Mantendo O Equilíbrio - Um Novo Amanhã escrita por Alexis terminando a história


Capítulo 27
Capítulo 26


Notas iniciais do capítulo

Já aconteceu com vocês de ficar lendo o capítulo na hora de postar? uashuashas E olha que eu já tinha revisado.

Enjoy.



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- O que mais você tem guardado, hein?

É tanta coisa que mal saberia por onde começar. O que respondo?

- Nada.

- Você chama assédio moral de nada?

Na maioria das vezes, sim.

- Vini, eu tô cansada... Murilo não deixou quase eu dormir. Posso remarcar o interrogatório pra daqui a umas... 3h? Tá bom pra ti?

Estava na casa dele, meu irmão teve que ir para o trabalho cedo, não quis me deixar sozinha em casa, não no estado que me encontrava. Ele mais foi empurrado que outra coisa, pois noite passada com a confusão na faculdade, além de chegarmos tarde, fomos deitar de madrugada... discutimos mais uma vez. Cedo da manhã me fez levantar pra me trazer. Na sua cabeça Djane estaria em casa, para não deixar eu e Vini sozinhos na nossa. Ela na verdade teve de ir para a faculdade, reunião de emergência com a direção e o departamento. Havia dona Ana por lá pelo menos, disse que iria preparar uma comida que iria me animar.

Nisso, eu só queria tombar a cabeça e dormir, me sentia desgastada. Vini cuidava bem de mim, verdade, menos quanto à parte de perguntar demais. Mais um pouco eu responderia qualquer coisa nada a ver:

- Te disse que um dia esse orgulho todo iria te prejudicar, Lena. Olha o que aconteceu. Essas coisas tem que denunciar, não é qualquer coisinha não. Me preocupo demais, você não pode ficar engolindo qualquer coisa porque acha que aguenta.

Eu já tinha decidido – e anunciado – que não mais iria na aula daquele homem. Só não tinha dado tempo de ter pensado em algo pra me encobrir.

- Vini...

- Eu sei. Te deixo dormir só depois que me sentir tranquilo, tá? Me diz o que aconteceu lá, como foi que...?

Volto um pouco minha cabeça para trás para vê-lo melhor. Estávamos deitados na sua cama, comigo ao seu dorso, abraçando seu corpo tenso. Para relaxar talvez demorasse um pouco.

- E Djane já não te disse?

- Minha mãe não estava naquela sala, estava?

Bom ponto. Coço os olhos, bocejo um pouco, não é encenação. Murilo não me deixou dormir mesmo. E se eu não o tivesse impedido, taria numa delegacia de novo. Ele quis porque quis avançar no professor, tirar satisfações, não ouvia nada, nem ninguém. Djane teve que chamar os seguranças pra movê-lo dali.

Uma vez lá fora, ele não queria arredar o pé enquanto não visse a cara do professor Bart. Uma luta grande foi pra enfiar ele de volta ao carro para ir embora, mas conseguimos. Infelizmente, nessa hora que manobrava o carro para sair da vaga, foi que o professor Bart deu as caras lá na portaria.

Nesse momento fez-se silêncio. Murilo podia não saber quem ele era, como era, mas soube no mesmo segundo, pois quem ainda estava na calçada era Djane, Flávia e Gui, e eles pararam onde estavam. Dentro do carro com meu irmão, vi professor Bart acusar algo para Djane, vi Vinícius descer de seu carro, bater a porta forte. Iria aumentar a confusão se uma pessoa não fosse rápida o bastante de fazer algo.

Às costas de Bart surgiu o professor Carvalho, já fora da instituição. De novo vieram os seguranças da portaria, pois Renato Carvalho deu um tamanho soco na face de Bart. Como o estacionamento da frente estava mais vazio, mal havia alunos por ali, o soco se fez audível. Abri minha porta assim que vi meu irmão abrindo a dele, fui em sua direção para barrá-lo.

- Não, Murilo, para.

Com força, ele se desvencilhava fácil de mim, que não podia contra ele. Mesmo assim, não saía de sua frente.

- Me deixa, ele vai aprender a nunca mais mexer com aluna alguma. Nem com ninguém mais.

Não era só por mim, era por Djane também. Isso o deixava mais maluco.

