Os Últimos Morgenstern escrita por Luna MM


Capítulo 20
Entre o Bem e o Mal


Notas iniciais do capítulo

"Se me oferecessem novamente o ano passado,
E a escolha entre o bem e o mal me fosse apresentada,
Será que eu aceitaria o prazer com a dor
Ou ousaria desejar jamais termos nos conhecido?"
— Augusta, Lady Gregory,
"If the Past Year Were Offered Me Again"



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Assim que Clary pousou os pés para fora do apartamento, a luz irradiante do sol da manhã atingiu seu rosto. Baixou o olhar e apressou o passo, guardando a estela no bolso e seguindo qualquer rumo que a levasse para longe de Sebastian, torcendo para que assim estivesse reduzindo as chances de ele conseguir encontrá-la. Quando finalmente estava distante o suficiente da casa, ela levantou a cabeça para observar o lugar que estava.

Havia chegado numa rua dividida por um canal, a água tranquila e quase cristalina refletindo uma antiga ponte e as casas geminadas que repousavam ali. Um casal jovem e apaixonado passeava em um barco no canal, abraçados. Nas ruas, turistas e moradores pedalavam em bicicletas e andavam de patins, alguns caminhavam nas calçadas tranquilamente, enquanto outros preferiam deslocar-se na cidade através dos clássicos bondes. Árvores imensas complementavam o ar natural ao lado das águas, sendo visitadas por inúmeros pássaros que voavam pelo céu claro e, em seguida, descansavam nos galhos.

Era uma cidade maravilhosa para se viver, Clary pensou. Não precisou perguntar para saber onde estava; Amsterdã era conhecida pela frequente movimentação e atividades.

Clary parou num banco vazio de praça, à margem do canal, rodeado por bicicletas presas por cadeados enferrujados. Ela apoiou os cotovelos no colo e descansou a cabeça nas mãos, tentando organizar seus próprios pensamentos desorientados. Não conseguia deixar de lado a sensação de ter sido traída e, pior que isso, sentia-se uma traidora por falhar miseravelmente com o seu plano. Apesar de não ter culpa real, ela havia deixado tudo para trás em troca da segurança das pessoas que amava e, depois de tudo que havia acontecido em Toronto, eles ainda estavam correndo perigo. E era seu irmão que estava por trás disso, de novo.

No fundo, ela sentia que havia fracassado com todos, inclusive consigo mesma. Suspirando, perguntou-se se ela realmente era a pessoa capaz de proteger seus amigos de Sebastian, ao mesmo tempo em que tentava salvá-lo de si mesmo. Sentia o peso do mundo inteiro em seus ombros.

— Estava começando a me preocupar achando que tinha se jogado na água — disse Sebastian, recostado na árvore atrás dela, os braços cruzados, as feições do rosto tranquilas.

Clary ergueu a cabeça, mas não se atreveu a encará-lo, nem mesmo quando ele se sentou ao seu lado. Não tinha ilusões de que ele não conseguiria encontrá-la afinal, mesmo que ela fosse ao Inferno. Ele sempre a encontrava.

— Ainda não descartei a opção — ela respondeu num tom de voz baixo, ainda sem olhá-lo nos olhos. Inconscientemente, perguntou-se quantas pessoas viriam ajuda-la caso continuassem a brigar ali.

Sebastian riu sem humor, colocando um braço em volta da cintura da irmã, como se nada tivesse acontecido mais cedo. Ao sentir seu toque, ela se afastou, deixando o braço dele cair. Sebastian suspirou, dramaticamente.

— Não sei o que está te incomodando tanto para fazer você me atacar daquele jeito e fugir — ele disse, fazendo um desenho preguiçoso no ar com os dedos. Clary o olhou indignada.

— O que está me incomodando tanto? — Ela repetiu, balançando a cabeça, sem conseguir acreditar na pergunta. — A única coisa que eu te pedi quando me juntei a você, Sebastian, foi que deixasse meus amigos em paz. Bem, você cumpriu sua promessa praticamente declarando uma guerra contra eles.

— Clary, isso não tem nada a ver com você — ele murmurou, recostando as costas no banco. Num gesto tranquilo, pegou um cacho vermelho dela nos dedos e o acariciou, distraído.

