Somos Pó E Sombras escrita por Lyllian Clarie


Capítulo 10
Capitulo X - Patos e 'Como?'


Notas iniciais do capítulo

(Lyllian - Acho que pedir desculpas não adianta... É o penúltimo capítulo gente. ^^)



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Will queria causar o Segundo Grande Incêndio de Londres. Ele gostava do frio, vivendo ali há dois anos ele tinha aprendido a gostar do clima quase permanente; mas acordara com vontade de colocar fogo na cidade inteira, para assim, talvez, espantar a sensação de ossos congelando que a neve havia trazido logo cedo.

Era novembro, ele não podia esperar outra coisa além da neve, e teria ficado até animado com a ideia de um dia branco e gelado se fosse qualquer outro dia. Qualquer outro dia, pensou jogando as cobertas de cima do corpo exasperadamente.

Aquela semana havia sido em particular muito difícil para todos do Instituto, pois Will se encontrava de péssimo humor. Nas palavras de Jessamine, que havia explodido no jantar da terça, o menino: “já é insuportável normalmente, mas nessa semana está pedindo para ser atirado da janela mais alta da torre de Londres!” Seu estado era tão critico que havia rosnado – rosnado! – para Charlotte quando ela lhe pedira que passasse as torradas no café da quarta. Nem Jem estava escapando de sua acidez; quando o amigo se voltara para reclamar da atitude extremamente grosseira dele – mas não incomum – Will se virara com um olhar gelado.

“Não venha me passar sermões, Carstsairs.” E saíra da mesa furiosamente indo direto para sala de treinamento. Pelo resto do dia não falara com ninguém, ignorando completamente as batidas e reclamações de Jem contra a porta da sala trancada, e nem para o jantar havia aparecido.

Simplesmente não estava com vontade de falar com ninguém, nem com vontade de conviver com ninguém, seria pedir demais que lhe deixassem em paz? Sua atitude, por mais apática que fosse, tinha uma explicação, mas ele não estava com a mínima vontade de dizê-la a ninguém (e tecnicamente, por regra própria, não podia), então continuou agindo como um completo bárbaro sem dar nenhuma satisfação. Até chegar sábado.

Maldito calendário. A contagem dos dias podia não existir em novembro.

 Especificamente, 10 de novembro, o dia em que se lembrava com mais força da sua família, que havia deixado há exatamente dois anos atrás. Parecia algo idiota para se lembrar, como um tipo autoflagelação, mas era inevitável. E ao mesmo tempo frustrante por não poder fazer nada em relação a isto. Ano passado ele tentara escrever uma carta, mas assim que terminara, tinha jogado-a lareira adentro e observado o papel murchar e virar cinzas.

Assim, tudo que podia fazer era ficar de mal humor. Na sua cabeça, ele tinha esse direito.

Will quebrou a fina camada de gelo que envolvia a água do vaso e jogou um pouco dela em seu rosto. Imediatamente estremeceu com o ato, ela estava gelada. Ele odiava constatar o óbvio, mas ali não teve escolha. Olhou-se no espelho e teve um leve espanto com a própria aparência; os cabelos estavam desengrenhados e apontavam para todas as direções, como devia de ser para alguém que acabara de levantar. Seus olhos estavam mais escuros que o normal, atingindo um tom quase violeta, e isso fez com que ele se lembrasse da mãe, que possuía os seus no mesmo tom. O que tinha o assustado era a expressão de abatimento, se fosse para chutar, Will diria que o garoto refletido no espelho não tinha dormido há dias e fazia tempo que não se alimentava decentemente; o que não era exatamente uma mentira.

Ele respirou fundo e decidiu se arrumar.

Enquanto se vestia, Will pensou no que fazer naquele dia. De certo não queria passar as horas trancado dentro do Instituto vendo todos lhe lançarem olhares de curiosidade e raiva – esses por parte de Jessamine e Church, que não ficara nada feliz com o fato de Will ter pisado em sua cauda na quinta. Mas também não queria ficar lá fora, olhando a neve cair placidamente, isso apenas o ajudaria a pensar. E ele definitivamente não queria pensar.