- Ele já apanhou, vamos embora. Por favor.

- Não.

Num movimento rápido, me passou para trás. Vinícius já estava sendo amparado por Gui e Djane, ele queria avançar no professor, os seguranças tentavam conter, chamavam outros pelo aparelho deles. Um, felizmente, conseguiu barrar Murilo. Podia, na realidade, estar barrado fisicamente, pois isso não o impedia de xingar. Ou proferir quaisquer outros impropérios em injúria.

- TÁ PENSANDO QUE PODE MEXER COM ELAS? DEIXA EU TE MOSTRAR QUEM É QUE... ME SOLTA, CARA... TU NUM VAI EMBORA NÃO, TÁ ME OUVINDO, SEU FILHO DA PUTA? EU VOU TE... PORRA, ME SOLTEM, CARAMBA.

Nem quando o carro de professor Bartolomeu se foi, meu irmão parou de gritar com ele. Ou o vento. Sob o céu estrelado, vendo a bagunça que restou, eu só pude agradecer que no dia seguinte não haveria aula.

Vini me puxa para a realidade:

- Agora que passou, você pode me dizer. Esse maldito fez algo para minha mãe?

- Não mais que discussões ou provocações. Não passou do verbal, isso posso assegurar. Tua mãe também não deixava barato, ela muitas vezes o enfrentou não importasse o lugar. Isso a desestabilizava, claro, foi muita pressão. Mesmo antes de ela aceitar o cargo.

- E por que não disse nada, Lena? Poxa, eu insisti tanto nisso e todas as vezes você só dizia que não era nada demais. A gente teve que passar por cima de seguranças e nem assim conseguimos pegar o cara.

- Estou aqui e inteira, não estou?

- Lena...

Ele usa aquele tom de “não vou desistir”. Então finalmente conto a ele:

- Ok, ok... Foi tudo muito rápido e coincidente. O caso é que fui na secretaria pra pegar uma segunda via do boleto de pagamento, tava todo mundo aperreado lá, por causa dessa aparição surpresa do reitor. Aí um amigo meu pediu que eu buscasse uma pasta que havia ficado na sala de reuniões, que ele não poderia sair dali no momento. Eu fui. Na hora de voltar, que Bart entrou na sala. E começamos a discutir.

- O que ele disse? Como que todos chegaram a ouvir?

- Nem sei quando começaram a ouvir tudo, o que não foi muito. Mas teve uma hora, lembro bem, que ele foi para o lado do painel de controle, colocou umas coisas lá em cima, aí se virou e se encostou. Nisso a discussão já rolava. Eu questionei sobre a segurança dele de se safar daquilo, ele jogou-me a verdade. Que ele... ele se aproveitava do meu orgulho.

A última parte é vergonhosa pra mim por ter sido um dos avisos de Vinícius desde o começo. Saiu sussurrada até. Me sinto insegura pelo que vou ouvir de meu namorado, porém, me restava umas poucas convicções:

- Eu te fal...

- Vini, eu já era apontada como caso de favoritismo. Mais um caso, ele sabia que ia recair sobre Djane. Era isso que ele queria. Eu a protegia, por isso segurei a barra por tanto tempo. Na sala de aula ele me avaliava mal, me dava notas baixas, não importasse se eu entregasse um papel em branco ou impresso a ele. Fora da aula, também me desrespeitava, discutíamos... Tive que engolir, foi isso. Decidi naquela hora que iria me reprovar por falta, só para não lhe dar o gostinho.

- Minha mãe vai brigar com você, sabe, né?

- Sei. E você, vai gritar comigo?

- Devia, Lena, eu devia.

- Mas... não vai?

Não pareceu bem uma sugestão para não fazê-lo, mas sim de fazê-lo. Porque quis que brigasse feio comigo.

- Tô pensando no caso, num te anima não. Só tem uma coisa que ainda não entendi nisso tudo... Por que aquele professor, o tal Renato, deu um soco no maldito Bartolomeu naquela hora? O que ele tem a ver com tudo isso?

Hmmmmmm. Me viro na cama abraçando-o mais, inspiro seu cheiro e finjo que não sei o que foi aquilo. Imagino o que seja, certeza eu não tenho. E dizer isso pra Vinícius são outros quinhentos.