— Isso tem tudo a ver comigo, porque nós tínhamos um acordo, caso não se lembre. E se você não foi capaz de cumprir com a sua parte nele, eu não preciso cumprir com a minha. — Ela falou, com certa firmeza e confiança na voz. — Eu poderia ir para casa, se eu quisesse.

Voltando à realidade e prestando atenção nas palavras que ela dizia, Sebastian soltou a mecha de cabelo subitamente e aproximou-se da irmã, com o olhar atento nela.

— Mas você não quer ir embora, não é? — Ele perguntou, pouco relutante, juntando as sobrancelhas. — Você não quer me deixar.

Clary virou-se para olhá-lo nos olhos, pensativa. O olhar dele estava diferente; não havia mais nada do que ela havia visto a poucos minutos atrás, a frieza e maldade estampada em seus olhos. Sebastian levantou a mão para acariciá-la no rosto e percebeu que ainda estava molhado de lágrimas. Havia um pequeno hematoma que sangrava no canto de sua boca, onde ele havia batido. Num gesto rápido, ele pegou a estela que estava no bolso de Clary e desenhou uma iratze em sua pele.

Ao sentir a estela queimar sua pele, Clary engoliu em seco e se perguntou silenciosamente se viver com Sebastian seria realmente assim. Ele machucando-a em brigas e, em seguida, cuidando dos ferimentos que ele mesmo havia causado nela. Não parecia uma vida muito boa para se viver.

— Que outro motivo eu teria para ficar? — Ela perguntou, num sussurro fraco.

Sebastian ergueu uma sobrancelha. Delicadamente, pôs a mão sob o queixo de Clary e puxou seu rosto para o dele, lentamente, depositando um beijo leve em seus lábios.

— Você tem a mim, irmãzinha — Sebastian murmurou, sem se afastar. A respiração dele em seu rosto enviava correntes elétricas pelo corpo de Clary.

Clary desviou o olhar. A água clara banhava os muros de pedra do canal silenciosamente, refletindo as folhas verdes das árvores que a rodeavam. O sol havia desaparecido de repente, substituído por algumas nuvens escuras. O canal a fazia lembrar-se de Alicante, com certa melancolia.

— Eu só... não entendo — ela falou, sincera, encarando os próprios sapatos.

— É claro que você não entende. — Sebastian aumentou o tom de voz de repente, levantando-se e parando à margem do canal, de costas para ela. Levou uma mão aos cabelos num gesto de impaciência, como se estivesse tentando manter-se sob controle. Quando Sebastian se virou para olhar para Clary, pingos fracos de chuva começaram a cair do céu. — Você não sabe como é ser odiado e desprezado pela sua própria mãe, por causa do sangue que corre nas suas veias. Não sabe como é viver escondido treinando e treinando cada vez mais para ser um guerreiro invencível, só para dar orgulho ao seu pai e depois perceber que ele se importa mais com o filho adotivo do que com você.

Clary se levantou rapidamente, ficando a poucos metros de Sebastian. Havia algo no olhar dele que, de certa forma, dizia a Clary que ele estava numa luta contra si mesmo para pronunciar cada palavra. A chuva havia aumentado significativamente, molhando o rosto dele como se fossem lágrimas, embora a mente dela simplesmente não conseguisse imaginar Sebastian chorando.

— Quando você passa a vida inteira, desde o momento que você nasceu, sem ter ninguém realmente ao seu lado, você passa a enxergar o mundo de uma maneira diferente. Eu passei a querer ver o caos, a destruição. — Sebastian continuou, e Clary sentiu uma súbita vontade de tocá-lo, pegar sua mão ou somente afastar o cabelo molhado de cima de seus olhos escuros. — Lutar virou uma espécie de refúgio para mim, sabe, para descontar a raiva que eu sentia, que eu ainda sinto o tempo todo. A guerra virou a minha paz, se é que posso chamar disso.

Sebastian fez outra pausa. Estava com o olhar perdido enquanto encarava a água do canal, que agora entrava em movimento à medida que mais pingos de chuva caíam.