Sala de treinamento. A ideia lhe surgiu fraca, e ele aceitou-a com desânimo. Mas seria bom, ao menos ocuparia sua cabeça confusa.

*

Pá. Pá. Pá.

A sensação de acertar as três facas no alvo foi boa. Mas para Will a melhor sensação era a de segundos antes de atirar a lâmina, quando a expectativa do acerto ainda surgia e lhe fazia por vezes morder o lábio. Essa pequena emoção estava ficando cada vez menor com a prática. Dois anos antes, ele era um desastre no arremesso, agora não podia dizer que era o melhor atirador, mas ao menos conseguia acertar o alvo mais de dez vezes seguidas. Tudo isso graças a Jem, claro, que o ensinara a como segurar e alinhar a lâmina em meses de trabalho duro; ele tinha sido um aluno difícil.

Mas Will não queria saber de Jem naquele momento, queria apenas esquecer tudo. Se pudesse, esquecer que era um Caçador de Sombras, justamente o que o tinha feito se separar de todos.

Não, esse pensamento era tolo e infantil. Não era por ser Nephilim que tinha fugido de casa, a culpa tinha sido dele. E agora, ser Nephilim era o que o mantinha vivo, com um propósito e também, agora isso fazia parte de quem ele era. Definitivamente não queria esquecer-se disso.

Pá. Pá. Pá.

Mais três no lugar certo. Quis continuar a arremessar mais teria que ir pegar as que estavam fincadas, normalmente ele treinava com dez, mas hoje estava apenas com seis. Devia ter pegado mais dessas malditas.

Quando já voltava para sua posição, ouviu três batidas suaves e viu a porta abrir. A cabeça de Jem apareceu com um sorriso pequeno e ele entrou na sala sem fazer barulho. Por que não tranquei a porta?! Will repreendeu a si mesmo, mas não falou nada para impedi-lo de sentar-se no chão próximo a um das colunas. Parte de si desejava que o amigo o ajudasse, de qualquer forma, e a presença dele – desde que não começasse a fazer perguntas – era confortante.

“Esta nevando.” Jem falou, neutro.

Pá. Pá. Pá.

“Percebi logo de manhã, a não ser, é claro, que aquilo branco caindo do céu seja açúcar.” Constatação do óbvio, realmente desnecessária.

Jem fez careta, mas não disse nada, devia ter pensado em algo mais inteligente para dizer do que ‘está nevando’.

Pá. Pá. Pá.

Enquanto observava Will ir atrás das facas Jem decidiu o que fazer. Assim que tomara o caminho para a sala de treinamento já havia colocado na cabeça que precisava fazer algo para ajudar o amigo. Sim, pois estava claro que Will estava passando por alguma coisa ruim que não contaria nem sob tortura, e Jem precisava ajuda-lo. Coisa que, parando para pensar, não havia feito ano passado. Quando na mesma época – se ele não se enganava, no mesmo mês – Will passara a agir da mesma forma inóspita. Naquele ano, Jem ainda não conhecia as nuances do comportamento do amigo e pensara que se ele precisasse de alguma coisa, falaria. Mas agora sabia que não, Will jamais pediria por ajuda. Então, o que Jem iria fazer era ajuda-lo mesmo sem o pedido.

“Se arrume. Nós vamos sair.”

Will parou no meio do caminho e olhou para Jem com uma sobrancelha arqueada, a pergunta em seus olhos.

“Sim, sair. Vim aqui lhe avisar sobre isso; Charlotte nos mandou ir verificar um certo grupo de lobisomens que anda atacando mundanos um pouco longe da cidade, e ela tem assuntos a resolver aqui. Então se vista porque temos que ir agora.” Jem ficou bastante satisfeito com a pequena mentira que acabara de contar, como não era muito bom com isso achou que ela havia ficado bastante convincente.

Exceto por Will ainda manter uma sobrancelha levantada.