- Num sei, Vini, já posso dormir?

~;~

Quando falei que queria dormir, era porque meu corpo realmente pedia por isso. Dormi e muito. Daqueles descansos que na realidade se dorme por horas, porém, o seu corpo processa como pouco. Só acordei mesmo pela zoada, era... Abri um olho, me ambientei e ouvi melhor. Era sim marchinha de carnaval, de alguma casa da vizinhança. Devagar virei-me na cama, percebi que Vinícius não estava mais lá. Ousei olhar o seu relógio de parede, marcava pouco mais de 4h da tarde. Num segundo eu saltei em mim mesma, noutro lembrei que esse relógio dele era uma bagunça. Ele devia acertá-lo a hora exata algum dia.

Não demorou muito e Vini reapareceu, disse que sua mãe acabara de chegar, pediu pra verificar se eu estava acordada para o tardioalmoço. Dei só uma passada no banheiro para me avivar mais, eu que não iria me apresentar com cara de sono. À mesa, Djane deu uma visão geral do que foi a reunião de emergência. Não só nossas vozes naquela discussão foram gravadas e alto-faladas, havia uma câmera interna naquele salão. A confissão involuntária de Bart tem opções de formato para o Conselho analisar. Como entramos em feriado, pouca coisa foi feita a respeito.

Por enquanto, o professor foi apenas afastado da instituição para se apurar o caso devidamente. Como todo mundo ouviu, eu não precisei dizer mais nada, a minha briga foi o bastante para o afastamento ser imediato. Contudo, não para medidas mais drásticas, afinal, agora o Conselho se preocupa com a possibilidade de Bart ter cometido outros delitos, senão o mesmo, mas com outras pessoas. Uma possível exoneração precisa de processo.

Djane não quis se deter àquilo, estava claramente cansada. Como chefe do departamento e parcial vítima, mais trabalho lhe foi adicionado. Após comer direitinho, sob os olhos de todos – dona Ana voltou à mesa só pra se certificar de que eu me alimentava bem, dizia que minha aparência era de abatida – eu ainda não acreditava em tudo que havia acontecido. Ou como acontecido. Não era a toa minha aparência mesmo. Por isso Vini desviou o assunto para nossa viagem que faríamos, sobre visitar meus pais, pois sabíamos que essa história da faculdade era difícil para um almoço, mesmo que não houvesse muita animação para comentar.

Com um tempo de conversa, me retirei para tomar um banho, assim como Djane. De volta ao quarto de hóspedes, depois de me vestir, dona Ana apareceu para me deixar uns recados. Que era sua hora, mas deixara jantar para todos – até porque ninguém estava a fim de sair, mesmo com todo o movimento na rua por causa do carnaval – e que Djane me esperava em seu quarto, para um momento particular.

- Sei que já deve ter ouvido muito isso, mas Milena, por quê? Não consigo me convencer que seu orgulho lhe barrou tanto, principalmente quanto a uma coisa tão séria.

Sentada ao lado dela em sua cama, Djane me toca no ombro. Sinto seu tom ainda preocupado. E um pouco culpado... Ela sempre aceitava minhas desculpas quando eu fugia do assunto de Bart.

- Não achei que fosse tanto. Mal posso acreditar nas proporções que isso tem tomado. E só de pensar que todo o prédio ouviu, eu fico sem ter o que dizer. Nem sei se posso classificar como vergonha...

- Vergonha, Milena? Quem devia ter vergonha é ele, que te usava para me prejudicar.

- Eu sei, eu sei. Não tava muito certa, nem muito errada. Era difícil, mas eu até que tava sabendo lidar com tudo. Vai brigar muito comigo?

- Devia puxar sua orelha, viu. Devia brigar feio com você... Só que não consigo.

O estranho é que eu esperava alguém gritar comigo. Não brigar, só gritar. Quase gritava para exigir que alguém gritasse mesmo, para me repreender. Porque Murilo, o grande benfeitor dessas brigas... não o fez.

Discutimos, claro, mas não do modo “convencional”.