— Você sempre teve uma família, Clarissa. Pessoas que se importavam com você, que correriam pelo mundo inteiro atrás de você caso estivesse em perigo. Eu nunca tive isso, provavelmente nunca vou ter. — Sebastian disse numa voz baixa, mas ainda firme. Numa jorrada de lembranças repentinas, Clary percebeu que aquilo era verdade; ela sempre havia tido uma família de verdade, uma mãe como Jocelyn, um pai como Luke e Simon poderia muito bem ter sido um irmão. E tinha amigos que a procuraram desesperadamente quando ela fugiu, enquanto Sebastian nunca havia tido ninguém para fazer isso por ele. Estava sozinho, o tempo todo. — O que você quer de mim, Clary?

Perdida em pensamentos, Clary demorou alguns instantes para perceber que ele havia feito uma pergunta, e hesitou antes de responder, procurando as palavras certas.

— Quero salvar você, Sebastian — disse, e percebendo a expressão confusa no rosto dele, explicou. — Quero salvar você de um destino terrível, antes que seja tarde demais.

Para surpresa dela, Sebastian balançou a cabeça e forçou uma risada irônica.

— Se queria me salvar, irmãzinha, deveria ter feito alguns muitos anos atrás. Sabe, um pouco antes de eu cometer todos os crimes que cometi, mas valeu a tentativa mesmo assim — falou num tom leve, zombeteiro na voz.

Clary soltou um suspiro, sentindo-se subitamente cansada. Não havia dormido quase nada naquela noite e, depois de toda a briga, estava se sentindo esgotada, sem forças.

— Tudo que ainda está na Terra pode ter uma salvação, sabia? — Clary disse, lembrando-se vagamente do sonho que havia tido com Ithuriel há pouco tempo atrás. O anjo havia mostrado para ela, de certa forma, que ela realmente tinha uma chance de mudar Sebastian antes que fosse tarde demais para ele e todos os outros Caçadores de Sombras. Lembrava-se de que na época ela chegou a acreditar no próprio potencial, mas agora já tinha suas dúvidas.

— Que pena que sempre fui uma exceção para tudo, então — ele respondeu automaticamente, num tom sarcástico. Clary revirou os olhos, irritada, e empurrou o peito dele com força, que apenas deu um passo para trás.

— Sebastian, não consegue ver? Eu me importo com você! — Clary falou alto. Exausta, ela descansou a cabeça nas mãos antes de continuar a falar, sentindo seus olhos arderem. Sebastian se mantinha imóvel, apenas encarando a irmã com o olhar vazio. — Eu sei como sempre foi sua vida e entendo como isso te afetou, mas mesmo depois de tudo, honestamente, eu ainda acredito que você tem uma chance. Você não?

Ele colocou as mãos no rosto de Clary e puxou-a para perto, mantendo seu rosto a poucos centímetros do dele. Por alguns instantes, Sebastian apenas olhou para ela. Silenciosamente, afastou alguns cachos ruivos molhados pela chuva para enxergar seu rosto claramente e encostou sua testa na dela. Clary se manteve parada, olhando-o nos olhos atentamente, tentando decifrar seus pensamentos, mas seus olhos estavam tão negros que ela podia facilmente se perder.

— Se houver alguma chance para mim, é você. Você é minha última chance, Clary— Sebastian sussurrou nos lábios de Clary. Os rostos dos dois estavam molhados pela chuva, as roupas grudando na pele, os corpos colados um no outro como se fossem um só. — Você é a única esperança para mim.

Clary envolveu o pescoço de Sebastian com as mãos, puxando-o para si, e o beijou delicadamente, devagar. Por incrível que pareça, havia certa ternura e carinho no modo como Sebastian a beijava, abraçando sua cintura de encontro à dele, sem exagerar na força em suas mãos. O toque dos lábios dele nos dela era leve, sem pressa. Clary poderia passar o resto do dia ali, na chuva, nos braços dele, e não se importaria.

Lentamente, Sebastian diminuiu a intensidade do beijo, ainda com a testa colada na dela. Com os olhos fechados e os lábios pressionados, ele parecia estar numa luta intensa contra si mesmo, tentando escolher as palavras certas para usar. Clary delicadamente colocou a mão em seu rosto e acariciou sua pele com o polegar. Quando Sebastian abriu os olhos, Clary enxergou certa tristeza em seu olhar, embora seus olhos estivessem tão negros que as íris quase se confundiam com as pupilas.

