A Corrida Universal escrita por Thiago Olivieri Dantés


Capítulo 7
Cap. VII / Síndrome de Centopeia




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– Boa noite, meu amor, como foi seu dia, né? Respondi com um tom irônico e brincalhão.
- Talvez ainda possa ser uma boa noite. Que boas novas você traz de seu ''trabalho''? Disse Mariana fazendo sinal de aspas com os dedos ao proferir a ultima palavra.
- Sim, trago. Chegou hoje uma nova leva de livros, tudo edição recente e...
- Ah, me poupe! - Disse ela, fazendo pouco caso e desdenhando do que para mim era um progresso - Eu estou falando de dinheiro, cash, bufunfa, money, faz-me-rir.
- Ele logo vem. Os clientes estão começando a chegar, e como eu disse, nós agora temos novos livros. Não demora muito para a biblioteca faturar.
Mariana meneou a cabeça de forma negativa, deu de ombros, suspirou e respondeu calmamente enquanto ajeitava seus cabelos:
- Heitor, você já me disse o mesmo no mínimo umas três vezes. Não consigo mais acreditar.
- Pois acredite, meu amor, desta vez vai dar certo.
Segurei-a pela mão com leveza, sentei em minha cama e fiz com que se sentasse em minha perna. Ela acariciou-me os cabelos e ficamos por algum tempo enfiados um nos olhos do outro. Creio que meus olhos refletiam esperança e os dela eu pude ver que refletiam o oposto. Mesmo mudos conversávamos por intermédio das janelas da alma, a conversa mais sincera. Coisas de casal. Você há de compreender caso já tenha encontrado sua consorte, leitor.
Foi Mariana quem enfim quebrou o silêncio.
- Sabe, as vezes fico pensando comigo mesma: ''ele é inteligente, formado e tem um belo curriculum. Deveria ter um ótimo emprego.
- Eu estou iniciando o meu próprio negócio e de quebra ainda faço o que amo. Como poderia ser melhor?
- Como? Dando dinheiro. Simples.
Eu já estava prestes a perder a paciência.
- Dinheiro, dinheiro e mais dinheiro. Isto já chega a ser ganância.
- Ganância não, é necessidade.
- Eu sei que o dinheiro é um mal necessário, mas não é o essencial para a vida, e como assim necessidade? Eu não te deixo faltar nada. Ou deixo?
Ela levantou de forma abrupta e por muito pouco não atingiu-me o rosto com seu ombro.
- Quer mesmo que eu fale? Pois bem. Eu já não consigo mais me lembrar quando foi a ultima vez que comprei um sapato novo. Serve de exemplo?
Explodi:
- Hare! por Vishnu! Você tem diversos pares de sapato, todos em ótimo estado. Isto já é síndrome de centopeia!
Ela me olhava assustada e eu prossegui:
- Mas eu entendo, este é o comportamento normal da pessoa, que como você, não tem um propósito maior para a vida, então busca conforto em coisas fúteis.
Seus olhos antes secos e frios, tornaram-se marejados, então eu pude ver o quanto eu a tinha humilhado. Tarde demais. Mariana catou seu travesseiro e saiu do quarto batendo a porta novamente, sem dizer se quer uma unica palavra monossilábica. Cabia a mim ir ter com ela e implorar por perdão, mas não, no meio da noite ela voltaria, após ter refletido sobre o ocorrido de cabeça fria. Deitei, fechei os olhos mas foi envão, o sono havia ido embora, talvez Mariana o tenha levado com sigo naquele travesseiro. A cama que outrora era macia como um pedaço de nuvem, tornara-se uma tábua de faqui, e eu ia rolando de um lado para o outro como um faqui principiante ainda não acostumado com o ofício. Era o peso na consciência, que quando ataca, não perdoa o sono de ninguém, nem dos mais bem sucedidos reis. De fato o melhor dos travesseiros é a consciência limpa.
Sendo assim, como de costume, minha mente pôs-se a recapitular as ultimas vinte e tantas horas. Lembrei do Garfield, do quadro de Edvard, da discussão no bar e fui remoendo tudo isto por longas agoniantes horas, até que a paz física, mental, moral e espiritual foi reestabelecida e finalmente dormi.


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Notas finais do capítulo

¹ - Hare é uma invocação ao aspecto feminino de Deus na cultura indiana. Vishnu é um deus do hinduísmo.



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