Na verdade, até fiquei com um pouco de medo no caminho de casa quando ele ficou muito calado. Aquilo tudo na faculdade foi meio que um soco no meu estômago, me deixou sem fala, sem ar. Foi uma baita surpresa. Em casa, a atmosfera mudou completamente, Murilo mal saiu da garagem, resolveu abrir a boca. Ele parecia ainda bem zangado, só que não só pela situação, era comigo e consigo. Senti essa carga nele:

- Se digo que você precisa de proteção, você acha que é brincadeira. Que consegue lidar com as coisas. Porra, Milena, não sei se você percebeu, mas isso é uma daquelas coisas que deve sim se levar a sério, caramba. Como quer que eu fique tranquilo se uma coisa dessas acontece? Como quer que confie que você está de boa, se me esconde o que ocorre de verdade? Você não confia em mim... Sabe como isso me faz sentir?

Muda entrei em casa, não-mudo ele me seguiu.

Aquela briga não era nada como de costume, percebi logo.

- Reclama de minhas loucuras, mas sabe que 75% delas são por sua causa, e por essa sua ideia de me deixar de fora das coisas. Quer saber como me sinto? Uminútil, Lena, umtotal inútil. Um idiota. Não sou um telespectador em sua vida, sou seu irmão, tenho deveres, a seu gosto ou não. Se fico mais furioso comigo ou com você, eu não sei. E não sei se posso acreditar no que vier a me falar daqui pra frente. Pensei que a gente tinha um acordo, pensei que tudo estava indo bem de novo... pensei que... que você estava segura.

Desde a garagem evitei olhá-lo cara-a-cara, pra não me chatear. Não se tratava das costumeiras brigas nossas mesmo, ele não estava gritando comigo, estava... desabafando sua indignação. Insegura desse comportamento, mal sabendo o que responder, me atentei apenas ao que eu poderia esclarecer. Sei que esperava que eu dissesse alguma coisa e foi isso que eu encontrei. Encostada na mesa da sala, onde deixei meu material, falei por sobre o ombro:

- Não foi esse tipo de assédio, Murilo, o que está pensando, já disse umas...

Ele se remexeu inquieto pela sala, eu ouvia seus movimentos.

- Eu ouvi, eu sei, e me odeio por não ter visto os sinais certos. Ou os vi, e deixei que você me dissesse o que eles significavam. A versãolightda história. Eu mal tinha ideia do que era. E sabe-se lá o que mais num deve ter aí na sua cabeça. Será que dá pra parar de ficar guardando essas coisas ou tá difícil? Não se trata de apenas proteção, entende? Se você não compartilha comigo, eu não posso fazer nada. Se não faço nada, não posso ser seu irmão, não posso te... enfim, obrigado por me fazer sentir umnada.

Ok, essa doeu.

Doeu muito na verdade.

E só então percebi que, apesar da “calmaria” dele, as lágrimas voltaram, e dessa vez não eram apenas nervosas. Ele me derrotou porque tinha razão.

Quem diria que nessa hora cheguei a querer que Murilo só gritasse, eu gritasse de volta, ele se sobrepusesse, eu batesse a porta, ficássemos ambos zangados...? Era ele quem não queria olhar mais na minha cara, que passou ligeiro por mim para se isolar no seu quarto. Claro que tentei impedir, tinha de fazer algo a respeito.

Toquei em seu ombro para que parasse, e... Murilo desviou.

E Murilo NUNCA me ignora ou desvia.

- Não, nem tente. Me deixa. Tô muito chateado pra te ouvir agora.

Isso foi... chocante demais. Meu irmão me rejeitando?

Merecia, claro, mas ali... do modo que acontecia, num sei. Era muito diferente pra mim. E antes que eu pudesse emendar qualquer coisa mais, que era uma dificuldade para sair, ele quis encerrar ali aquela conversa, muito magoado:

- Sei que se não tivesse aparecido lá, isso nunca chegaria aos meus ouvidos.

O modo como falava, taciturno, como não se virava pra mim, machucado... me bateu desespero!Quis seu carinho exagerado, quis sua voz estourando meus tímpanos, que me perseguisse por respostas... Quis seu abraço. Percebi tardiamente que não viria.

- Murilo, me desculpa.