“Se veio me falar isso, porque não disse assim que entrou?”

Jem fez um enorme esforço para não engolir em seco, sabia que Will perceberia a ação como ato de nervosismo, fora ele próprio que o ensinara a notar isso.

“Por... Queria ver o que estava fazendo.” Disse o mais relaxado que pode se manter.

Will franziu a testa. Aquilo lhe parecia esfarrapado, mas... Por que Jem inventaria algo daquele tipo? Geralmente era ele que não gostava de se envolver com conflitos, não parecia lógico que tivesse mudado de hábito tão rápido.

“Certo. Já estou indo.” Ele respondeu por fim, seco. Preferiria ficar descontando sua frustração nas facas e não indo atrás de lobisomens em algum lugar que fosse mais longe do que 20 passos.

Will bufou arremessando uma faca pela última vez, ele devia ter deixado a porta fechada.

*

Enrolado em seu casaco, Jem observou o amigo pelo canto do olho. Eles estavam andando para o tal lugar depois de terem deixado os cavalos amarrados em uma árvore no começo do bosque. Haviam concordado que era melhor deixar os animais longe para serem mais discretos e conseguirem mais agilidade.

Assim que começaram a andar pela neve, afundando os pés a cada passada, sentindo o vento cortante passar por entre os galhos envolvidos pelo cobertor branco, Jem havia se mantido atrás. O ar frio e o esforço da caminhada estavam fazendo seus pulmões queimarem e causando uma quase inevitável vontade de tossir. Mas o menino notava que Will estava preocupado com algo além do normal, e não queria lhe dar mais motivos para mal humor começando um ataque da doença ali, então tentou se segurar.

Quando eles começaram a se afastar da cidade, os cavalos correndo em uma marcha uniforme e continua e a paisagem começado a se transformar com as casas e prédios dando lugar às árvores brancas e cinzas do inverno, Jem pode perceber a expressão de Will mudar. Os vincos de sua testa se anuviaram e sua boca relaxou; assim ele percebeu que tinha feito à coisa certa em tira-lo do Instituto. Tudo isso melhorara ainda mais quando, ao passarem por uma árvore caída e quase engolida pela neve, Will havia rido dos patos que estavam impedidos de passar.

A partir daí eles tinham mantido uma conversa animada e cheia de risos. Jem comemorara a vitória silenciosamente, mas ainda mantinha o olhar no amigo, observando até mesmo seus suspiros quando eles passavam muito tempo calados e ele olhava para o branco parecendo desolado.

“Acho que chegamos.” Jem falou quando eles avistaram uma cabana abandonada.

Quando deixara Will na sala para se preparar para saírem, ele havia corrido – literalmente, quase derrubando a pobre Ágatha no caminho – para a biblioteca e implorado a Charlotte um lugar que parecesse suspeito de atividade lupina. Ela havia franzido a testa e Jem alegara que precisava distrair Will, e tira-lo dali seria a única forma de fazer isso. A mulher assentira reconhecendo (concordando que a atitude dele estava mais do que insuportável) e havia sugerido um pequeno bosque a 2 milhas da cidade onde a muito tempo numa cabana dois jovens lobisomens tinham sido encontrados.

Claro que não haveria mais nada lá, Charlotte lhe assegurara disso, eles já haviam sido incorporados a um bando; mas Will não sabia disso, e eles só precisavam sair para algum lugar, não encontrar nada de verdade.

Will olhou para a casa inclinando a cabeça.

“Isso está deplorável, ninguém vive aqui.” Em seguida aproximou-se do lugar perto o suficiente para chutar um pedaço de madeira fincado na neve. O barulho surdo assustou dois esquilos cinzas que correram para a árvore coberta de gelo mais próxima. “Veja, até John e Johanna correm.”

“Quem?” Jem encarou o amigo que se baixara para pegar um punhado de neve.

“Os esquilos.” Disse simplesmente, e aquele era um dos momentos que não se devia questionar Will.

