a guiava tapando seus olhos, a ansiedade e curiosidade preenchendo seu corpo.

– Ta dã! – Ruby tirou as mãos de seus olhos, revelando finalmente o apartamento. – Não é muito, mas é nossa casa.¹

– Wow! – A primeira coisa que os olhos de Belle capitaram foi uma parede inteira cheia de livros, ela correu até lá.

– Claro, lá na cozinha tem um jantar que eu me matei pra fazer, mas tudo bem, vamos admirar a sua estante especial. – A voz de Ruby carregada de graça e ironia como sempre.

– É minha?

– Sim. – Ruby riu ao ver a felicidade transbordando no sorriso de Belle. – Mas é sério, tem um jantar esperando por nós.

Tudo naquele lugar era familiar para Belle: a posição dos móveis, as cortinas, a estante de livros e até os talheres vermelhos com que comia aquela lasanha maravilhosa. Mas parecia que algo estava faltando, pequenos vazios aqui e ali que a deixavam realmente incomodada. Decidiu não pensar nisso, tentar lembrar era uma tortura para seu cérebro.

– Essa lasanha está perfeita! – Ela disse entre garfadas.

– É meio que a especialidade da minha família, é o que a vovó mais vende lá no Granny’s.

– Acho que vou almoçar lá todo dia. – Belle riu.

– Pra falar a verdade você ia quase todos os dias pra lá.

– Por acaso eu não sei cozinhar? – Ela sentia vergonha toda vez que fazia uma pergunta tão ridícula como essa, mas era uma precaução.

– Não, é que eu trabalho lá – “Você sempre dizia que queria me ver” Ruby quis completar. - Geralmente você pegava carona comigo porque a biblioteca é ali perto. Ah é! Você trabalha lá.

– Você só pode estar brincando!

– Mas você não precisa voltar agora, eles arranjaram outra pessoa pra cuidar do lugar enquanto você estiver se adaptando a rotina. – Belle assentiu. – Bom, falando em trabalho, já está ficando tarde. – Ruby deu um sorriso de lado.

...

– Esse aqui é o seu quarto. – Ruby disse na porta do antigo quarto da bagunça. – Você sabe que, qualquer coisa, pode me chamar né?

– Sim, eu estou bem. – E antes de se recolher, Belle envolveu Ruby no mais sincero abraço. – Obrigada por tudo.

Mas naquela noite, não foi Belle quem precisou de ajuda.

Eram 2 horas da manhã quando Belle acordou de um sono mal dormido, ficou então a contemplar o teto, começando a atividade automática de forçar sua memória e, mais uma vez, só serviu para deixa-la frustrada. E no silêncio da noite ela ouviu, vinha do outro quarto um soluço desesperado e, talvez por impulso, correu para verificar se Ruby estava bem.

A outra mulher tremia na cama, enrolada ao lençol encharcado de suor, seu rosto vermelho febril e infestado de lágrimas. Ela envolveu Ruby em seus braços, tentando chama-la, mas isso não funcionou. A morena ardia em febre e Belle não podia se dar ao luxo de procurar um remédio naquele apartamento que acabara de conhecer, e a outra claramente não estava em condições de responder.

Enquanto carregava Ruby até o banheiro, essa murmurava várias vezes “Minha culpa, foi minha culpa” e ela sussurrava palavras de incentivo, enquanto tocava em seu rosto “Aguente firme, só mais um pouquinho”. Colocou a morena debaixo do chuveiro gelado, observando suas roupas ficarem mais escuras de tão molhadas, assim como parte das suas. Aos poucos Ruby foi ficando consciente e ver aqueles maravilhosos olhos verdes voltarem a si fez Belle soltar um suspiro de alívio. Ajudou a garota a se secar e voltar para o quarto, procurou um novo pijama no guarda-roupa, o que foi um pouco difícil por terem duas caixas de papelão atrapalhando, mas conseguiu. Tirou as roupas molhadas da outra e colocou as novas, aquela situação seria um tanto quanto constrangedora se não fosse grave, mas depois de tudo que Ruby fizera por ela, seria muita ingratidão da sua parte se sentir desconfortável em ajuda-la. Dirigiu a mulher até a cama e a abraçou, pois sabia que agora seu corpo estava frio demais. Ruby se aninhou a Belle, ainda não tão consciente de seus atos, mas podendo, enfim, dormir em paz.

Ruby acordou com um pouco de dor de cabeça e incomodada com a luz do sol nos seus olhos, mas esqueceu de tudo quando sentiu os braços de Belle ao redor do seu corpo. Por um segundo aquele era um momento que fazia parte de sua rotina, ela acordaria Belle com um beijo, esta sorriria e diria que ela tem que se apressar para ir ao Granny’s. Infelizmente os acontecimentos voltaram a sua mente e quando levantou de súbito, lembrando-se do que conseguia da noite passada, acabou acordando a outra.

Belle inspirou profundamente, sentindo aquele perfume tão conhecido, mas quando abriu os olhos, a habitual confusão na sua memória voltou a assombrar. Observou Ruby a encarando e finalmente se deu conta da situação, tirando seus braços da cintura da outra.

– Finalmente você acordou. – O sorriso de Belle era tão lindo que Ruby quis enche-la de beijos, mas sabia que isso não era possível.

– Que horas são? – Mesmo antes de deixar a outra responder olhou para o relógio no criado mudo, eram 10 horas da manhã. – COMO ASSIM JÁ SÃO 10 HORAS? GRANNY VAI ME MATAR!

– Calma Ruby! – Belle colocou a mão direita no ombro de Ruby, impedindo que esta saísse correndo. – Sua avó ligou hoje bem cedo, eu contei o que aconteceu e ela deixou que você descansasse.

– Ah. – Ela começou a se sentir envergonhada. – Por ontem...

– Você não precisa agradecer. – A outra cortou.

– É claro que eu preciso. Belle, você cuidou de mim!

– Não mais do que você cuidou de mim.

– Depois de fazer você perder a memória...

– A culpa não foi sua Ruby!

– Como você sabe? Você nem se lembra! – Nesse momento, as lágrimas que guardava toda vez que conversava com Belle começaram a cair em liberdade. Belle segurou o rosto de Ruby com as duas mãos.

– Eu posso não me lembrar de muita coisa, mas eu sei. Eu sei que você é minha melhor amiga, eu sei que fiz certo em vir morar com você e não com aquele homem e eu sei que o acidente não teve nada a ver com você.

Antes mesmo de terminar essa frase, Ruby a envolveu em um abraço, deixando as últimas lágrimas se perderem naqueles cabelos castanhos bagunçados. Ela estava grata com o carinho de Belle, estava mesmo, mas o abraço foi por todas as vezes em que a outra mulher citou, com tanta certeza, a amizade das duas. O abraço era um pedido de desculpas por não contar a verdade.

– Muito obrigada.

– Eu disse que não precisava agradecer. – O habitual tom de diversão voltou à conversa, tornando tudo melhor.

– Certo, eu estou doente, o que vai me preparar pro café da manhã? – Ruby deitou novamente e apoiou a cabeça nos braços cruzados.

– Se for pra eu cozinhar alguma coisa, é melhor já preparar o jantar. Vai demorar um século pra achar tudo.

– Então eu vou ter que bancar o cão guia pra você?

– Se a carapuça servir... – Belle fez uma cara de inocente, saindo lentamente da cama, porque sabia...

– BELLE! – Sim, ela levou uma almofadada bem no meio do rosto.