— Eu gostaria muito de ser o cara que você quer que eu seja — ele disse, um sorriso gelado se formando no canto da boca. — Alguém bom o suficiente para estar com você, Clary, e merecer isso.

Clary piscou, confusa. A expressão de Sebastian havia se endurecido, apesar do sorriso em seus lábios. Ela ergueu uma sobrancelha, relutante, de alguma maneira prevendo o que iria escutar.

— Mas, como eu disse a você mais cedo, não estou disposto a mudar — Sebastian disse numa voz cortante, os olhos escuros brilhando. Clary olhou para ele indignada e abriu a boca para protestar, mas ele a interrompeu antes que sequer uma palavra fosse dita. — Clary, nós somos Morgenstern. As estrelas brilhantes da manhã. Os filhos de Lúcifer, o mais belo de todos os anjos de Deus. Nós somos tão mais adoráveis quando decaímos.

— Está sugerindo que eu decaia junto de você? — Clary perguntou, hesitando a cada palavra dita. O rumo da conversa havia mudado drasticamente e ela havia demorado muito para notar.

— Por que não? Pense bem, demônios maiores não são tão diferentes de anjos, sendo que eles já foram anjos uma vez — explicou ele, num gesto de pura satisfação, como se aquilo fosse a solução para qualquer problema. — Você e eu não somos diferentes, irmãzinha. Nós dois temos trevas dentro de nós, você sabe disso tão bem quanto eu.

Devagar, Clary ouviu suas palavras lembrando do que ele dissera para ela naquela boate em Praga. Você tem um coração sombrio, filha de Valentim. Parecia uma lembrança tão antiga.

— O que está me pedindo, Sebastian? — Clary perguntou de uma vez. À essa altura, a chuva já havia parado, embora o céu continuasse escuro.

Sebastian sorriu, soltando o ar como se estivesse esperando por essa pergunta aquele tempo todo.

— Estou te pedindo, minha irmã, para ficar ao meu lado na guerra — disse, com certa satisfação e orgulho no tom de voz.

— Na guerra — Clary repetiu, desorientada. Em alguma parte da conversa, ela havia se perdido. Quase pôde sentir a realidade lhe dando um tapa na cara.

— Por enquanto haverá apenas uma batalha, mas se for preciso uma guerra... — Sebastian começou a dizer, mas Clary o interrompeu com um gesto desesperado.

— Espere, está dizendo que ainda pretende continuar com a guerra? Contra meus amigos? — Clary perguntou num tom urgente, temendo a resposta como se fosse uma lâmina quente na sua pele.

— Eu não sou o tipo de cara que deixa uma luta daquela de Toronto sair barata, então sim, a guerra vai acontecer. Eles vão pagar pelo o que fizeram a mim, todos eles — Sebastian prometeu, a vingança estampada em seu tom de voz. Algo dentro de Clary a avisou de que ele não estava jurando vingança apenas aos seus amigos, mas também à sua mãe.

No fundo de sua mente, Clary viu mais uma vez a cena da luta de Toronto. A tempestade cegando seus olhos, a neve branca suja de sangue escarlate, Jace envolvendo o pescoço de Sebastian com as mãos, enquanto o fogo celestial se extinguia para fora dele e queimava seu irmão.

— E quanto a mim? O que espera que eu faça? — Clary perguntou, tão baixo que ele só pôde escutar porque estava colado a ela.

Sebastian baixou os olhos por um instante, depois voltou a olhar para a irmã, respirando de maneira ofegante. Os olhos negros se concentravam nela com uma avidez evidente, o cabelo louro platinado caía sobre os olhos, a pele pálida como gelo, o leve rosado ao longo das maçãs do rosto. Quando ele abriu um sorriso satisfeito, parecia um anjo caído do Céu.

— Eu planejo queimar o mundo, irmãzinha — Sebastian disse, e num súbito choque, ela percebeu que seu sorriso era uma promessa de coisas terríveis. — E se você se importa tanto comigo quanto diz, tenho certeza de que vai escolher o lado certo para lutar.


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Notas finais do capítulo

Deixem comentários dizendo o que estão achando, o final da história já tá se aproximando ): mas espero que tenham gostado!