“Você sabe, os esquilos correram por culpa sua.” Jem se pôs ao lado dele e teve que concordar; aparentemente, as únicas criaturas vivas ali era ele e Will – sem contar com John e Johanna, claro.

“Óbvio que não.” Ele apertou a neve formando uma pequena bola disforme e deixou-a cair. “Vamos entrar.”

Will sabia que Jem o seguiria então apenas andou até o casebre decadente.

Aquela coisa sem sentido que eles estavam fazendo tinha sido uma boa ideia, as conversas com Jem, e o local diferente, tiravam de sua cabeça os rancores do dia. Assim, ele apenas decidiu que iria deixar Jem distrai-lo, mesmo que o amigo não soubesse que estava fazendo isso.

“Acha que eu devo bater?” Will parou em frente a porta de aparência frágil e encarou Jem como se aquela questão fosse definir o destino da humanidade.

O outro menino o olhou de volta. “Claro que não Will.”

“Ora, mas porque não? É uma casa, uma casa mal acabada, mas ainda sim uma casa. Possui uma porta. Eu não sei quem se encontra lá dentro, assim, não tenho intimidade o suficiente para entrar sem bater. Logo, minha educação ordena que eu bata para entrar.”

“Will, sinceramente.” O garoto suspirou impaciente.

“Sinceramente o quê? É um questionamento válido. Começo a pensar agora em todas as casas de estranhos que entramos sem a devida permissão que a cortesia exige; em todas as portas que perpassamos sem a devida batida rítmica; em todas as pessoas que deixamos perplexas pela nossa falta de-”

“Will, abra a porcaria da porta antes que eu lhe chute.”

Os olhos do garoto brilharam em divertimento e ele fez cara de assombro.

“Você acabou de praguejar contra a porta?!”

“Eu estou lhe avisando Willian-”

“Shhh!” O amigo acenou impaciente com a mão pedindo silêncio. Jem juntou as sobrancelhas sem entender a repentina mudança de comportamento – um pulo gigante de declamador da cortesia das batidas para ouvinte de porta.

“O que foi? Escutou alguma coisa?” Ele sussurrou, aguçando os ouvidos para ouvir qualquer coisa.

“Estou tentando, mas por acaso tenho uma matraca ao meu lado.” Will lançou olhar irritado para o amigo que apenas bufou. Segundos de silêncio depois um ruído muito parecido com passos de uma pessoa descalça pareceu adiantar-se para longe. “Que estranho.”

“O que é estranho? Parece uma pessoa sem sapatos.” Ele continuou sussurrando, mesmo que Will não estivesse fazendo isso.

“Justo isso é estranho.” O garoto olhou para o amigo como se fosse algo óbvio de se perceber. “Deu uma olhada no tempo? Está nevando. Por que alguém normal iria ficar sem sapatos nesse frio?” Ele achou melhor colocar ênfase à palavra normal.

“Então o lógico é que não seja alguém-. Ah! Você está falando isso.” Will gesticulou para Jem lançando um olhar significativo.

“Acho que sua massa cerebral congelou James.” Ele falou em tom de preocupação e Jem prontamente aplicou-lhe um corretor de frases idiotas. “Não me bata por isso.” Em seguida assumiu uma expressão séria e falou apenas movendo os lábios. “Quando eu disser três, entramos.”

Jem assentiu e viu o amigo contar em silêncio usando os dedos e os lábios: um, dois... TRÊS.

Com a perna direita Will chutou a porta perto de onde deveria haver uma maçaneta e sorriu quando ela quebrou facilmente e a passagem foi aberta. Mas logo seu sorriso morreu e ele congelou onde estava.

Jem se surpreendeu com duas coisas: a) o jeito que Will entrara no casebre. Quando ele falara, Jem não havia pensado que fosse ser daquela maneira, ele esperara algo mais suave e sorrateiro. b) a paralisia repentina do amigo. Depois que a porta quebrou na frente deles ele tinha visto Will entrar casa adentro com um sorriso vitorioso e logo depois parar no lugar, com uma expressão de pânico.