Queria mesmo dizer mais que isso, mas não seria nada bom começar com promessas. Principalmente se não fosse as cumprir. Ele permaneceu congelado no corredor, de braços cruzados, de costas para mim. Havia mais segurança nele, apesar de triste segurança, do que em mim, totalmente envolvida pelo embargo.

- Viu, você nem pôde me contradizer.

- Só... n-não fala essas coisas. Dói.

- É claro que dói. E não é metade do que eu tô sentindo agora. Por todo esse tempo... se não ainda, agora, me fazendo de palhaço...

Murilo meneou a cabeça pesadamente. Não vi se seus olhos cintilavam, não percebi se fungava, mas a chateação... ah, aquela chateação era profunda. Nem precisava lhe encarar para entender isso. Antes que só o silêncio sobrasse, fiz uma última tentativa de conversação:

- Você não disse por que foi que apareceu lá.

- Ah, sim. O vídeo. Você postou o vídeo.

De repente eu não tinha mais língua, ela pesava. Tudo o que decorei, todas minhas razões estavam no chão, sem sentido. Murilo seguiu seu caminho pelo corredor, bateu a porta, reinou o silêncio. Arrasada, ainda permaneci do lado de fora de sua porta por um tempo, só então me arrastei para um banho.

- Milena?

Djane me chama de volta à realidade.

- O que foi? Brigou feio com seu irmão de novo?

- Não exatamente. A gente discutiu... e muito. Ele tá certo.

Djane passa o braço por mim, me puxa para si, e eu a abraço com força. Assustada com o comportamento irregular de Murilo era pouco, era medo de que, sei lá, ele desistisse de mim. Morria por dentro por saber que havia essa possibilidade.

Não estamos nos falando, e não por zanga. Simplesmente eu o magoei demais.

- Ô, minha Milena, sabe que não posso desmenti-lo, se também acredito que ele esteja certo. Por todos os argumentos que tenha, dessa vez admita, Milena, que essa batalha não era pra ser sua, nem ganha. O orgulho muito te prejudicou.

E ela nem sabe metade. Choro um pouco, quieta, porque não consigo, mais uma vez, abrir a cabeça e falar tudo. Minhas razões, meu orgulho, que seja, não deixam. É mais forte que eu. Simplesmente travo, não consigo. Djane me consola, me abraça mais, me acalma. Mas a decepção está lá novamente, esteve me olhando feio pela noite, me olhou feio essa manhã. Por isso me sentia tão desgastada.

No fim da noite passada, quando achei que não haveria mais nada, se não fosse pela zoada de vizinhos com festejos de carnaval por ali, diria que minha audição captaria só os grilos, e, sensíveis a qualquer som, ouviria até o tic-tac quase inaudível do relógio da sala. Remexia num iogurte com cereais, mergulhava despretensiosamente a colher na tigela quando Murilo apareceu na cozinha, sem dizer uma palavra.

Por todo o tempo que esquentou seu jantar, que escolheu seus utensílios, que usou seu celular, permaneceu calado. E Murilo não é de ficar quieto.

Somente quando sentou à mesa, que ficou de frente pra mim, que ousei quebrar aquele gelo. Ele só me olhava, entristecido.

Eu quis pelo menos não ofazer sentir como um nada, o que se autodenominou momentos antes. Quis diminuir um pouco de sua mágoa, se pudesse.

- Desculpa. Você... não é um inútil.

Nem precisava abrir a boca, pois só de vê-lo, entendia que “não é assim como me sinto” era o que seu semblante expressava.

- O que eu quero dizer é que... sério, achei que não era nada demais. Aguentaria aquele professor pelo resto do ano se preciso. Mas não iria precisar, eu ia me reprovar por falta. Não cheguei a pensar nisso bem, ou como faria... porque, tudo bem, essa eu entendo que estaria me metendo numa encrenca.

Não sei como ele comia, mas era só isso que fazia. De garfada em garfada, ele comia devagar, me entreolhando de vez em quando.

- Só pense que... bom, não queria dar mais trabalho ou peso para Djane. Tive chances sim de denunciar, tive, não nego. E não o fiz por estar envolvida demais. Tinha minhas esperanças de que ia passar... Errei, Murilo, errei. Houve mais prejuízo do que lucro, admito.

