Luto Vermelho escrita por konako


Capítulo 2
Besta


Notas iniciais do capítulo

AVISO: Violência não descritiva.



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Ela ouviu fogo e gritos. Ela sentiu água escorrer sobre a sua boca, por entre seus caninos, correndo em seu peito e molhando o chão. Água quente, brotando da carne. Era então sangue?

Descendo por sua garganta? Oh.

Não.

Isso não deveria estar acontecendo. Ela lutou por tanto tempo para controlar seu lobo. Ela havia até dominado sua consciência, capaz de usar sua outra forma em batalha, para matar somente quem merecia; morder somente aqueles de carne venenosa. E agora, tudo foi jogado fora. Seu trabalho por redenção.

Ela não poderia - descobriu agora -, não importava o quanto tentasse, escapar de seu monstro; De seu animal, seu lobo e sua maldição.

O vento bateu em sua pele, ela sentiu. Sentia quão rápido corria, enquanto ondas alternadas de calor e frio passavam por entre seu pelo negro. A neve contrastando com o fogo. Ela não conseguia ver nada. Somente sensações perdidas, gostos ácidos e doces, horríveis e deliciosos de uma água quente. Não, de sangue.

Ela chorou em sua mente. Mas nada atingiu o exterior. Ela conseguia sentir seu peito vibrar com rugidos e uivos e rosnados. Ela sabia que estava furiosa. Um lobo furioso, grande e assassino.

Ela nunca poderia prever a dimensão daquele ódio. Ela nunca treinaria tempo o suficiente para controlá-lo.

Então Red cerrou os olhos e desejou que parasse.

* * *

Quando Granny recuperou-se do golpe brutal em seus ombros, conseguiu juntar forças para levantar do chão. Seus braços ardendo pela pressão das garras de Red em sua pele.

De seu centro ainda com um espírito lupino, ela chutou o dor para longe, onde não poderia atrapalhar seus movimentos. Ela não poderia apenas deitar e esperar a noite acabar, a lua se pôr e pôr consigo o tormento de Red.

Ela deveria agir como culpada e parar sua menina. Do modo que fosse necessário, para poupar as vidas inocentes que um lobo furioso provavelmente tomaria.

Ela voltou para a cabana em pressa, procurando dentre os destroços algo em prata, qualquer coisa que pudesse perfurar a pele do lobo e fazer Red desmaiar. Isso - que ingenuidade a de Granny - se ela pudesse chegar perto o suficiente para fazê-lo.

Mas nada encontrou. A última flecha com ponta de prata ela havia usado, não muitos dias atrás, quando a mesma Red deixou-se levar pelo calor bravo de herói e castigou os cavaleiros da Rainha com um pouco mais de força do que o necessário.

"Maldição", Granny murmurou para seu peito, chutando qualquer pote quebrado, frustrada e desesperada.

Suas lágrimas já atrapalhavam sua precária visão. Ela não conseguiria achar nada naquela noite. Ela não pensou em outra maneira de parar Red, senão em um pedido sôfrego por ajuda. Ajuda qualquer.

E era isso o que viria.

* * *

A loba entortou a forca do homem sem nenhum esforço, o metal dobrando como papel por entre seus dentes. Num pulo forte, a besta subiu por cima do bravo, e, com sua pata gigantesca, as garras cortaram seu peito. Outro insano camponês tentou salvar o amigo. Chegou por trás do animal e cravou-lhe com uma lança. E a loba sequer sentiu. Com a calda, assustou o homem, que caiu para trás. Num simples sacudir de ombros, a arma caiu ao chão e o animal arqueou-se para o ataque.

Mas ao pular para rasgar mais uma garganta, pousou num chão úmido; Longe de qualquer lugar que já houvesse pisado antes. Assustada, pulou para trás e latiu para a escuridão.

Antes que pudesse detectar todos os novos cheiros e sons, um brilho ofuscou sua visão. Ela rosnou em confusão, e quando voltou a enxergar, podia ver um homem pequeno em sua frente. Vestes escuras e elegantes, um cabelo bagunçado e olhos cinza, que penetravam a noite e disputavam em fervor com o âmbar dos orbes da besta.

Duas bestas, então.

Rumpelstiltskin.

Agora era Red quem rugia.

Aquele homem em nada de bom poderia agir. Fora enviado para matá-la? Levá-la para a Rainha? Controlá-la para que nunca saísse do estado de frenesi assassino? Por que o Senhor das Trevas se incomodaria com mais uma matança do Grande Lobo Mau?

O latido foi quase inteligível: "O que você quer de mim?”

— Oh, não, querida. Eu não vou matá-la, com isso não deverá se preocupar. Mas, pelo que pude ver, sua fúria não pararia nesse vilarejo.

Rumpelstiltskin deu outro passo para frente, enfrentando o lobo, que congelou no lugar: O pelo em pé, as orelhas tremendo, o corpo vibrando com um rosnando incessante; Os dentes prontos para cortar-lhe a pele, e as garras cravadas no chão para um impulso violento.

Mas o corpo, congelado.

Por mágica ou por instinto, o animal não se mexeu para atacar o homem, como teria feito com qualquer um que cruzasse seu caminho nessa noite.