O garoto procurou no ambiente – uma sala vazia minúscula com móveis estraçalhados – algo que pudesse ter causado a ação do amigo, mas não achou nada, absolutamente nada (a não ser que Will tivesse acabado de desenvolver fobia a cadeiras e mesas despedaçadas, é claro).

“Will, o que foi?” Ele não viu alternativa a não ser perguntar.

Sua mente estava em pânico, não havia outra descrição. Will queria fazer várias coisas desde pular desesperado a sair correndo. Assim, ele não conseguiu achar uma ação que obrigasse sua boca a responder o amigo.

Combinação péssima: sala apertada + Will +... Um pato demoníaco.

Ele olhou suas opções em uma fração de segundo e rapidamente correu para o sofá mais próximo e subiu até que se viu empoleirado em cima de um precário armário a uns 2 metros do chão; o mais longe que ele podia ir da criatura no espaço apertado – a saída completamente livre de porta como havia se encontrado a suas costas não entrara no seu campo de visão, logo, no momento das escolhas rápidas, não existira.

Ali em cima, longe do demônio, sua cabeça voltou a pensar racionalmente, fazendo com que ele percebesse onde estava para logo depois se segurar mais para se impedir de sair. Ele viu Jem olhar para ele como se... Como se ele, sem explicação nenhuma, tivesse subido em um armário e passado a olhar para baixo com pavor – o que, tecnicamente, era o que tinha ocorrido.

“Willian... Eu... Realmente não sei o que dizer dessa sua loucura.” Ele conseguiu formar uma frase; louvável.

“Pato” Will conseguiu falar, aquela palavra amaldiçoada devia ser explicação suficiente para Jem, mas não, claro que não; o cérebro dele tinha congelado mesmo.

“Como?” Jem merecia, na cabeça de Will, ser apedrejado por fazê-lo repetir.

“Um pato!” E antes que ele tornasse a repetir ‘Como?’, ele falou: “Tem o demônio de um pato aqui!”

Jem encarou o amigo, tentando decidir se ele falava sério, ou era uma brincadeira. Assim que decidiu que era sério, explodiu em uma gargalhada.

Will semicerrou os olhos e tentou decidir se uma lâmina serafim atirada na cabeça do amigo daquela altura poderia mata-lo ou apenas causaria um ferimento grave o suficiente para fazê-lo parar de rir. Mas talvez ele não tivesse que matar o amigo, a criatura parecia estar morrendo sozinha.

45 segundos inteiros, 4 tomadas de fôlego e três tentativas de seriedade depois, Jem parou de rir. Will encarou-o com seu olhar mais mortal.

“Pronto?” Perguntou acidamente, mas provavelmente não teve o efeito que desejava; ninguém conseguia ameaçar nada se estivesse de quatro em cima de um armário se agarrando a ele com todas as forças e tivesse subido lá para fugir de um pato.

“Desculpe” Mas Jem ainda tentava não sorrir.

Will revirou os olhos e respirou fundo, era provável que sua situação fosse ficar mais humilhante do que já estava. Não que isso fizesse muita diferença já que ele tinha o próprio satanás a dois metros dele.

“Você faria a gentileza?” Perguntou contrariado.

“Como?” O outro garoto possuía um ar risonho e Will decidiu que se ele dissesse ‘como?’ mais uma vez naquele dia ele iria atirar o objeto pontiagudo mais próximo.

“Faria a gentileza de...” Ele tentou continuar, mas seu rosto esquentou e ele desviou o olhar. Jem parecia realmente curioso e o encarava sem entender, na verdade ele não estava entendendo nada fazia algum tempo.

“Consegue explicar melhor?” Will tomou fôlego para responder a pergunta do amigo de uma vez só.

“Tireaporcariadodemôniodaqui.”

“O quê?!”

Ele perdeu a capacidade de escutar junto com o cérebro dele. Will bufou irritado e tentou repetir mais devagar.