- E o vídeo?

- Como você soube?

- Cheguei numa sala onde uns caras se divertiam com vídeos virais da semana. Disseram que tinha um que não fazia tempos de postado que estava ganhando espaço numsite. Vi ligeiramente e saquei. Ainda bem que eu tava de saída, aí só liguei pro Vinícius, ele me confirmou. Zangado, fui atrás de ti pra tirar satisfações, não iria esperar até chegar em casa, estacionei logo depois de Vini, na porta da tua faculdade. Quando passamos a catraca, deu pra sentir que algo acontecia.

Murilo descrevia com uma calmaria nada característica dele. Ainda me sentia estranha por vê-lo dessa forma. Nem eminência de uma reação exagerada havia, nada. Era como se tivesse perdido meu irmão, não havia energia.

- E aquela sua amiga Dani nos deixou bem pilhados, soube assim que algo tinha acontecido com você. Eu não tinha a menor vaga ideia do que poderia ser... Bom, vou ligar para nossos pais de manhã. Só ainda não pensei em como contar para eles.

Nossos pais?

- Não conte. Por favor, Murilo, não conte. Você sabe que a vovó tá de saúde fraca, e que mamãe fala demais, deixe que eles fiquem tranquilos. Por favor. Brigue comigo, eu não vou brigar de volta.

- Não sei, não sei se fico na minha. Eles certamente vão me culpar, que aqui tão perto não pude fazer nada...Vê o que fez?

Foi uma facada que senti. Apesar de um golpe rápido, o corte que fizera no meu coração começava a arder conforme eu respirava. E pulsava em dor.

- Vejo. E sinto muito. Muitííííssimo. Vo-o-ocê não sabe o quan-annto...

- Bom, sentir muito não tá resolvendo, porque eu também sinto muito, e muito mesmo, e nem isso me ajuda.

- Acabou, Murilo.

Tentei remendar o corte como umband-aid, daqueles que só mascara o ferimento, e nem consegue se estender por completo na abertura feita. Só que Murilo termina por puxá-lo, ele não queria que aquilo fosse remendado. E assim senti o ardor de novo:

- Será, Lena? Será que acabou ou só...? Enfim, está tarde.

Recolheu-se com seu prato, lavou tudo que sujou, não falou mais nada. Quando ia sair pra se retirar, eu não me aguentei de estar naquela situação. Havia tanto para falar, força nenhuma pra me permitir. Não pelo que deveria dizer. Comecei pelo que pude, assim levantei determinada da cadeira, ele estava entre a cozinha e a sala. Parou no mesmo instante que pôde me ouvir, me olhou apenas sobre o ombro.

- Postei porque estava zangada. Postei porque você passou dos limites, porque me fez passar vergonha. E gritar sobre isso não ia resolver, por isso paguei em moeda diferente. Foi como uma brincadeira séria, já que uma vez disse que não se importaria se o vídeo fosse parar no Japão, China, o que fosse. Você também errou, não tinha nada que... vasculhar minhas intimidades. Não tinha o direito de perguntar aquilo pro Vinícius.

Murilo suspirou. Para a parede mais logo a sua frente ele confessou, levando uma mão ao peito, onde batia seu coração. Mesmo de costas dava pra observar bem o que ele queria enfatizar:

- Talvez não tivesse... reconheço que foi uma fraqueza. Mas isso, Lena, não chega perto do buraco que você abriu aqui. Você não confia em ninguém, essa é a verdade.

Ele está certo.

E estou no seu lugar, no velho canto da vergonha. Sou eu quem decepcionou dessa vez, minha ferida, por mais que doesse, não era nada perto da que eu abrinele. Eu quem o feri e sentia muito. Tantas foram as vezes que o joguei para esse sentimento ruim, sinto o que lhe acometia. Por isso não dormi, pelo menos não direito, aquilo ficava repassando na cabeça quantas vezes pudesse, eu via seu tamanho desapontamento. Nem isso eu conseguia desabafar pra Djane, que só cuidava de mim.


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Notas finais do capítulo

Essa foi sacanagem, hein. Consolemos o Murilo, porque quase matou a criatura. Já podem gritar com a Milena, o universo deixa.



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