Em vez disso, Red manteve a postura de ataque, mas esperou por algo. Algo que saberia que a poderia parar.

— Escolha sábia. Mesmo um lobo poderoso como você não seria páreo para magia, não é? Mas, então, como eu ia dizendo. Estou aqui para parar sua matança. Oh, não por que não era divertido, acredite-me, eu adorei vê-la em ação! É muito mais bonita do que Regina poderia descrever. Mas, infelizmente, você entraria no meu caminho se fosse mais longe. E não estou no dia certo para matar uma criatura tão bonita como um lobisomem.

O rosnado de Red lentamente morreu sua garganta, deixando que seu olhar dourado fosse a última coisa de aviso em sua postura.

— Snow White. Sua amiguinha. Regina fez um bom trabalho com aquela maldição do sono-

O nome de sua amiga foi o suficiente para destruir qualquer cuidado que Red estivesse tendo contra aquele homem. Ela voltou mais feroz do que nunca, mirando para o seu pescoço.

Longe de provar seu sangue, algo segurou seu corpo no ar, em meio ao pulo. Uma energia a envolveu e tencionou seu corpo, parando seus movimentos— E a lançando com força contra uma árvore robusta atrás de si.

Quando suas costas bateram no tronco, ela pode sentir seus braços sendo levados para trás. Seus membros, humanos. Sua visão clareou, no que poderia ao meio da fúria, e ela percebeu que havia retornado da forma de lobo. Forçada de volta.

Agora, a mesma besta, o mesmo monstro, com forma de mulher. Encharcada com o mesmo sangue. Mesmo pecado.

O suor escorrendo por sua pele a traçava fios de tensão, dançando com o passo de seu ofegar interno.

Os olhos dourados nunca deixando a figura mágica Dele.

Rumpelstiltskin aproximou-se um pouco mais, agora a menos de um palmo de distância do rosto pálido da mulher. Com olhos humanos, ela podia ver mais claramente suas feições monstruosas, rugosas. Seus dentes podres e seus olhos inumanos... Ele ainda a injetava do mesmo desgosto.

— Veja, você não me deixou terminar. Eu iria dizer que, apesar da genuína boa execução, o feitiço da Rainha não durará por muito tempo. O príncipe de Snow, Charming, está livre e atrás dela. Em fato, eu acabei de vesti-lo para a ocasião. Ele está em outra romântica jornada para reencontrar com seu verdadeiro amor. Mas, então, você. Uivando e mordendo, uivando e mordendo...  Eu não poderia deixar isso acontecer, minha cara.

Red sabia que, mesmo humana, ainda era capaz de rosnar.

— Você estava atrás dele - James - e se você o alcançasse e matasse... Bom, isso iria arruinar tudo, não? Então, vou ser generoso dessa vez, pois sei que sua maldição é de bom uso para Snow e seu exército valente: Vou deixar-lhe viver.

Red ofegou, o ar frio e úmido preenchendo seus pulmões. Antes de soltá-lo, porém, Rumpelstiltskin interrompeu.

— Sim, eu acho que você me entendeu. Sua preciosa Snow White está viva.

Ela conseguiu prender a respiração enquanto o alívio e choque a tomavam. Junto do ar, depois, foram também suas preocupações e fúrias. Mas quando conseguiu retomar o ritmo de seus pulmões, percebeu o que havia feito.

Oh, claro. Isso quer dizer que você fez uma tremenda bagunça, por absolutamente nada. Mas está tudo bem! Essas coisas acontecem conosco, monstros em fúria... Agora. — Seu tom mudou do usual irônico e debochado para algo infinitamente mais sombrio e a assustador; Até a sua voz ganhando uma gravidade inesperada. — Ouça bem — Ele agarrou o rosto de Red entre uma mão, enquanto sua magia ainda a prensava contra a árvore. — Você teve a chance de ter seu amor de volta, e a isso deve ser muito grata, pois não é sempre que a dor do luto é assim tão magicamente esquecida. Mas! Mas! Mas! Você não tem direito algum sobre Snow White. Não. Você não deve entrar no seu caminho. Porque se você pensar — Ele empurrou a cabeça da mulher contra a árvore, alterando sua voz no meio da frase — que pode ficar entre ela e seu querido Príncipe Charming, está enganada. Você não ganha nada, senão esse pequeno alívio de poder vê-la outra vez; Você volta e luta ao lado da sua amada, dando-lhe tudo e recebendo coisa alguma. Porque é para isso que você sobreviveu hoje: Para redenção; E essa é a sua forma, minha cara. Um lobo solitário. Vendo seu par ser feliz com outro homem. Porque é tudo que um animal como você merece.

Ele a largou ao chão, a magia se dispersando e a soltando da árvore.

O corpo cansado de Red caiu de joelhos no chão molhado. Suas mãos quase que falham em aparar sua queda, seu rosto perto da lama - manchada do sangue pingando por suas roupas; Sua consciência meramente escutando a voz afiada do homem sobre si; A cabeça pulsando, pedindo-a para entregar-se ao alívio, ao desespero e ao arrependimento.

— E sinta-se honrada pelo que terá, e pelo que recuperou hoje.

Sua voz havia ganhando um inesperado tom humano.

— Pois outras feras permanecem de luto.

E ele desapareceu.


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