“Poderia. Tirar. A. Porcaria. Do. Demônio. Daqui?” Ele rosnou por entre dentes.

Compreensão iluminou o olhar de Jem e ele entendeu porque Will estava tão relutante em falar. Resolveu que não era todo dia que podia irritar o amigo e que ele deveria aproveitar a oportunidade.

“Você está falando daquele minúsculo pato que está atrás daquela cadeira?” Ele abriu um sorriso quando o rosto de Will se contorceu em uma careta.

“James, se você não tirar aquele demônio daqui agora, vai se arrepender pelo resto da sua vida.” Will rangeu os dentes agarrando-se no armário com mais força para não voar – literalmente – no pescoço do tratante.

“E você não esta em posição de fazer ameaças.” Jem quase cantarolou, mas sabendo que Will podia muito bem tornar sua vida um inferno por conta de um simples pato, sorriu mais uma vez ao ver o amigo contorcer o rosto mais ainda quando ele se abaixou aos pés da cadeira.

O pobre ‘demônio’ se contorceu para tentar fugir das mãos de Jem e agitou as patas vermelhas no ar quando ele o ergueu.

“Atire-o pela janela!” Will pediu fervorosamente.

“Não acha que vou matar a pobre criatura por uma loucura sua, acha?” Will encarou-o como se essa fosse uma opção completamente aceitável. Jem balançou a cabeça, negando. “Eu vou segurá-lo enquanto você desse dai e sai pela porta como se fosse uma pessoa normal.”

“Você não pensa que vou desfilar na frente desse assassino como se pedisse por uma mordida, pensa?” Will perguntou sarcasticamente e Jem olhou para o animal que tremia em suas mãos.

“Eu estou segurando ele Will. Desça do armário e saia. Quando você sair eu solto ele.”

Will não estava gostando daquele rumo; e se o demônio se soltasse das mãos de Jem e o mordesse da perna? Ou saísse correndo atrás dele? Você é um caçador de sombras. Mata todo o tipo de demônios assassinos, pode muito bem correr de um. Sim, ele podia correr e subir na árvore mais próxima, caso a criatura fosse atrás dele. É, ele podia fazer isso.

Respirou fundo pelo que parecia ser a milionésima vez desde que avistara o satanás, e começou a descer do armário. A madeira do móvel estava podre em alguns lugares e ele sentiu-o balançar sob seu corpo e antes que a coisa pudesse desmoronar Will aterrissou no chão.

Imediatamente virou-se de frente para Jem que segurava o demônio. De dois em dois passos lentos ele foi saindo da casa lentamente, sem tirar os olhos da coisa em nenhum momento. Ele permitiu suspirar de alívio ao se agarrar no portal e ver que Jem continuava segurando a criatura.

Mas a sua felicidade durou pouco, seu sorriso já estava se formando quando o demônio resolveu mostras as garras. O pato dos infernos forçou as asas e num pulo foi das mãos de Jem para o chão. Will congelou assim que viu os olhos negros da criatura fixos em sua perna, com a nítida expressão assassina estampada na cara, claramente planejando a forma mais sangrenta de dilacerar sua carne. Não ocorreu ao garoto em nenhum momento que talvez, só talvez, o pato estivesse olhando para porta atrás dele.

Quando o demônio abriu a boca e emitiu um ruidoso: “Quack!” Will já estava correndo. Olhou para trás uma vez e viu o demônio se camuflando na neve e ainda atrás dele; aumentou mais a ainda o passo.

Em três minutos ele já estava em cima do cavalo apertando nervosamente as rédeas de couro enquanto esperava Jem que só chegou 20 minutos depois.

“Você veio lentamente de propósito!” Will acusou quase gritando, fazendo seu cavalo dar passos indecisos.

“Para prolongar sua irritação? Eu jamais faria isso.” Jem se virou para subir na sua montaria enquanto escondia um sorriso.

“Você vai ver.” Ele bufou e fez o cavalo galopar espalhando neve.

Jem apenas riu e foi atrás do amigo na mesma velocidade.

§

“Você pretende comer todo o bolo de chocolate?” Jessamine revirou os olhos quando Will colocou – pelas contas dela – a sétima fatia no prato.

“Não sabia que era tão gulosa Jessie, a metade do bolo não é suficiente para seu apetite monstruoso?” Will sorriu quando a garota bufou e concentrou sua atenção na faca em sua mão como se quisesse atirá-la no nele.

Charlotte observou a pequena cena e vibrou por dentro quando viu o sorriso de Will. Era um sorriso de deboche, como a maioria dos que ele dava, mas mesmo assim ela considerava melhor do que nenhum. Depois olhou para a cadeira vaga ao lado do garoto e sua vibração esfriou. Jem tinha feito muito bem ao estado de espírito de Will, mas o mesmo não podia ser dito de sua saúde. O clima frio havia feito com que o menino ficasse em seu quarto recolhido para tomar mais daquela droga que o matava e o mantinha vivo.

Ela suspirou e olhou novamente para Will, que sorria para seu pedaço de bolo. Ele não sabia, claro. Se soubesse estaria ao lado da cama do amigo e não na mesa de jantar. Mas Jem havia pedido a Charlotte que não contasse que aquela pequena saída tinha piorado sua tosse. “Não é nada grave.” Ele dissera. “Não o preocupe a toa.”

Charlotte sabia porque Will estava daquele jeito, se não sabia de certeza ela tinha uma forte suspeita. Naquele dia fazia dois anos que o menino magro havia chegado sozinho debaixo de uma chuva torrencial, dito que era um Nephilim e informado que iria começar seu treinamento. Ela se lembrava de como o achara corajoso ao dizer tais coisas e de como vira seu pequeno corpo tremendo na chuva.

Will devia sentir falta da família. Mas ela não sabia o que fazer, então quando Jem pediu um lugar para distrai-lo comemorou e quase puxou-o para um canto para contar o que ela achava ser o motivo do comportamento de Will. Mas pensou ser uma coisa pessoal do menino e apenas disse um lugar qualquer. Ela via agora que tinha feito uma boa escolha.

“Não fique olhando desse jeito para mim, Lottie, ou posso pensar que está me cortejando.” Will sorriu enviesado para a mulher, que ruborizou. Definitivamente ele tinha voltado ao normal.

“Não seja tolo Will.” Ela disse e olhou com preocupação para Henry, sem saber o que ele pensaria de tal comentário. Felizmente – ou infelizmente para ela – seu marido mostrava mais interesse para seu prato de ervilhas que em que espetava cuidadosamente cada uma com seu garfo.

Will riu mais uma vez e se levantou teatralmente.

“Vou ver Jem.” Anunciou saindo as mesa e depois virou-se para Jessamine. “Sorria Jessie, o resto do bolo é seu.” E gargalhou quando ouviu Jessamine bufar mais uma vez.

*

“Will? É você, Will?” Ele ouviu o violino parar e a voz de Jem através da porta grossa.

“E quem mais seria? A Rainha?” Ele sorriu quando o amigo revirou os olhos.

“Você está de bom humor então.” Jem se sentia bem melhor desde que tinha tomado sua dose, e agora que via o sorriso de Will o alivio foi completo.

“Eu sou um poço de bom humor.” Ele murmurou e sentou na cama do amigo. Testou o colchão com alguns pulos e deitou-se sem nenhuma vergonha, colocando confortavelmente as botas em cima.

“Se isso é verdade, então eu sou a Rainha.” Jem resmungou.

“Jem, se você falar alguma coisa sobre o que aconteceu hoje, sua morte será lenta e dolorosa. E eu farei de tudo para envolver o máximo de lâminas possível.”

Jem sorriu, saboreando o que iria fazer.

“Como?” Perguntou insolentemente.

Will atirou o travesseiro na cabeça de Jem.


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Notas finais do capítulo

(Lyllian - Deixem comentários para eu saber como está... Please)